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Tese de Mestrado - Hipnose e Psicoterapia Etiologia e Práxis

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Academic year: 2021

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INTRODUÇÃO

Embora faça parte do cotidiano dos indivíduos de várias formas e em diferentes situações, o hipnotismo é desacreditado por alguns, equivocado na opinião de outros, temido ou pouco conhecido para a maioria. As explicações sobre o transe hipnótico e seus efeitos, por conta de sua vinculação com práticas religiosas e crenças no sobrenatural, é cercada de mitos, magias e preconceitos. Mesmo entre pessoas com alto nível de escolaridade, o desconhecimento sobre este tema é bastante generalizado e, no conceito popular, a descrença de que os efeitos hipnóticos existam ou possam ser provocados é geralmente substituído por um temor supersticioso.

Transe hipnótico é o estado mental resultante de alterações na neurofisiologia e decorre de várias situações. Pode ser provocado por ingestão de substâncias químicas, mas também pode ser produzido por simples estímulos sensoriais normais; auditivos, visuais, táteis e olfativos, além de situações como jejuns nutricionais, isolamento social, sono intenso sem possibilidade de dormir, abstinência sexual, comportamento motor intensivo, meditação, relaxamento físico e mental ou atitudes contemplativas de fundo religioso ou místico.

Efeitos da hipnose sempre aconteceram na história da humanidade, em atos religiosos têm presença marcante, quanto mais solene ocorre um ritual associado a forças incompreensíveis, místicas ou mágicas, maior é o efeito hipnótico. Porém, não é apenas relacionado a situações que se prendem ao misticismo; ao longo da história foi produzida ou observada também pela perspectiva do materialismo cientifico ou simultaneamente por ambos. Definida com vários termos e diferentes sentidos, a hipnose é patrimônio da filosofia e da medicina ocidental e oriental, tanto a antiga quanto a contemporânea.

No oriente os efeitos hipnóticos, geralmente com objetivos de cura, fazem parte de culturas milenares e se mantiveram quase que inalterados através dos séculos. No ocidente foram se adequando ao imaginário dominante, se ajustando á representação de cada nova realidade, se identificando com diferentes correntes do pensamento, valores, fantasias e mistérios que surgiam com as migrações e miscigenações étnicas culturais. A maior e mais rápida diversificação dos procedimentos hipnóticos ocorreram na Europa, devido à fusão étnica cultural do seu povo, ampliada em suas ações colonizadoras. Esse viés antropológico do hipnotismo constitui a principal abordagem histórico-lógica e teórica dedutiva deste livro.

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Embora sugestão não seja sinônimo de hipnose, é certo que toda e qualquer hipnose começa pela sugestão e o transe hipnótico é o momento em que a sugestão atinge o ponto mais alto da sua ação. A execução desse processo é bem simples e os resultados se aproximam de fatos extremamente compensadores, podendo em alguns casos proporcionar efeitos terapêuticos inexplicáveis e até mesmo inacreditáveis. Nem sempre uma sugestão representa a possibilidade de desencadear o transe hipnótico, mas é, no mínimo, o preâmbulo imprescindível para que isso ocorra. Por isso, é comum o uso de um nome como se fosse o outro, às vezes chama-se sugestão de hipnose e, hipnose de sugestão. No entanto, deve ser chamada de sugestão hipnótica aquela que se perfaz no transe hipnótico ou a sugestão que permeia a aplicação de métodos e técnicas com o objetivo de atingir os efeitos da hipnose.

Através da sugestão o pensamento se concentra numa idéia cujo resultado ou tendência é provocar determinado efeito, impele muitas ações humanas, tanto construtivas como destrutiva. A maior parte do resultado da vida das pessoas é conseqüência da sugestão; desde o desfrutar de sentimentos de alegria, paz e prazer, até situações negativas como doenças físicas e morais. Mas, situações negativas podem ser reversíveis pelo mesmo processo que se instalam, isto é, o que a sugestão faz, a sugestão desfaz.

Da sugestão podem resultar ações inconscientes, compulsivas ou hipnóticas, que podem decidir o curso da vida das pessoas. E, a melhor maneira de fazer as sugestões produzir bons efeitos é através da hetero-hipnose e da auto-hipnose. No primeiro caso um hipnotista funciona como um guia que influencia através de sugestões as ações inconscientes de alguém. No segundo caso é o próprio hipnotizado quem o faz. Um indivíduo razoavelmente instruído poderá conduzir e controlar as ações do seu próprio inconsciente, em seu próprio benefício.

Do início do século XIX até hoje termos como hipnose, inconsciente e sugestão caminham juntos, um tentando explicar o outro. No início de suas pesquisas Freud se valia do hipnotismo como procedimento de acesso ao inconsciente e, o conceituou como sendo uma espécie de porão onde fica guardado o que não se quer mostrar, onde fica depositando fatos e sentimentos que o indivíduo não tem coragem de contar nem para si próprio e, por isso, guardou e esqueceu. No entanto, pesquisas modernas revelam um conceito de inconsciente bem diferente desse estabelecido há cem anos.

A explicação mais aceita hoje é a de que o inconsciente, longe de significar uma parte física localizada em uma determinada região

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do cérebro, é uma espécie de programa operacional capaz de processar, ao mesmo tempo, milhares de informações paralelas, enquanto o consciente executa suas tarefas de forma serial, uma atrás da outra. Fornecendo informações ao consciente sob forma de intuição, o inconsciente é hoje compreendido como uma ferramenta de trabalho mental que executa tarefas fundamentais e pode determinar, em certas circunstâncias, atitudes que uma pessoa deve tomar.

Modernamente o inconsciente é considerado como uma segunda inteligência, hábil também em executar tarefas sem que o consciente perceba; relaciona e toma decisões, determinando o que uma pessoa deve ou não fazer. As pessoas agem em determinadas situações, compelidas pelas sugestões ou informações que foram instaladas em seu inconsciente. Conscientemente, não sabem o que estão fazendo, mas fazem.

O inconsciente tem um mecanismo de realimentação de sugestões; o que é depositado nele é retro-alimentado para o consciente e vice-versa. Toda pessoa, a menos que possua uma patologia psiquiátrica séria, é sugestionável e, um meio eficaz de fazer a sugestão funcionar é a sua repetição; com isso, imprime-se no inconsciente uma idéia que realimentará o consciente. É comum na infância se ouvir dos adultos algumas palavras ou frases repetidas, até que o inconsciente da criança aceite a idéia do que isso representa e depois a execute. Neste sentido podem acontecer situações que definirão, de forma positiva ou negativa, uma vida inteira.

Na atualidade os efeitos da sugestão, agindo com extraordinária força hipnótica, são observados em diferentes veículos de comunicação, através de mensagens explicitas ou subliminares embutidas na informação principal. Esse tipo de comunicação pode determinar o comportamento de massa e, existem organizações que são responsáveis pela difusão de sugestões sistematizadas e repetidas que agem modelando o comportamento social. Por isso alguns efeitos hipnóticos devem ser entendidos como fato social normal que não se restringe só a momentos especiais.

Embora os seres humanos vivam como se estivessem sob efeito hipnótico é, ironicamente, por não perceber essa possibilidade que podem ser manipuladas ou modeladas por idéias alheias à sua própria vontade. Na comunicação de massa, cada vez mais, esse recurso tem sido instituído e serve como instrumento a serviço da mídia na propaganda política, comercial e ou religiosa.

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Efeitos hipnóticos estão presentes em diversos setores da comunicação, mas sem dúvida, é a propaganda que mais aplica este recurso. Utilizando-se da sugestão subliminar como estratégia para atingir seus objetivos, a chamada hipnose de massa é bastante evidente nos modernos processos publicitários, porque hipnotizar é antes de tudo convencer e a propaganda tem este propósito. Isso tem evoluído muito nos últimos tempos; já existem sistemas de publicidade, sobretudo na chamada publicidade indireta, capazes de criar no ânimo dos consumidores um desejo quase sempre irresistível para fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como adquirir determinado produto, preferir marca ou modelo e alimentar o consumo desnecessário, deixando-os num estado que se assemelha bastante à hipnose clássica. Assim, identificar esses processos é uma forma de defender-se quando for preciso.

A mídia é capaz, de uma só vez, de modificar conceitos e comportamentos de grande parte da sociedade através da repetição da informação que, às vezes, são equivocadas ou são ideologicamente construídas e nem sempre desprovidas dos interesses da dominação. Tem a mídia, através da sugestão, o poder de influenciar e convencer os coletivos sociais estabelecendo conceitos e preconceitos, alterando costumes, modificando hábitos, gerando consumo e formando opiniões.

O recurso da sugestão hipnótica é também fortemente utilizado quando a religião determina o comportamento das pessoas com base na idéia de céu e de inferno, virtude e pecado, santos e demônios. Uma vez sugestionado o indivíduo pode ampliar ao máximo, por si só, o poder da sugestão que recebeu. O resultado desse processo depende de como foi, direta ou indiretamente, sugestionada a agir e, agindo, reforça a sugestão que recebeu em uma realimentação constante, aumentando cada vez mais o seu grau de convencimento em torno do objetivo induzido.

O ritual religioso quando associado ao transe hipnótico, produz efeitos que ultrapassam a compreensão pela racionalidade. Curas inexplicáveis acontecem e, através de linguagens simbólicas, promovem profundos aumentos da percepção convencional. Algumas religiões milenares, que chega a contemporaneidade, sabem produzir melhor esta associação. O transe não apenas produzido através de estímulos dos sentidos normais, pode ser desencadeado por ingestão de substâncias que agem no organismo com este propósito. Nas sociedades primitivas estas substâncias hipnotizadoras foram encontradas na natureza, geralmente em forma de vegetais, e incorporadas às liturgias.

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Entre os grandes clássicos do hipnotismo europeu, é comum a referencia inicial ao Padre Gassner que praticava na Alemanha, por volta de 1770, métodos e aplicações de técnicas hipnóticas, associadas à crença católica, com objetivo de curar enfermidades. Para ele as doenças e os demônios estavam quase sempre juntos e uma pessoa doente poderia ser alguém possuída. Aquele que se sentia com o diabo no corpo, e por conseqüência doente, vinha ou era trazido ao Padre para que ele o expulsasse e, assim, promovesse a cura.

Franz Anton Mesmer assistiu várias apresentações de Gassner e não se conformando com a explicação do Padre, deu uma versão não menos fantástica para as curas através do hipnotismo, em lugar de responsabilizar demônios pelas enfermidades, responsabiliza os astros. Para ele a doença resulta da freqüência irregular dos fluidos astrais e a cura depende de sua adequada regulagem. Acreditava que certas pessoas teriam o poder de controlar esses fluidos, podendo comunicá-los a outrem, direta ou indiretamente, por intermédio de objetos magnetizados pelo seu contato.

Os efeitos hipnóticos saíam da explicação religiosa indo para a explicação da influência astral, tese segundo a qual os fluidos magnéticos invisíveis regulam a vida das pessoas e, por volta de 1780, o Mesmerismo se espalhou pela Europa; Mesmer dizia que o crucifixo de metal usado por Gassner era responsável por concentrar e transmitir para os enfermos um fluido magnético curativo. Cria assim a doutrina do Magnetismo Animal, que foi logo bem recebida por legiões de adeptos. Foi ele um dos maiores mistificadores do que mais tarde seria conhecido como hipnose.

O magnetismo animal prossegue com o Marquês de Puységur, um dos discípulos de Mesmer. O Marquês, casualmente, enquanto magnetizava um camponês com objetivo de curá-lo de enfermidade, percebeu que o paciente caía em um estado de sonambulismo, como se mantivesse em sono profundo, com movimentos respiratórios tranqüilos. Nada havia das clássicas agitações provocadas pelo Mesmerismo. Puységur percebeu, com surpresa, que o camponês podia falar sem sair do sono hipnótico e com lucidez maior que a habitual, indicou sua própria doença como sendo uma infecção pulmonar e para sua própria cura indicou remédios precisos. Puységur chamou isso de sonambulismo artificial, e descobriu o estágio mais profundo do transe hipnótico que até hoje é chamado de sonambúlico.

O magnetismo tomou outro rumo através do médico e filósofo, Denizard Hippolyte Léon Rivail. Em 1850 o Mesmerismo atraiu a sua

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atenção, passando a integrar o grupo dirigido pelo Barão Du Potet, dirigente da Sociedade Magnética de Paris. Inicialmente Rival freqüentou sessões de magnetismo Mesmerista em busca de solução para os casos de enfermidades de pacientes a ele confiados e tornou-se mais tarde o codificador da doutrina espírita. Em 1859 com o pseudônimo de Allan Kardec publica o Livro dos Espíritos e cria outra versão para o magnetismo, a de que a força curativa era atribuída aos espíritos. A estruturação de sua doutrina tem por base o pensamento de Platão (427-347 a.C.), sobre a existência da alma, herda as teorias do magnetismo e se desenvolve absorvendo práticas Mesmeristas. O espiritismo segue sua própria escola e o Mesmerismo acaba sendo substituído pelo hipnotismo.

Vários foram os homens famosos que desenvolveram e aplicaram as idéias de Mesmer. Mas foi James Braid, médico escocês que usou pela primeira vez, por volta de 1841, a palavra hipnotismo. Deve-se sua iniciação nos estudos da hipnose ao famoso Mesmerista suíço Lafontaine (1802-1892), discípulo de Puységur. Em 1843, Braid publica seu livro sobre o assunto; dizia que a fixação do olhar era o processo para o efeito Mesmerista. Batizando esses efeitos como hipnos, nome do deus grego do sono, anexado ao vocábulo ismo, que significa estudo, cria à expressão hipnotismo e, disso derivando outros nomes como hipnose, hipnótico, hipnólogo, hipnotizador e hipnotista.

Hipnotista é quem induz o transe hipnótico de forma metódica, técnica e sistemática, é teórico e prático na área da hipnose. Hipnotizador é quem casualmente hipnotiza sem possuir conhecimento teórico, às vezes não sabe se quer o quê significa a hipnose ou até mesmo como provoca seus efeitos. Hipnólogo é o teórico, estudioso do assunto, conhecedor das técnicas hipnóticas, mas nem sempre hábil na prática de hipnotizar. Hipnotizado é quem está sob a ação do hipnotismo, é também chamado de paciente quando a hipnose é produzida para tratamento médico.

Liébaut foi quem acrescentou a sugestão verbal à fixação do olhar desenvolvido no método de Braid. Sua técnica tranqüila e discreta baseava-se nas palavras e no tom de voz. Em 1864, lendo um exemplar da obra de Braid, fez-lhe renascer o interesse pelo assunto que não mais deixaria por toda a sua vida. Seus clientes eram pessoas humildes e camponesas e a eles Liébaut dizia: “Se quiser tratamentos com drogas, terá que pagar a consulta, mas se permitir que faça o tratamento pelo hipnotismo, não terá de pagar nada”.

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Por volta de 1880, Bernheim foi o primeiro a perceber que o estado hipnótico era normal em todas as pessoas e, principalmente, foi quem definiu os efeitos pós-hipnóticos da sugestão como elemento provocador de ações inconscientes compulsivas, e propôs aplicar isso como terapia. Nesta mesma época, Charcot achava que a hipnose era uma forma de histeria, e descobriu que podia induzir sintomas histéricos através de sugestões hipnóticas. Não concordando, Bernheim apontou a Charcot os seus erros, mostrando-lhe que as características histéricas não eram critérios para o transe hipnótico e que os sintomas da histeria podiam ser provocadas artificialmente por mera sugestão. Nasceu daí a histórica controvérsia entre as duas escolas francesas de hipnotismo, uma no hospital La Salpêtrière em Paris e, a outra na Cidade de Nancy. Estas escolas serviram de base para Freud e, as investigações com o uso da hipnose, forneceram muitas pistas que lhe permitiu os primeiros passos para o desenvolvimento da teoria e da técnica da psicanálise.

Das duas clássicas escolas de hipnotismo resultaram muitos outros pesquisadores; cada um tentando compreender e difundir a hipnose pelo mundo, como Krafft-Ebing na Áustria, Forel na Suíça, Wetterstrand na Suécia, Bramwell na Inglaterra, Heidnhain na Alemanha, Felkin na Escócia, Pavlov na Rússia, McDougall e Phineas Puimby nos Estados Unidos. Com tanta gente estudando e teorizando, a hipnose ganha impulso na aplicação terapêutica e cresce através de demonstrações recreativas.

Donato e Hansen, ambos no fim do século XIX, destacaram-se por arrebatarem multidões para demonstrações de hipnose recreativa através de grandes espetáculos. Violentas controvérsias explodiram pela impressa, a cerca da natureza destes espetáculos, cada qual procurou interpretar a seu modo este fatos estranhos, que tão vivamente incitavam a curiosidade pública. Os homens de ciências, solicitados, foram obrigados ao exame deste tema e muitos médicos, professores e cientistas se interessavam pelo assunto. Nas platéias, cada vez mais, estavam presentes importantes personalidades e, a partir daí, davam novos impulsos à hipnose. Assim, por meio do palco, o hipnotismo alcançou mais intensamente o debate nas academias.

Os estudos acadêmicos ortodoxos quando se aproximaram desta área foi com receio e cautela. Das tentativas para explicar a hipnose cientificamente, muito se deve ao cientista russo Pavlov, quando analisou o fenômeno baseando seu estudo nos reflexos condicionados. Suas hipóteses para enquadrar as explicações nos princípios do paradigma mecanicista não prosperam; as tentativas da

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ciência neste campo foram vagas e os resultados obtidos nas pesquisas foram sempre imprecisos.

Com o avanço dos novos recursos tecnológicos aplicados como instrumentos de pesquisa, grandes revelações sobre os efeitos da hipnose já ocorrem em laboratórios do mundo científico. Somando-se a isso o fato da ciência estar caminhando para um novo paradigma, a hipnose sairá, em breve, do conceito de pseudociência, ganhará a respeitabilidade da comunidade cientifica acadêmica, deixando de ser privilégio de alguns para ser conhecida pelo grande público. Na atualidade estudos sistematizados já despontam em grandes centros de pesquisa como na Universidade de Harvard, juntamente com a Universidade Stanford.

Embora vagos os conhecimentos científicos disponíveis para explicar a hipnose, muito antes de ser descartada, está sendo cada vez mais utilizada. Nos dias atuais o hipnotismo é apontado como uma arma eficiente de que dispõe a humanidade em sua incessante luta contra alguns males. O domínio da auto-hipnose pode ajudar na eliminação das doenças psicossomáticas ou eliminar efeitos psicológicos que agravam doenças orgânicas. Pode também representar um caminho para que seja atingida a melhoria da qualidade de vida, requisito indispensável para a solução de muitos problemas e conflitos. Sua prática permite a descoberta da autoconfiança, promovendo o desenvolvimento da auto-estima e da compreensão de si mesmo, sem que para isso seja preciso, necessariamente, crer ou seguir doutrinas ou ser convencido a colaborar de forma econômica para pessoas ou organizações.

O uso da sugestão hipnótica em benefício próprio dá lugar ao conceito conhecido como auto-sugestão ou auto-hipnose, muito difundida na Europa e que entrou em moda nos Estados Unidos na metade do século XX. Charles Baudouin e Pierce, entre outros, escreveram sobre o assunto, mas se deve a Emile Coué a sistematização desse processo. Foi ele quem formulou vários princípios e leis que fundamentam a aplicação da auto-sugestão e desenvolveu o célebre método que chamou de “Domínio de si mesmo pela auto-sugestão consciente”. Suas idéias e frases estão, invariavelmente, escritas nos livros de auto-ajuda.

Mesmo que convivam com ela, normalmente as pessoas não acreditam na hipnose; a maioria só acredita quando presenciam demonstrações práticas que não devem ser simples espetáculos de curiosidade. É através de cursos e apresentações que os participantes podem analisar os efeitos hipnóticos a que estão sujeitos no cotidiano e, mais ainda, que podem desmistificar

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desvendando como é processada a sugestão ou a auto-sugestão e conhecer seus efeitos.

As discussões acadêmicas representam o melhor caminho para difundir e desmistificar a hipnose e a Faculdade é o fórum ideal para esse trabalho; neste espaço as apresentações fogem àquele sentido superficial e comum de espetáculo. Seu estudo deve ser claro e baseado, ao máximo, na verdade e nos princípios éticos, morais e científicos, portanto válido pelo sentido útil que se traduz na apropriação do conhecimento teórico e prático revelado nas demonstrações. Nessa oportunidade não se tem um mero espetáculo de curiosidade; tem-se uma exposição de fatos que são reproduzidos para efeito de aprendizagem. A prática é muito importante para quem deseja aprender além da capacidade teórica, a habilidade e a competência nesta área não se adquire através de simples leitura.

Os aspectos abordados nesta introdução são tratados com detalhes neste livro. O capítulo I trata da história da hipnose no decorrer dos séculos e, para compreender sua prática predominantemente terapêutica, estuda atores clássicos do hipnotismo. O capítulo II inicia apresentando breve análise da evolução do pensamento, do mítico ao filosófico - científico, como base para a compreensão das principais teorias que fundamentam as psicoterapias e estuda a etiologia da hipnose através das diferentes correntes de pensadores e cientistas. No capítulo III o estudo é dedicado à práxis, seu objetivo é reconhecer a sintomatologia do estado hipnótico, a aplicação de fórmulas de indução e seus efeitos, envolvendo situações específicas e naturais do cotidiano. O capítulo IV trata da auto-hipnose, representa a soma de conhecimentos, competências e habilidades estudadas nos capítulos anteriores. Este último aspecto é de grande importância para o leitor que busca soluções para problemas existenciais e, principalmente, problemas de caráter terapêutico.

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CAPÍTULO I - HIPNOSE E TERAPIA

Não importa a forma como se justifica ou o grupo social no qual se apresenta, a hipnose manteve sempre, no decorrer dos séculos, a identidade dos princípios que desencadeiam seu processo, causas efeitos e finalidades. Sua manifestação geralmente expressa a aliança entre o ideário do sagrado e do humano, construído com base na cultura e na história de cada sociedade. Fatos e procedimentos identificados como hipnóticos sempre ocorreram associados com práticas religiosas e ou curativas, constituíam parte do conhecimento experimental praticado na Índia, Caldeia, Egito e Grécia antiga por uma casta privilegiada que, ao mesmo tempo, exercia as funções de sacerdotes, magistrados e médicos.

Os cultos e sacrifícios religiosos, cercados de transes, praticados nas sociedades humanas de qualquer etnia, em qualquer época, são formas de se tentar a cura para as enfermidades ou alcançar favores divinos, são formas de se agradecer esses favores ou de se aplacar a ira dos deuses. Assim também acontecia na Grécia antiga, como exemplo, na religião do orfismo e nos mistérios de Elêusis, cujas influências se estendem à escola filosófica de Pitágoras (485 - 410 a.C.) e ao pitagorismo, que chega na atualidade com a mesma força do passado, independente das transformações na forma de pensar ao longo dos séculos.

Na maioria das vezes, o hipnotismo é envolvido em uma atmosfera de mistérios, de transes inexplicáveis cercado de superstições; seus praticantes se dizem, freqüentemente, simples instrumentos da vontade misteriosa de forças sobrenaturais. Sua prática, principalmente relacionadas à cura, foi se ajustando à época, locais e circunstâncias particulares de cada povo, criando diferentes crenças para justificar seus efeitos. Sempre envolveram juntos ou separadamente crendices, rezas, cantos, gestos, músicas, danças, cores, esculturas, adornos, pinturas e máscaras, elementos culturais de alto valor simbólico que emanam força hipnótica incontestável e induzem transes e êxtases.

O mais antigo relato do que podem ter sido sessões de hipnotismo foi registrado nos Papiros de Ebers por volta do século XVI a.C. apontando fatos a respeito da teoria e da prática da medicina egípcia, descrevendo procedimentos de médicos colocando suas mãos sobre as cabeças de pacientes e, afirmando possuírem poderes sobre-humanos, recitavam estranhos mantras que sugeriam curas.

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O termo mantra vem do sânscrito, antigo idioma da Índia, é a composição das sílabas “man”, que significa mente ou pensamento, e “tra” que pode ser entendida como entrega ou proteção. De modo geral, a palavra é traduzida como “proteção da mente”. No sentido cultural significa silaba, palavra ou frase pronunciada segundo prescrições ritualísticas e musicais, tendo a finalidade de atingir um estado mental contemplativo. Os primeiros mantras foram retirados dos Vedas, livros sagrados dos indianos, três mil anos a.C. e são hipnóticos pela repetição e monotonia, sonoridade e ritualidade.

Algumas vertentes da yoga, filosofia indiana milenar que combina exercícios físicos, técnicas de respiração e meditação, utilizam mantras em seu dia-a-dia e acreditam que para ser mais efetivo deve ser dado, por um guru, para a pessoa que irá vocalizá-lo. Neste caso o mantra não pode ser revelado para mais ninguém. Na tradição hindu, os mantras são considerados sons sagrados que ajuda o ser humano a entrar em estado de meditação, interrompendo o fluxo de pensamentos intermitentes. Essas técnicas e atmosfera mágica relacionada com o divino são próprias do hipnotismo.

Antigas civilizações sempre tiveram um deus ligado a um mantra; os gregos Apolo; os egípcios Osíris; os hindus Brahrma, o mesmo acontece com relação à Crisna, Buda, Mahavita e Rama entre outros. Seus seguidores acreditam em tais sons como uma espécie de oração que, vocalizados e repetidos várias vezes, ajudam a manter a mente quieta e pacifica, trazendo paz e abrindo o canal de comunicação com o divino. Durante a vocalização, pode-se usar ou não um objeto que facilite a contagem, como um rosário. Nesse processo, conhecido como japa, para que produzam os melhores efeitos hipnóticos, os sons podem ser repetidos até centenas de vezes em ambiente silencioso, mantendo o corpo totalmente imóvel, usando a técnica da respiração lenta e profunda.

Segundo Delcourt, 1 os gregos realizavam peregrinações ao templo de Esculápio ou Asciénio, deus da medicina e filho do deus-profeta Apolo. Seu templo mais famoso foi o de Epidauro em Argólia na Grécia, descoberto nas escavações ocorridas em 1850. A descoberta revelou inscrições datadas do século IV a.C. explicando como peregrinos eram submetidos à hipnose pelos sacerdotes, quando invocavam a presença de uma divindade para indicar os possíveis expedientes de cura.

Os sacerdotes de Caem recorriam à hipnose para abrandar descontentamentos coletivos e as sacerdotisas de Ísis, postas em transe, manifestavam o dom da clarividência; hipnotizadas, revelava

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ao Faraó fatos distantes ou ainda por ocorrer. Acontecimento semelhante ocorria nos oráculos; quando as sibilas prediziam o futuro; articulavam suas profecias depois que entravam em convulsões sob o efeito do transe auto-hipnótico.

Pela auto-hipnose se explica a anestesia dos mártires, que se submetiam às maiores torturas sem dar o menor sinal de sofrimento físico. Na Índia, o faquir produz o transe auto-hipnótico para suportar, sem aparentar sentir dor, práticas de torturas. Dentre os hindus, mongóis, persas, chineses e tibetanos, a hipnose vem sendo exercida há milênios em meio a rituais religiosos e, é fácil observar que assim ainda prosseguem na atualidade. A hipnose e a religião estão sempre próximas, quando não juntas nos ritos religiosos e, atualmente, está sendo largamente utilizada e institucionalizada com este fim.

A hipnose provavelmente também teve um papel importante nas práticas religiosas e nas artes curativas dos Druidas - Sacerdotes de religião pré-cristã da Gália e da Bretanha que depois se espalharam por toda a Europa Ocidental. Eles prediziam o futuro, realizavam curas com o uso de ervas, cânticos e magia, alguns eram considerados intermediários entre os deuses e os homens; seus rituais, cercadas de mistérios, aconteciam nas florestas. Na Gália foram considerados bruxos, combatidos e dizimados pelos romanos e mais tarde pelos cristãos, na Irlanda, sob sigilo, alguns sobreviveram em sua prática religiosa.

Nas ilhas britânicas o chefe religioso dos Druidas punha seus fiéis recostados e, induzindo-os a um sono artificial, aliviava suas dores e curava doenças. Inúmeras gravuras daquela época mostram sacerdotes-médicos colocando presumíveis pacientes em transe hipnótico. Semelhantes fatos já ocorriam na velha civilização babilônica, na Grécia, na Roma antiga e no Egito, onde existiam os Templos dos Sonhos que eram locais apropriados para se aplicar nos pacientes sugestões terapêuticas enquanto dormiam. Também os Azstecas e os Mayas utilizavam a hipnose para tratar dos doentes.

Dentre os grandes homens sábios, filósofos e líderes religiosos que se dedicaram ao hipnotismo, é destaque o médico e filosofo árabe Ibn Sina (980-1037), que no ocidente ficaria conhecido como Avicenna, nascido nas proximidades de Bukhara morreu perto de Hamadã (atual Irã). Influenciado pelas idéias das primeiras escolas filosóficas sobre a importância do cosmo sobre a doença e a saúde, elaborou uma série de técnicas de indução de sugestões de melhorias para o ser humano. Também exerceu notável influência na

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medicina moderna; foi quem primeiro descreveu a anatomia do olho humano e o funcionamento das válvulas do coração, analisou uma série de doenças como a varíola, o sarampo e o diabetes, formulou hipóteses de que certas moléstias eram causadas por pequenos organismos presentes na água e na atmosfera e elaborou vários procedimentos de diagnósticos.

No campo da hipnose Avicenna, já afirmava, no século X, ser possível atuar fisiologicamente através da imaginação, da palavra, da vontade e da persuasão e, assim, os padecimentos podiam ser curados. Dizia que a “imaginação humana tinha poderes e força e, através dela, se poderia agir sobre o corpo humano”. Sua obra Cânom foi leitura obrigatória no ensino de medicina na Europa por muitos séculos.

A busca do transe hipnótico por ingestão de meios químicos é o método mais direto para o ser humano entrar, temporariamente, em mundos fascinantes do seu inconsciente. Diversos vegetais com propriedades hipnóticas têm sido utilizados com esta finalidade, desde as antigas civilizações, apresentando um papel importante em ritos religiosos. Segundo Schultes & Hofmann, 2 o uso destas plantas permitia ao curandeiro realizar cura, fazer adivinhações e orientar a tribo nas estratégias de guerra. A explicação é que, entre seus efeitos, pode transportar a mente humana para o autoconhecimento, para o contato com divindades e outras forças do mundo espiritual.

Segundo Labate 3 na natureza existem cerca de 100 vegetais que podem desencadear o processo hipnótico, alguns são classificados como alucinógenos, dentre as quais a Iboga que é utilizada por aproximadamente um milhão de pessoas na África; o Peiote, cacto amplamente consumido no México e nos EUA cuja substância ativa é a mescalina; os Cogumelos, que já apareciam em registros hindus da Antiguidade. Na região amazônica algumas plantas são utilizadas, no decorrer de ritos religiosos, por tribos indígenas como meio de produzir transes, como a Jurema e o Yopo. A Jurema é consumida na forma de chá, enquanto as sementes do Yopo são maceradas e seu pó é consumido pela via intranasal (cheirado). Em diversas regiões da América do Sul o chá Ayahuasca é o mais conhecido.

Elementos e efeitos hipnóticos estão também presentes nas religiões das tribos indígenas da África, das Américas e da Oceania,

2 Schultes, R.E. & Hofmann, A. Plantas de los Dioses. Orígenes del uso de los

alucinógenos, Fondo de Cultura Económica. México, 1982.

3 Labate, Bia e Wladimyr Sena. O Uso Ritual da Ayahuasca, São Paulo editora

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assim como dos primitivos habitantes da Europa e da Ásia. O xamantismo, antiga religião da Ásia que existe até hoje, é caracterizado por um conjunto de práticas realizadas pelo xamã, uma categoria especial de médico-pajé que entra em transe e, segundo a crença indígena, sua alma vai para longe do corpo, percorre lugares distantes, enquanto um espírito estranho encarna para realizar trabalhos de cura e adivinhação.

Entre algumas nações indígenas o xamã é um homem ou mulher que, no final da infância, passou por uma experiência de sentir sua sexualidade transfigurada, a partir daí leva a vida voltada inteiramente para dentro de si. É iniciado através de rituais, permanece por vários dias em estado de êxtase, depois disso consegue facilmente entrar em transe para servir de intermediário entre os homens e os espíritos xaporis, entidades que indica procedimentos de cura. Descrições dessas experiências podem ser encontradas ao longo de todo o caminho que vai da Sibéria às Américas. Em contato com diferentes povos, os rituais dos xamãs se popularizaram e se transferiram para fora das aldeias, incorporaram parte de outras cultura e crenças. Essa mescla, às vezes muito distanciada das explicações originais, é que se observa nos centros urbanos.

A prática do ritual de cura dos indígenas, assim como muitas outras medicinas alternativas, lida principalmente com a fé, mas isso não quer dizer que várias das ervas nativas indicadas pelos pajés e xamãs não tenham princípios químicos ativos que, inclusive, vêm sendo objeto de pesquisa científica e que já compõem vários remédios produzidos pelos laboratórios farmacêuticos. Independente do uso de vegetais, no ritual de cura dos indígenas ocorrem sons produzidos pela voz humana e ou instrumental, extremamente monótono e repetitivo, podendo também acontecer danças com movimentos corporais lentos, síncronos e repetidos. Tudo isso revela condições hipnotizadoras que, independente de ingestão de qualquer substância, podem levar pessoas ao transe.

Há relatos do uso do chá ayahuasca em toda a Amazônia, chegando à costa do Pacífico no Peru, Colômbia e Equador, bem como na costa do Panamá. Foi reconhecida nesta região em pelo menos setenta e duas tribos indígenas, com pelo menos quarenta nomes diferentes. Entre as diversas tribos da bacia Amazônica é percebida como uma poção mágica, de origem divina, geralmente é usada em ritual religioso com propósitos de cura ou para fornecer visões que são importantes no planejamento de caçadas, prevenção contra espíritos malévolos, bem como contra ataques de feras da floresta. Essas visões, guiadas e manipuladas pelos xamãs e

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fundamentada no ideário de crença do grupo, podem se repetir de forma coletiva.

É evidente o poder hipnótico do chá ayhuwasca, bebida de cor marrom claro e de gosto amargo fabricada em diversas regiões da América do Sul, a partir do cozimento concomitante de talos socados do cipó jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi) e da folhas do arbusto chacrona (Psychotria viridis). Na mistura para a sua produção pode ou não ser acrescentado mais de trinta outras espécies de vegetais, como a folha de outro cipó conhecida na Colômbia como chagro panga (Diplopterys cabrerana).

Os métodos de preparo do chá ayhuwasca variam conforme o grupo, geralmente, O cipó é cortado em pedaços de 20 cm de comprimento e amassado, juntado duas medidas de cipó para uma das folhas e posto a aquecer até a fervura. Também pode ser amassado, junto cipó e folha, com água fria, e deixa em descanso por aproximadamente vinte e quatro horas. É um longo processo, leva quase um dia.

Originariamente o chá ayhuwasca era produzido e usado nos rituais indígenas. Segundo suas crenças, entre os efeitos produzidos "facilita o desprendimento da alma de seu confinamento corpóreo, voltando ao mesmo conforme a vontade, carregada de conhecimentos sagrados". (Schultes & Hofmann). Os índios Jivaro, do Equador, acreditam que a experiência com ayahuasca é a vida real, ao passo que a realidade cotidiana é apenas uma ilusão.

A palavra ayahuasca pertence à língua quéchua, na etnologia lingüística aya quer dizer corda ou cipó dos espíritos ancestrais e waska significa chá ou vinho. O chá ayahuasca é conhecido em diferentes culturas por outros nomes como Yajé, Caapi, Natema, Pindé, Kahi, Mihi, Dápa, Bejuco de Oro, Vinho de Deus ou Vinho dos Espíritos entre outros. A transliteração para a língua portuguesa resultou em hoasca, mas também é conhecido no Brasil como "Chá do Santo Daime" ou "Vegetal". Onde se cultua o chá é recorrente a expressão “o cipó dá a força e a folha, luz”.

No Brasil o consumo do chá ayahuasca por não indígenas surge do contato entre seringueiros e xamãs da região amazônica, no auge da exploração da borracha, no fim do século XIX. Os desdobramentos sócio-histórico-culturais ocorridos nesta região, nas primeiras décadas do século XX, propiciaram a expansão do seu uso para outros contextos distintos de suas origens e dá início às religiões que se espalham rapidamente para os centros urbanos.

As religiões criadas no século XX que fazem uso do chá ayahuasca são consideradas, do ponto de vista antropológico, como

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formas de neoxamanismo; recriam rituais xamãnicos agregando novos elementos culturais e religiosos. Tem início com os mestiços da região amazônica, migram para zonas urbanas e para grandes centros como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, daí avançando para todos os Estados da federação brasileira e também para a América do Norte e Europa, colocando a etnia branca em contato com, pelo menos, fragmentos de tradições religiosas milenares.

As novas religiões que fazem uso do chá ayahuasca associam ações esotéricas do mundo indígena com tradições de outras crenças religiosas. Bastantes sincréticas combinam, em doses diferentes, desde o xamanismo indígena até o kardecismo, passando pelo catolicismo popular, pelo candomblé e pela umbanda. Em todas elas os efeitos decorrentes da ingestão do chá são atribuídos ao processo de purificação da alma e tem como objetivo transmitir aos homens "uma prática ordenada pela força superior no sentido de ensiná-los a se conduzir sobre a terra" (Callaway). 4

Várias comunidades na Amazônia passam a cultua o chá ayahuasca e, em seu ritual, envolve santos da igreja católica e orixás do candomblé, reverenciam a mata, a floresta, a paz e a alegria. Ao lado de cânticos que geralmente têm inspiração ecológica, a cerimônia envolve uma dança coletiva de passos repetidos, síncronos e monótonos, dois para um lado, dois para outro. Ás vezes essa dança dura uma noite inteira.

Por volta de 1930, Raimundo Irineu Serra fundou a vertente religiosa ayahuasqueira conhecida como Alto Santo, a religião do Santo Daime no Rio Branco, no Estado do Acre; é a mais antiga, embora menor. Em 1945, Daniel Pereira de Mattos, maranhense que se mudou para o Acre, criou a Barquinha; é a menos espalhada pelo Brasil, concentra-se na região amazônica, admite a incorporação do "Preto Velho", típico dos rituais de influência africana.

Raimundo Irineu Serra, conhecido como "Mestre Irineu", era um negro seringueiro de dois metros de altura, que em 1930 em Rio Branco-Acre, após uma intensa iniciação com bebida Ayauasca através de um Xamã na floresta amazônica, fundou a Doutrina "Santo Daime". Foi tomando essa bebida que o Mestre Irineu teve a visão (miração) de Nossa Senhora da Conceição e, segunda afirma, foi lhe passando os fundamentos da Doutrina. O nome Daime vem do próprio verbo "dar", no sentido Daí-me Luz! Daí-me Amor! Daí-me Força!

4 Callaway, J.C. et al. Quantitation of N,N-dimethyltrytamine and harmala alkaloids

in human plasma after oral dosing with Ayahuasca, J Anal Toxico, l 20(6): 492-7,

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Forma-se mais uma religião denominada Barquinha. No seu ritual os adeptos, com roupas de marinheiro, tomam o chá ayahuasca que, segundo a crença, conecta o homem com o divino. Todos cantam os salmos, músicas que teriam sido inspiradas por guias espirituais invisíveis. A cortina se abre para revelar o altar onde pontifica São Francisco das Chagas, o comandante que pilota a Barquinha, com outros seres divinos. A bebida provoca o transe, e assim começa a viagem, cuja missão seria resgatar almas dos mortos que sofrem no mundo espiritual e levá-las, pelo mar sagrado do Santo Daime, até os pés de Jesus Cristo, onde está a salvação. É uma crença cristã, mas também é de umbanda; entidades espirituais, conhecidas como caboclos, supostamente se manifestam para afastar as forças negativas. Quando as cortinas se fecham, o trabalho na Barquinha está encerrado.

Existe outro centro da Barquinha situado às margens do Rio Acre. É o Centro Espírita Luz, Amor e Caridade, conduzido pelo Mestre Juarez, com mais de oitenta anos de idade, um patriarca da floresta. No dia 29 de junho, começa a celebração da Noite de São Pedro e, dentro da igreja, orações e salmos são entoados. Após beber o chá, todos saem para o terreiro de umbanda, onde são feitas as chamadas "obras de caridade". Mestre Juarez assovia, chamando a força do Daime, ele estaria incorporando um encantado, uma entidade poderosa no universo da Barquinha, o Príncipe Dragão do Mar. Acredita-se que várias entidades descem ao terreiro para expulsar os espíritos malignos.

Na década de 1970, apareceu outra ramificação do Santo Daime, o CEFLURIS – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, fundamentada em crenças xamânica, esotérica e cristã, liderada por Sebastião Mota de Melo, um seringueiro e construtor de canoas, natural de Eurinepé, Amazonas, discípulo do Mestre Irineu.

O CEFLURIS, nos anos 90, se organizando melhor através de ajustes e correções em sua estrutura básica, resultou sua expanção pelos centros urbanos brasileiros e para o exterior, já possui núcleos no Japão, na Holanda, na França, na Itália e nos Estados Unidos, entre outros paises. Uma boa característica dessa organização é o fato de ser a mais abeta à comunidade externa, divulgando de forma explicita seus objetivos e práticas religiosa. Sua estrutura, horizontal e democrática, permite que os diversos segmentos, espalhados pelo país, utilizem bem os meios de comunicação, como revistas e Internet. Essa interação com o publico permitiu sua divulgação e aponta para o seu crescimento acelerado no Brasil e no mundo.

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Na década de 1960, formou-se o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV) em Porto Velho, no Estado de Rondônia, através de José Gabriel da Costa, um baiano que foi para a região amazônica trabalhar nos seringais; Atualmente figura como uma das maiores e bem organizada religião que faz uso do chá, seu ritual é discreto, sem danças, é mais fechado à comunidade externa e sua estrutura é vertical e hierarquizada.

Por orientação do Mestre Gabriel, a UDV adota a fundamentação cristã e reencarnacionista e o transe é conhecido como burracheira que, segundo seu fundador, significa uma “força estranha, a presença da força e da luz do Vegetal na consciência daquele que bebeu o chá”, é um veículo de concentração mental e seu efeito amplia a percepção e permite, segundo seus dirigentes, melhor compreensão dos fundamentos da espiritualidade.

A UDV indica para os associados regras disciplinares rígidas como o não consumo de álcool e de fumo, preservação da instituição familiar, além de postura socialmente ética sobre todos aspetos. Não permite o uso de ayahuasca, denominado apenas como Hoasca ou Vegetal, por pessoas que não sejam membros efetivos ou alguém indicado por um associado e aprovado pelo líder da organização. É contrária ao uso do chá fora do contexto religioso, considera inadequado o uso indiscriminado por parte de pessoas não-iniciadas e sem a orientação de um dirigente (Mestre).

Na UDV ocorrem sessões regulares (de escala) duas vezes ao mês e sessões extras convocadas pelo Mestre, além de sessões de iniciação. Durante o ritual todos permanecem sentados e em silêncio, o Mestre preside e dosa a quantidade do chá para o consumo de cada um em particular. Todos, sem exceção, simultaneamente bebem e ficam esperando a "burracheira" como é conhecido o transe.

Durante a sessão, para sair do recinto, principalmente em função das reações do chá que iniciam após trinta a quarenta minutos e vai até três ou quatro horas, é preciso permissão do Mestre. O novato ao sair é seguido por um ou dois associados que o vigia em tempo integral. Isso vale para prevenir vertigens e outras situações imprevistas durante o transe. No ritual, a circulação das pessoas no salão se faz no sentido anti-horário que, segundo Mestre Gabriel, “este é o sentido da força”. Essa prática também acontecia nas sessões mesmeristas, no fim do século XIX, e em algumas sessões kardecistas até a primeira metade do século XX.

Decorrido cerca de uma hora e meia, o Mestre vai de um em um e pergunta “Como vamos? Tem luz? Tem burracheira?”. No início

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do transe coletivo são entoados cânticos (chamadas), que tem como proposta transmitir ensinamentos. Decorrido cerca de três horas, quando todos estão sob o efeito do vegetal, em plena "burracheira", ouvem gravações de MPB. A autoridade é amplamente ostensiva, tudo é controlado rigorosamente seguindo uma hierarquia, Mestre, Conselheiro, Associado e diferencia-se um dos outros por fardamento, função e tarefas. A Burracheira é alusão ao termo borracheira, conhecida nos seringais amazonense como o período decorrido após a extração do látex e sua defumação para produção da borracha.

Segundo a crença da União do Vegetal, foi um importante personagem bíblico, o Rei Salomão, quem descobriu o vegetal e passou esse conhecimento a um homem chamado Caiano. Séculos depois, Caiano teria nascido de novo na Bahia, com o nome de José Gabriel da Costa. Torna-se Mestre Gabriel após conhecer a hoasca nos seringais de Rondônia e fundar a União do Vegetal.

Andrade 5 conta com detalhes a trajetória de vida de José Gabriel. Relata seu envolvimento com o catolicismo popular, ainda no interior da Bahia onde nasceu, como freqüentou sessões espíritas kardecistas e terreiros de candomblé em Salvador e seu trabalho na extração da borracha no Estado de Rondônia. Conta como, em Porto Velho, Gabriel passa a atender pessoas, em sua casa, jogando búzios e relata com detalhes como, quando e porquê se torna Ogã e Pai do Terreiro de Mãe Chica Macaxeira, para justificar seu retorno ao seringal onde abre seu próprio terreiro, no qual “recebia” o caboclo Sultão das Matas com o fim de curar pessoas, orientar caçadas, etc.

Ao abrir seu próprio terreiro, José Gabriel passa a dirigir um rito sincrético afro-indígena, uma forma de xamanismo assemelhado à pajelança amazônica, que associa, na prática, elementos religiosos afros kardecistas e do catolicismo popular. Em abril de 1959, no seringal Guarapari, na região da fronteira boliviana, Gabriel recebeu pela primeira vez o chá ayahuasca de um seringueiro chamado Chico Lourenço, que representava uma tradição indígena-mestiça de uso xamânico do chá.

Segundo Andrade, em 1961 José Gabriel reuniu as pessoas e disse: “Eu quero falar pra vocês que tudo que o Sultão das Matas faz eu sei: Sultão das Matas sou eu”. Este momento foi considerado

5ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla.

Um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação de Mestrado na

Pós-Graduação em Ciências da Religião do Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo, 1995.

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como de grande iluminação. Ao postular para si mesmo o poder antes atribuído à entidade Sultão das Matas, Mestre Gabriel nega a incorporação dos cultos de caboclo. A partir daí, o transe deixa de ser entendido como mediúnico, não há incorporações nas sessões. Mestre Gabriel reconhece um novo tipo de transe e o denomina de burracheira, em vez de incorporação agora ocorre iluminação, é justificado como sendo a percepção de uma força desconhecida que age dentro de cada um. Como se diz na UDV no decorrer da burracheira “há uma potencialização dos sentimentos, das percepções e da consciência”. Essa descrição é perfeita para caracterizar um transe hipnótico.

É certo que sugestões de melhorias, curas, superações de adversidades e vicissitudes, instaladas na mente humana durante um transe, funciona de forma poderosa. No transe produzido pelo chá hoasca, estas sugestões são elaboradas, ampliadas, ajustadas e adaptadas, de forma consciente ou não, por cada pessoa, pelo Mestre, pelo ambiente, pelo ritual e dogmas que induz princípios universais da ética e da moral. A ordem religiosa estabelecida lembra e introduz na mente de cada um a idéia do merecimento a uma vida digna, ao direito da pessoa ser feliz e de fazer o próximo feliz. Condições indispensáveis para elevação da auto-estima, superações e curas.

Cerca de noventa e oito por cento das pessoas que experimenta o chá entra em transe. Cerca de oitenta por cento, incluindo aí o Mestre, apresenta sintomatologia de transe leve, o que permite entrar ou sai do estado hipnótico, dependendo da necessidade e de sua vontade. Trinta a quarenta por cento fica em nível intermediário e cinco a dez por cento apresenta características de níveis profundos, sonambúlicos e plenos.

Os efeitos provocados pela ingestão do chá ayahuasca iniciam aproximadamente em trinta minutos e prolonga-se por até quatro horas, variando na intensidade ao nível do transe produzido que é caracterizado por náuseas, vômitos intensos, diarréias, palpitação, taquicardia, tremores, midríase (dilatação das pupilas), suor excessivo, perda da discriminação espaço-temporal, ilusões sinestésicas, perda ou diminuição de controle psicomotor e vertigens. Não obstante a essas situações adversas, no período de três a quatro horas pode ocorrer o aumento de bem-estar do indivíduo, criando fortes sensações de felicidade e contentamento.

Após o transe aqueles que experimentam efeitos mais profundos relatam sensações de vôo pelos ares, idas à lugares distantes, visões envolvendo locais e pessoas (miração). Relatam

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ainda a sensação de comunicação com divindades. As narrativas são variadas e, de certo modo, se ajustam à crença e ao ideário de cada um. Devido a esses efeitos a mistura dos dois vegetais para a composição do chá, foi e continua sendo utilizada com finalidade mística em ritual religioso.

Nos anos 90 à União do Vegetal começa a se expandir pelos centros urbanos brasileiros e para o exterior, entrando nos EUA e na Espanha. Em 21/2/2006 a Suprema Corte de Justiça dos EUA deu autorização, por votação unânime, para prática do culto em território americano. Oito juízes do tribunal recusaram os argumentos do governo americano de que uma das substâncias contidas na bebida ayahuasca está na lista de entorpecentes proibidos pela legislação em vigor nos Estados Unidos. Na decisão o tribunal levou em conta a permissão dos membros da Igreja Nativa Americana, na grande maioria indígenas, usarem em seus rituais um chá composto por peiote. Os índios norte-americanos possuem o Ato de Liberdade de Religião Indígena, aprovado em 1994, que especifica autorização para o uso do cacto Peiote para fins religiosos e, por analogia do Direito, o consumo do chá foi autorizado. 6

O DMT, substância presente na folha do arbusto que compõe o chá ayahuasca, é proibido pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas da Organização das Nações Unidas - ONU, firmada em Viena em 1971, da qual o Brasil é signatário.

Por conta das restrições da ONU, o DMT foi incluído na lista das substâncias psicoativas proscritas da Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde brasileira durante os anos de 1985 a 1987, enquanto neste mesmo período, uma multidisciplinar comissão estudou as formas de consumo do psicoativo proibido e, como resultado deste estudo, o (extinto) Conselho Federal de Entorpecentes elaborou parecer retirando a substância da ilegalidade.

Em 1992, houve uma nova tentativa de proibição do consumo do DMT no Brasil, tendo sido organizada uma nova comitiva que reafirmou a decisão anterior de liberalização do consumo para fins religiosos. Hoje não há restrições quanto ao seu uso, predomina o entendimento fundamentado no Direito Constitucional de liberdade de culto e religião (CFR de 1988, artigo 5º, inciso VI). Também foi considerado o fato que de nada consta na legislação penal brasileira sobre os componentes ativos contido nos vegetais que compõem o chá, por tanto, seu uso é facultado (Lei de entorpecentes, 6.368/76).

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Também existe uma ação processual em curso na ONO para regularizar a situação, no âmbito de sua convenção internacional, no sentido de reconsiderar o uso do chá ayahuasca em ritos religiosos.

Existem discussões acadêmicas quanto aos efeitos do chá ayuwasca, a literatura científica sobre o tema é controversa, ora considera como alucinógeno e não recomendado, ora considera como inofensivo à saúde e indicado como terapia. A ciência caminha no sentido de esclarecer como os elementos, contidos na bebida, age no organismo humano. Já se sabe que a folha do arbusto chacrona (Psychotria viridis) contém um princípio ativo, a DMT (N, N, Dimetiltriptamina), que tem semelhança estrutural com a serotonina, um importante neurotransmissor do sistema nervoso central. Quando administrada por via oral, a DMT é decomposta pela monoaminoxidase (MAO), tornando-se inativa. O cipó jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi) contém alcalóides beta-carbolinas: a Harmina, a Tetrahidroharmina e a Harmalina. Esses alcalóides inibem a atuação da enzima MAO, o que evita que esta inative a DMT contida na folha. Assim, a interação entre esses alcalóides e a DMT permite que a bebida produza alterações no corpo e no psiquismo.

Dentro da perspectiva sistêmica fica complicado saber como as propriedades do chá ayahuasca, isoladamente identificadas a partir de pesquisas reducionistas, agem no ser humano, o que de fato acontece quando é ingerido, como e si são mantidas suas propriedades originais quando interage com tantos outros elementos do metabolismo e do psiquismo, mas são questões difíceis de respostas para a ciência atual. Difícil também será explicar como acontece a produção do transe, com sintomatologia e efeitos iguais, diferenciando apenas quanto à ocorrência de vômitos e diarréias, que são induzidos sem a ingestão de quaisquer substâncias, através de meras sugestões verbais e que podem até ser praticada por auto-sugestão. Conhecer a sintomatologia do transe hipnótico, suas diferentes formas de produção e efeitos, pode contribui para uma interpretação diferenciada para o efeito do chá ayahuasca.

Na Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador é tradição o consumo e a administração do chá ayahuasca sem envolvimento religioso. Sua aplicação é feita por uma espécie de médico naturalista que se referem a si mesmos como vegetalistas. Estes "Doutores dos Vegetais” ajudam as pessoas das áreas rurais e as populações pobres de áreas suburbanas que, doentes, não têm condições de ser assistidas pela medicina convencional. No Peru o chá é conhecido também como la purga, devido às suas características de provocar diarréias, que são entendidas como

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processo de desintoxicação. Em certas regiões da Colômbia, com essa mesma finalidade é denominada el remedio. Sem envolver religião, estudiosos levantam hipóteses de que o chá ayahuasca contenha propriedades antimicrobianas, o que o tornaria efetivo no combate a vermes ascarídeos e protozoários. É só Brasil que tem início o uso, associado ao sincretismo religioso, por populações não indígenas.

A história do sincretismo religioso no Brasil inicia com os jesuítas incumbidos de doutrinar os índios e depois os negros, proibindo seus cultos sagrados. Os negros escravos, por não terem alternativa, construíam altares com imagens e gravuras dos santos do catolicismo e associava essas imagens aos orixás, como a única forma de continuarem com suas crenças de origem. Formou-se assim a associação entre o orixá do candomblé e o santo da igreja católica, em rituais com elementos simbólicos riquíssimos, utilizando muitas cores, sons e ritmos, realizados nos terreiros das senzalas. Com o passar do tempo, alguns terreiros começaram a misturar os rituais do Candomblé com os da Pajelança, dando origem a outros cultos.

O candomblé tem vários ritos e diferentes ênfases culturais, mas sempre neles ocorrem transes. As culturas africanas, principais fontes para as atuais vertentes do candomblé praticado no Brasil, vieram da área cultural banto, onde hoje estão os países da Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique e da região sudanesa do Golfo da Guiné. Nações que contribuíram para a formação cultural dos iorubás e os ewê-fons, circunscritos principalmente aos atuais territórios da Nigéria e Benin. Estas origens se interpenetram tanto no Brasil como na África. Os rituais africanos associados aos rituais indígenas deram origem ao Candomblé de Caboclo e, neste caso, a força curativa é atribuída aos espíritos de índios e negros. Essa mistura de cultos cria ramificações como os Conjuros, Canjerê, Catimbó, Macumba, Quimbanda e Jurema ou Juremeiros.

Os Juremeiros consomem uma bebida, também de uso nos rituais indígenas, de nome jurema. É produzida com a casca do caule e da raiz da planta jurema (Mimosa Hostilis Benth), natural da região nordeste do Brasil, acrescida de mel e outra bebida fermentada de teor alcoólico. Os índios também fumavam, por meio de cachimbo, um preparado com a raiz desta planta e, tanto o hábito de fumar como de ingerir a bebida foi incorporado aos rituais de origem e influência africana.

No culto afro-brasileiro a composição da bebida jurema, antes apenas indígena, passou a ser conhecida como vinho da jurema e

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outros ingredientes foram acrescentados além da cachaça e o mel, como o vinho tinto, o pó de guaraná, a rapadura, canela, cravo-da-índia, gengibre e dandá, também conhecido como tiririca ou junca apontando no meio cientifico como sendo a espécie Fuirena umbellata Rotbb. Em alguns terreiros de nação Angola, antes de se beber jurema, põe-se uma pitada de dandá na boca. O vinho e o dandá são também servidos à assistência. Acredita-se que a pessoa que bebe, sendo susceptível ao transe e envolvido com a crença no culto, manifesta imediatamente a incorporação do espírito de um caboclo, pois juntos o dandá e a jurema aceleram o processo do transe. Enquanto a bebida é servida, cantam-se hinos em homenagens as divindades cultuadas.

Zanini & Oga 7 afirma que o vinho da Jurema produz efeitos semelhantes aos do LSD 25 e de outras drogas desse grupo, porém reconhece que seu uso não causa dependência física ou psíquica e seu abandono não causa síndrome de abstinência. Logo não é tão semelhante assim. Há uma tendência acadêmica de se classificar qualquer tipo de transe, produzido por ou com a ajuda de elementos químicos, mesmo que naturais, como sendo mera ação de uma substância alucinógena.

Nos transes hipnóticos produzidos por qualquer processo, inclusive visuais, auditivos e rituais sem ingestão de qualquer substância, entre seus efeitos podem ocorrer a alterações do humor, com euforia e depressão, ansiedade, distorção de percepção de tempo, espaço, forma e cores e alucinações visuais. A esses sintomas, algumas vezes, são acrescidas idéias delirantes de grandeza ou perseguição, despersonalização, midríase, hipertemia no tórax e cabeça associado a hipo-termia nas extremidades das mãos e pés. Em rituais sua principal característica, desenvolvida pela sugestão prévia embutida na cultura religiosa, é produzir alterações de senso-percepção e, freqüentemente, produzem experiências místicas, visões e êxtases.

O Candomblé de Caboclo associado ao Kadercismo cria também a Umbanda, que admite a manifestação de espíritos de pessoas mortas. Os cânticos para os orixás, atabaques e jogos de búzios, naturais do rito africano, são substituídos por práticas desenvolvidas na Europa como sessões de passe com a imposição das mãos e consulta aos espíritos através de médiuns. Umbanda mistura tradições religiosas africanas, indígenas e católicas, além

7 ZANINI, A C. & Oga, S. Farmacologia aplicada. São Paulo, Atheneu Ed.

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dos orixás, cultuam o caboclo, o preto-velho e espíritos dos antepassados que servem de guias ou conselheiros aos fiéis.

As rezas e as bênçãos, praticadas pelas rezadeiras e benzedores, também podem exercer efeitos hipnóticos, ou pelo menos são de grande poder sugestivo. O benzimento é uma forma antiga no tratamento de várias doenças, utilizado desde a idade média na Europa. No Brasil, além da reza tradicional, alguns benzedores indicam para reforçar o efeito de cura o uso de plantas como amuletos protetores, ou preparam e receitam chás, garrafadas, banhos e ungüentos, dando assim origem ao termo raizeiro ou curandeiro, conhecido também como feiticeiro ou milagreiro. Estes são proscritos pela medicina oficial, amaldiçoados pela religião dominante, além de mantidos à margem da lei.

Parece que quanto mais uma civilização evolui e a ciência oficial se desenvolve, mais a figura do curandeiro se faz presente e mais numerosos e populares são os adivinhos, os videntes, as cartomantes e todas as metamorfoses e alterações semânticas que envolvem o hipnotismo.

O transe hipnótico foi e é também produzido com a associação de idéias de demônios, anjos, arcanjos, espíritos, santos ou deuses. Aparece camuflado, mesclado ou associado as mais diferentes ou tradicionais liturgias. Por volta de 1840, na Alemanha, sob a orientação de seu hipnotizador Alphonse Cahaganet, a sonâmbula Adèle Marginot em transe descrevia estar vendo e ouvindo anjos, narrava o que acreditava como sendo conselhos do além para o bem da humanidade. Cahaganet, com base em Adèle, editou, em 1847, o livro Os Arcanjos da vida futura revelada. Notáveis também foram os transes do sonâmbulo de Prevost, cidade alemã onde viveu Frédérique Hauffer. Seu hipnotizador Justinus Kerner publica, em 1829, como transcorriam as sessões e como Hauffer em transe descrevia situações envolvendo anjos, arcanjos, conselhos e adivinhações de vida futura.

Em 1847 nos Estados Unidos da América, a família Fox, representa a transição entre a fase de anjos e demônios para a fase dos espíritos desencarnados, seja nas sessões de sonambulismo ou no meio de rituais religiosos. O fato, que passou a ser entendido como uma comunicação com espíritos de pessoas mortas, serviu de base para, em 1850, desenvolver experiências com “mesas girantes” e, por conseqüência, o Kadercismo que surge afirmando uma nova concepção de cura.

Na Europa, por volta de 1770, um Padre católico de nome Johann Joseph Gassner (1727 - 1779) que viveu em Klosters, no sul

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da Alemanha, atribuía às doenças à possessão demoníaca. Suas idéias não desapareceram após a associação do transe com a idéia de anjos, arcanjos e espíritos desencarnados, pelo contrário. Algumas práticas, que ganham popularidade a cada dia, são idênticas às produzidas por Gassner.

Se hoje as doenças são, para grande parte da humanidade, atribuídas às forças malignas, isso era o pensamento padrão no século XVIII. Nessa época os doentes eram simplesmente entendidos como possuídos pelos demônios e Gassner divulga a crença de que podia curar os enfermos. Em milhares de pessoas, por sugestão hipnótica induzia curas espetaculares e, para assegurar-se da aprovação da igreja, aplicava seu método de tratamento como se fosse processo de exorcismo, obtendo o consentimento para suas ações através da afirmação de que Deus estava agindo através dele. 8

Gassner era um tanto teatral; aparecia à sua clientela vestido todo de preto, de braços estendidos, segurando um grande crucifixo de ouro cravejado de diamantes; usava ambiente solene, decorações lúgubres e falava em latim com voz cava e não fazia segredos de seus métodos. Freqüentemente permitia que médicos observassem sua prática e, os médicos que se apresentavam para observá-lo em ação, eram conduzidos na igreja a uma sala parecida com um pequeno teatro onde se acomodavam. Então o doente era posicionado numa espécie de palco no centro desta sala para esperar o Padre. Com o objetivo de melhorar ainda mais o espetáculo, no timing de sua entrada, Gassner caminhava até a plataforma através de um longo promontório negro, segurando o crucifixo com a mão estendida ao alto. Ao ser tocado pelo crucifixo o doente entrava em estado cataléptico. Isto era o primeiro passo para expelir todas as formas de mal existentes em quem se sentia possuído.

A catalepsia é um estado que envolve a súbita suspensão da sensação e da volição, bem como a paragem parcial das funções vitais. Ocorre, ao mesmo tempo, queda acentuada da pressão arterial e dos batimentos cardíacos, resfriamento das mãos e dos pés, além de profunda palidez, o corpo se torna rígido, ficando com a aparência que pode ser confundida com uma pessoa morta. O estado cataléptico é provocado por emoções fortes e prolongadas como um susto ou um medo violento e, dependendo da técnica de

8 Manifestações de possessões demoníacas e procedimentos exorcistas, a Igreja

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