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Depois Da Religião (Luc Ferry)

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Academic year: 2021

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(1)

C omo pensar o fenômeno religioso depois da saída da religião?

Será necessário ver no âmago da idade laica uma persistência

do sagrado? Estará o mundo destinado ao desencantamento ou prometido a um reencantamento? Luc.Ferry e Mareei Gauchet

esclarecem aqui nossa perplexidade e seu desacordo por meio de uma discussão densa, sem polêmica nem concessões.

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DI FEL

Capa: Simone Villas-Boas

I

Foto: Bocos Benedict/Fotolia

Luc

FERRY

MARCEL GAUCHET

.Cbam. 211.5 F399r.Pb

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Autor: Ferry, Luc,

Título: Depois de religião : o que será

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Leia também de

Luc Ferry:

O QUE

É

UMA VIDA

BEM-SUCEDIDA?

O HOMEM-DEUS

OU O SENTIDO DA VIDA

LUC FERRY

&

MARCEL GAUCHET

DEPOIS DA

RELIGIÃO

O que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei?

Tradução

Nicia Adan Bonatti

D1

(3)

Copyright «7! Editions GRASSET & FASQUELLE, 1996 Título original: Le religieux apres la religion

Capa: Simone Villas-Boas Editoração: DFL

2008

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros- RJ

F456d Ferry, Luc,

1951-Depois da religião: o que será do homem depois que a reli-gião deixar de ditar a lei? fLue Ferry & Mareei Gauchet; tradução Nícia Adan Bonatti. -Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.

l08p.

Tradução de: Le religieux apres la religion ISBN 978-85-7432-082-3

l. Religião- Filosofia. 2. Religião- História - Século XXI. 3. Secularização (Teologia). I. Gauchet, Mareei, 1946-. II. Título.

08-0411

Todos os direitos reservados pela: DIFEL - selo editorial da

EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.

Rua Argentina, 171 - 1• andar - São Cristóvão 20921-380- Rio de Janeiro- RJ

Te!.: (Oxx21) 2585-2070 - Fax: (Oxx21) 2585-2087

CDD- 211.6 CDU- 211.5

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

DEPOIS DA

RELIGIÃO

(4)

Vivemos a "morte de Deus" ou, ao contrário, o retorno do religioso? A questão não cessa de se colocar. Por um lado, as Igrejas e os dogmas enfraquecem em proveito de crenças mais pessoais, "à la carte", dizem

alguns. Por outro - é preciso constatar - , os integris-mos e outros fundamentalisintegris-mos de todo gênero nunca se comportaram tão bem. Como se situar entre tendên-cias tão contraditórias? Luc Ferry e Mareei Gauchet esclarecem aqui nossa perplexidade por meio de uma reflexão que não hesita em recorrer à história da civi-lização. Assistimos, eles concordam, a um duplo proces-so, que Mareei Gauchet havia descrito em seu livro Le désenchantement du monde (Gallimard, 1985): de um

lado, a "saída da religião" e, do outro, a "individualiza-ção do crer". De fato, o que se apaga, de modo definiti-vo, é uma visão do mundo inteiramente estruturada pela religião (como heteronomia), uma concepção em que o religioso impregna todos os setores da vida públi-ca e privada. Saímos de tal maneira desse universo que doravante é em nome da livre escolha pessoal que

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rei-LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 8

vindicamos- ou não- uma crença religiosa. Para isso o religioso, como aspiração ao absoluto, como busca de sentido numa interrogação sobre a morte, está muito longe de desaparecer na época contemporânea: ele per-siste como uma hiância que mesmo os reducionismos mais radicais não conseguem preencher. Compreende-se dessa forma como, em nossos dias, o enfraquecimen-to das religiões e a permanência do religioso podem se encontrar no mesmo patamar.

Assim, resta pensar o estatuto desse religioso - in-quieto, problemático e incerto -num universo laiciza-do. Como pensar o religioso depois da religião? É sobre esse ponto que as análises de Luc Ferry e de Mareei Gauchet divergem radicalmente. Seu desacordo havia sido expresso, de forma um tanto implícita e rápida, em algumas de suas obras. I O College de Philosophie

con-vidou-os a explicitar essa discordância por ocasião de uma sessão de seu seminário público. Foi na Sorbonne, em 9 de janeiro de 1999: este livro apresenta a transcri-ção, revista e corrigida pelos autores. Lembremos aqui alguns elementos de contexto que permitirão ao leitor apreender o sentido de suas posições respectivas.

Para Luc Ferry, a época contemporânea caracteriza-se pelo cruzamento de dois processos: por um lado, o que ele chama de "humanização do divino", ou seja, o

1 Luc Ferry. L'homme-dieu. Paris: Grasset, 1996, p. 54, nota; Mareei Gauchet.

La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998, p. 64, nota. (Ed. bras. O homem-Deus. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Difel, 2007.)

Depois da Religido 9

fato de que toda a história cultural moderna consiste na

tradução dos conteúdos teóricos e práticos da religião

na linguagem do humanismo ou, dito de outra forma, numa linguagem que seja compatível com o indivíduo posto como valor cardinal. Por outro lado, a "diviniza-ção do humano", isto é, o fato de que no âmago desse individualismo autônomo - condição do homem mo-derno - reemerge a transcendência: uma transcendên-cia não mais vertical (entre os homens e o além), mas horizontal (entre os próprios homens).

É esse duplo processo que faria do humanismo con-temporâneo um humanismo do homem-Deus. No coração desse humanismo, única alternativa a uma interpreta-ção materialista e imanentista da vida humana, o reli-gioso não estaria destinado a se enfraquecer, mas, ao contrário, a encontrar sua forma mais autêntica. Para Luc Ferry, a "verdadeira" religião- isto é, aquela mais conforme à aspiração humana- não estaria atrás de nós, mas adiante, como um horizonte a ser elaborado.

Mareei Gauchet, por sua vez, contesta essa alterna-tiva do materialismo e do humanismo do homem-Deus, considerando que uma interpretação radicalmente não religiosa da transcendência é possível. Ele persiste assim na idéia de que vivemos a época de um afastamen-to e de uma separação entre o homem e Deus que não cessa de se ampliar. É essa separação que teria atingido atualmente sua amplitude máxima, de tal forma que o humanismo contemporâneo, que deveria ser pensado ou inventado em nossos dias, não seria aquele do

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ho-LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 10

mem-Deus, mas, ao contrário, aquele do homem sem

Deus e do homem definitiva e irrevogavelmente sem Deus. A figura histórica do sagrado é destinada a enfra-quecer em proveito de um "absoluto terrestre", cujas modalidades e formas ainda necessitam ser identifica-das. O que se tornará a exigência humana do sentido último, agora que ela está órfã do consolo dos discursos religiosos tradicionais?

São esses os termos do debate. O leitor decidirá por

si mesmo o caminho que desejará tomar nesse percurso

multissecular que engaja também o devir humano. Mas

ele será conquistado, pensamos, pela qualidade da argu-mentação, que não cede à vã polêmica, nem ao acordo fácil. Se cada um dos autores permanece, ao final, fiel às suas posições, nenhum deles sai totalmente indene da discussão: a natureza do desacordo, seu alcance e tudo aquilo que está em jogo se viram aprofundados e escla-recidos. Prova disso são os desenvolvimentos que poste-riormente serão dados a esse debate.

A partir de 1999, com efeito, a obra dos dois autores se enriqueceu de maneira considerável. Luc Ferry

pu-blicou O que é uma vida bem-sucedida?,2 em que

desen-volve a idéia de uma reconfiguração humanista da ques-tão religiosa. Por sua vez, Mareei Gauchet publicou,

entre outros, um livro de entrevistas, La condition

histo-z Luc Ferry. Qu'est-ce qu'une vie réussie? Paris: Grasset, 2002. (Ed. bras.

O que é uma vida bem-sucedida?. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro:

Difel, 2004.) (N.T.)

Depois da Religião ll

rique (Stock, 2003), que não somente constitui uma

introdução ao seu trabalho, mas uma verdadeira síntese I

se não a chave de seu projeto filosófico e histórico. Lendo essas duas obras, percebe-se uma seqüência e um aprofundamento das teses aqui apresentadas. A per-gunta "O que é uma vida bem-sucedida?" fornece a Luc Ferry um fio condutor para estudar as metamorfoses do que chama de "figura metafísica do religioso". Sob suas três dimensões, teórica, prática e soteriológica, essa figura emerge com a filosofia grega e prossegue seu des-tino no cristianismo- que se concebia como uma

supe-ração das sabedorias antigas - e até nos dispositivos

contemporâneos aparentemente mais distantes dessas preocupações, como, por exemplo, no "materialismo" nietzschiano. Que forma pode tomar a reformulação humanista e individualista dessa pergunta diretriz da existência pessoal? Luc Ferry se dedica a identificá-la na última parte de seu livro, desdobrando assim as bali-zas colocadas na presente discussão. A sabedoria do homem-Deus, longe de deixar lugar ao orgulho e à

des-medida (a hybris dos gregos), tentará encontrar no

indi-víduo finito e mortal os meios de sua justificação, de sua salvação e de sua grandeza.

Mareei Gauchet, por sua vez, também traz certo número de complementos que permitem precisar as

for-mas que seriam suscetíveis de revestir o "absoluto

ter-restre" num mundo desencantado. Há em nossa época, diz ele, experiências profanas do religioso ou ainda da

(7)

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 12

p. 311-312): "Muitos jovens sonhadores, que se querem modernos até o último fio de cabelo e que se julgam libertos dessas velharias que mal se podem imaginar, são místicos sem sabê-lo, em busca de uma experiência espiritual. Festa, transe, vertigem, estados alterados de consciência obtidos pela música ou por substâncias ade-quadas: o que sempre está em causa é o acesso a uma outra ordem de realidade. O lugar tomado pelas drogas em nossas sociedades se explica em grande parte por

isso. Diz respeito à aspiração a fugir da prisão do

coti-diano." Mas não são essas as únicas manifestações: "Seria preciso falar no mesmo sentido da ascese esporti-va ... do que está em jogo no trabalho sobre o corpo, na ética do esforço, na busca da superação de si." Até a "experiência da arte" que, despida de sua relação espe-culativa com o sagrado, permanece "uma experiência íntima de ordem espiritual para muitos ... O que se busca no êxtase musical ou no deslumbramento pelo verbo é a passagem para um mundo impalpável e mais pleno do que aquele que nos é ordinariamente dado". Em suma, conclui Gauchet, "o animal metafísico não se conhece mais como tal, mas isso não o impede de existir".

Como pensar esse animal metafísico que é o homem? E como pensá-lo hoje, quando os dispositivos religiosos se apagaram em sua força de evidência e de coerção? Tal é o fundo do problema e do dilema. O excesso do homem em relação à sua própria natureza: será preciso interpretá-lo como o sinal de que há nele mais do que ele mesmo, algo de divino, no sentido em que o

com-Depois da Religido 13

preende Luc Ferry? Ou, ao contrário, como pensa Mareei Gauchet, não se pode ver nada além da manifestação da condição humana, simples e exclusivamente humana? Em suma, é um possível reencantamento ou um desen-cantamento radical que se desenha no horizonte no mundo por vir?

Eric Deschavanne Pierre-Henri Tavoillot

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Pierre-Henri Tavoillot

O Collêge de Philosophie está particularmente hon-rado e feliz em receber Luc Ferry e Mareei Gauchet para debater a questão das relações entre filosofia e religião. Essa discussão é muito esperada, por pelo menos duas razões.

Para quem os lê atentamente, na compreensão e ao mesmo tempo na extensão de suas obras, a proximidade de suas perspectivas e de suas ambições intelectuais é surpreendente. Trata-se, nos dois casos, nada menos que do projeto de pensar as metamorfoses modernas da cultura, de interrogar a reinvenção contemporânea da humanidade sob seus aspectos mais significativos: espi-ritual, político, ético, psicológico, estético ...

Contudo, lendo-os ainda mais detidamente, desco-bre-se, nas notas de rodapé, algo como uma discussão mais discreta que dá testemunho, além da diferença entre seus respectivos métodos - mais filosófico para um, mais histórico para outro - , de nuanças, ou até

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 16

mesmo de francos desacordos, sobre o diagnóstico e a interpretação.

Noto dois, de passagem e de memória: um que diz

respeito à periodização da história da subjetividade; o

outro, à nova articulação do privado e do público nas sociedades contemporâneas. Não insisto neles, pois o

ponto que nos ocupará hoje é muito vasto: ele concerne

ao lugar do

sagrado

na idade laica. Está destinado a

de-saparecer ou encontra uma nova configuração no hori-zonte do humanismo? Em que recanto de nossas socie-dades de indivíduos as grandes questões sobre o senti-do da existência irão senti-doravante se aninhar ou se escon-der? Em suma, o que se tornará o religioso depois da "saída da religião"? Para começar, passo a palavra a Luc Ferry.

Luc Ferry

Relendo Mareei Gauchet para preparar esse encon-tro, perguntei-me se os desacordos que notam entre nós são efetivamente reais ou somente fictícios. Hoje seria uma boa ocasião para tentar medi-los. Entre as três dis-sensões mencionadas por Pierre-Henri Tavoillot,

pa-rece-me de fato que a mais importante, se é que existe,

é aquela que diz respeito ao uso da palavra sagrado e à legitimidade ou não de falar, como o faço, da "diviniza-ção do humano", ou ainda da rela"diviniza-ção com o sagrado ou da "espiritualidade laica". Esse vocabulário seria

legíti-mo em nossos dias? Não é abusivo? Provavelmente é isso

Depois da Religido 17

que pode suscitar a principal dissensão. A questão da periodização da história da subjetividade me interessa muito; mas é uma questão, convenhamos, relativamente marginal em relação à da legitimidade de um discurso sobre a espiritualidade ou sobre o sagrado que não seria um discurso puramente histórico ou historiador, um discurso que aceitaria essas categorias como sendo

ainda legítimas hoje em dia. Creio ser

o

ponto central e,

na mesma medida, ir diretamente - se é que há

diver-gência entre nós (veremos isso daqui a pouco)- ao essencial.

Partirei do último livro de Mareei Gauchet,J no qual há uma pequena nota que me diz respeito e que parece, ao menos à primeira vista, bastante clara. Ela correspon-de a uma passagem na qual Mareei Gauchet explica que o homem e Deus estão separados como jamais estiveram na história da Europa e provavelmente na história do mundo e que, diz ele, saímos da era de uma autonomia a ser conquistada contra a heteronomia. Dito de outra maneira, esse processo de conquista da autonomia está terminado. Vivemos definitivamente num mundo sem Deus, no qual o homem está completamente separado do divino. Tese que vem reforçar, portanto, a seguinte nota: "Não se pode estar mais enganado no diagnóstico, a meu ver, que Luc Ferry, ao falar da humanização do divino e da divinização do humano. Trata-se de, exa-tamente ao contrário, uma dinâmica separatista que

1 Marcel Gauchet. La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998,

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 18

desantropomorfiza o divino e retira do humano tudo o que nele ainda poderia subsistir de uma participação, mesmo longínqua, no divino." Por conseguinte, continua Mareei Gauchet, falar de humanização do divino e de divinização do humano, como eu fiz em O homem-Deus,

é imaginar que esses dois termos estão hoje em dia em vias de aproximação, ou mesmo aproximados, é o erro por excelência, pois a história da Europa leva, ao con-trário, a manifestar sua separação radical e provavel-mente definitiva.

Creio que de fato é o ponto sobre o qual é preciso que reflitamos, saber se realmente se trata de uma

opo-sição- o que é possível, não excluo essa hipótese, mas

também não estou absolutamente certo dela - ou, ao contrário, se é muito mais uma querela de palavras que de fundo. Porém, uma vez mais, quando digo que não excluo as duas possibilidades, é porque verdadeiramen-te não sei, dado que a nota de Gauchet não é, realmen-te, muito explícita: ela expressa mais uma rejeição que uma explicação.

Para tentar esclarecer, gostaria de fazer algumas observações que partirão em primeiro lugar do problema central, a meu ver, que é a definição do religioso, pois evidentemente quando se fala de "sagrado", de "divi-no", de "religioso", de "espiritual", tudo depende do que se coloca sob esses termos. A questão é, portanto, saber se quando se fala de uma aproximação, como faço, entre o humano e o divino, ou, ao contrário, de uma separação total, se expressam verdadeiramente pontos de vista tão contraditórios quanto parecem à primeira vista.

Depois da Religido 19

O que Michel Gauchet compreende como religioso? Penso que ele retém três grandes características do reli-gioso que não parecem formar, de fato, uma definição legítima e coerente- uma definição que não ponho em causa, mas que nem por isso penso ser a única possível. 1) O primeiro traço é, no sentido amplo, a heterono-mia: o religioso é um princípio exterior e superior à humanidade. Sobretudo na relação com a lei, é a idéia de que a lei é simultaneamente exterior e superior aos homens. É nesse sentido que Mareei Gauchet tem razão em dizer que o religioso "mais religioso" está na origem da história, sobretudo nas sociedades selvagens ou pri-mitivas - o nome que se dá a elas pouco importa. O verdadeiro religioso, se posso dizer assim, está na ori-gem, dado que é nela que a exterioridade das matrizes da lei ou da organização social e política em geral é maior. Em outras palavras, o religioso não é simples-mente a heteronomia- isto é, o fato de que a lei vem de

outro lugar que não a própria humanidade - , mas, de certa forma, a denegação da autonomia - vale dizer, o fato de que os seres humanos se recusam a atribuir a si mesmos a organização social, a história, a elaboração das

leis- e que, recusando-se a perceber a si mesmos como

matrizes da organização social, da lei e do político, eles extra-põem essa fonte numa transcendência, numa exterioridade, numa superioridade e, em suma, numa dependência radicais.

2) Segunda grande característica: se entendemos o religioso nesse sentido - notem que a originalidade do

(11)

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 20

trabalho de Mareei Gauchet está em partir de uma defi-nição política do religioso, isto é, que se trata de com-preender o religioso em seu laço com a organização social e com a lei, e quase todas as objeções que lhe são feitas normalmente não se sustentam porque na maior parte das vezes elas não levam em conta essa particula-ridade de sua definição - , então se compreendemos bem que a definição do religioso dada por Mareei Gauchet está ligada à questão da organização política e da produção da lei, compreendemos também que o reli-gioso na história da Europa pertence, com efeito, ao passado. Pertence a um tempo terminado, e aí está sua segunda característica, não simplesmente no sentido em que se poderia dizer: "aí está: as grandes idéias religio-sas desapareceram, vivemos em sociedades em que a secularização, a laicização produziram seus efeitos etc."

- e é, aliás, por isso que Mareei Gauchet rejeita, a justo

título, o uso dos termos secularização ou laicização em sua própria perspectiva. Mas o religioso pertence ao passado em um sentido muito mais profundo e muito mais estrutural: não é simplesmente que saímos das inge-nuidades religiosas; é o fato de que o religioso, entendido nesse sentido, pertence a formas de organização política

tradicionais, nas quais a lei é pensada como a herança de uma tradição que, ela mesma, se enraíza num passado imemorial e finalmente divino. Ora, é essa estrutura da organização social na qual a temporalidade pertence ao passado que está, por excelência, hoje extinta, na medi-da em que, grosseiramente, a partir medi-da Revolução Fran-cesa - poderíamos mesmo mostrar como isso se enraíza

Depois da Religião 21

no nascimento do Estado - , temos sociedades organiza-das a partir da idéia de auto-instituição, da idéia de que os homens fazem sua história, elaboram a lei, sobretudo com o nascimento dos Parlamentos e principalmente com a idéia de que a temporalidade dessas sociedades se pensa a partir do futuro. Como dizia Clastres, 4 um chefe

indígena, desejando ser eleito (a idéia de eleição não tem pertinência aqui, mas trata-se de uma imagem), teria dito: 'J\cima de tudo não mudarei nada na sociedade em que vivo, pois a inovação é um pecado por excelência." Vejam que atualmente um candidato que se apresentas-se às eleições, tendo como programa unicamente a pro-messa solene de que jamais mudaria coisa alguma, teria pouca chance de se eleger. Temos aqui uma estrutura de temporalidade completamente diferente. Se insisto com exemplos voluntariamente simplistas é para dizer que a pertença do religioso ao passado não é superficial -não é como se, numa visão positivista ou historicista, disséssemos a nós mesmos: acabamos com as ilusões da religião, assim como fizemos com todas as velhas superstições vencidas pelas Luzes da razão e da ciência etc. Não é o que Mareei Gauchet quer dizer quando decreta que o religioso pertence fundamentalmente ao passado: ele quer dizer que, estruturalmente, a idéia religiosa, tal como a define, está ligada a sociedades tra-dicionais. Isso evidentemente não significa que não haja

4 Pierre Clastres. La société contre l'État. Paris: Minuit, 1974. (Ed. bras.

A sociedade contra o Estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.)

(12)

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 22

mais crentes - provavelmente há nesta própria sala

cerca de 60% de cristãos-, mas que a religião setor-nou uma opinião particular entre outras, uma crença pessoal entre outras e que ela não estrutura mais o espa-ço público e nem é mais a matriz da ·lei.

3) A terceira característica é que, como se pressente inevitavelmente nessa perspectiva, a religião não é uma "disposição natural" do humano em geral, no sentido que Kant dava a essa expressão. Não é uma disposição metafísica do homem. Dito de outra forma, a

necessida-de religiosa não é - ou, em todo caso, nada permite

afirmá-lo com certeza- algo como uma dessas catego-rias transcendentais da experiência humana, como se a religião estivesse inscrita desde sempre e para sempre na configuração essencial do ser humano. A religião pertence, ao contrário, a um período passado e ultrapas-sado da história. Ela tem um começo e um fim. Pode-se imaginar uma organização social dos seres humanos definitivamente sem religião, sem que com isso as ve-lhas ameaças da Igreja nos caiam sobre a cabeça e sem que, forçosamente, essas sociedades sem religião, pura-mente humanas, estejam fadadas ao totalitarismo ou, quem sabe, a alguma catástrofe qualquer, ao imoralis-mo, ao materialismo etc. Acredito que tudo isso está devidamente afastado por Mareei Gauchet. Dito isso, o corolário dessa "vassourada", por assim dizer, é que a religião não aparece mais como uma disposição metafí-sica, essencial à humanidade, mas como um momento histórico ligado a uma organização social e política par-ticular.

Depois da Religião 23

Sobre esses três pontos, direi francamente o que penso: se nos colocarmos na perspectiva política de Mareei Gauchet, ele tem evidentemente razão. E, mais uma vez, a maior parte das objeções que lhe são feitas cai por terra, tais como: "Veja a atual revanche de Deus: o Dia Mundial da Juventude na França e o islã às nossas portas." Tudo isso, acredito, não incomoda Mareei Gauchet. No primeiro caso, trata-se, apesar de tudo, de manifestações privadas da religião: mesmo que transpa-reçam no espaço público, não correm o risco de reapare-cer como figura da organização pública ou, ainda menos, como um princípio fundador. No segundo caso, fala-se de povos e de países que jamais conheceram nem a laicidade nem a democracia, e que freqüentemente se debruçaram sobre a religião para encontrar uma "iden-tidade nacional" forte no quadro dos processos de des-colonização.

Apesar disso, se tomarmos outra definição do

reli-gioso, podemos - sem que estejamos em desacordo

fundamental com a perspectiva de Mareei Gauchet, que mais uma vez me parece, pelo menos em seu campo,

pouco contestável - chegar a conclusões muito

dife-rentes das suas. Serão elas contraditórias? É possível,

mas, contrariamente ao próprio Mareei Gauchet, não

tenho de forma alguma certeza sobre isso a priori. Penso

que é então preciso se dar ao trabalho de pensar um pouco além das aparências, se não for pedir demais.

Podemos distinguir ao menos três grandes defini-ções do religioso.

(13)

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 24

Conforme a primeira delas, que conhece um grande

impulso no século

xvm

e prossegue sua longa história

com Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, a religião deveria ser compreendida como o ópio do povo, como niilismo, como neurose obsessiva da humanidade, sem-pre com uma mesma estrutura, a do "fetichismo": uma atividade intelectual, meio imaginária, meio racional, que fabrica um produto, no caso a idéia de Deus, depois se apressa em esquecer que é inteiramente a responsável pela autoria. No fundo, o princípio dessa crítica já está contido na famosa frase de Voltaire, que cito de memó-ria: "Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou na mesma moeda." Não insisto. Essa definição da reli-gião como superstição, hipóstase fetichizada ou aliena-ção não interessa a nenhum de nós dois senão de manei-ra marginal.

Há uma segunda definição do religioso. É a

defini-ção política no sentido forte, aquela em cuja perspecti-va se situam os trabalhos de Mareei Gauchet, sobre a qual acabo de falar.

Uma terceira definição situa-se num plano não mais

histórico e político, mas filosófico e metafísico - o

reli-gioso, bem simplesmente, como discurso que diz respei-to ao elo entre o finirespei-to e o infinirespei-to, entre o relativo e o absoluto, com uma questão central: a da finitude ou, para ser mais preciso, da morte. Essa figura metafísica do religioso é, sob certos aspectos, relativamente inde-pendente da definição política que é dada por Mareei

Gauchet. É a definição que encontrarão- aliás, já

Depois da ReligiiJo 25

defendida por mim num artigo da Débat5 - na filosofia

moderna, ao menos a partir de Descartes. Parece, de fato, que a filosofia moderna não pode ser verdadeira-mente compreendida senão como uma tentativa de

tra-duzir num vocabulário que é o da razão, portanto nos

conceitos por essência laicos, os grandes discursos

reli-giosos, começando, é claro, pelo discurso cristão. O exemplo mais significativo é sem dúvida o do

he-gelianismo. A fenomenologia do espírito, como sabem,

conta o trajeto de uma consciência que Hegel chama de 11 • "" • • .... , , 11 ...

consciencia mgenua , a consc1encia natural", como o diz ainda, dado que ela mal emerge da natureza, isto é, o ser humano, finito e ignorante, que por etapas se aproxima do Absoluto, a saber, de Deus, da compreen-são infinita, desse "saber absoluto" que evidentemente

nada mais é que um dos nomes do divino. O projeto de

Hegel é fazer de modo que esse estranho itinerário pelo

qual o ser humano encontra Deus - o ser finito se

reúne com o saber absoluto-, esse trajeto que é efetua-do pela fé na religião (esse lampejo que nos impele à fusão imediata com Deus) seja, ao contrário, operado pela filosofia no âmago desse elemento profundamente laico que é o da razão. Creio que, num sentido a ser

ainda precisado, essa trajetória de A fenomenologia do

espírito vale de modo emblemático para toda a filosofia

moderna- não simplesmente para Hegel, mas também

para Descartes e mesmo para Kant. A filosofia ocidental moderna poderia definir-se como uma tentativa de

5 Le débat, "La ph!losophie qui vient", n~

(14)

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 26

retraduzir os grandes conceitos da religião cristã no interior de um discurso laico, isto é, de um discurso racionalista. De certa forma, a Declaração dos Direitos

Humanos - num modo diferente e num outro registro

- freqüentemente não passa de um cristianismo

laici-zado ou racionalilaici-zado. Falo aqui do conteúdo, e não dos atos declaratórios ou ainda da história da Declaração; falo dos valores que ela veicula e que a meu ver não somam grande coisa aos valores cristãos. No fundo, parece-me que não há uma descoberta surpreendente de novos valores ou de uma nova moral no século XVill na Europa, mas muito mais uma laicização dos valores tradicionais do cristianismo.

Nessa perspectiva de uma definição do religioso como relação com o Absoluto, portanto com essa ques-tão central na filosofia moderna que é a da finitude, as três características do religioso segundo Mareei Gauchet são evidentemente contestáveis, porque nós nos coloca-mos de um ponto de vista totalmente diferente. Aqui, a religião não é necessariamente heteronomia. Pode-se, por exemplo, descobrir o religioso a partir de

experiên-cias inteiramente autônomas, essas Erlebnisse,

expe-riências vividas, das quais falava principalmente Husserl. Ou, mais exatamente, poderíamos dizer que o

religioso aparece como o horizonte das experiências

vividas pelos seres humanos- esse horizonte de trans-cendência sobre o qual voltarei a falar adiante e que não me parece necessariamente fadado à heteronomia. A transcendência e a heteronomia não são a mesma coisa. O religioso também não pertence obrigatoriamente ao

Depois da Religião 21

passado porque, como horizonte de certas experiências vividas pelo indivíduo, ele pode perfeitamente tomar a dimensão do presente ou mesmo do futuro. Ele não está indispensavelmente aqui ligado a um período histórico ou a uma organização social particular; pode aparecer como uma disposição natural para a metafísica, cuja ori-gem, aliás, permanece extremamente problemática ou talvez mesmo misteriosa, e sobre a qual a reflexão pode-ria felizmente aplicar-se.

Gostaria de desenvolver rapidamente as conseqüên-cias opostas ou, em todo caso, aparentemente opostas,

dessa outra definição do religioso - que, diga-se de

passagem, provavelmente não escapa a Mareei Gauchet, mas que simplesmente não faz parte de sua proposta. Em que o religioso, definido muito simplesmente como acabo de fazê-lo, em seu sentido puramente metafísico e filosófico, pode parecer atualmente, no âmago das socie-dades laicas, como uma dimensão legítima e, se posso usar aqui a expressão gasta, "incontornável" da exis-tência humana? Darei dois indícios.

O primeiro é que a noção de transcendência não é redutível à de heteronomia ou de dependência radical. Na história da filosofia há, seja dito de passagem, ao menos duas grandes figuras da transcendência, duas grandes definições da transcendência. Em primeiro lugar há a transcendência tal como ela existe a

montan-te da consciência humana, anmontan-tes e acima dela. É a

trans-cendência da Revelação, a transtrans-cendência da

heterono-mia de que fala Mareei Gauchet, a transcendência à qual

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 28

fundo, em Esplendor da verdade: vocês não são obriga-dos a ser cristãos, mas, se forem cristãos, então admitam que há uma verdade revelada, uma verdade crística e que essa verdade dada pelo próprio Deus possui um

certo número de implicações morais - e funda o que o

papa chama, aliás corretamente, nessa perspectiva, de "teologia moral". Diante dessa verdade, a atitude que convém não é a do orgulho cartesiano, que pensa tudo pôr em dúvida e tudo submeter ao crivo do exame crí-tico, em nome da recusa dos argumentos de autoridade, mas a atitude da humildade. Transcendência, portanto, com T maiúsculo, transcendência a montante da cons-ciência, transcendência heterônoma. Esta, nós conhe-cemos, no fundo, é também aquela de que fala Gauchet,

mesmo que ele evidentemente a inclua - e é uma das

contribuições de seu trabalho- numa perspectiva política e histórica de estrutura de organização social.

Mas há também uma outra figura da transcendência que, a meu ver, não é menos transcendente que a

pri-meira- e é sobre ela que deve incidir o debate. Em

certo sentido, penso que ela não é menos religiosa: acho mesmo que ela designa precisamente a verdade das reli-giões. Trata-se de uma segunda forma de transcendên-cia, de uma transcendência que não está a montante da consciência humana, mas, ao contrário, a jusante das experiências vividas, que não está, portanto, situada estruturalmente no passado, e sim no futuro; uma trans-cendência que corresponde àquilo que Husserl designa-va como uma "transcendência na imanência", isto é, o horizonte inevitável e incontornável de nossas

expe-Depois da Religiao 29

riências vividas, não só na ordem da verdade ("2

+

2

=

4"

é transcendente em relação à menor individualidade:

não é uma questão de gosto e resiste formidavelmente ao

relativismo ambiente), mas também- e é claro que

aqui se trata de uma metáfora - uma transcendência na

ordem da ética, e, por que não, da cultura. Pois aqui também, apesar do que se diz freqüentemente, temos a sensação de que descobrimos "verdades", que não as

inventamos - o que, convenhamos, é muito diferente e singularmente problemático para o individualismo e para o materialismo. Transcendência na ordem da moral, é claro, mas também da estética, como eu dizia, e na ordem daquilo que Spinoza chamava de ética, isto é, no fundo, na ordem do amor. Não é por sentimentalismo que falo hoje de amor, mas porque essa quarta esfera, além da verdade, além da moral, além da estética e do simbólico, essa esfera da ética no sentido de Spinoza, mas ao mesmo tempo da Sittlichkeit no sentido de Hegel, é a que mais nos aproxima do religioso- fato de que tanto Spinoza quanto Hegel tinham perfeita cons-ciência. Essa dimensão do amor faz parte, com pleno direito, da história da filosofia moderna.

Digo que no horizonte dessas quatro experiências, de qualquer modo que se as vivenciem, há a necessidade de uma experiência de transcendência, não sob o modo da heteronomia e da dependência, mas na imanência. O que gostaria de acrescentar, para que se compreenda bem, é que essa transcendência na imanência tem uma história. Não é um acaso que a palavra apareça em Husserl; ela tem uma história que se enraíza na filosofia

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 30

transcendental, e mesmo - se alguns estudantes

dese-jassem fazer uma pesquisa sobre este assunto ela seria

bem-vinda- ela parte de Leibniz, nos dois domínios

da filosofia, o da teoria e o da moral, isto é, do lado da verdade e do lado do bem e do mal. Em poucas palavras: por que a teoria kantiana da verdade é a primeira figu-ra dessa idéia gfigu-randiosa, a meu ver, de tfigu-ranscendência na imanência? Quando o problema da representação se coloca na filosofia kantiana, a partir dos anos 1770-1771, Kant, no fundo, diz o seguinte: habitualmente se põe o problema da verdade nos seguintes termos: temos representações, por exemplo, uma garrafa, e a verdade seria a adequação dessa representação de garrafa ao objeto em si que lhe corresponde. Portanto, o ideal de verdade seria fazer corresponder nossas representações, nossos pensamentos, e o objeto em si. A grande revolu-ção kantiana, a que se convencionou designar como revolução copernicana, consiste em dizer que essa maneira de colocar o problema é absurda e que a verda-de científica não seria uma relação entre representações subjetivas e as coisas em si, mas que ela reside simples-mente numa certa ligação das representações, numa certa associação das representações que vale

universal-mente. É, tendo Leibniz no horizonte, um "devaneio

bem amarrado", graças a regras universais, aquelas que fornecem ao método científico as categorias do entendimento. Em outras palavras, a verdade é funda-da, para Kant, sem sair do domínio das representações, ou, para me encaminhar para a fórmula de Husserl: a verdade está fundada na imanência da subjetividade,

Depois da Religido 31

mas como algo que transcende a particularidade de cada um de nós.

Aí está, parece-me, a primeira figura da transcen-dência na imanência. A segunda se situa no campo da moral. Kant é aquele que vai fundar a moral, talvez pela primeira vez, sem nenhuma referência a Deus, nem a algum princípio substancial, por exemplo cosmológico, exterior e superior à humanidade. A moral é puramente fundada sobre princípios humanos -poderíamos mes-mo dizer humanistas. Contudo, por outro lado, é essa reviravolta que me parece fundamental para compreen-der a situação do religioso hoje em dia. O religioso se reintroduz no final do percurso como o horizonte das práticas humanas; é esse o sentido dos famosos postula-dos da razão prática, a idéia de que a moral não é fundada na religião, de que se ela o fosse seria um desastre -é, portanto, o fim do teológico-ético - , mas que, ao mesmo tempo, no horizonte de nossas ações morais não pode deixar de existir uma problemática religiosa, aque-la aberta pelos famosos postuaque-lados da razão prática.

Isso também constitui uma verdadeira revolução,

devida à idéia de que o religioso não se encontra mais a

montante da moral, como quer o papa (a teologia moral), mas sim inteiramente a sua jusante, isto é, ele passou para o lado do futuro. Em outros termos, o religioso não é mais da ordem da heteronomia, da dependência radi-cal, mas da ordem da transcendência na imanência. Não se trata mais de sobre o que a moral vai se fundar e que é exterior aos seres humanos, mas na direção de que a

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 32

moral tende e o que é pensado a partir da autonomia das experiências individuais.

É claro que se poderia discutir longamente a respei-to do bom fundamenrespei-to de tal revolução. Creio que, no mínimo, sua realidade é pouco contestável e que ela abre, a respeito do estatuto do religioso depois da reli-gião, isto é, no âmago de um mundo laico e desencanta-do, uma perspectiva, sob alguns aspectos, diferente daquela tomada por Mareei Gauchet - isso, aliás, não significa sempre que ela lhe seja oposta, o que é ainda uma outra abordagem.

Adiciono ainda uma última idéia, pois sugeri que havia dois indícios da persistência legítima do religioso no coração do mundo democrático. Primeiro indício: podemos pensar o religioso de outra forma que não a heteronomia e como estrutura passada ou ultrapassada. Aí está o efeito dessa reviravolta extraordinária entre moral e religião produzida em algum momento do sécu-lo XVIII. Segundo índice: aqui se trataria de uma dis-cussão com nosso amigo Lipovetsky- é a idéia de que, contrariamente ao que às vezes sugere seu livro O cre-púsculo do dever,6 a noção de sacrifício de modo algum desapareceu da problemática moral de nossos contem-porâneos. Penso que, ao contrário, ela está presente, mas que simplesmente os motivos do sacrifício se

huma-6 Gilles Lipovetsky. Le crepuscule du devoir. Paris: Gallimard, 1992. (Ed.

bras. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005.)

Depois da Religião 33

nizaram. Como busquei mostrar longamente em O

homem-Deus, baseando-me principalmente nos traba-lhos dos historiadores das mentalidades dedicados ao nascimento da família moderna, hoje na Europa não nos sacrificamos mais por entidades religiosas; mas, por outro lado, penso que inúmeros indivíduos estariam prontos a arriscar suas vidas para defender certo núme-ro de valores, ou, simplesmente, para defender seus próximos. Por que fazer essa constatação, que poderia parecer de uma banalidade consternadora, tenho cons-ciência disso? Porque acho- e retomo aqui uma maneira nietzschiana de descrever o religioso ou o sagmaneirado -que a partir do momento em -que se estabelecem valores superiores à vida material, biológica, entra-se na esfera do religioso. É isso que quero dizer. Ou então afirma-se que é uma ilusão, como faz meu amigo André Comte-Sponville. De fato, vocês encontrarão à disposição uma plêiade de discursos nietzschianos, freudianos, marxis-tas, sociológicos, biológicos (o gene egoísta ou altruísta) etc. explicando que a idéia do sagrado, nesse sentido, é uma ilusão. Compreendo-os e chego até mesmo a dizer que é possível. Contudo, se vocês admitirem que não é uma ilusão, que a idéia do sacrifício de sua vida não é uma idéia ilusória, mas, ao contrário, uma idéia inteira-mente inerente à moral moderna, então nesse caso serão obrigados a refletir sobre aquilo que faz com que, numa sociedade sem religião, numa sociedade globalmente materialista, a referência a princípios superiores à vida não se tenha tornado integralmente absurda.

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 34

É exatamente isso que eu queria sugerir ao falar da divinização do humano. É claro que não desejo sugerir que se volte ao religioso no sentido em que se fala de revanche de Deus, no sentido em que há, hoje em dia, um sincretismo místico-budista-cristão ou similares. Não é a isso que me refiro, mas ao fato de que a idéia de transcendência não desapareceu e que não podemos -e -est-e s-erá o s-entido d-e minha conclusão - nos satisfa-zer simplesmente com as morais laicas.

Quando escrevi, com André Comte-Sponville, A

sabedoria dos modernos, 7 o subtítulo do livro era 'í\lém

da moral". As morais laicas foram formidáveis para colocar e talvez mesmo resolver de modo laico, isto é, sem a hipótese de Deus, a questão do bem e do mal. Por fim, o que nos diz essa carta das morais laicas que é a Declaração dos Direitos Humanos? Que o fundo da moral é o respeito pelos outros, que é preciso respeitar os interesses, a liberdade e a dignidade dos outros. Muito bem. Mas você pode perfeitamente respeitar os interesses, a liberdade e a dignidade dos outros, aplicar impecavelmente os direitos humanos em toda sua exis-tência e mesmo ir além deles, até atingir a santidade mais perfeita. O que afirmo simplesmente é que isso em nada responderá - em nada - às questões existenciais ligadas à condição humana: por exemplo, de que serve envelhecer, como educar seus filhos, como pensar, como

7 Luc Ferry e André Comte-Sponville. La sagesse des modernes. Paris:

Laffont, 1998. (Ed. bras. A sabedoria dos modernos. Trad. Eduardo

Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.)

Depois da Religirlo 35

administrar, por assim dizer, o luto de um ser amado, ou como, simplesmente, lutar contra o tédio, contra a banalidade cotidiana? Em outras palavras, todas essas questões, além de muitas outras, que antigamente per-tenciam à órbita do discurso religioso e metafísico, não são atualmente reguladas pelo discurso moral. Muito mais que isso, o discurso das morais laicas nada lhe diz sobre elas.

Uno essas duas idéias entre si e me detenho: 1) Não está excluído que a idéia de transcendência conserve um sentido a jusante das morais laicas e, portanto, tam-bém não o faça sobre o modo do teológico-ético, mas sim sobre o modo do ético-espiritual. Nesse sentido, a pro-blemática da religião ou da espiritualidade não perten-ce a uma estrutura de organização passada.

2) Essa idéia, que me parece plausível, também me parece estar de facto relativamente bem encarnada na realidade das sociedades em que vivemos, justamente por meio de uma aspiração cada vez mais evidente para além da moral; uma consciência cada vez mais clara, mesmo que não expressa como tal, de que a moral não basta. Então, isso não quer dizer que eu tenha me torna-do um "imoralista", como simploriamente disseram alguns críticos. Simplesmente dei-me conta, no decorrer destes últimos anos ou, para dizer a verdade, há muito tempo, de que as grandes morais laicas não respondiam às questões às quais redargüíam, ou pretendiam redar-güir, os grandes discursos religiosos. Nesse sentido, o deslocamento do "a montante" para o "a jusante" pare-ce-me ser algo singularmente interessante, para dizê-lo

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 36

de modo minimalista. Essas são as observações que eu gostaria de submeter a discussão.

SAÍDA DA RELIGIÃO E PERMANÊNCIA DO RELIGIOSO

Mareei Gauehet

Não é fácil ter de improvisar uma resposta a uma intervenção tão meditada e construída.

Uma primeira observação, para iniciar: se Luc Ferry tem razão, assistimos a um acontecimento notabilíssimo na história universal das religiões, a saber, nada menos que uma reinvenção da religião. O que seu discurso evoca é algo como uma refundação da religião. E afinal, por que não? Haveria uma trajetória histórica das reli-giões que se desdobrou, no essencial, sob o signo da

heteronomia- estamos de acordo sobre esse ponto.

Depois, na era da filosofia, isto é, a partir de recursos puramente racionais descobertos pelo discurso filosófi-co, assistiríamos ao aparecimento de um outro discurso religioso profundamente diferente do que foram as reli-giões, em seu conteúdo, desde que a humanidade é humanidade. A questão merece, no mínimo, que a exa-minemos com alguma atenção.

Depois da Religido 37

Luc

Ferry

Estou de acordo, salvo pelo fato de que creio ter dito

várias vezes que não é tanto o conteúdo das religiões, da

religião cristã em particular, que mudou, que seu esta-tuto, dado que ela não vem mais a montante das expe-riências humanas, mas sim a jusante, e com um outro regime de transcendência ...

Mareei Gauehet

Teremos o pudor de não nos estendermos sobre as modalidades de organização da nova Igreja. Não falare-mos senão de princípios.

Segunda observação preliminar: estou de acordo com as duas constatações descritivas com as quais Luc Ferry terminou sua exposição, mesmo que, de meu lado, eu as interprete diferentemente. Menciono-as logo de saída, porque essas constatações têm importância para apreciar a situação atual e o alcance das mudanças que vivemos.

1) Por um lado, parece-me exato que as morais laicas não conseguem se encarregar do conjunto da experiên-cia dos indivíduos atuais. O discurso moral, tal como

nossas sociedades o compreendem (isto é, a regulagem

da relação com os outros segundo a norma de reciproci-dade), não responde a tudo. Uma vasta gama de

ques-tões relativas a si mesmo, à conduta de sua existência, à

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 38

Registrada essa carência, coloca-se a questão de saber como tratar esses problemas. As religiões tradicionais, as confissões vigentes trazem-lhes respostas. Estas não têm mais valia para grande número de nossos contem-porâneos. Será que existe, do lado da filosofia, a possi-bilidade de fornecer novas respostas que não tomem emprestado dos discursos religiosos clássicos e que, a despeito disso, constituam respostas substanciais para esses problemas? Ou é preciso considerar uma outra maneira de viver com esses problemas?

Também estou de acordo com Luc Ferry, na mesma ordem de idéias, para considerar que as noções de sacri-fício e de dever conservam um sentido em nossos dias. Sacrifício e dever, longe de estarem condenados a desa-parecer porque teriam somente um conteúdo religioso, continuam a ser perspectivas organizadoras, eixos da experiência humana. Não se pode confundir sua prática e seu significado. Talvez só façamos deles um uso mode-rado, mas precisamos deles para nos pensar. Impor-se imperativamente a obrigação e dispor de sua existência com vistas a uma finalidade mais alta permanecem ins-critos no âmago de nossa relação conosco mesmos. Como vêem, não procuro facilitar minha vida.

2) Segundo ponto: por outro lado, a idéia de trans-cendência conserva um sentido? Da mesma forma, con-cordo com Luc Ferry: sim, ela conserva um sentido! Mas, qual sentido? O problema está aí. Limito-me, no momento, a formular a questão: qual é o estatuto dessa transcendência que habita nossa experiência? Podemos de direito qualificá-la de religiosa se empregarmos esse

Depois da Religião 39

termo com um mínimo de rigor terminológico? Vocês podem adivinhar que tenho as maiores dúvidas a esse respeito.

Agora, para entrar no fundo das coisas, permitam-me voltar brevepermitam-mente ao permitam-meu próprio método de abor-dagem do fenômeno religião. De fato, é provável que uma parte da discussão diga respeito à diferença de nos-sas abordagens e de nossos interesses. Vamos circuns-crevê-las para evitar inúteis querelas de palavras. Mas aproveitemos para ver aí, tão claramente quanto possível, o que os conceitos que empregamos recobrem. Pois tudo se passa na esfera da conceitualização do fenômeno.

O que tentei fazer foi uma história filosófica da reli-gião. Dediquei-me, no fundo, a tratar de um problema que não parece ser mais da atualidade, com o declínio do marxismo ajudando, mas que subsiste: o problema da natureza, do lugar e do papel da religião, a partir do momento em que se recusa a explicação da "superestru-tura" pelas necessidades da "infra-estru"superestru-tura" econômi-ca e social. Não é mais de bom-tom raciocinar nesses ter-mos. Isso não impede que o economismos seja tão preg-nante, de maneira difusa, na inteligência da história e do funcionamento das sociedades, não impede que o modelo continue a reinar implicitamente. Há as coisas sérias e também há uma roupagem "ideal" que legitima fantasmaticamente uma organização coletiva estabeleci-da por motivos sólidos. Ora, esse modo de pensar

inter-s Interpretação e explicação dointer-s comportamentointer-s efetuadointer-s pelo viéinter-s dointer-s métodos e das teorias econômicas. (N.T.)

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 40

dita, de maneira absoluta, compreender a especificidade do fenômeno religioso e, ao mesmo tempo, sua onipre-sença na quase totalidade da história humana. Ele não está somente na cabeça dos atores para esconder-lhes a realidade de seu mundo. Ele organiza seu mundo. O que a religião representa nessas condições? O que ela mani-festa? O que significa seu papel estruturante? Por que, para resumir, houve religião? Esses enigmas tornam-se ainda mais opacos se concordarmos que não dá para respondê-los como sendo uma necessidade invariante da consciência coletiva ou da constituição do social. Pois, se, por um lado, as religiões tiveram um papel determinante na maior parte das sociedades do passado, por outro, é necessário constatar que elas progressiva-mente perderam esse lugar, há alguns séculos, na histó-ria européia moderna. Deve-se atribuir a mesma impor-tância tanto à religião nas sociedades antigas quanto à saída da religião nas sociedades modernas. A reflexão deve desdobrar-se nas duas linhas de frente. Trata-se de apreender no passado os mecanismos dessa eficácia estruturante do religioso. E trata-se de comparar, de reler o modo de estruturação da sociedade que se infere de uma compreensão religiosa de sua ordem. As socie-dades funcionaram maciçamente na religião. O que acontece quando uma sociedade se põe a funcionar fora da religião? É isso que está em jogo no "desencantamen-to do mundo". A constatação é, em si mesma, banal. Uma vez que a formulamos, ainda falta elucidar as for-mas que o processo de desencantamento toma empresta-das e as conseqüências às quais ele conduz. A

interpre-Depois da Religião 41

tação supõe já ter medido previamente o que significa o encantamento do mundo.

Aí estão, sumariamente, os dados primordiais do problema e as indicações de como tomá-los.

Um dos primeiros beneficios da abordagem é permi-tir escapar do falso debate entre a morte de Deus e o retorno das religiões, cujas oscilações periódicas dão, há dois séculos, ritmo à discussão em torno do futuro reli-gioso da humanidade ocidental. O mecanismo é simples.

Por um lado, com base num fato indiscutível- o recuo da empresa organizadora do religioso sobre a vida das sociedades - , conclui-se sobre a perda de função da religião e, portanto, sobre seu desaparecimento ine-vitável (que seria somente uma questão de tempo).

Por outro lado, parte-se de dois fatos também indis-cutíveis: em primeiro lugar, a permanência da fé e, em segundo, a revivescência periódica dessa fé, por moti-vos às vezes conjunturais (a Libertação), às vezes liga-dos aos movimentos profunliga-dos da cultura (romantismo e neo-romantismo). A partir desses fatos, anuncia-se o retorno iminente do religioso, procedendo a uma mesma extrapolação profética. A saída moderna da religião não terá sido, então, nada além de um eclipse temporário e superficial.

Nenhuma dessas interpretações é defensável. Assis-timos a dois processos simultâneos: a uma saída da reli-gião, compreendida como saída da capacidade do reli-gioso em estruturar a política e a sociedade, e a uma

per-manência do religioso na ordem da convicção última dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo

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espec-LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 42

tro de variações, segundo as experiências históricas e nacionais. No caso americano, temos uma sociedade ainda copiosamente impregnada de religiosidade. Da mesma forma, em alguns lugares da Europa como, por exemplo, a Irlanda, a Polônia e a Grécia, para tomar os três casos clássicos, onde as Igrejas, por motivos históri-cos, se viram depositárias da identidade nacional, vere-mos subsistir uma forte inserção do religioso no espaço público. Na Europa ocidental, em contrapartida, nota-se de forma geral uma debandada das Igrejas estabeleci-das e um decréscimo impressionante estabeleci-das crenças decla-radas. Pouco importa: fervor americano ou debandada na Europa ocidental são fenômenos que não tocam o ponto central, a saída da estruturação religiosa das

socie-dades. Saída que não impede a manutenção de uma vida

religiosa na escala dos indivíduos. De fato, no próprio lugar onde o recuo da religião, inclusive no registro da convicção privada, é o mais avançado, como é o caso da Europa ocidental, ele não implica o desaparecimento puro e simples da preocupação espiritual, sem que bus-quemos defini-la bem por enquanto. Vamos tomar essa preocupação como sendo as questões últimas, as ques-tões que dizem respeito à destinação humana, à signifi-cação das experiências fundamentais da vida humana e à orientação ética global da existência.

É sobre essa segunda parte que devemos refletir-não insisto a respeito da primeira parte, porque estamos de acordo sobre ela. O problema que se coloca concerne a essa segunda parte: aquilo que subsiste de religiosidade para além do declínio social da religião, seja essa

religio-Depois da ReligiêJo 43

sidade explicitamente enquadrada pelos dogmas tradi-cionais ou seja espontânea, mais ou menos pessoal, mais ou menos artesanal, mais ou menos selvagem, ou até mesmo inconsciente de suas amarras religiosas. Essa parte existe e é ela o objeto de discussão entre nós.

Não posso abordá-la sem começar reconhecendo que ela escapa àquilo de que tive oportunidade de tratar até agora. É o aspecto do fenômeno religioso que deixei de lado até agora ou, em todo caso, naquilo que publiquei. Vou explicar-me. Mas refleti um pouco sobre ele, o sufi-ciente para trazer uma resposta ao problema que é sen-sivelmente diferente daquela que Luc Ferry me atri-buiu, mesmo que ele tivesse o direito de fazer uma infe-rência sobre o que escrevi, no sentido em que fez. Creio, entretanto, que a inferência é inexata. A questão em forma de objeção levantada por Luc Ferry é a seguinte: há, como ele crê, uma disposição natural do espírito humano para a metafisica? Eu o admitiria também, taci-tamente, colocando-me por isso em contradição comigo mesmo. Admito, de fato, alguma coisa dessa ordem, mas alguma coisa que compreendo diferentemente de Luc Ferry e que está, me parece, em plena coerência com o resto de minha análise. A questão de Luc Ferry é intei-ramente legítima. Na perspectiva de minha análise, eu a retraduzo assim: com o que pôde trabalhar a invenção histórica das religiões?

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET

A DISPOSIÇÃO RELIGIOSA DA HUMANIDADE

44

Recomecemos da tese fundamental que os dados que nos são acessíveis me parecem impor: a religião é

posição da heteronomia, posição que visa a produzir uma economia determinada do laço político e do laço de sociedade por uma intencionalidade inconsciente. A tese nega a idéia corrente segundo a qual a criatura angustiada se limitaria a divinizar espontaneamente as forças naturais que a dominam. Não é difícil mostrar que a idéia é absurda. A religião é, no sentido mais forte do termo, um fato de instituição, um partido tomado humano-social da heteronomia. Não posso entrar aqui nos detalhes do porquê dessa instituição e dos motivos aos quais ela responde.

Mesmo supondo que concordem comigo, há um ponto que precisa ser esclarecido, e é verdade que eu não o fiz. É preciso esclarecer a proveniência dos ele-mentos com os quais esse ato de instituição opera. Essa lacuna de minha análise deve-se à perspectiva essencial-mente descritiva na qual me situei. Quis, com priorida-de, dar conta do conteúdo das religiões, tais como as podemos seguir por meio da história e das metamorfoses num longo período. Tentei mostrar que havia uma fór-mula coerente dessas transformações a partir daquilo

Depois da Religião 45

que podemos entrever a respeito das mais antigas reli-giões e talvez do início da religião - as transformações que têm por nome o nascimento dos deuses, a emergên-cia das religiões de salvação, o aparecimento do mono-teísmo e, por fim, a saída da religião do interior de uma religião. Não somente essas transformações são coeren-tes, mas congruentes com as grandes mudanças das for-mas políticas e sociais - o nascimento do Estado, a dinâmica das formas estatais, o nascimento do Estado moderno.

Entretanto, essa escolha me levou a deixar uma questão no escuro. Não ignoro isso. Uma análise com-pleta e inteiramente coerente deve, além disso, respon-der à questão: em qual disposição da humanidade se funda essa instituição que, de outro ponto de vista, res-ponde a motivos políticos e sociais bem determinados? É a ocasião de dar ao menos algumas indicações quanto

à resposta possível. Mesmo que se rejeite a idéia de uma natureza religiosa do homem, ou de uma disposição natural para a metafísica, é preciso que haja algo como um substrato antropológico a partir do qual a experiên-cia humana é suscetível de se instituir e de se definir sob o signo da religião. Nenhuma lógica política dá conta disso com que a religião vai se desdobrar, a saber,

o investimento humano sobre o invisível. O que é que, no homem, dá sentido a essa passagem pelo outro? Pois é nisso que consiste o fenômeno cardinal: ele reside nes-sas dimensões de invisibilidade e de alteridade que nos habitam constitutivamente. O homem é um ser que, em todos os casos, é convocado pelo invisível ou

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requisita-LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 46

do pela alteridade. Esses são os eixos dos quais ele tem originária e irredutivelmente a experiência. O homem não é levado a eles pela necessidade de conhecimento ou de compreensão racional dos fenômenos da natureza, como queria certa explicação esclarecida da religião. Não há aí o efeito de uma busca de causalidade que engajaria o espírito a remontar às causas primeiras para além das causas visíveis. É um "dado" imediato da cons-ciência, se posso dizer assim. O homem fala, e encontra o invisível em suas palavras. Ele experimenta a si mesmo, irredutivelmente, sob o signo do invisível. Ele não pode deixar de pensar que há em si outra coisa além daquilo que ele vê, toca e sente. Ele imagina, e imedia-tamente seu pensamento se projeta além daquilo que lhe é acessível - e se apresenta ao pensamento. Além disso, ele se reporta a si mesmo e é para descobrir que pode dispor de si mesmo com vistas a outra coisa que não a si mesmo. É com esse material primordial que se edificam as religiões. Elas não decorrem daí de forma automática e linear. É preciso outra coisa completamen-te diferencompletamen-te para defini-las. Mas esse macompletamen-terial as torna possíveis.

Em outras palavras, há uma estrutura antropológica que faz com que o homem possa ser um ser de religião.

Ele não o é necessariamente. Ele pôde sê-lo historica-mente, durante a maior duração de seu percurso. Pode deixar de sê-lo, mas, nesse caso, esse potencial de reli-giosidade estará destinado a continuar. O que quer dizer, na prática, que haverá sempre mais ou menos espíritos para se reconhecer no passado religioso da

Depois da Religii1o 41

humanidade - e que os espíritos não religiosos encon-trarão outros empregos para essas dimensões consti-tuintes.

É a verdadeira questão diante da qual nos encontra-mos historicamente. Tendo terminado, ao que parece, a era das religiões constituídas, o que ocorre com esse núcleo antropológico sobre o qual elas fizeram fundo? Uma vez desfeita a organização coletiva segundo a hete-ronomia, que tinha sido a alma das teligiões estabeleci-das até há dois séculos, o que pode oferecer essa organi-zação do humano que durante tanto tempo suportou o religioso? Não somente ela subsiste, mas a vemos se des-tacar cada vez mais claramente por si mesma. Tentei mostrar isso a respeito do inconsciente e de suas redefi-nições.9 Ela continua a informar nossa experiência. Em relação a isso, por maior que seja a descontinuidade, permanecemos em continuidade com a humanidade da era das religiões. Mas o estatuto e o papel desse núcleo antropológico do religioso estão completamente muda-dos com o desvelamento de seu caráter extra-religioso.

É nesse ponto que divirjo de Luc Ferry. Estamos de acordo a respeito da constatação, mas não a compreen-demos da mesma maneira e, sobretudo, avaliamos dife-rentemente as conseqüências. Só posso recusar as cate-gorias de que se serve Luc para dar conta dessa expe-riência de além da religiosidade heteronômica.

9 Vide "Essa! de psychologle conternporalne", agora no livro La démocratie contre elle-méme. Paris: Gallirnard, 2002. Coleção "Te!".

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L UC FERRY & MARCEL GAUCHET 48

O QUE É O SAGRADO?

Essas ancoragens primeiras do religioso existem e persistem. Mas será que é legítimo falar de religião a seu respeito? Não acredito nisso. Só posso ver um abuso de palavra nesse emprego da noção.

Acredito que Luc Ferry se entregue a um transpor-te indevido de catranspor-tegorias do passado religioso para a ultramodernidade, para estabelecer uma continuidade que me parece amplamente fictícia. Retomo os três ter-mos chaves de sua demonstração: sagrado, humanização do divino e divinização do humano.

1) Não existe palavra mais propícia ao erro que esta

de sagrado. É preciso repetir, contra o abuso metafórico

permanente do qual é objeto, que não temos a liberdade de usá-la de qualquer maneira, contando com a aura da qual é carregada para fazer sentido. Trata-se de uma categoria que remete a um enraizamento histórico

preci-so. Sagrado, no rigor do termo, designa uma experiência

fundamental na ordem das religiões, que é a conjunção tangível do visível e do invisível, do aqui embaixo e do além. Para ser inteiramente rigoroso, o sagrado deve ser tratado, no meu entender, como uma noção histórica. Ele nasce com a virada capital da história religiosa da humanidade que marca o surgimento do Estado. As

reli-Depois da Religiao 49

giões "selvagens", para dizer rapidamente, são aquelas da disjunção entre o fundamento ancestral e o presente. O sagrado emerge com a conjunção do fundamento (que se torna divino na operação) e do poder que será, desde então, poder separado. Há o sagrado quando há um encontro material entre a natureza e a sobrenaturalida-de. Um ser sagrado- um rei sagrado, para tomar o exemplo por excelência - é um personagem que em seu corpo físico, semelhante a qualquer outro, é habita-do pela alteridade invisível e por forças sobrenaturais. Há nele uma materialização do outro que o separa de todos os seus semelhantes. Para tomar um símbolo que nos é familiar: a hóstia do catolicismo é a presença real de Deus num objeto físico devido ao mistério da tran-substanciação, conversão de um signo visível em supor-te do corpo de Cristo, repetição da encarnação. É a essa categoria bem determinada de fenômenos religiosos que se aplica propriamente o conceito de sagrado: a atesta-ção do além nos lugares, nas coisas ou nos seres daqui debaixo.

Ora, se há uma categoria que o desencantamento do mundo deixa pouco à vontade, é bem essa. A "desmagi-ficação" do mundo, que reteve prioritariamente a aten-ção, é inseparável de um processo de dessacralização, do qual se pode seguir historicamente a trajetória com grande precisão. Se há uma dimensão do religioso da qual saímos, é essa do sagrado, inclusive para as cons-ciências mais crentes. No máximo subsiste uma memó-ria daquilo que outrora pôde ser o sagrado, assim como das espécies de substitutos que nos enganam. É verdade

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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 50

que o homem comum, ao dar de cara com uma estrela das mídias, tem a impressão de que ela "vem de um outro mundo", ou até mesmo se surpreende ao constatar que ela "existe realmente". Mas não lhe fica um segun-do sequer a impressão de que viu um ser sobrenatural! Ele reconhece imediatamente o semelhante, demasiado semelhante. Tomando com rigor a noção, não vejo como se possa falar de sagrado no mundo atual, a não ser por uma derivação metafórica mais enganosa que esclarece-dora. Quando dizemos que a vida humana é "sagrada", afirmamos que ela encarna o invisível, que materializa o sobrenatural, que é habitada por uma transcendência,

no sentido religioso do termo - voltarei a esse ponto - ,

que ela tira de um outro lugar o valor que exige seu res-peito absoluto? Não creio. Trata-se apenas de uma ima-gem, que a reflexão deve nos poupar de tomar ao pé da letra. Esse fato não retira a realidade da interdição pro-tetora da qual a vida é objeto. Mas compreenderemos mal a natureza dessa interdição se a tomarmos à luz da categoria do sagrado.

É preciso sair da alternativa pseudotrágica: ou

"nada é sagrado" (dito de outra forma: tudo desmorona, nada mais vale alguma coisa), ou nada mudou (o sagra-do não se encontra mais no mesmo lugar, mas continua a existir, graças a Deus, igual ao que sempre foi). Há uma superioridade da humanidade em relação a si mesma que não merece o nome de sagrado sem que isso retire algo da força das prescrições que a ele se ligam. Não estamos presos numa escolha binária entre sagrado e profano. No interior do dito profano há ordens de

con-Depois da Religião 51

siderações absolutas e ordens de considerações relati-vas. A profanação não impede a existência de absolutos sem garantia sacra.

Entre nós trata-se, portanto, de questões de vras, como dizia Luc Ferry. Mas essas questões de pala-vras engajam a compreensão do tema.

2) Na religião que você fundou há pouco - mas da

qual já havia lançado as bases antes - há uma noção

que me coloca um sério problema. Lamento que não tenha se estendido sobre ela, no quadro da versão exo-térica que você nos apresentou. Para uma boa religião, no mundo em que estamos, é preciso um Deus- ou, em rigor, deuses. E você não foi muito eloqüente sobre esse

Deus. É claro que compreendi que você não fala de Deus,

mas de divino. Ora, é justamente isso que me preocupa. Compreendo o divino quando há um Deus. Mas, na cir-cunstância, não percebo de onde vem esse divino. E não o vejo aparecer, em particular, a partir das diferentes coisas que você descreveu.

Compreendo o que as religiões tradicionais enten-dem por Deus, entendimento do qual somos herdeiros.

É uma noção que tem uma longa história muito

compli-cada, supercomplicada pela apropriação da idéia de Deus efetuada pela filosofia racionalista moderna, de

Descartes ao idealismo alemão - a partir de então, os

filósofos não são mais loquazes a respeito de Deus. Mas, enfim, tão complicada quanto possa ser, nós nos encon-tramos nela. Nós ao menos adivinhamos de que se trata.

Referências

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