Jean-Pierre Sarrazac
A PAIXÃO DO JARDINEIRO
NEO, TRÊS PAINÉIS DE APOCALIPSE
tradução de Isabel Lopes
Trabalhar com Sarrazac
Fernando Mora Ramos
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A PAIXÃO DO JARDINEIRO
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NEO, TRÊS PAINÉIS DE APOCALIPSE
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TRABALHAR COM SARRAZAC
Editar Jean-Pierre Sarrazac é tarefa emotiva, vem de muita cos-tura afectiva, afinidades e contradições estimulantes, de tempo signi-ficativo, anos de descoberta e novos horizontes de exercitar poéticas de cena, de cumplicidades e teatros de referência, da invenção, como prospectiva, de uma Casa do Exercício teatral, modelo de laboratório teatral entre o Dramat que no Porto criámos e as práticas múltiplas e interdisciplinares do Teatro da Rainha, ao longo dos seus 35 anos de existência – tudo se exercita, o próprio pensamento que, em acção, emerge da cena.
Em 84 montei Lázaro, também ele sonhava com o Eldorado, que o Jean-Pierre escreveu a partir de Lazarilho de Tormes, novela pícara de autor anónimo que inspira Cervantes. Na altura, fazer entre nós os contemporâneos, um autor vivo, para mais, era novidade, atrevimen-to, num teatro entregue à convenção burguesa, a experimentalismos pacóvios e periféricos, aos best sellers teatrais da época e a um res-peito canónico pelo que fosse clássico – patrimonialismo de colecção pelo lado da deferência e subalternidade diante da cultura chamada erudita e seguramente “função didáctica e civilizadora”, cultural, di-vulgadora e não necessariamente artística.
O país teatral, aldeia local, era ainda marcado por um profundo hiato de liberdade e necessariamente por um profundo desconheci-mento do que se fazia na Europa e no mundo – mesmo dez anos de-pois de Abril. Poucas companhias faziam contemporâneos em articu-lação programática, como reportório articulado, a Cornucópia, Évora e pouco mais. Os contemporâneos, sem nome firmado, eram aventura e nós estávamos ainda a inventar o teatro num país saído da censura e
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do analfabetismo, isto é, da inexistência pública de actividade teatral numa escala socialmente relevante para ser nomeada de democrática. Foi uma experiência radical fazer o Lázaro, ir à raiz, não só o tema era o tráfico de um ser humano – Lazarilho era aqui proletário em busca de um Eldorado do trabalho – como a peça, um drama por esta-ções como no teatro expressionista, afirmava o teatro da ruptura com o modelo da peça bem feita, com o modelo da narrativa encadeada linearmente, o que segue vindo do que precede, clímax e desenlace, mais ou menos isso.
Como encenador estava perante um “monstro”, meio estruturado de forma rapsódica e desenvolvendo-se por estações, feito de cenas que são peças entrelaçadas num “calvário” civil em que, como numa tapeçaria panorâmica, podemos encontrar nas partes do todo uma fá-bula – Guernica é exemplo forte desse rapsodismo. Na realidade a peça está ainda a cavalo entre dois tempos, joga ainda a fundo a fábu-la, âncora de sentido para o espectador.
Clara era a filiação de Lázaro no Woyzeck e a inspiração em Arturo
Ui – o desgraçado Lázaro-Woyzeck, feito cobaia a ser exibido como
negócio pelas mãos de um sinistro gangue arturuiano.
Foi um primeiro encontro forte. Sarrazac na altura deslocou-se ao Porto para acompanhar alguns ensaios – o espectáculo fez-se nos Modestos e a Companhia era a Cena. Criação de uma nova liberdade cénica, naquele porto bairrista, fez alguma surpresa. Lembro-me que os nossos cartazes, nas paredes da cidade, foram parede para os car-tazes de um festival que se anunciava.
Depois dessa primeira experiência fizemos outras peças de Sarra-zac, O Menino-Rei, Envelhecer diverte-me, A paixão do jardineiro,
O fim das possibilidades. Essa prática, entre as peças e os
clarividen-tes ensaios de Sarrazac, foram caminho de procurada coerência entre um teatro da subjectividade e um teatro da história, entre o épico e o dramático, que ficou comigo.
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A lição de Sarrazac contém de único, além da defesa da peça de teatro, de uma escrita cénica de autor dramático, na esteira de Shakes-peare e Buchner, de Vicente, Valle Inclán e de Strindberg, justamente essa teoria de um teatro rapsódico assente na ideia de forma “mons-truosa”, de uma épica da forma imperfeita, como a arte bruta, que transfigura o real numa forma exagerada para melhor o conter re-velando-o. Isso lê-se bem em Lázaro, primeira peça, como se lê em
O fim das possibilidades, a mais recente, a par de O regresso de Ajax,
ainda inédita.
Portanto o que aprendi com o Jean-Pierre foi um caminho que de outra forma não teria feito. E que entretanto passou pelos Estudos Teatrais de Paris III, depois da vivência milanesa no Piccolo Tea-tro, de Strehler. Se falo aqui de mim é porque isto me atravessou, constituiu, como ser humano e profissional seguidor de uma poética realista aberta à experimentação fundamentada e contra a espuma dos dias que as simplificações performativas ou revisteiro-vanguardistas, num registo sempre para-publicitário e excitado cumprem, para lan-çar poeira nos olhos dos consumidores sempre prontos ao deslumbre. O teatro é vital desde que se dirija a uma assembleia instante – sempre outra e a mesma – e não seja, nem uma matemática estru-turada e efabulada da História, para-documental, mesmo se nela se instala um hoje com raízes, nem a via de um psicologismo de paco-tilha que, em boa verdade, é mais próximo do que se chamou teatro culinário, comezinho e não intrafamiliar estranhado, revelador dos apodrecimentos e misérias íntimas do doméstico. Entre Shakespeare e Strindberg, o que Sarrazac teoriza e experimenta na escrita, mesmo na encenação, é essa mistura entre o íntimo e o político que a sua visão da parábola – e a sua prática de dramaturgo – tentam. Essa é a lição que me passou.
Tive o privilégio, entretanto, de trabalhar com grandes tradutoras, autoras tradutoras e tradutoras, a Regina Guimarães, que traduziu o
Lázaro, a Eduarda Dionísio, O menino e a Isabel Lopes A paixão, En-velhecer, O Fim e nesta edição Neo, três painéis de apocalipse, texto
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fundamental sobre o mundo pós queda do muro, sobre as ilusões da nova liberdade de um mercado alargado e sobre um suposto Ocidente em expansão democrática. Um capitalismo híper selvagem surge das cinzas do agónico socialismo real, as elites partidárias únicas conver-tem-se à predação, os novos oligarcas têm as suas coutadas monopo-lizadas garantidas a partir da estatização anterior e os membros do KGB tornam-se novos czares, como Putin.
As peças aqui editadas são experiências dramatúrgicas e tentati-vas de formas dramáticas contemporâneas, realizadas no seu estalei-ro imaginário, isto é, com muito teatestalei-ro nos olhos, de lê-lo, fazê-lo, escrevê-lo, pensá-lo e vê-lo – Sarrazac é contemporâneo de Strehler, Bergman (assistiu a ensaios no Dramaten) Vincent, Chéreau, Alain Françon, Vitez e sobretudo Jacques Lassalle, seu grande amigo. O seu teatro é devedor da sua escrita como teórico e com os seus ensaios faz corpo. O futuro do drama, Teatros íntimos, Teoria do drama moderno
e contemporâneo e recentemente Strindberg o Impessoal, constituem
um corpus teórico único acerca do teatro moderno e contemporâneo. A sua Teoria é o equivalente hoje da Poética de Aristóteles e abre perspectivas às escritas dramáticas contemporâneas, ao seu coro poli-fónico, como gosta de referir.
A Paixão e Neo são textos sobre acontecimentos terríveis e lidas em conjunto são a expressão dessa tentativa de conjugação do íntimo com o político. Se em A paixão o fait-divers – um neonazi que jardina em casa de uma velha senhora judia, em Cannes, assassina-a, acon-tecimento real, texto escrito sobre uma pequena notícia de jornal ‒ se verte em drama relatado, mais que vivido, contado de fora, narrado, desdramatizado, sendo o tema centrado numa célula social mínima, já Neo é, em registo humorado, a panorâmica da emergência do mais selvagem dos capitalismos, justamente a propósito de uma tentativa de evangelização gastronómica dos russos através do lançamento em Moscovo do restaurante do grande Chef francês Cantoulat : vamos enterrar o “comunismo” com a arma da mais sofisticada cozinha fran-cesa.
E se drama do primeiro texto se desdramatiza pela voz exterior dos protagonistas que relatam os factos, de fora, em reflexão posterior
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ficcionada, a partir do momento da morte, para nos dar a reviver em directo, vivificado no psicodrama, associando épico e dramático na forma, o segundo instala-se no caos das violências nacionalistas que eclodiram, revelando o modo como uniões internações impostas por forças de ocupação “libertadoras” são bombas atómicas ao retarda-dor. Neo é a revelação panorâmica de um apocalipse que se instalou pós queda do muro. À coexistência pacífica sobreveio uma guerra mundial feita de focos localizados.
Os dois textos agora editados são a face visível de um mundo geneticamente ligado aos efeitos devastadores de um capitalismo ul-tra-selvagem que, sem oposição, destrói com a sua potência opressora democracias que pareciam instituídas e de um nazismo que aí está e regressa em força na Europa.
Fernando Mora Ramos