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OS GÊNEROS POÉTICOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA ABORDAGEM ENUNCIATIVO-DISCURSIVA

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OS GÊNEROS POÉTICOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE

LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA

ABORDAGEM ENUNCIATIVO-DISCURSIVA

Doutorado

Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SÃO PAULO

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OS GÊNEROS POÉTICOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE

LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA

ABORDAGEM ENUNCIATIVO-DISCURSIVA

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A minha orientadora, Professora Dra. Roxane Rojo, que muito me motivou nos caminhos da pesquisa, obrigada pelo respeito pelas minhas idéias e pelo meu trabalho;

Ao Prof. Dr. Antônio Gomes Batista, a Luíza e ao Itamar, que sempre nos receberam no CEALE/UFMG com carinho, disponibilizando o acervo de livros didáticos para pesquisa;

Ao Projeto de Pesquisa Integrada Livro Didático de Língua Portuguesa: Produção, Perfil e

Circulação (CNPq/IEL-UNICAMP/CEALE-UFMG), cujo banco de dados nos permitiu realizar

grande parte de nossa pesquisa;

Aos professores Doutores Beth Brait (PUC-SP), Luiz Tatit (USP), Jacqueline Barbosa (PUC-SP), Maria Inês Batista Campos (PUC-SP) e Geraldo Tadeu Souza pela leitura de meu trabalho e sugestões valiosas nos exames de qualificação;

A Maria Lúcia, Márcia, Paulo e Rosângeles, funcionários do LAEL/PUC-SP;

À Universidade Federal de Mato Grosso, pela concessão do afastamento e pela confiança em meu trabalho;

A CAPES, pela bolsa PICDT que permitiu custear estes anos de estudo;

Aos meus colegas de pós-graduação: Laura, Andréa, Shirley, Ana Cláudia, Lucinha, Sueli, obrigado pelo companheirismo e por trilharem juntos este caminho de crescimento intelectual;

A Cláudia Graziano, por ter resgatado nossa amizade, pelo imenso apoio nestes anos, que Deus a proteja e abençoe sempre;

A Adelma, minha irmã, amiga e companheira maravilhosa, sem palavras para dizer o quanto devo a você este trabalho;

A Adail, sempre à disposição quando precisei, principalmente na leitura final do meu trabalho. Obrigada pelas discussões bakhtinianas e que Deus o conserve teoricamente didático!

Aos meus amigos de Cuiabá, Ângela e Sérgio que estiveram torcendo e orando por mim todos estes anos;

A minha tia Marta e meu Tio Lelo, que muito me ajudaram nestes anos de estudo em São Paulo, obrigado por me socorrer nas horas difíceis;

A minha mãe e minhas irmãs Lili e Piti, por acreditarem em mim e me apoiarem sempre; Ao meu filho Lucas, pelo apoio e amor;

Ao meu padrasto, José Carlos, pelo incentivo nos estudos, devo a você este grau;

Ao Fi, amor da minha vida, pelo encontro mágico, pela admiração e pelo amor. Obrigada por acreditar e torcer por mim;

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O teu começo vem de muito longe. O teu fim termina no teu começo. Contempla-te em redor.

Compara.

Tudo é o mesmo. Tudo é sem mudança.

Só as cores e as linhas mudaram.

Que importa as cores, para o Senhor da Luz? Dentro das cores a luz é a mesma.

Que importa as linhas, para o Senhor do Ritmo? Dentro das linhas o ritmo é igual.

Os outros vêem com os olhos ensombrados. Que o mundo perturbou,

Com as novas formas. Com as novas tintas.

Tu verás com os teus olhos. Em Sabedoria.

E verás muito além

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Este estudo discute a questão da formação do leitor literário nas aulas do ensino fundamental da escola pública brasileira através de uma análise do tratamento dispensado aos textos em gêneros poéticos nos livros didáticos que circulam nas aulas de Língua Portuguesa. Sua base são as considerações do Círculo de Bakhtin a respeito do discurso poético, sobretudo as críticas tecidas à estética material e ao Formalismo Russo. A noção bakhtiniana de gênero do discurso foi o guia das reflexões sobre os gêneros poéticos, com destaque para as questões relativas à

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The present work discusses the question of the literary reader’s formation in classes of the Brazilian public school system’s elementary level by means of an analysis of the way texts in poetical genres are approached on didactical manuals customarily used on Portuguese Language classes. Its basis is the theorizations done by the Bakhtin’s Circle about poetic discourse, mainly its critiques of material aesthetics and Russian Formalism. Bakhtin’s notion of discourse genre has been its guiding principle, chiefly as regards questions related to compositional form, style and theme, seeing poetic texts as aesthetic objects. We examined the theoretical genres poems, lyrics and some other oral tradition ones as regards their insertion in the school system by manuals, arguing on the basis of the Bakhtinian concepts of chronotope

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Introdução 01 Capítulo 1. O Círculo de Bakhtin e o discurso Poético: releituras e

Descobertas... 16

1.1 O artístico... 18

1.2 O romanesco e o poético... 28

1.3 O poético inesperado... 42

Capítulo 2. Os gêneros poéticos do discurso: aproximações... 45

2.1 A problemática dos gêneros... 46

2.1.1 Os gêneros literários: um pouco de história... 48

2.2 Os gêneros do discurso na perspectiva bakhtiniana... 58

2.3 Formas arquitetônicas e composicionais: o objeto estético e a obra exterior 64 2.4 O soneto: apropriações e reapropriações... 72

Capítulo 3. Gêneros poéticos no gênero livro didático: considerações Iniciais... 79

3.1 Repensando a autoria e o livro didático... 80

3.2 O livro didático como gênero discursivo... 84

3.3 Os gêneros poéticos... 88

3.3.1 Os poemas e as letras de canção... 89

3.3.2 Os gêneros da tradição oral... 95

3.3.2.1 As parlendas... 96

3.3.2.2 Os trava-línguas... 99

3.3.2.3 As quadrinhas... 101

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3.4 A caracterização de um grupo – os gêneros poéticos... 108

Capítulo 4. Rastreando os dados: os gêneros poéticos nos LDP... 116

4.1 Os corpora... 116

4.2 As Bases de Dados... 115

4.2.1 As bases gerais de dados 2002 e 2004: selecionando um primeiro subconjunto de coleções... 119

4.2.2 As Bases de Textos... 128

4.2.3 As Bases de Gêneros Poéticos... 129

4.3 Dados gerais obtidos na análise quantitativa... 130

4.3.1 Coleções de 1ª a 4ª séries: PNLD/2004... 130

4.3.2 Coleções de 5ª a 8ª séries: PNLD/2002... 132

4.3.3 Compondo um segundo subconjunto de coleções... 135

4.4 Reunindo subconjuntos: possibilidades... 137

4.5 Metodologia de análise dos dados... 140

Capítulo 5. O Perfil das coleções: incidência, autoria e posição dos textos em gêneros poéticos... 142

5.1 Características das coleções em relação aos textos literários: o que dizem as resenhas 142 5.1.1 Excerto de resenhas das coleções de 1ª a 4ª séries... 142

5.1.2 Excerto de resenhas das coleções de 5ª a 8ª séries... 146

5.2 Os gêneros poéticos nas coleções: dados gerais de incidência... 151

5.3 Posição dos gêneros poéticos nas coleções... 159

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6.1 Os tipos de atividades com gêneros poéticos... 170

6.2.1 A coleção CE... 178

6.2.2 A coleção LPT... 189

6.2.3 A coleção PPLL... 193

6.2.4 A coleção AML... 199

6.3 Conclusões parciais para as coleções de 1ª a 4ª séries... 204

Capítulo 7. A escolarização dos textos em gêneros poéticos nos livros didáticos de 5ª a 8ª séries... 208

7.1. As atividades com gêneros poéticos nas coleções de 5ª a 8ª séries... 208

7.1.1. A coleção LM... 210

7.1.2. A coleção LI... 221

7.1.3. A coleção ER... 230

7.2. Conclusões parciais para as coleções de 5ª a 8ª séries... 236

Referências bibliográficas... 252

Anexos...

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As questões que costuram o pano de fundo desta pesquisa podem ser explicitadas nos seguintes termos: Qual formação de leitor literário tem se realizado no ensino fundamental da escola brasileira? Quem é este leitor de hoje, qual formação literária requer, qual necessita, qual é possível?

Se desejarmos que haja, de fato, uma formação de leitor literário, como estamos compreendendo o termo “literário”? Como a escola o compreende? O que o mercado editorial, na área da produção didática, tem oferecido?

Ao buscarmos diferentes fontes para (re)pensarmos estas questões, descobrimos muitos pontos de luz, mas também pontos cegos no entrecruzamento das diversas disciplinas que enfocam tais tópicos, principalmente a teoria literária, a lingüística e a didática de língua materna. Pensamos que estas são as áreas especializadas a quem se recorre(ria) para balizar o ensino do texto literário e que cada uma vem se adaptando e se acomodando aos processos históricos de mudanças e reformulações da própria escola brasileira, contribuindo, por vezes, para a construção e fundamentação de políticas públicas que sustentam tais mudanças.

Contudo, parece ser o manual didático1 o locus em que nos são apresentados, de forma mais explícita, os resultados dos diversos ajustes e movimentos inscritos e circunscritos à escolarização dos diferentes saberes. Desde sua caracterização como produção editorial específica para ensino, nos anos 1930, e seu crescimento e diversificação na produção editorial bem como sua consolidação como material de apoio primordial a um professor já não tão especializado, devido às demandas da democratização do ensino a partir dos anos 1960, o livro didático de língua materna tem apresentado diferentes visões sobre os diversos conteúdos, o mesmo ocorrendo em relação ao ensino dos textos literários.

A leitura literária e conseqüentemente a formação de um leitor literário desde o ensino fundamental estão intimamente atreladas às diferentes concepções de

1Tomamos as expressões manual didático e livro didático como sinônimas neste trabalho, ainda que

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língua, linguagem, escola, homem e mundo que cercam o processo de produção dos manuais didáticos. Sócio-historicamente, os livros didáticos procuram acompanhar, assim acreditamos, tanto os avanços das diversas ciências – em nosso caso, da teoria literária e da lingüística, principalmente –, bem como as necessidades e condições escolares do estudante brasileiro e, ainda, atualmente, das parametrizações colocadas nos documentos oficiais e as exigências dos processos oficiais de avaliação empreendidas pelo Ministério da Educação através do Programa Nacional do Livro Didático.2 Contudo, o peso das práticas tradicionais de ensino de língua materna ligadas a pedagogias transmissivas e descontextualizadas ainda parece desviar o olhar do que pode haver de novo na academia ou nas demandas oficiais.

Os textos literários não são estudados em suas características específicas, havendo ainda um privilégio de aspectos didáticos gerais do ensino da língua materna sobre os literários; a leitura literária e as “outras leituras” parecem receber o mesmo tratamento na escola, por conseguinte, o livro didático segue este movimento homogeneizador. Brandão & Martins (2003) desenvolvem esta idéia:

Bom, em relação à literatura na escola (...) quase nunca ela é tratada como objeto de estudo, ou como conhecimento a ser transferido, apropriado, ampliado para o desenvolvimento do sujeito dentro de seu contexto cultural. A literatura é tratada, sim, como pretexto, estratégia para o estudo de outros objetos, procurando minimizar, através dela, a aridez dos assuntos abordados. Desde sempre, a literatura protagoniza o ensino de língua materna como material didático para o aprendizado da escrita, da estrutura da língua e de uma leitura quase sempre reduzida a uma leitura não literária: uma leitura que não permite a produção de mais de um sentido. A literatura não tem sido tratada literariamente na escola. Pelo contrário, o que a utilização didática da literatura mais tem feito é

destruir seu efeito literário. (Brandão & Martins, 2003: 259)

O que privilegiar no ensino literário? Aspectos lingüísticos próprios do literário? A função lúdica, o texto como fruição? A função pedagógica, utilizando-se a literatura como meio para a discussão de valores? Conceber a literatura como

2 Para esclarecimentos sobre o histórico do Programa Nacional do Livro Didático, e suas

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espaço para a discussão dos problemas e questões sociais e políticas? Todos esses aspectos? Mas, dentro da leitura literária - e é o que nos interessa neste trabalho -, onde fica a questão da leitura do texto poético? Como ensinar a poesia? Que aspectos devem ser considerados? O que os livros didáticos têm oferecido?

Uma parcela das pesquisas sobre leitura no Brasil tem se ocupado da questão da formação do leitor literário e da escolarização da leitura literária. Kramer (2000; 2003) defende o potencial humanizador e formador da leitura literária. A autora, alertando para o fato de que o afastamento da literatura e de outras manifestações culturais pode ser um sintoma de desumanização, defende o resgate do papel da escola no processo de formação cultural:

Continuamos assistindo a uma brutal diminuição da capacidade de indignação, resistência e de crítica, a uma atroz des-humanização e perda de valores, ao progressivo empobrecimento do diálogo. Educar crianças e jovens neste contexto é o desafio. Políticas para a infância precisam ter como horizonte humanização e resgate da experiência, para que crianças e jovens possam ler o mundo, escrever a história, expressar-se, criar, mudar, para que se reconheçam e consolidem relações de identidade e pertencimento. (...) Defendo políticas públicas de infância que assegurem experiências de cultura pelo seu potencial humanizador e formador. Aliás, apenas defendo a necessidade de uma política de cultura e educação como um projeto contra a barbárie. Pois o problema não está no fato de as pessoas não lerem literatura ou não terem aprendido a gostar de teatro ou de cinema. O problema está em que isto pode ser sintoma do nosso

processo de desumanização. (Kramer & Bazílio, 2003: 103)

Antonio Candido (1995), no artigo intitulado “O direito à literatura”, focaliza a relação da literatura com os direitos humanos e defende a consideração da literatura e da arte como um bem incompressível (essencial)3. Para ele, a busca por uma sociedade justa e a luta pelos direitos humanos implica uma luta pelo acesso de todos aos bens culturais em todos os níveis e modalidades:

...eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade

3Antonio Candido parte da distinção do sociólogo francês Joseph Lebret entre bens incompressíveis

(essenciais) e bens compressíveis (excedentes, não-essenciais).

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espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao

lazer e, por que não à arte e à literatura. (Candido, 1995: 241)

Zilberman (1984: 47) alerta-nos quanto aos cuidados ao endossarmos “ingenuamente atos de boa-fé e filantropia cultural” no que diz respeito às relações entre a leitura, a escola e a sociedade no Brasil. Componentes de implicação cultural, ideológica e econômica estariam aí fortemente imbricados, reproduzindo muitas vezes “os antagonismos maiores da sociedade nacional”.

A presença da literatura na escola nos níveis iniciais pautou-se até as décadas de 1960 e 1970 - segundo nos explica Zilberman (1985: 121-123) ao refazer a leitura das indicações de alguns livros didáticos, manuais e seletas da época - pela visão da leitura principalmente como meio para a criação de hábitos, para a inculcação de valores e do “bom gosto literário”, além da transmissão da norma culta e do patrimônio da literatura brasileira, mediante a conservação e defesa do “padrão elevado da língua de que a literatura é guardiã”.

Contudo, após 1970, esse conhecimento do patrimônio da literatura brasileira fica restrito ao 2º grau e aos cursos de Letras. Para o 2º grau, opta-se pelas crônicas, contos e novelas e, para o primeiro, pela literatura infantil e juvenil. Para Zilberman (1985), essas mudanças acarretaram um estreitamento do espaço da literatura “clássica” brasileira e portuguesa no ensino básico, além de uma valorização da leitura individual em detrimento da aquisição de uma cultura literária. Além disso, em sua opinião, a expansão da escola e uma suposta “democratização da leitura” não atenuaram a desigualdade social; acrescente-se o desnível do ensino público e do particular e a má e apressada formação de profissionais para atender à demanda escolar em crescimento.

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A leitura – das “grandes obras, nelas mesmas e por elas mesmas” 4 – é, pois, nesses termos, um “dever cultural e um dever escolar”, o que configura um sistema “pedagogicamente e culturalmente conservador, no qual a autoridade dos textos é duplicada pela autoridade da linguagem do professor” (Privat, 1995: 134-135).

O outro seria o modelo liberal, mais voltado a uma “desescolarização da leitura”. Neste, o professor se esforça em ser um animador para motivar os jovens leitores a terem prazer em suas leituras e uma “moral do dever” é substituída pelo “dever do prazer”5. Para isso, o leque de livros propostos é aberto, segundo Privat (1995: 136-137), indo “das histórias em quadrinhos aos romances policiais ou à literatura juvenil”. Esse modelo liberal, para o autor, assemelha-se a “um consumo episódico de bens culturais” e não garante, por exemplo, que jovens de meios populares e jovens de camadas favorecidas invistam os mesmos desejos e as mesmas competências em suas leituras ou na freqüência a bibliotecas públicas.

Para Zilberman (1985: 128), em relação à situação brasileira, a configuração de uma “outra antologia”, em que cresce o prestígio da literatura infantil e da ficção para jovens, na verdade não é resultado de

um processo de democratização de ensino, e sim do aprofundamento dos problemas que marcaram a educação nacional e determinaram sua natureza elitista. E esta continua sendo reproduzida e reforçada, pois a grande literatura, a da antologia, permanece inacessível aos setores mais populosos da organização social brasileira.

Tais implicações demandam um certo cuidado na crença e na defesa de um retorno às salas da antiga “antologia”. No tocante a isso, o que advogamos, no caso deste estudo, não é um retorno, mas um “direito à literatura” que inclua autores diversos. A reivindicação desse direito coloca em xeque, para além das origens sociais, a divisão dos bens culturais entre o público leitor.

Neste sentido, o valor e o mérito da presença de uma literatura infantil e infanto-juvenil na escola não está em questão. Há, na produção nacional literária

4Aqui Privat cita H. Mitterand: “Ce légitimisme didactique peut se résumer ainsi: le salut culturel est dans la lecture des grandes oeuvres en elles-mêmes et pour elles-mêmes. C’ est de là que tout découle, à commencer par l’ intérêt que les élèves portent à la classe de français”. (Privat, 1995: 134)

5 Aqui Privat (1995: 136) cita Bourdieu (1979, pp. 422-431).

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infanto-juvenil, obras excelentes, como também há obras que, mesmo não escritas para, nem dirigidas originalmente a crianças – livres do rótulo do infantil ou infanto-juvenil – podem ser objeto de estudo no Ensino Fundamental. Talvez o caminho seja fugir, como colocam Evangelista, Brandão & Machado (2001), de representações simplistas e redutoras dos processos cognitivos e estéticos que se tem com respeito a crianças e jovens.

Isso não significa, ainda e de qualquer modo, negar o processo de descontextualização e recontextualização do discurso literário no curso de sua transposição para a escola, fato incontestável que traz conseqüências importantes para a dinâmica do discurso literário no processo pedagógico. Sobre a escolarização da literatura, concordamos com Soares (2001:22), que afirma:

O que se pode criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa - 3º e 4º ciclos (1998) também abordam o tema da formação do leitor literário numa perspectiva didática. Na segunda parte do documento, no item Tratamento didático dos conteúdos, mais especificamente em Leitura de textos escritos, fala-se em educação literária como a tarefa de formar leitores, tarefa para cuja realização a escola deve construir pontes entre textos de entretenimento e textos mais complexos, a partir de um trabalho com a literatura que supõe várias investidas em leituras com diferentes objetivos:

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elementos, que o aluno venha a descobrir ou perceber a mediação do professor ou de outro leitor; da leitura mais ingênua que trate o texto como mera transposição do mundo natural para a leitura mais cultural e estética, que reconheça o caráter ficcional e a natureza cultural da literatura. (PCNs – 3º e 4º ciclos – Língua Portuguesa, 1998: 71)

Refletindo ainda sobre as necessidades do estudante brasileiro, como uma das considerações a serem feitas pelos livros didáticos, conforme colocamos acima, quais práticas culturais relativas à leitura e à escrita dos textos literários têm sido observadas e têm (ou não) influenciado na escolha dos diferentes tratamentos reservados ao estudo da literatura na escola?

Alguns dados interessantes sobre a questão da leitura e escrita dos textos literários nas práticas culturais da população brasileira encontram-se nos resultados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional6 (INAF) 2001, descritos e analisados na coletânea organizada por Ribeiro (2003). Esta autora esclarece que uma característica primordial do INAF é que não se trata de uma avaliação escolar, portanto,

Por não ser escolar, a construção do teste não poderia se pautar por conteúdos ou competências estabelecidas nos currículos correspondentes a cada nível de ensino, mas nas habilidades de leitura e escrita envolvidas nas diversas práticas sociais de letramento, ou seja, nos usos mais comuns da escrita no ambiente

doméstico no trabalho e em outros contextos cotidianos (Ribeiro, 1003: 13).

Certamente, as práticas sociais de letramento cotidianas e escolares estão intimamente imbricadas, sendo que estas últimas refletem e refratam as primeiras, havendo forte relação, nos dados obtidos pela pesquisa do INAF, entre leitura e escola (cf. Abreu, 2003). A esse respeito, são instigantes alguns dados que fazem, de alguma forma, referência aos textos poéticos.

6Segundo Ribeiro (2003: 9), O INAF é uma iniciativa do Instituto Paulo Montenegro – Ação Social do

IBOPE e da ONG Ação Educativa. O objetivo do INAF é oferecer à sociedade brasileira um conjunto de informações sobre habilidades e práticas relacionadas à leitura, escrita e matemática da população brasileira (...) Os dados do INAF são coletados anualmente junto a amostras nacionais de 2 mil pessoas, representativas da população brasileira de quinze a 64 anos, residentes em zonas urbanas e rurais em todas as regiões do país.

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Ao serem indagados, pela pesquisa, que tipo de livro costumam ler, ainda que de vez em quando7, por nível sócio-econômico, temos que 30% responderam

Romance, aventura, policial e ficção e 20% citaram Poesia. A porcentagem, em relação a esta última, foi semelhante para todas as classes sociais. A mesma questão feita por idade e grau de instrução revelou que, em relação à idade, dos 15 aos 24 anos, 35% lêem Poesia, para 44% dos que lêem Romance, aventura, policial e ficção. A porcentagem cai pela metade no decorrer dos anos, de 25 a 34 anos, apenas 16% lêem Poesia, e dos 35 aos 49 anos, 14%, e dos 50 aos 64 anos, somente 10%. Os números também caem, com o avanço da idade, em relação à leitura de ficção, aumentando no que concerne à leitura de textos religiosos (Bíblia, livros sagrados ou religiosos).

Por grau de instrução, temos que a porcentagem de leitura de Poesia é semelhante nos ensino fundamental e médio: 28% e 29%, respectivamente, mas cai para 16% no nível superior incompleto ou completo. Em relação à prosa, pelo contrário, o número de leitores aumenta à medida que aumenta o grau de escolaridade (36%, 48% e 49%, relativos ao ensino nos níveis fundamental, médio e superior).

Para Abreu (2003: 38-39), estes dados revelam uma aproximação da leitura literária, o que contraria o propalado desinteresse dos jovens pela literatura, mas ao mesmo tempo aponta para o fato de que a permanência na escola parece inibir até mesmo o gosto pela leitura de poesias. Em nossa opinião, os dados sobre o nível de escolaridade podem ser um indício de que a escolarização, nos níveis fundamental e médio, preserva, nos alunos, o interesse por alguma leitura do texto poético, o que, em níveis mais especializados, do ensino superior, da profissionalização, parece se perder.

Alguns dados do INAF sobre a produção escrita8 são muito instigantes no que diz respeito aos gêneros poéticos. Ao serem indagadas sobre o que costumam

escrever, criando ou copiando, no tempo livre, por nível socioeconômico, as pessoas responderam Letras de músicas, com uma porcentagem de 17% nas classes A, B e C e 14% nas classes D e E. Já em relação à Poesia, a porcentagem foi de 12% na classe A e B, 16% na classe C e 15% na classe D e E. Ou seja,

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porcentagens bastante aproximadas em relação a estes gêneros poéticos, indiferentemente de classe social, o que, em média, só foram superadas pela escrita de Receitas.

A mesma questão feita em relação ao grau de instrução obteve resultados bastante semelhantes à leitura, com queda no grau superior de escolarização em relação à escrita de Letras de músicas e Poesia. À medida que cresce o grau de instrução, aumenta o número de pessoas que afirmam escrever Letras de músicas

e Poesia: 8% até 4ª (série para ambos), 21% no ensino fundamental (para ambos) e 26% e 23% no ensino médio, incompleto ou completo (para Letras de músicas e

Poesia, respectivamente)9. Já no ensino superior, os números caem para 12%. Sobre esses dados, Abreu (2003:39) comenta que a escola parece estar matando o gosto pela escrita poética. Ao contrário, em relação à escrita de ficção (Histórias reais ou inventadas), o interesse cresce com o aumento da escolaridade: 6% na 4ª série, 12% no ensino fundamental, 13% no ensino médio e 18% no ensino superior.

O que se pode depreender, inicial e hipoteticamente destes dados do INAF, sumariamente expostos, é que os jovens lêem e escrevem sim textos em gêneros poéticos, mas à medida que a escolaridade avança, principalmente em relação ao nível superior, esta prática é esquecida, ou substituída, o que não ocorre com os textos ficcionais. Uma hipótese é que a prática de leitura de textos em gêneros poéticos seja uma prática balizada pelas práticas escolares, ou ainda – o que acreditamos ser uma idéia simplista - pelos hábitos inerentes à faixa etária, da infância e adolescência. Outra hipótese, como já colocamos acima, é que este desinteresse pelo poético tenha como origem a formação de outros hábitos e/ou interesse por outros gêneros, impostos pelos caminhos profissionais escolhidos.

Entretanto, com a escola e/ou apesar dela, os dados apresentados pelo INAF a respeito da leitura dos textos ficcionais não parecem tão desanimadores, pelo menos não aparentemente em relação às práticas culturais. Resta saber que ficcionais escolhidos são estes, pois nos parece, como coloca Abreu (2003:42), que

9Em contexto micro, estes dados sobre o gosto pela escrita de poesia e letras de música repetem-se

em recente pesquisa realizada por Paes de Barros sobre práticas de letramento de alunos de 8ª séries de uma escola municipal em Campinas, interior paulista (Paes de Barros, A primeira página na sala de aula: uma proposta para o ensino-aprendizagem de leitura, Tese de Doutoramento, em preparação).

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não se trata de um leitor devorador ávido de alta literatura, figura típica que povoa nosso imaginário.

Especificamente, em relação ao poético, do hermetismo de certos textos à multiplicidade de configurações, tudo parece contribuir para que a leitura do texto poético seja, por um lado, preferência de “intelectuais”, ou por outro, “coisa de mulher”. Sim, os dados do INAF sobre a produção escrita por sexo e sexo segundo situação de trabalho e segundo nível de instrução10 revelam que, em relação à escrita de Poesia, a porcentagem de homens que afirmou escrever Poesia é sempre inferior à de mulheres, para todos os casos. Já em relação às Letras de músicas, as porcentagens são muito semelhantes entre os sexos.

Este fato nos faz recordar uma recente campanha publicitária11 de um caderno em que um jovem aparecia contando como passou de “poeta” a “roqueiro”. O texto do filme era assim:

As coisas me tocam, os pássaros, as flores, a luz do sol, escrevo cada poema, coisa do coração mesmo e ó...ce não sabe como isso mexe com as pessoas, a reação dos cara...veio, precisa vê, cada um que eu mostrava no colégio todo mundo, sem exceção, todo mundo dizia:

- Pô cara, tu virou boiola?

Agora eu só escrevo heavy metal...

De fato, além das dificuldades todas originadas pelas peculiaridades dos enunciados poéticos, ainda convivemos com estas crenças pré-concebidas, que destinam as práticas de leitura disto ou daquilo a certos atores e papéis sociais. Esta adjetivação não se dá somente em relação ao sexo, mas também em relação às classes sociais e outras tantas variáveis: o que se lê, o que se escuta, o que é “chique”, o que é “brega”, o que é moda, o que é cafona, etc.

Neste contexto, criar algum gosto pela leitura e escrita de gêneros poéticos e formar leitores literários destes não depende somente de técnicas ou métodos didáticos, mas também exige um trabalho de reconhecimento e superação de preconceitos sociais, em direção ao acolhimento da diferença e da diversidade.

10Consultar Tabelas 12c e 12d, em Ribeiro, 2003, p. 246.

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Se pensarmos em contextos culturais amplos e complexos, com os quais convivemos hoje, com reflexões dentro da escola, deveríamos considerar o termo literário em sua acepção mais ampla e democrática possível. O próprio Bakhtin, já em sua época, conforme nos lembra Machado (2005), sustenta o firme propósito de compreender a literatura como um fenômeno estético totalmente articulado ao contexto cultural mais amplo. Assim, é mister que, da mesma forma que se reivindica a consideração da heterogeneidade em termos da fala dos alunos, deve-se repensar o material textual, o que deve-se oferece para a leitura e apreciação dos alunos, se estas coletâneas nos materiais didáticos não estão excluindo manifestações legítimas de uma cultura não oficial, ancoradas em classe ou grupos sociais sócio-economicamente desprivilegiados, mas que constituem, de fato, o arcabouço cultural do estudante brasileiro. Por outro lado, seguindo a mesma reflexão que se realiza em direção às variedades lingüísticas, de se considerar, na escola, a sua importância e relevância como desdobramentos da língua nacional, sem impedir o acesso do aluno ao domínio da variante privilegiada – a norma chamada padrão – é preciso pensar na cultura pop, nas manifestações musicais regionais, na incorporação de outras culturas ao processo de produção lítero-musical e sobretudo na atualidade das coletâneas, sem excluir a possibilidade do contato do aluno com as manifestações da tradição literária.

Observemos, por exemplo, as letras de músicas que são apreciadas por públicos diferenciados, por jovens que não são os mesmos dos anos 70, amantes de Raul Seixas, do Tropicalismo e dos Novos Baianos. Em relação à tradição oral, quem cantarola hoje cantigas de roda, senão o caboclo ou a criança de zona rural, ou ainda o idoso recordando os velhos tempos? Há de se pensar, no processo didático, no ensino-aprendizagem de um gênero, em todas essas nuanças, ou seja, em como compatibilizar gostos, idade, faixa etária, práticas culturais, diferenças regionais, individuais, etc.

Propor um tratamento didático aos gêneros poéticos12 que possa surtir melhores resultados no processo de ensino-aprendizagem, abarcando tamanha

12Neste trabalho, a expressão gêneros poéticos é compreendida em sentido amplo, ou seja, refere-se

não só aos poemas em suas configurações tradicionais (gêneros poéticos no sentido estrito, gêneros unilíngües e monoestilísticos, cf. Bakhtin, 1934-1935), mas circunscreve também as letras de canções, os cordéis e os gêneros poéticos da tradição oral (adivinhas, parlendas, quadrinhas, trava-línguas, etc.). Acreditamos ser este o caminho mais aberto a outras produções culturais que também têm sido abordadas no processo de escolarização. Assim, concordamos com Paulino et al. (2001: 90)

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diversidade intrínseca e extrínseca, constitui, a nosso ver, um grande desafio. Parece, entretanto, que a questão não é só implementar o material didático, mas concomitantemente formar o professor para a autonomia, fornecendo instrumentos para o trabalho com o poético.

Souza (2000), analisando os dados resultantes de pesquisa com 45 professores de séries iniciais na cidade de Presidente Prudente, interior paulista, assinala que os professores não se sentem capacitados para realizarem um trabalho consistente com a poesia em sala de aula:

Todos os sujeitos envolvidos na entrevista declaram que a Faculdade não os formou para o trabalho com o texto poético e que o livro didático também não

sugere orientações teóricas e práticas sobre esta forma de ensino (Souza, 2000:

66).

De fato, ensinar poesia no ensino fundamental, constitui, antes de tudo, um desafio, tanto para quem propõe como para quem dispõe – e o professor é, sem dúvida, um sofrido protagonista neste processo. Que ferramenta utilizar para aproximar alunos do objeto poético, sem perder de vista sua natureza e ao mesmo tempo sem torná-lo inatingível, ou sacralizado, em suma, sem tornar inexeqüível a tarefa didática?

Alguns esforços relativos à didatização dos gêneros discursivos, ou seja, das condições para o tratamento dos gêneros como objeto de ensino em aulas de língua materna têm sido empreendidos por estudos e pesquisas em lingüística aplicada, e tal teorização pode nos ajudar não só a refletir sobre a escolarização dos textos poéticos, mas também a vislumbrar caminhos mais seguros e eficazes para o seu ensino.

No processo ensino-aprendizagem, nas interações professor, aluno-aluno, bem como nos materiais didáticos que medeiam essas interações, textos em diversos gêneros, orais e escritos, se fazem presentes a todo o momento. Assim, alguns pesquisadores como Rojo (1998, 2000, 2001), Dolz & Schneuwly (1996), Schneuwly & Dolz (1997), Barbosa (2001), Barros-Mendes (2005), entre outros, dedicaram-se ao estudo desta questão, detendo-se na problemática da didatização

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dos variados gêneros provenientes de diferentes contextos sociais e propondo que estes sejam tomados como objetos de ensino-aprendizagem.

Nos contextos destas pesquisas, e também aqui de nosso trabalho, pressupõe-se uma abordagem que alia à perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin (1934-1935; 1952/1953), principalmente ao conceito de gênero do discurso, a teoria sócio-histórica da aprendizagem de Vygotsky (1935).

Compreendendo a noção de enunciado para Bakhtin como unidade real e não como unidade convencional - uma abstração - não se remete aqui à idéia da linguagem como representação ou do discurso que reflete uma situação. O ato-linguagem – em nosso caso, o enunciado poético – supõe o encontro, a compreensão-resposta, a ressignificação, atualizando a relação entre as pessoas, e entre as pessoas e a própria linguagem.

Parece que, no sentido desta observação, estudar os gêneros poéticos implica considerá-los como um tipo de enunciado que tem particularidades como qualquer outro tipo, que está ligado a uma esfera de comunicação verbal, de utilização da língua. Trata-se, pois, de uma manifestação verbal elaborada a partir de uma esfera específica, o que lhe dá contornos próprios, que podem ser recuperados pela análise de três elementos: a avaliação de um determinado

conteúdo temático, em um certo momento, o estilo verbal e a construção composicional. No sentido bakhtiniano, estes elementos comportariam o todo do enunciado, caracterizando o gênero do discurso.

Assim, ao pensarmos nos gêneros poéticos tradicionais como gêneros discursivos, cada configuração poemática, supondo contornos próprios, apesar de repetido em forma, não o será como enunciado único. Um soneto parnasiano, com a configuração fixa de suas estrofes (dois tercetos e dois quartetos) é diferente de um soneto camoniano, que por sua vez é diferente de um soneto de um autor modernista. O que dizer, pois, sem ir muito longe, do verso livre ou das experiências da poesia concreta?

Compartilhando certos pressupostos comuns, encontramos também nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental – Língua Portuguesa - 3º e 4º ciclos, orientações para que as práticas de ensino-aprendizagem de língua materna tomem como conteúdos ou objetos de ensino os gêneros do discurso e como unidade básica do ensino o texto. Esse documento também aponta para o fato

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de que é em função do que os alunos precisam aprender que se selecionam as categorias didáticas mais adequadas. Para esta análise, o olhar do educador para o texto do aluno precisa deslocar-se da correção para a interpretação; do levantamento das faltas cometidas para a apreciação dos recursos que o aluno já consegue manobrar (Brasil, 1998: 77).

O que propomos, neste trabalho, é ampliar a noção de gêneros poéticos, com vistas a abarcar as manifestações artísticas que se aproximam, seja por confluência dos processos históricos que as gestaram, seja por semelhança em suas configurações composicionais ou por pontos comuns em suas formas arquitetônicas.

O processo de didatização visa rever os modos pelos quais os autores dos manuais didáticos concebem os objetos estéticos e quais elementos privilegiam em seu estudo; daí depreenderemos que tipo de leitor literário se pretende formar na escola brasileira; mas se objetiva, também, propor uma reinvestida no conjunto destes objetos, proporcionando uma aproximação com o mundo sócio-cultural do aluno.

Em termos bakhtinianos, procura-se investigar qual tipo de resposta a escola tem preparado o aluno a dar diante do texto literário, mais especificamente diante do texto poético. Se a resposta, para Bakhtin, cria uma nova relação axiológica (cf. Machado, 2005: s/p) com o que já está posto, que relação se estabelece no ato pedagógico? Qual se propõe? Qual se induz? Qual se espera?

Assim, tendo em vista o contexto em que se inscrevem as práticas de ensino-aprendizagem do discurso literário – e, no que aqui nos interessa, dos gêneros poéticos – e fomentando a atitude investigativa em direção à aliança entre a teoria bakhtiniana dos gêneros do discurso e as práticas de sala de aula, em suas linhas gerais, este estudo objetiva tematizar a situação escolar atual de circulação dos referidos gêneros, nos materiais didáticos, ou seja, pretende investigar os gêneros poéticos nos livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental, abarcando coleções dos quatro ciclos. As questões de pesquisa que buscaremos responder com nossa investigação e análise de dados são:

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2. Quais textos e autores privilegiados pelos livros didáticos escolhidos, tanto nas atividades propostas com os textos poéticos quanto nas atividades propostas para o estudo das letras de canção e outros gêneros da tradição oral?

3. Quais atividades propostas para as coleções em relação ao estudo dos poemas e das letras de canção (e outros), ou seja, que tipo de proposta de escolarização da literatura estes LDs empreendem?

Assim, no capítulo 1 abordamos as considerações teóricas mais relevantes do Círculo de Bakhtin a respeito do discurso poético; no capítulo 2, procuramos discutir a problemática dos gêneros, a questão dos gêneros literários e o conceito bakhtiniano de gênero do discurso. O capítulo 3 encerra a fundamentação teórica, buscando explorar a questão do livro didático como gênero discursivo cuja autoria mobiliza diferentes textos em diferentes gêneros, ao lado de uma descrição dos gêneros poéticos objeto de estudo desta pesquisa.

No capítulo 4, trazemos os procedimentos metodológicos que auxiliaram no rastreamento dos gêneros poéticos nos livros didáticos, bem como na escolha das coleções para análise.

No capítulo 5, 6 e 7 trazemos os dados referentes à análise quantitativa e qualitativa dos gêneros poéticos nas coleções de 1º e 2º ciclos (1ª a 4ª séries) e 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries), respectivamente, procurando responder às questões de pesquisa colocadas em relação à incidência dos gêneros poéticos, aos textos e autores privilegiados e às atividades propostas, bem como compreender a proposta de escolarização empreendida pelo manual didático.

Esperamos que esta investigação possa contribuir para descrever o “estado da arte” dos gêneros poéticos nos livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental, bem como possa fornecer subsídios para a reflexão e redimensionamento das formas de didatização do discurso poético, com vistas à efetiva formação do leitor literário.

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O Círculo de Bakhtin e o discurso poético: releituras e descobertas

Ao rastrearmos o pensamento bakhtiniano sobre o discurso poético, pudemos vislumbrar três caminhos que se entrecruzam:

• suas considerações de cunho filosófico sobre as relações entre ética e estética, com vistas a uma contribuição decisiva para esta última, no que concerne à apreciação das manifestações artístico-literárias;

• a formulação de uma concepção de linguagem ligada à proposição de uma estética – a do ato de autoria13- a partir da qual, ao nosso ver, o discurso poético e suas realizações podem ser relidos legitimamente;

• suas formulações sobre o discurso romanesco.14 que, contribuindo de forma definitiva para a teoria do romance, ainda oferecem subsídios para a compreensão do fenômeno poético.

Não há dúvida de que, em Bakhtin, a compreensão do romanesco está articulada à do poético. É difícil falar de um sem se reportar ao outro, pois poesia e romance estariam entrelaçados historicamente, como afirma Tezza (2003: 15):

Não será exagero dizer que a concepção de romance, em Bakhtin, depende

profundamente de uma concepção de poesia, na medida em que a poesia é

13Segundo Clark & Holquist (1998: 104): O ato de autoria que é tratado em A Arquitetônica constitui o tropo matriz de toda a obra de Bakhtin. O encontro dos autores com os heróis por eles entrançados no mundo de seus textos vem a ser uma forma feliz para conjugar e modelar todas as demais categorias bakhtinianas.

14Caberia aqui uma distinção entre discurso poético e discurso prosaico. Evitamos o prosaico, pois

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elemento essencial do discurso épico, contra o qual, nos termos bakhtinianos, o discurso romanesco vai se construindo ao longo da história.

O pouco que Bakhtin se deteve no discurso poético em sentido estrito, como ele mesmo assinala, foi dialogando com a estilística de sua época, com a poética tradicional e com o Formalismo Russo.

Se, em certa época, nos fins do século XIX, como bem coloca o próprio autor, a estilística tradicional buscava no discurso do romance formas “puramente poéticas”, a nossa leitura, não ousaria, mais de um século depois, procurar na teorização bakhtiniana do romance simples contrapontos para uma teorização do discurso poético. Não se trata, simplesmente, de uma dicotomia, em que os dois discursos constituem pólos opostos ou, de forma mecânica, extremos de um

continuum, ou ainda, da idéia de que, entre os elementos que os constituem e os caracterizam, se encerrem relações biunívocas, ou, pelo contrário, do tipo presença/ausência, positivo/negativo.

E mesmo que se pense em semelhanças e diferenças entre os discursos romanesco e poético, o fato inegável de que ambos pertencem a um mesmo domínio - o da esfera artística – proporciona, em sua efervescência e multiplicidade (o barroco e o modernismo brasileiro bem souberam explorar tais possibilidades), uma mescla de elementos, de dissolução de fronteiras entre o discurso poético e o romanesco e mesmo entre estes e outras manifestações artísticas, como as artes plásticas, a música e o cinema.

Este capítulo constitui, assim, em grande parte, uma releitura dos textos do Círculo de Bakhtin15 que fizeram, direta ou indiretamente, referência ao discurso poético16. Neste percurso, fomos surpreendidos, ainda que de modo não tão

15O Círculo de Bakhtin é a denominação que recebeu um grupo formado por intelectuais próximos a

Mikhail Bakhtin, apaixonados pela filosofia e debate de idéias, que se reuniam, segundo Clark & Holquist (1998), em 1918, em Nevel (entre eles, Volochinov), e depois em Vitebsk, ao final de 1919 (entre o quais, Miedviédiev). Pelo fato da questão da autoria de alguns textos e obras de elementos do grupo ainda ser controversa e sem solução, optamos por considerar, na referência bibliográfica, a dupla autoria nas obras mais disputadas, que aqui foram utilizadas: “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, e “Discurso na vida e discurso na arte”, ambas atribuídas por vezes a Volochinov, por vezes a Bakhtin.

16Falaremos, por enquanto, não em gêneros poéticos, mas em discurso poético, conforme Bakhtin

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aprofundado, com algumas descobertas, ao refletirmos sobre poemas cujas realizações nem de longe tinham sido imaginadas, à época, pelos pensadores russos. Acreditamos que isso nos permitirá, adiante, certas aproximações em direção ao que denominamos, nesta pesquisa, “gêneros poéticos”.

Selecionamos, para tanto, os seguintes textos do círculo17: Para uma Filosofia do Ato (Bakhtin, 1919-1921); Discurso na vida e discurso na arte (Bakhtin/Volochinov, 1926); Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico (Bakhtin/Volochinov, 1929); Problemas da poética de Dostoiévski (Bakhtin, 1929; 1961-1962); O discurso no romance (Bakhtin: 1934-1935) e O problema do conteúdo, do material e da forma (Bakhtin, 1924), de

Questões de Literatura e Estética (1975); O autor e o herói (Bakhtin, 1920-1930) e Os gêneros do discurso (Bakhtin, 1952-1953), de Estética da criação verbal (1979).

Dividiremos este capítulo em três partes: o artístico, em que destacaremos, na obra do Círculo, considerações gerais sobre a esfera artística; o romanesco e o poético, em que discorreremos sobre as considerações bakhtinianas a respeito do discurso romanesco e do poético; e uma parte final, à qual denominamos o poético inesperado, em que faremos referências a algumas manifestações poéticas “imprevistas” pela obra bakhtiniana.

1.1. O Artístico

A arte é o social em nós. Vygotsky

Há, basicamente, dois pontos principais sobre os quais recai nossa atenção ao pensarmos no discurso poético:

1) O processo de criação artística, em que o poeta trabalha de forma singular com a linguagem, num espaço e num tempo determinados. Aqui, estamos pensando em autoria, que abrange, na concepção bakhtiniana, não somente o produtor de um enunciado, mas as relações entre o autor (autor-criador), o herói (objeto) e o ouvinte (contemplador); e

17As referências às obras de Bakhtin estão aqui apresentadas pela data original de seus textos e não

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2) O produto da criação – o poema – em suas múltiplas realizações. Aqui, estamos vislumbrando o gênero, pensando antecipadamente, não em gêneros literários, na acepção tradicional, mas em gêneros do discurso, conforme a formulação de Bakhtin18.

Ao nosso ver, estes dois pontos estão imbricados e, em alguns momentos, como no texto de 1926 - Discurso na vida e discurso na arte –, é explícita a crítica às dicotomias, a algumas tendências que privilegiam a forma, operando uma

fetichização da obra artística enquanto artefato e desprezando o conteúdo/sentido, e a outras em que a atenção recai sobre a psique do criador e/ou contemplador ou às teorias sociológicas de cunho mecânico. Devem-se levar em conta os dois momentos, uma espécie de processo-produto, se podemos nos expressar assim, considerando-os relacionalmente:

O artístico é uma forma especial de interrelação entre criador e contemplador

fixada em uma obra de arte. (Bakhtin/Volochinov, 1926: 4)

Para podermos pensar, com Bakhtin, o que faz de um conjunto de palavras no papel, de frases enfileiradas, de versos agrupados, uma obra de arte, ou seja, o que lhes confere significado estético, será necessária uma visita aos textos em que foi tratada a relação entre ética e estética e, em seguida, àqueles que focaram, precisamente, o discurso literário.

Num dos primeiros manuscritos do autor russo, datado de 1919-1921, e mais tarde intitulado Para uma Filosofia do Ato, o jovem Bakhtin, então com 20 e poucos anos, num texto denso, de teor filosófico, já lançava as sementes de seu pensamento, sempre às voltas com as relações entre estética e ética. Categorias que são trabalhadas em obras posteriores, como a questão da autoria, relações autor-herói, exotopia, cronotopo etc. são encontradas neste texto, de forma embrionária e com designações ainda flutuantes.

18Para o teórico, gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados, com conteúdo temático, estilo e construção composicional. (Bakhtin, 1952-1953/1979: 279). Voltaremos

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Nessa obra inicial, Bakhtin concebe a atividade ética como um ato responsável, no seu processo de “estar se fazendo” num momento único, concreto, de sua realização. Sempre partindo de e se endereçando a um ser humano, envolvido neste evento19, o ato pode ser entendido como uma ação de qualquer natureza, um pensamento, um enunciado verbalizado ou não, escrito ou não. Ao ato, ao evento único do Ser, Bakhtin alia, numa simultaneidade, num todo indissolúvel, os valores que são mobilizados por meio da relação eu e outro, num tempo e lugares também únicos. Segundo Clark & Holquist (1998),

Bakhtin supõe que cada de nós “não tem álibi na existência”. Nós próprios precisamos ser responsáveis ou respondíveis, por nós mesmos. Cada um de nós ocupa um lugar e um tempo únicos na vida, uma existência que é concebida não como um estado passivo, mas ativamente, como um acontecimento. Eu calibro o tempo e o lugar de minha própria posição, que está sempre mudando, pela existência de outros seres humanos e do mundo natural por meio dos valores que articulo em atos. A ética não se constitui de princípios abstratos, mas é o padrão dos atos reais que executo no acontecimento que é minha vida.

Meu self é aquilo mediante o que semelhante execução responde a outros

selves e ao mundo a partir do lugar e do tempo únicos que ocupo na existência.

(Clark & Holquist, 1998: 90)

Neste trecho de Clark e Holquist, é fácil perceber o peso das categorias, ainda seminais nos escritos do jovem Bakhtin, e que vão nortear todo o seu pensamento nas obras posteriores: a relação eu-outro, que compreendemos aqui como uma síntese ainda da inter-relação complexa autor-herói-ouvinte; as categorias espaço-tempo que são circunscritas, por fim, pelo termo cronotopo, e aliado às anteriores, e de primaz importância, como veremos adiante, o relevo dado ao componente axiológico, ou seja, à atitude valorativa (do eu, do falante, do autor, etc.) em relação a um objeto.

Apesar de, neste texto, não tratar ainda especificamente da linguagem, dos discursos, Bakhtin já inicia um movimento muito próprio seu, que é o de

19Ser-evento único”, ou “evento único do ser” também são outras expressões usadas por Bakhtin,

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correlacionar a atividade estética e a atividade real da vida cotidiana. Para exemplificar o que ele chama de arquitetônica real do mundo realmente experimentado ele lança mão da análise de um poema de Pushkin20 “Separação”, para clarificar a disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de um centro de valores (Bakhtin, 1919-1921/1993: 83). Ou seja, para o leitor compreender suas considerações filosóficas sobre o Ser e sobre a vida, ele vai verificar como se dá essa arquitetônica na arte:

Para dar uma idéia preliminar da possibilidade de uma arquitetônica valorativa concreta, vamos analisar aqui o mundo da visão estética – o mundo da arte. Em sua concretude e sua impregnação com o tom emocional-volitivo, este mundo está mais perto do mundo unitário e único do ato realizado do que qualquer outro mundo abstrato cultural (tomado isoladamente). Uma análise desse mundo nos ajudaria a chegar mais perto de um entendimento da

estrutura arquitetônica do mundo-evento-real. (Bakhtin, 1919-1921/1993: 79)

Revendo o texto de 1926, Discurso na vida e discurso na arte, verificamos repetir-se essa correlação; entretanto, o foco já é explicitamente a linguagem e o movimento é examinar a “vida” para compreender a arte:

O propósito do presente estudo é tentar alcançar um entendimento do enunciado poético, como uma forma desta comunicação estética especial, verbalmente implementada. Mas para fazer isso nós precisamos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística. Além disso, a essência social do discurso verbal aparece aqui num relevo mais preciso e a conexão entre um

enunciado e o meio social circundante presta-se mais facilmente à análise.

(Volochínov, 1926: 4-5)

Mas voltemos à análise do poema de Pushkin. Apesar de que o objetivo, então, não seja realizar uma análise literária do poema, nos cânones estabelecidos (na época, em plena efervescência do Formalismo), ou que possa, ainda hoje, ser

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reconhecida por nós como uma análise literária típica (ainda herdeira do Formalismo), Bakhtin, deslocando o foco de atenção para o que ele denomina na época “centro de valores”, ou “centro valorativo concreto” - em que o ser humano como centro de valor é o ponto do qual emanam e para o qual se dirigem todas as categorias, seja na vida, seja na realização estética -, deixa-nos uma brecha para que possamos afirmar que a preocupação dele estava no processo de instauração do estético, grosso modo, no processo-produto, e não no produto isoladamente, no material textual e seus aspectos formais:

A unidade do mundo na visão estética não é uma unidade semântica ou sistemática, mas uma unidade que é concretamente arquitetônica: o mundo se dispõe em torno de um centro valorativo concreto, que é visto e amado e pensado. O que constitui esse centro é o ser humano: tudo nesse mundo adquire significado, sentido e valor apenas em correlação com o homem – como [sic] aquilo que é humano. (Bakhtin, 1919-1921/1993: 79)

Voltaremos ainda, neste trabalho, ao termo “arquitetônica”, cujo sentido dado por Bakhtin nos interessa especialmente. Vejamos agora como a arte se dispõe para podermos compreender a estrutura arquitetônica do mundo-evento-real. Transcrevemos aqui o poema de Pushkin e o início da análise de Bakhtin, em que ele localiza esses centros de valor e já trabalha algumas categorias como a

exotopia, as relações dialógicas e as noções de espaço, tempo e valor:

Com destino às praias de sua pátria distante Você estava partindo desta terra estrangeira. Naquela hora inesquecível, naquela triste hora, Eu chorei diante de você por um longo tempo. Minhas mãos, mais e mais frias,

Lutavam por trazê-la de volta.

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Mas você arrancou os seus lábios Do nosso beijo amargo;

De uma terra de sombrio exílio

Você disse: “No dia do nosso encontro Sob um céu eternamente azul

Na sombra de oliveiras,

Nós mais uma vez, meu amado, uniremos nossos beijos de amor.”

Mas lá – oh! – onde o arco celeste Brilha seu azul radiante,

Onde as águas dormem sob o abismo, Você para sempre adormeceu:

Sua beleza e seus sofrimentos Desapareceram no túmulo –

E o beijo do nosso encontro desapareceu também...

Mas eu estou esperando por esse beijo que você me deve...

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formação do material absorvido através da empatia – dentro dos limites da arquitetônica unitária da visão. A exotopia do sujeito (exotopia espacial, temporal e valorativa) – o fato de que o objeto de empatia e visão não sou eu – torna

possível pela primeira vez a atividade estética da formação. (Bakhtin, 1919-1921/

1993: 83-84)

Pela simples leitura do início da análise proposta por Bakhtin, vemos que as categorias - autor-artista (escritor); autor-herói (o herói-lírico); contemplador; o evento/ato (o enunciado poético); a exotopia (estar situado temporalmente, espacialmente e valorativamente do lado de fora do evento) - estão inter-relacionadas, levando-se em conta a atitude valorativa de um participante em relação ao outro. Podemos ainda vislumbrar outros níveis de relação, em que, por exemplo, o evento/ato possa ser descrito como o evento/ato narrado no enunciado poético.

A partir daí, outra vez, como em cascata, desenha-se a inter-relação entre os participantes, os centros de valores: o herói e “ela” - sobre quem se fala e a quem se dirige o enunciado - o escritor e o contemplador. Ou seja, autoria sobre autoria, podemos vislumbrar diversos níveis, diversos participantes, nós autores-contempladores exotopicamente orientados para um evento estético, o poema, construído a partir de um excedente de visão valorativamente marcado, do autor-criador, a dizer um evento ético – o sentido da partida e morte de Riznich para o autor-herói.

Pensamos que Bakhtin nos fornece, aqui, outros elementos para que possamos pensar o artístico – e destacamos, o poético - em categorias tais que não apenas a análise das formas, das imagens-tropo, das configurações rítmicas e sonoras. A nosso ver, é daí mesmo, na instauração de uma visão estética, que se encontra a ponta do fio de Ariadne a nos conduzir, primeiramente, à compreensão do pensamento bakhtiniano sobre o discurso poético e, em seguida, à proposição de uma releitura de alguns gêneros poéticos.

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O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de

objetivação. (Volochínov, 1926: 4)

Este texto dialoga incansavelmente, e de modo tenso, com o método formal, reafirmando o caráter imanentemente social da arte e a importância da consideração do autor, do herói e do ouvinte como fatores constitutivos essenciais da obra artística.

Ao tratar da questão da forma, do conteúdo e do material, no mesmo texto, dada a grande elaboração teórica por parte dos formalistas em relação aos aspectos formais do poema, sobretudo os fônicos/sonoros, Volochínov é incisivo ao, novamente, não dissociar forma e conteúdo, mas relacioná-los à apreciação valorativa do autor em relação ao objeto (herói) e ao ouvinte:

A significância avaliativa da forma é especialmente óbvia no verso. O ritmo ou outros elementos formais do verso abertamente expressam uma certa atitude em

direção do objeto. (Volochínov, 1926: 12)

Num momento anterior, no texto de 1924, O problema do conteúdo, do material e da forma, atribuído a Bakhtin ele mesmo, localizamos a mesma afirmação sobre a forma, ampliada:

Assim, a forma é a expressão da relação axiológica ativa do autor-criador e do indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo; todos os momentos da obra, nos quais podemos sentir a nossa presença, a nossa atividade relacionada axiologicamente com o conteúdo, e que são superados na sua materialidade por essa atividade, devem ser relacionados com a forma. (Bakhtin, 1924/1975: 59)

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a que pretende dar forma e precisa superá-la. No caso de um escultor, exemplo dado por ele, o mármore é o material sobre o qual, por meio de uma técnica, mas não apenas uma técnica, chegará a determinada forma. No caso de um poema, contudo, trata-se do material verbal. Bem, um mármore não está em todo lugar, está na natureza, no ambiente. O material verbal, ao contrário, está em todo lugar em que se encontra o humano, está antes na boca de cada um, depois, abstratamente, num compêndio do sistema ou das palavras de uma língua. Talvez seja também por isso que Bakhtin insista tanto na correlação entre o discurso da vida cotidiana e o discurso da arte.

Em “O autor e o herói na atividade estética”, datado da mesma época dos anteriores, entre 1920 e 1930, Bakhtin vai desenvolver as relações antes anunciadas entre o autor, o herói e o ouvinte, associando-os, de forma sistemática, às categorias de tempo, espaço e valor. No mesmo ensaio, trata da questão do conteúdo, da forma e do material, além de questões sobre o estilo, elementos que balizarão, definitivamente, alguns anos depois, sua noção de gênero do discurso.

A mesma analogia com o artista que trabalha o mármore reaparece então, e questões sobre o trabalho do artista com a língua e sobre a ação dos lingüistas afluem com mais vigor21:

Realmente, o artista trabalha a língua, mas não enquanto língua; ele a supera enquanto língua, pois não é em sua determinação lingüística (morfológica, sintática, lexicológica, etc.) que ela deve ser percebida, mas no que a torna um recurso para a expressão artística. (A palavra deve deixar de ser sentida como palavra.) A criação do poeta não se situa no mundo da língua, o poeta apenas serve-se da língua. No tocante ao material, a tarefa do artista, que é condicionada pelo desígnio artístico, consiste em superar um material. Superar o material não é um processo somente negativo que visaria instalar uma ilusão. No material, supera-se a eventual determinação extra-estética que lhe é inerente: o mármore deve deixar de se opor sua resistência em sua qualidade de mármore, ou seja, enquanto determinado fenômeno físico, e deve expressar a plasticidade das formas do corpo, porém sem criar a ilusão do corpo; o que é físico no material é justamente superado no que tem de físico. Será que devemos perceber as

21Pedimos desculpa ao leitor pela longa citação, mas julgamo-la importante para a compreensão de

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palavras na obra de arte enquanto tais, ou seja, no que causa sua determinação lingüística? A forma morfológica enquanto tal? A sintaxe enquanto tal? A semântica enquanto tal? Será que o todo da obra é um todo verbal? A obra, claro, também deve ser estudada como todo verbal, e é tarefa dos lingüistas; mas um todo verbal que for percebido como todo verbal deixará de ser um todo artístico. Superar a língua como se supera a matéria física só pode ser feito de forma imanente; não se supera a língua negando-a e sim propiciando-lhe um aperfeiçoamento imanente em função de uma necessidade determinada. (A língua em si mesma é indiferente, é sempre auxiliar e não tem finalidade, serve

indiferentemente à cognição, à arte, à comunicação prática, etc.). (Bakhtin,

1920-1930/1979: 206-207)

Então o estudo das formas, dos recursos que a língua oferece ao artista, e que este mobiliza com mestria, é um estudo insuficiente da estética literária? Todas as escolas herdeiras do formalismo, ou que com ele polemizaram, produziram compêndios e compêndios de análise literária em vão?

Cremos que não, mas acreditamos que a visão estética proposta por Bakhtin traz uma contribuição específica aos procedimentos já correntes de análise poética, atualizando-os, para nunca perder de vista o ato de criação em sua completude. Como o diz o próprio Bakhtin, no mesmo ensaio sobre o autor e o herói, não se trata de “contestar o direito de estudar tais elementos” mas “simplesmente recolocá-los nos respectivos lugares” (Bakhtin, 1920-1930/ 1979: 208).

É bom relembrar, em outra obra, o chamado bakhtiniano à formulação de uma real poética sociológica. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem

(Bakhtin/Volochínov, 1929: 124), ao enunciar a ordem metodológica para o estudo da língua, o terceiro momento referir-se-ia ao “exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual”. Pensamos que, ao fazer uma transposição para o estudo dos fenômenos literários22, as correntes formalistas e suas aparentadas, que

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propõem de uma forma ou de outra uma análise imanente do texto literário (estruturalismo, new criticism, escola morfológica), ocupariam este papel terciário no método sociológico do círculo bakhtiniano

A primeira ordem “As formas e os tipos de interação verbal com as condições concretas em que se realiza” referir-se-ia, assim, às relações entre ética e estética instauradas por Bakhtin, sobre a qual discorremos a partir da leitura de alguns de seus textos iniciais. Podemos evocar aqui a epígrafe desta seção, em que Vygotsky (1926/ 2001: 315) afirma que a arte é o social em nós. O artístico, como denominamos há pouco, constitui-se, no dizer de Bakhtin, numa relação entre vida e arte, concebidas indissociadamente, Em todas as facetas da atividade humana mediadas pela linguagem, vislumbra-se uma unidade, uma totalidade, integrando processo-produto: o ato ético, como posicionamento valorativo diante do mundo social e o ato estético como consubstanciação em forma-conteúdo desta valoração.

A segunda ordem consistiria no estudo das “formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.” Em nosso entendimento, trata-se do estudo das formas já estabilizadas; no nosso caso, do discurso romanesco e do discurso poético, e por fim, dos gêneros específicos – os gêneros poéticos. Trataremos, a seguir, desta segunda ordem.

1.2. O romanesco e o poético

Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo23 Fernando Pessoa

Tezza (2003), em obra recente, busca, a partir da análise das obras de Bakhtin e da leitura de alguns autores do Formalismo Russo, compreender como o pensador russo concebia o discurso poético e em que termos colocava a distinção entre o discurso poético e o discurso romanesco.

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Tabela 1 - Exemplo de totalização de dados por coleção - PNLD 2002 (5ª a 8ª séries)
TABELA ADRO GERAL DAS COLEÇÕES DE 5ª A 8ª SÉRIES - PNLD 2002  leção   adição
Gráfico 3 - Relação entre textos em gêneros poéticos e total de textos - 5ª a 8ª séries
Tabela 4 - Ferramenta Classificar - Excel (Poemas - 2004)
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Referências

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