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O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA EM COMUNIDADES INDÍGENAS

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1 (publicado em Ferreira Netto, W. (1997). O ensino da língua portuguesa como língua estrangeira em comunidades indígenas.

Ensino de Português Língua Estrangeira, 1, pp. 108-13)

O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO

LÍNGUA ESTRANGEIRA EM COMUNIDADES INDÍGENAS

Waldemar FERREIRA NETTO (USP)

A preocupação com a manutenção do uso da língua tradicional no interior de grupos minoritários tem sido constantemente trazida para discussão nos meios acadêmicos de estudos lingüísticos. Assim, nas últimas décadas, os trabalhos de lingüística descritiva aplicada às línguas indígenas faladas no Brasil têm se multiplicado em vários centros de pesquisa do país. Entretanto, o estudo e a documentação de uma língua, por si só, não garantem o seu conhecimento e a manutenção de seu uso. As pesquisas lingüísticas que se desenvolvem raramente (ou nunca) são realizadas por indivíduos oriundos do próprio grupo de falantes. São pesquisadores de origem étnica diversa, via de regra, da grande sociedade acadêmica ocidental, que aprendem a língua como língua estrangeira, o que lhes permite tão somente atingir uma descrição de aspectos lingüísticos formais básicos -fonologia, morfologia, sintaxe, etc. - inevitavelmente deixando de compreender outros aspectos - semânticos, textuais, literários, etc. - no uso dessas línguas.

A formação de pesquisadores lingüistas indígenas é, ainda, um objetivo distante. A carência de um instrumental teórico adequado à compreensão de sua própria língua, bem como a prática de tomá-la de um ponto de vista formal, têm frustrado as iniciativas que se desenvolvem, por exemplo, pelos Terêna, com o propósito de estender o conhecimento da língua a toda a comunidade pela via da educação escolar. Via de regra, a mera transposição para as línguas indígenas das categorias lingüísticas tradicionais preconizadas nos livros didáticos tem tido um efeito desastroso. É notável a busca das categorias de gênero nominal, tempo verbal, conjunções alternativas, etc., em línguas indígenas projetar sobre elas mesmas uma imagem de pobreza gramatical e, decorrente disso, cognitiva, feita pelos próprios falantes. Nessa prática, desconsideram-se as características estruturais próprias de cada língua, superestimando as da língua portuguesa, dominante no território nacional.

A elaboração de material pedagógico pelos próprios indivíduos da comunidade lingüística minoritária corre o risco de encontrar obstáculo na inexperiência no trato com a educação escolar, cuja prática requer um manejo de habilidades cognitivas diferentes

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2 daquelas que envolvem o uso da língua tradicional nos ambientes que lhe são próprios. O material elaborado pelos lingüistas pesquisadores, por sua vez, preconizam categorizações em relação à estrutura da língua que exigem uma formação teórica bastante específica e são, via de regra, objeto de estranhamento para seu interlocutor na prática educacional. Este compreende sua língua desde o ponto de vista do falante e, portanto, sua prática com a reflexão metalingüística está condicionada às categorizações tradicionais elaboradas para sistemas lingüísticos diferentes do seu. Entretanto, essa reflexão é feita do ponto de vista do não falante, isto é, do falante de uma língua estrangeira, conseqüentemente, apta a ser tomada apenas como objeto formal, que facilmente se extrai de suas condições normais de uso para ser utilizado na metalinguagem da educação escolar.

A ausência de um ponto de contato no intercurso teórico entre lingüista pesquisador e falante, bem como entre os produtos da atividade de cada um, têm se mostrado como uma barreira na elaboração de técnicas instrucionais e materiais didáticos adequados para a formação de futuros falantes pesquisadores e professores. Nesse caso, nesse caso é necessário encontrar um meio de estabelecer um denominador comum entre ambos.

Com esse propósito, procurou-se desenvolver um conjunto de abordagens no ensino da língua portuguesa que permitisse a grupos indígenas diversos aplicá-las sobre suas próprias línguas.

A partir de encontros realizados com certa regularidade entre grupos de professores índios Waiãpi, Timbira e Terêna, tem se discutido, por exemplo, aspectos da língua portuguesa - a construção gráfica, a variação morfológica na marcação de classes nominais e verbais, a noção de dêixis e de suas possibilidades combinatórias, os mecanismos de coesão sintagmática baseados na concordância entre o sujeito e o verbo, etc., - sem perder de vista o cotejo das soluções encontradas para o português com as encontradas pelas línguas tradicionais desses povos.

Em qualquer dessas discussões, a língua portuguesa é o ponto de partida. Tratando-a como língua estrangeira, é possível tomá-la em seus aspectos puramente formais, abstraindo-a de seus contextos de uso, de forma tal que a manipulação de suas unidade estruturais possa ocorrer sem que se corra o risco de proceder as impropriedades pragmáticas comuns no manejo das línguas indígenas por pesquisadores lingüistas que as têm como língua estrangeira.

Em experiência que se realizou ao longo dos últimos três anos, procurou-se apresentar, por exemplo, todo o processo de construção gráfica da língua portuguesa, desde sua adaptação do alfabeto romano. A partir da descrição desse alfabeto, estimulou-se a escrita de palavras e frases, selecionadas de tal forma que não fosse possível fazê-lo em virtude da falta de letras como V, J e Ç. Conforme notavam-se as

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3 dificuldades na execução das tarefas, apontavam-se as soluções encontradas pelos ortógrafos portugueses, quais foram a criação de novas letras, a combinação de outras e o uso dos diacríticos. Apresentava-se, também, mas de forma complementar, a solução encontrada por ortógrafos de outras línguas, como o espanhol, o italiano e o inglês.

A possibilidade de manipulação desses dados desencadeou a discussão sobre os mecanismos de construção gráfica de suas próprias línguas, envolvendo detalhes bastante sutis como a diferença entre vogais longas e breves ou entre consoantes simples e geminadas. Da mesma maneira, a “descoberta” da viabilidade de elaboração da forma gráfica das letras, da sua combinação e do uso de diacríticos para a representação dos sons desencadeou a curiosidade de se conhecer as soluções encontradas nas línguas mais diversas, culminando na apresentação de vários alfabetos - cirílico, hebraico, árabe, armênio, grego - e de outros sistemas gráficos como os hieroglifos egípcios, os da ilha da Páscoa, ou, ainda, da escrita musical.

A partir dessas discussões, apresentou-se o conjunto de sons da língua portuguesa e as letras pelas quais são representadas na escrita. Assim, foi possível chamar-lhes à atenção para o fato de que há três aspectos básicos no sistema gráfico da língua portuguesa: (i) o som da língua, (ii) o desenho da letra que o representa e (iii) o nome da letra que o representa. Para a representação dos sons, mostrou-se-lhes a existência de um outro alfabeto (o IPA), apontando-lhes o seu uso para fins exclusivamente científico. O reconhecimento dos sons foi realizado procurando retomar as noções de construção gráfica já discutida em momento anterior.

Chamou-se-lhes à atenção, também, para a distinção básica no português entre vogais e consoantes - vocóides e contóides, mais propriamente falando - e a sua distribuição na sílaba, mostrando-lhes que se há possibilidade de isolar na escrita as consoantes das vogais, o mesmo já não se dá na fala. A partir de frases e palavras, ora escritas, ora faladas, instou-se-lhes que reconhecessem letras e sons, ora num caso, ora no outro.

O propósito dessa atividade foi o de tentar despertar-lhes uma atenção a outros aspectos da língua, como um fenômeno geral interlingüístico: a segmentação da cadeia da fala em unidades menores do que a sílaba e a forma como a constituem é uma atividade que decorre do estabelecimento de regras cognitivas de associação - se é possível notar que, na escrita, “P” e “A” juntam-se para formar “PA”, “P” e “E” para formar “PE”, na fala, pode-se, inversamente, notar que “PA”, forma-se de “P” e “A”, “PE”, de “P” e “E”, etc. Logo, um processo incipiente de segmentação sistemática a partir de paradigmas de construção silábica pode instaurar-se de forma a garantir-lhes a possibilidade de segmentar, de forma bastante abstrata, sons que não se permitem fazê-lo na cadeia da fala.

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4 Os resultados desse experimento foram de certa forma surpreendente. As discussões sobre a arbitrariedade na construção gráfica, até então tomada como um sistema absoluto de representação da fala, aliadas ao conhecimento de técnicas de segmentação silábica em unidades menores, deram condições para o arrolamento de conjuntos quase completos dos sons de suas línguas, de forma bastante precisa. O reconhecimento de que sons diferentes permitem-se representar por letras diversas das utilizadas pelo alfabeto da língua portuguesa, deu vazão a possibilidade de segmentar e representar vogais longas, glotalizadas, centrais, posteriores não arredondadas, ou, ainda, consoantes geminadas, velares nasais, retroflexas, aspiradas, tensas, etc., que obliteravam-se nas limitações de um sistema gráfico específico para o português, ou para o alemão ou para o inglês...

Outros aspectos também merecem ser destacados. Conhecedores dos processos de segmentação silábica em unidades abstratas menores fala, mas representáveis concretamente na escrita, tornou-se possível estabelecer o contraste entre os sistemas fonológicos de suas línguas e o do português. Assim, no Waiãpi, o padrão silábico e V e CV, com a única exceção da semivogal anterior que pode ocorrer na margem direita:

moj “cobra” ou erãj “meu dente”, por exemplo. Desse fato, decorre a dificuldade de se

reconhecer e/ou de se realizar o padrão silábico (C)VC. As palavras “leite” e “leste” freqüentemente se confundem numa mesma realização “leti”, ou, então, a mesma palavra “leste” recebe um “i” epentético, e se realiza como “léciti”, em ambos os casos por interferência, outras vezes, por processo de inferência (developmental process), palavras como “bicicleta” ou “assistir”, realizam-se como “biscleta” e “astir”. Por serem capazes de extrair unidades menores do que a sílaba na cadeia da fala, foram capazes de reconhecer e realizar uma nova unidade colocada logo após a vogal e antes da consoante da sílaba seguinte, sem que fosse necessário recorrer a escrita.

No que diz respeito à morfologia, o mesmo procedimento foi adotado. A definição de classes nominais da língua portuguesa como uma interação entre a estrutura da língua portuguesa e a visão de mundo de seus falantes permitiu que estabelecessem a mesma distinção para suas línguas. A noção de gênero gramatical masculino e feminino do português de maneira marcada pela presença dos morfemas flexionais {-o} e {-a} em grande parte das palavras está intimamente associada a uma visão de mundo que estabelece a distinção sexual dos dos objetos como projeção das classes nominais. Assim, é fundamental reconhecer que há um gênero intrínseco em todos objetos do ponto de vista dos falantes da língua portuguesa. O mesmo fato ocorre entre os Timbira, cuja língua estabelece classes nominais não marcadas morfologicamente que estão intimamente associadas a divisão tradicional em metades étnicas relacionadas ao sol e à chuva. Embora ainda não se tenha uma noção clara de como isso repercute na estrutura da língua, todos os objetos nomeados pelas línguas Timbira pertencem intrinseca e necessariamente a uma dessas duas classes.

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5 Entre os Waiãpi, ao se apresentar esse fenômeno da língua portuguesa, partindo das formas regulares para as não regulares, trouxe à tona a divisão em duas classes nominais de sua língua. Assim, de maneira semelhante ao que ocorre no português, no Waiãpi as classes nominais são marcadas morfologicamente pela presença do prefixo {r-} ou pela ausência do pronome de terceira pessoa {i}, em uma classe, e pela ausência do prefixo {r-} ou pela presença do pronome de terceira pessoa {i}, na outra, em construções genitivas. Ao contrário do que ocorre entre os Timbira, não se tem ainda uma noção clara de como essa divisão em duas classes nominais marcadas morfologicamente projeta-se na visão de mundo dos Waiãpi.

O tratamento da língua portuguesa como língua estrangeira permitiu estabelecer um ponto de contato entre a descrição teórica e a sua aplicação na língua materna falada pelos professores que participaram dos encontros. Ainda que o português seja conhecido e falado por todos desde a infância, o que se propõe é tomá-lo como um código desconhecido, cujo uso cotidiano não implica, necessariamente, o formalismo próprio de uma língua padronizada e descrita por categorias comuns a todas as línguas.

BIBLIOGRAFIA

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Interlanguage phonology. Cambridge, Newbury House, pp. 101-24

SATO, C.L. (1987). Phonological processes in seconda language acquisition: another look at interlanguage syllable structure. IN: IOUP. G. Interlanguage phonology. Cambridge, Newbury House, pp. 248-60

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