Barbárie acima de tudo
Samuel F. Medeiros
"É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer."
-Carlos Marighella
"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de
arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar."
-Bertolt Brecht
C O N T E Ú D O
ÍNDICE
6 B O B O R E A L
5 D E I X E
7 I S O N H O K A F K I A N O
8 P A R A D O X O D A N O R M A L I D A D E
9 N Ã O V A C I N A R E C O N T R A I R
10 Q U E M
11 T E A T R O
12 O D E À E M A N C I P A Ç Ã O
13 N Ú M E R O S
14 V A C I N A C O N T R A O F U T U R O
16 N O V O D I A
17 E M B U S C A D O C O N C R E T O
C O N T E Ú D O
ÍNDICE
20 C I R C O C U L P O S O
19 S U S P I R E
21 R E A L I D A D E A P A G A D A
23 S I L Ê N C I O
24 L U T A C O L E T I V A
25 P O E M A P Ó S - M O D E R N O
26 A B A T E D O U R O
27 S U T I L E Z A V I O L E N T A
28 U M N O V O T A L V E Z
Nossa bandeira se tornou vermelha Um mero pano sobre a grelha
O verde se tornou cinza
O alegre azul ficou ranzinza O amarelo alaranjou
O sol apagou
As estrelas cairam do céu O progresso desapareceu Agora só resta deixar
Deixe queimar Deixe matar
Só não deixe deixar
Deixe
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E nesta cortina de fumaça
Tudo vai se tornando uma farsa Uma mera casa
Devorada por uma traça
Palhaços sobem ao poder
Destroem tudo o que podem ter Apagam tudo o que pode-se ver
Acabam com tudo o que poderia ser Os papeis se inverteram
Bobos ascenderamR eis desapareceram
Patria amada
Por que não passas de uma piada?
Bobo real
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Corpos no chão Fogueiras na mão Com estas imagens
Pergunto nestas margens Onde anda o espanto?
Coberto por um manto
Agasalhado pela normalidade Ignorado pela mortalidade
Escrito por Kafka
Estou preso em uma realidade tácita Banalizada Flácida
Algo me deveria ser estranho
Mas o incômodo me traria algum ganho?
Talvez eu seja o povo
Talvez eu fale por algo novo Neste velho mundo mundano Não procuro estar mudando Talvez fique na possibilidade
O ceticismo possui certa afabilidade Em minha alma pró-dogmática
Seria isto uma ideia tática?
Cansei
Estranhei
Não, não está certo
Sinto a certeza por perto
De que se há algo para sentir Para cair
Cair nos braços da busca
Se atormentar no córtex da luta Me abrindo para possibilidade
Sonho kafkiano
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Pessoas caminhando normalmente Lentidão nos passos
Medo na mente
Ignorância nos casos Triste realidade
Negada nesta cidade
Seria isto consciente maldade?
Ou uma normalizada insanidade?
Tudo se tornou tão paradoxal A calma me faz mal
Enquanto o ignorante fala
O silêncio dos sábios me abala A praga é silenciosa
Silenciosa para quem?
Para quem pode pagar bem Longe da torre de marfimI
nocentes encontram seu fim
Fazendo um barulho ensurdecedor Para aqueles que condenados a dor
Paradoxo da normalidade
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Vigiado
Dominado Subjugado
Este é o nosso retrato
Continuamos sem nos importar
Enquanto o poder continua a vigiar Sem espetáculos
Apenas cálculos
Realizados para enumerar Os indivíduos a lutar
Lutar pela sobrevivência Sem clemência
Totalmente visceral Este mecanismo viral
Não vacinar e contrair
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Quem é que morre?
Quem é que vive?
Quem comemora na praia de Recife?
Quem está abandonado à própria sorte?
Quem é o forte?
Quem é o fraco?
Quem foi feito para a morte?
Quem foi feito para ser carrasco?
Culpa-se a natureza por essas criações
Mas tudo isso não passam de convenções De meros produtos sociais
Metidos à animais naturais Tantos questionamentos
Esperando por seus complementos Uma verdadeira fase
Lapidada com toda CLASSE
Quem
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Tudo mudo quando mudo Tudo sinto quando minto Tudo furto quando surdo
O consenso está na falta de vós É na bala que não chega a nós
É no homem sem nome É na criança com fome É na falsa realidade
Que se encontra a beldade Finjo até saber que minto
Minto até dizer que fitoS ou cego para só
Manter o status quo
Teatro
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Controlam seu tempo Te pagam seu cento
No compasso do relógio Te chamam de sócio
Te constroem como sujeito Maquinam seu jeito
És tão estrutural
Que lhe negam o status de intelectual Te dão seu nome
Te deixam na fome Te tratam mal
Construindo sua identidade social Te dão adjetivos
Tão pejorativos
Formando sua mente
Ignorando o que tu sente
Para eles, você é empresário Por trás, és empregado
Para a vida, você é operário
Te chamam de tudo no horário Menos de revolucionário
E nessa exploração de cada dia Roubam tua mais valia
Sua vidaS eu lucro
Te fazem surdo
Mortificado Um completo alienado Mas há de raiar o dia
Que não mais perderá o que antes havia Que tomarás na esquerda mão
O destino da emancipação
Ode à emancipação
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Não somos humanos
Somos meras estatísticas Mortos por desumanos Por falta de críticas
Um sorriso é capaz de desaparecer em um eterno segundo O quão frágil é a vida neste mundo
Onde o suspiro é regido pelo intolerante que satiriza a nossa existência a todo instante
Ó, ética morta no seio da estática
Ó, moral sufocada em uma ilha aquática Onde andas, fugaz esperança?
Condenados estamos a esta triste dança?
Respostas, quero respostas
Mas tudo o que recebo são costas Olhares
Tão tardes
No por do sol Sou
Nada
Poderíamos ser tudo
Mas sonhar nos é recluso Neste mundo sujo por
Um sistema de pesadelo e horror
Números
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Triste saber que nada mudou
Que nossas vidas não passam de uma mera trama política Que a ética está renegada à mentira
Que a morte nada significa Diante da xenofobia
Da economia Da ideologia
Perdemos totalmente o rumo do mundo Este belo mundo que arde sem salvação Pois não alimenta o patrão
O latifundiário O burguês
Exploradores de todo mês
E as massas continuam a sofrer
Afundada nas entranhas da ideologia e do fascismo Sufocando o conhecimento e a sabedoria
Escurecendo o próximo dia
Anunciando o colapso do dia a dia Matando a alegria Alegria de viver Que se torna desejo de morrer
De ser consumindo nas labaredas do pantanal Como um triste e destemido animal
Tão irracional
Como a decadência ideológica Que afeta a nossa diária lógica Nos tornando lacaios
Monstros sanguinários
Matando para líderes autoritários Liderança?
Seria muita esperança
Esperar a presença de alguém para liderar Em um país que só serve para matar
Para ditar
As regras da chacina
Essa doença que necessita de uma vacina
Vacina contra o futuro
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Ignorância, ignorância
Que não provém da infância Mas sim da dominância
Perdidos estamos
Sem saber para onde vamos
Pois nossos futuros foram cancelados Deles estamos vacinados
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As trombetas brandam
Enquanto nossos vizinhos cantam Um novo dia sem escuridão
Que está em nossa constituição O progresso é incessante
O neoliberalismo tem seu suspiro restante Anunciando um novo dia
Para quem luta e confia E nessa queda imperial O futuro é triunfal
Pois o rei está perdendo
Para uma antiga sociedade ardendo E sobre as cinzas restantes
Observa-se certas nuances De conflitos
De ritos
De tradições
Cravados em corações Lutar, lutar, lutar
Eis um aviso para o de cima Está na hora de fechar
As veias abertas da América Latina
Novo dia
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Não há apenas o simbólico O abstrato
Há o concreto
Que um dia espero encontrar Que espero alcançar,
Abraçar e pensar São nomes
São famílias São pessoas Assassinadas Abandonadas São histórias
De derrotas e glórias São almas
Cansadas Resistentes Clementes
Há tantos corpos De povos mortos Há tantas cores
Que desaparecem em horrores Há tanta carnalidade
Perdida na mortalidade Enumerada
Abandonada
Há tanta melancolia Ou deveria haver
Pois no raiar de cada dia
Estamos marcados para morrer Talvez já estamos mortos
Mortos pela indiferença Atirados na necropolítica Sem consciência critica
Em busca do concreto
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Apesar disso
Ao olhar para cada corpo caído Desejo estar enganado
E olhar para o outro lado O outro jeito
A outra humanidade
Uma cheia de bondade E dizer:-Ei, Maria! Ei, João!
Vocês não estão perdidos na solidão E por mais que possa ser uma ilusão As coisas não serão assim
O terror terá um fim
A barbárie não vencerá
Esse sistema não prevalecerá Há ainda muito para acreditar Para refletir e lutar
Por isso brande Cante
Pois a liberdade é uma luta constante
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Suspira o doente homem No abafar das armas
Que por toda sociedade comem As mais diversas almas
Suspiram as lutas
Preenchendo as ruas Quebrando o decreto
Do qual suspira o credo Suspire e vá lutar
Continue a suspirar
Não vós torneis doentes Não sejam meros crentes O projeto do infame
É apenas um projeto de derrame De vosso sangue
Por isso suspirem
Suspirem antes que nos tirem Ou atirem
Em uma fossa privada De água suja e gelada
Afogando-nos para lucrar
Tirando nosso direito de suspirar
Suspire
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O que é a justiça se não uma mercadoria?
Uma mera risada da burguesia Burguesia branca, masculina De roupa fina
Que desfila patriarcalmente na esquina Que país é este, tão horroroso
Onde o ódio é um ato culposo Onde a vida para algo valer
É preciso masculecer É tão triste viver
Em um país que humilhação é regra E respeito é exceção
Para quem passa no cartão Um país que adquire débito Com os inocentes sem crédito Perdendo todo o seu mérito Diante da falta de dignidade
Que exerce com toda crueldade Para com aqueles oprimidos
Que não são ouvidos
Nem mesmo com provas
Pois já estão jogados em covas
Esperando os detentores das pás Destruírem toda paz
Que poderiam um dia virem a ter
Se não estivessem destinados a sofrer Em um sistema estruturalmente desigual Que ataca como um animal
Quem não tem chance de defesa Se tornando uma mera presa
Diante de uma instituição Que provoca a destruição A maldade
A impunidade
E assim caminha a justiça
Se tornando um mero circo na pista Apresentado pelo bozo
Em um show de horror culposo
Circo culposo
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E na crueldade do genocida,
A vida se apaga a todo momento Não apenas a vida
Mas a verdade A igualdade
A fraternidade Esses valores
Valores abstratos,idealizados, tão sacralizados, e apagados
na modernidade, na brasilidade
Tão apagados que nem mesmo a ínfima flama da revoltosa chama Chama do povo
clamando pelo novo, pela luz,
pela cruz,
Cruz usada pelo tirano,
que brandou alegando falsidade Obscurecendo a realidade
Realidade dos povos
Povos que precisam de luz
E que foram pregados em uma grande cruz Sem a possibilidade do clarão do dia
Nem mesmo após 36 horas Pois foram esquecidos
Pelo tirano, pelos lacaios Que ignoraram
Que voltaramseus olhos para outra terra Que votaram
esperando uma falsa mudança Enganados como uma criança Que no tardar do dia
Espera seu pai que foi à padaria
Em uma cidade que nem mesmo há pão
Realidade apagada
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No soar dos ventos, escuta-se os clamores imperiais do rei E em novos sons, mais suaves, há ainda seu desejo colonial de transformar toda a barbárie em lei,
e toda lei em instrumento do mal
E eis que neste Império tão renovado
O rei, antes nu, está novamente roupado
Enquanto isso, o povo, tão vítima quanto carrasco, é roubado Roubado de sua dignidade
De sua liberdade
Roubado de toda verdade, crime dos mais honestos e terror dos mais funestos
nobres vestidos por cobres
tingidos de ouro que, originalmente, era do povo E eis que neste horrendo mecanismo
Ainda resiste o imperialismo Tão vivo e infecciosoT
ão infeccioso que infectou os ares
que chegam nas esperanças das terras
Terras tão certas de que há um futuro com o Império Enquanto este continua de olho no minério
O Império, digo novamente, resiste Mas, assim como ele,
Há o justo que ainda não desiste E de grão em grão
Há vitórias que surgirão do chão
Derrubando quem está acima da lei e desnudando novamente o rei
22 O império ainda está vivo
Pouco se diz, muito se fala Amanhã morremos,
Estaremos na vala
E na boca que não se cala Diremos o que cremos
Como se fossem verdades As mais crueis credulidades E o tempo, senhor da razão Limpará todo o chão
Silêncio
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Do lacaio do explorador
Até o profeta emancipador
Ninguém está salvo da ilusão
Enquanto houver um caso de opressão Presos estruturalmente
Tentamos libertar a nossa mente Enquanto ignoramos o externo Que comanda o nosso interno Ilusões, ilusões
O quão eternas são essas prisões Que vivem a aprisionar leões
Emancipação ou eterna barbaridade São estas as escolhas da sociedade Que caminha ao lado da crueldade
Luta coletiva
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Nascemos e ganhamos
Nomes, projetos e sonhos Toda uma história já escrita
Recebemos ao chegarmos na vida Nos dizem sobre o muro de Berlim Me dizem o que é melhor para mim Qual futuro devo querer
E qual utopia devo esquecer Falam sobre o passado
Distante e manipulado
Sem chance de desconfiança
De que tentam matar a nossa esperança Bradam sobre o fim das ilusões
Enquanto o Estado enche as prisões Negando as causas profundas
Poema pós-moderno
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Provisoriamente, não compraremos o horror, não aceitaremos o chicote do opressor,
não deixaremos que nossos corpos sejam cobertos:
de guarda-chuvas, de sangue, de preconceitos Revoltemos, pois existimos.
Revolto, logo resisto e insisto.
Existo para revoltar: Seja no mar, com João Cândido Seja em Palmares, com Zumbi.
Todos esses eternizados no Morumbi
Antes, a carne era exposta para compra Hoje? Quem dirá que algo mudou?
LucroTanto lucro
Que tentam ofuscam o nosso luto
Mas há ainda uma chama de revolta,
pois mesmo que as margens estejam estreitas, o rio se torna cada vez mais veloz e potente.
E na medida que carregam todos na corrente, o silêncio será quebrado como vidro,
fazendo todo voz de revolta ser ouvido.
Abatedouro
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Sutilmente brutal,
A discriminação racial
Vai deslizando por todo canto Fazendo-se de santo
Vozes são caladas na calada da noite Sob o verniz da desconstrução
E em cada mão,
Há uma corrente diferente.
E em cada voz,
Há a negação do "Nós".
Nega-se tudo Ouve-se nada
E nessa mesma calada
Vozes continuam abafadas à mão armada
Sutileza violenta
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Cantemos um novo dia
Mesmo que este dia nunca chegue Pois é melhor sonhar e lutar
Do que praguejar e se alienar Cantemos la vie en rose
Cantemos What a Wonderful World Cantemos e sonhemos
Mesmo que o mundo seja um moinho É um novo dia
Para fazer uma boa pintura
Daquilo que fizeram com a gente
E mesmo que a liberdade não seja concreta E a opressão discreta
Lutemos pela verdade
Que irá todo conflito na sociedade.
Um novo talvez
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