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Liberdade e em o ser e o nada de JeanPaul Sartre: perspectiva ética de um engajamento intelectual

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Academic year: 2018

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INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

LUCIANA LIMA FERNANDES

LIBERDADE E RESPONSABILIDADE EM O SER E O NADA DE JEAN-PAUL SARTRE: PERSPECTIVA ÉTICA DE UM ENGAJAMENTO INTELECTUAL

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LIBERDADE E RESPONSABILIDADE EM O SER E O NADA DE JEAN-PAUL SARTRE: PERSPECTIVA ÉTICA DE UM ENGAJAMENTO INTELECTUAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Ética e Filosofia Política

Orientador: Prof. Dr. Emanuel Ricardo Germano Nunes

FORTALEZA

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LIBERDADE E RESPONSABILIDADE EM O SER E O NADA DE JEAN-PAUL SARTRE: PERSPECTIVA ÉTICA DE UM ENGAJAMENTO INTELECTUAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Ética e Filosofia Política

Orientador: Prof. Dr. Emanuel Ricardo Germano Nunes

Aprovada em: ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Prof. Dr. Emanuel Ricardo Germano Nunes (Orientador)

Universidade Federal do Ceará – UFC

___________________________________________________ Profª. Drª. Ada Beatriz Galicchio Kroef

Universidade Federal do Ceará – UFC

___________________________________________________ Prof. Dr. José Olinda Braga

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

F363l Fernandes, Luciana Lima.

Liberdade e responsabilidade em o ser e o nada de Jean-Paul Sartre :

perspectiva ética de um engajamento intelectual / Luciana Lima Fernandes. – 2015. 92 f. : il. color., enc. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Departamento de Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza, 2015.

Área de Concentração: Ética e Filosofia Política.

Orientação: Prof. Dr. Emanuel Ricardo Germano Nunes.

1. Sartre, Jean-Paul, 1905-1980. 2. Liberdade-Filosofia. 3. História intelectual. I. Título.

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A pesquisa e a escrita de um trabalho acadêmico, apesar de oficialmente só

possuir um autor, é fruto da contribuição de diversas pessoas que, ao longo do itinerário daquele que pôs o nome na capa do trabalho, tornaram possível a realização deste.

Desde a tia do R.U. que nos serve todos os dias, até os professores que ministraram disciplinas fundamentais para a pesquisa em questão, todos possuem uma parcela de contribuição na construção deste trabalho que ora apresento. Algumas dessas pessoas serão mencionadas aqui de forma direta, outros estarão presentes apenas nas entrelinhas, assim como Sartre o fez em sua filosofia, cuja concepção de liberdade engajada muitas vezes aparece apenas a um leitor mais atento ou com espírito mais criativo.

Agradeço ao meu orientador, professor Emanuel Ricardo Germano Nunes, e aos professores membros da banca de defesa da dissertação, professora Ada Kroef e professor José Olinda Braga.

Sou grata também à minha família, que sempre apoiou minhas escolhas e incentivou a continuação da minha formação acadêmica.

Agradeço as pessoas que compartilham comigo o desafio cotidiano do engajamento e da luta enquanto ser humano e enquanto mulher, compreendendo que nossa luta se faz todo dia, em cada ato, em cada situação e em cada palavra, seja ela escrita ou falada. Pelo acolhimento e companheirismo nessa empreitada: Janaína Ortins, Cineide Almeida e Sara Ortins.

Aos queridos Leandson Sampaio, Kedna Adriele e Everardo Alves que participaram comigo da aventura da vida acadêmica, dividindo leituras de textos e de vida.

Ao amigo Diogo Mendonça, por contribuir na ressignificação da noção de família (e muitas outras); ao Samuel, que sempre será um baile funk pros meus olhos; às

queridas Alice, Chris, Carol e Lia, por me darem o que comemorar no dia do amigo; a Tetê Macambira, por poetizar com palavras e imagens os meus dias; e ao querido André Fialho, pela sua contribuição musical e por sua companhia na estrada. A todos estes: Gratidão!

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“Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente,

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A filosofia de Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) é comumente dividida em dois momentos, o primeiro voltado às questões mais filosóficas, sendo a-histórico e metafísico e tendo O

ser e o nada (1943) como obra central, enquanto o segundo estaria mais preocupado com o homem na história e com uma filosofia mais prática, tendo a Crítica da razão dialética (1960) como obra principal. A ideia de nosso trabalho é, negando tal polarização, defender que a obra de 1943 está longe de ser a-histórica ou metafísica. Pelo contrário, nela sua concepção de liberdade é ligada necessariamente a uma situação, está voltada para a ação e relaciona-se à responsabilidade dos homens em cada uma dessas situações. Para defender nossa posição, analisaremos alguns elementos biográficos que indicam o engajamento intelectual do filósofo, seja em sua vida pública, seja enquanto escritor, bem como investigaremos suas concepções de liberdade e responsabilidade presentes em O ser e o nada. É dessa forma, relacionando as análises de sua vivência como intelectual e como escritor engajado com o estudo da liberdade e responsabilidade, que buscaremos compreender a filosofia de Sartre como uma filosofia prática, histórica e voltada para a ação, delineando assim os primeiros passos para a construção de uma ética.

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The philosophy of Jean-Paul Sartre (1905 - 1980) is commonly divided into two stages,

the first facing the most philosophical questions, ahistorical being and metaphysical and with Being and Nothingness (1943) as central work, while the second I would be more concerned with man in history and with a more practical philosophy, and dialectical reason of Criticism (1960) as the main work. The idea of our work is denying such bias, arguing that the work 1943 is far from being ahistorical or metaphysics. Rather there his conception of freedom is necessarily linked to a situation, it is focused on action and is related to the responsibility of men in each of these situations. To defend our position, we will analyze some biographical elements that indicate the intellectual engagement of the philosopher, whether in his public life, both as a writer and investigate their conceptions of freedom and responsibility present in Being and Nothingness. It is thus relating the analysis of his experience as an intellectual and as engaged writer to the study of freedom and responsibility that seek to understand the philosophy of Sartre as a practical philosophy, history and focused on the action, thus outlining the first steps towards construction of an ethic.

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LISTA DE ABREVIATURAS

SN O ser e o nada

LN L’être et le néant

CRD Crítica da razão dialética

TE A transcendência do ego

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 BIOGRAFIA DE UM INTELECTUAL ENGAJADO... 13

2.1 Sobre a biografia de Sartre ... 15

2.2 A questão do intelectual ... 23

2.3 Literatura engajada ... 33

3 O ENSAIO DE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA …...…. 43

3.1 Sartre: “da metafísica ao engajamento”…….………...…. 43

3.2 O ser e o nada e a Filosofia moderna: construção de uma “ontologia fenomenológica”………...…. 46

3.3 Estruturas constitutivas de O ser e o nada: um caminho para a liberdade... 52

4 A LIBERDADE EM O SER E O NADA ... 66

4.1 “A condição primordial da ação é a liberdade”... 66

4.2 Liberdade e situação ... 73

4.3 Liberdade e responsabilidade ... 80

5 CONCLUSÃO: O ser e o nada - um caminho para a moral sartriana ... 87

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1 INTRODUÇÃO

Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) foi um filósofo francês contemporâneo aos grandes acontecimentos históricos do século XX, como as guerras mundiais, a ascensão do poderio norte-americano e soviético posterior à Segunda Guerra, as lutas dos países africanos por suas libertações coloniais e as manifestações de Maio de 68. Sartre participou de todos esses eventos, seja como combatente ou militante, seja escrevendo e dando seu depoimento, encarnando a figura do intelectual engajado. Sua filosofia também nos deixa entrever seu engajamento: ao ir de encontro ao que chamava de “filosofia alimentar”, em “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”, em detrimento de uma filosofia voltada para as coisas do mundo; ou quando trata a liberdade como uma concepção voltada para a ação, em O ser e o nada; e ainda também em Crítica da razão dialética, ao aproximar o existencialismo do marxismo, buscando relacionar ainda mais sua filosofia com a história.

Primeiramente, compreendemos que não há uma ruptura em sua vida e em seus escritos, como acreditam alguns autores, que atribuem a O ser e o nada e às obras anteriores

um Sartre mais a-histórico, metafísico e até mesmo idealista, enquanto a Crítica da razão dialética e os outros escritos de 1960 comporiam uma filosofia mais historicizada e consciente das situações que vivia. Longe de tal posição, acreditamos que o filósofo já desde

O ser e o nada desenvolvia uma filosofia voltada para a prática e atenta à história, uma vez que a liberdade ali tratada estava voltada para a ação, se dava em situação e tinha como pressuposto a responsabilidade oriunda de cada ato. Buscaremos, então, analisar as concepções de liberdade e responsabilidade presentes na obra, buscando compreender de que forma estas estavam voltadas para a ação e eram precursoras de uma filosofia moral. Estes serão os temas do terceiro capítulo de nosso trabalho.

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Já no segundo capítulo nos voltaremos mais para a obra em questão, buscando introduzi-la a partir de algumas análises mais tradicionais, tais como fazem Marcuse e Bornhein. Em seguida, inserimo-la no contexto da Modernidade filosófica, a partir das leituras feitas por Sartre de Husserl e Heidegger, buscando compreender em quais pontos o autor se aproximou ou se afastou destes filósofos. No último ponto do segundo capítulo enveredamos, enfim, na análise de alguns pontos da obra, tais como as noções de Para-si, Em-si, fenômeno e temporalidade, essenciais para a compreensão da liberdade, análise que será feita no terceiro capítulo.

A partir do estudo da vida intelectual de Sartre como agente político e como escritor engajado, associando tal análise à sua concepção de liberdade e responsabilidade, presente em O ser e o nada, pretendemos relacionar sua filosofia a uma moral, talvez não uma moral tradicional, que dita regras universais a serem seguidas por todos os homens, mas sim uma reflexão de como agir em cada situação concreta no mundo, buscando construir assim o universal e reassumindo essa posição a cada novo ato ou a cada omissão. Acreditamos que sua filosofia seja de certa forma uma filosofia ética, sobretudo porque ela direciona o homem para a ação, uma vez que a liberdade só se faz através desta que e o homem é um ser livre,

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2 BIOGRAFIA DE UM INTELECTUAL ENGAJADO

“O que me interessa bastante como referência, em relação a Sartre, é essa dimensão universal de cultura que me ajudou tanto em minha vida pessoal como cidadão brasileiro quanto cidadão do mundo... Outros intelectuais que adotaram uma posição forte, como Raymond Aron, são mais fáceis de interpretar. Mas homens de simultaneidade e ubiquidade como Sartre são, a meu ver, muito mais preferíveis. Sartre rejeitava totalmente as convenções, e acho que é por essa razão que hoje ele está pagando o preço...” (Gilberto Gil) 1

A partir do depoimento de Gilberto Gil dado a Annie Cohen-Solal, no ano de 2005, data do centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre, é possível pensar dois pontos a respeito

da herança deixada pelo filósofo aos intelectuais do século passado: o primeiro é a sua assimilação como referencial de ampliador da compreensão de cultura e de cidadania – o que se relaciona à simultaneidade e ubiquidade dos papeis exercidos pelo filósofo durante sua vida; e o segundo é o rechaçamento de padrões tradicionais estabelecidos pela sociedade, motivo pelo qual muitas vezes Sartre tenha sido visto com maus olhos, sobretudo dentro da academia.

Relacionar cidadania com a figura do filósofo pode ser questionável, tendo em vista sua recusa em votar – símbolo maior do que se compreende hoje por democracia – e seu distanciamento das questões ligadas à greve de 1936, por exemplo, já que o autor entrou relativamente tarde no debate de assuntos políticos desse período. A compreensão de cultura é melhor relacionada ao nosso autor, pois além de filósofo foi um importante escritor, jornalista e ativista político. Sartre foi sobretudo um intelectual, ou seja, figura de grande destaque na mídia e na opinião pública como um todo, exercendo um papel influente dentro da sociedade francesa e também fora dela. É assim considerado porque até mesmo nos dias atuais é considerado como modelo por muitas figuras públicas, como Gilberto Gil, que a partir da fala citada acima deixa entrever a admiração pelo filósofo francês, especialmente por seu engajamento em questões da política e da cultura, por relacionar filosofia com o cotidiano das pessoas e por exercer múltiplos e simultâneos papeis. É por tudo isso que Gil o toma como referência em sua própria posição de cidadão participativo na sociedade e igualmente para ampliar sua compreensão de cultura, tendo em vista ser também um intelectual, embora de um modo diferente, já que as circunstâncias são outras que as do filósofo.

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Como enfatiza o cantor e compositor brasileiro, Sartre também é conhecido por ser crítico e negador das normas comumente aceitas, como, por exemplo, ao negar-se a ocupar posição tradicional dentro da instituição escolar no cargo de professor, a possuir bens ou mesmo a se casar, o que o alinharia às tradicionais características burguesas contra as quais tanto lutou durante a vida, embora nunca tenha negado que o escritor pertencesse à burguesia, mesmo que pudesse se aliar à classe trabalhadora.2 Esse é um dos principais motivos de muitas vezes o autor não ser tão bem quisto dentro do mundo acadêmico e também a justificativa que Cohen-Solal, sua principal biógrafa e utilizada amplamente em nosso trabalho, dá para a falta de comemorações, sobretudo na França, do centenário de Sartre (COHEN-SOLAL, 1998, p. 10-11). O que ocorreu em 2005 e vem se arrastando aos dias de hoje é um ofuscamento do debate entre os intelectuais, emblema maior de nosso atual estado de apatia do intelectual e de seu suposto “silêncio”.3

Conhecer a vida de um filósofo muitas vezes pode ser de grande serventia para a compreensão de sua filosofia, e sobretudo Sartre, cujas noções principais e objetos de estudo de nosso trabalho, quais sejam, a liberdade, a responsabilidade e o engajamento, relacionam-se diretamente a sua situação histórica e as suas experiências políticas. Se para Sartre “vida e

Filosofia são uma coisa só” (SARTRE apud LÉVY, 2001 p. 39), no primeiro tópico deste capítulo optamos por apresentar algumas informações de sua biografia e do período histórico em que vivia. A partir desse estudo, faz-se necessário problematizar os conceitos de

intelectual e geração, centrais em sua vivência e na de seus contemporâneos, o que buscaremos fazer através da elucidação e breve exposição do diálogo entre a compreensão de teóricos do assunto e a do próprio Sartre, que dedicou três conferências no Japão, em 1964, sobre o tema, publicadas posteriormente sob o título Em defesa dos intelectuais – objeto de estudo do segundo tópico. Para finalizar o capítulo, buscamos pensar a respeito da principal forma de engajamento do escritor que, como intelectual, tem a obrigação de fazê-lo através de sua escrita. Desta feita, dar-se-á a primeira indicação de que a liberdade – tema central da filosofia sartriana e de nossas investigações – é voltada para a ação do homem na história, o

2 Esse posicionamento, tomado mais tardiamente pelo filósofo, será melhor exposto na segunda parte deste

capítulo. Vale adiantar que sua mudança de posição deveu-se à sua aproximação com o marxismo, no final da década de 50 e início de 60.

3

Adauto Novaes chama de “silêncio dos intelectuais” o enfraquecimento da figura do intelectual a partir da década de 1980, sobretudo, por conta da morte de Sartre. Cf. NOVAES, Adalto. O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Ainda sobre o tema, Batriz Sarlo defende que os meios de comunicação foram um dos principais fatores a silenciar os intelectuais, embora não veja tal enfraquecimento como permanente e absoluto. Cf. SARLO, Beatriz. A voz universal que toma partido? In: MORAES, Denis (org.).

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que acreditamos ter sido empreendida pelo próprio Sartre em sua vivência como intelectual bem como em sua literatura. Pensar alguns elementos da biografia do autor e de sua concepção literária de engajamento são importantes porque ambas já são o preâmbulo de sua concepção de liberdade e responsabilidade defendidas em O ser e o Nada, sua principal obra filosófica, e temas centrais dos capítulos subsequentes.

2.1 Sobre a biografia de Sartre

Falar da biografia de um autor e do modo como se pretende usá-la em um trabalho como o nosso, no qual se busca fazer uma análise filosófica, explica-se na medida em que para pensar a sua filosofia não é suficiente enveredarmos tão somente pelo caminho das análises das obras filosóficas, mas é preciso pensar em que período cada uma foi escrita, a partir de que vivências do autor e quais seus diálogos e influências filosóficas. Em carta destinada a Simone de Beauvoir, durante a Segunda Guerra, ao se questionar sobre o papel da filosofia em sua vida, Sartre escreve: “não tento proteger minha vida com uma filosofia, o que seria bem feio, nem conformar minha vida à minha filosofia, o que seria pedante, mas,

realmente, vida e filosofia são uma coisa só” (SARTRE apud LÉVY, 2001, p. 39). Optamos, então, por partir da análise de alguns elementos da biografia de Sartre para compreendermos melhor sua formação política e intelectual, relacionando-as com sua escrita literária e

filosófica, tendo como preocupação final a construção de sua concepção de liberdade dentro da obra O ser e o nada.

O que certamente é o mais difícil ao se fazer o relato de uma vida, seja da sua própria seja da dos outros, é fugir de uma perspectiva de narrativa linear, como ocorre nos romances tradicionais. Ao se narrar uma vida, tende-se a seguir o tempo cronológico e a percorrer os fatos como se formassem um todo coerente e coeso, atribuindo a todos os acontecimentos uma sequência lógica e inteligível. Seria como se desde o nascimento o indivíduo estivesse destinado a ser quem foi durante a vida e sua morte seria a culminância de todo esse processo. Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato

coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja

conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que

toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1996, p.

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uma biografia, por mais que o sujeito tenha um projeto de vida, nem sempre suas expectativas são correspondidas e dentro do percurso há muitos elementos que ficariam “fora” de uma explicação lógica e causal dos acontecimentos. Para enveredarmos nos caminhos de sua vida, partimos do pressuposto que pensar uma vida não é apenas descrevê-la de forma linear, posto que uma vida é entremeada por rupturas e permanências,4 e sabendo igualmente que narrar uma história é ao mesmo tempo recriá-la a partir dos vestígios que nos foram deixados – mas não inventá-la. 5

Sartre escreveu sua autobiografia, publicada em 1964, chamada As palavras, mas que só chega até seus 12 anos, quando sua mãe se casa novamente e ele se muda com ela e o novo padrasto para La Rochelle. Nessa escrita de si6 é possível perceber uma tentativa de “reconstrução” de sua vida sob uma perspectiva literária, como a que descrevemos acima. Tanto em As palavras quanto nos relatos e entrevistas que o filósofo deu durante sua vida é perceptível essa construção de si, sobretudo com a tendência de se mostrar um homem sozinho, desde a primeira infância até sua relação atípica com Simone de Beauvoir, e também como se desde o início da vida fosse um sujeito voltado para os livros, tornando-se um escritor genial que teve seu brilhantismo justificado desde a infância. Sartre tinha consciência

que ao contar sua história de vida estava buscando uma espécie de narrativa mais ou menos inteligível e com propósitos de formulação de uma identidade, o que o fazia selecionar elementos de sua vida em detrimento da exclusão de outros.

Em Diário de uma guerra estranha, escrito em 1949 com o título Carnets de la drôle de guerre, e publicado postumamente em 1983, Sartre afirma que tentava levar uma vida que se assemelhasse a uma história contada, pensando inclusive como seria para seus biógrafos narrá-la. Pretendia possuir uma boa vida, o que significava ter uma vida que “simplesmente enchia de água os olhos do leitor, quando contada por um biógrafo sensível. Eu estava repleto do que chamarei de ilusão biográfica, que consiste em acreditar que uma vida vivida pode assemelhar-se a uma vida contada.” (SARTRE, 1983, p. 106, grifo nosso)

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Termos utilizados pelo historiador Marc Bloch em seu livro Apologia da história ou o ofício do historiador, que virou marca de um novo movimento historiográfico presente no século XX, o qual tinha como uma de suas principais posições se contrapor a uma perspectiva de História factual e teleológica. Para mais informações sobre o assunto conferir BARROS, José D’Assunção. Os Annales e a história-problema – considerações sobre a

importância da noção de “história-problema” para a identidade da Escola dos Annales. História: debates e

tendências. Passo Fundo, v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325

5 Acerca da relação História – narrativa cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1995.

Ricoeur defende em seu livro que o discurso do historiador é uma espécie de narrativa particular e, além disso, reitera a relação entre “narrativa” e “tempo vivido”.

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Jean-Paul Sartre é fruto da união entre duas famílias típicas da Europa do final do século XX: seu pai, Jean-Baptiste Sartre, prefigura o lado católico, provinciano e rural, enquanto sua mãe, Anne-Marie Schweitzer, representa o universo protestante e mais urbano. Jean-Baptiste, militar da marinha, morreu quando Sartre ainda era muito novo, com apenas quinze meses de vida, fazendo com que ele e sua mãe tivessem que ir morar na casa dos avós maternos, em Paris. Foi então o seu avô, Charles Schweitzer, que ficou responsável pela introdução do garoto no universo letrado, apresentando-lhe as obras mais consagradas e tradicionais da literatura universal. O senhor Schweitzer acreditava que o objetivo da escrita seria alcançar a Verdade e o Belo. Nas memórias de Sartre há o seguinte relato sobre seu progenitor:

Na beleza, meu avô via a presença carnal da Verdade e a fonte das mais nobres elevações. Em certas circunstâncias excepcionais – quando uma tempestade sobrevinha na montanha, quando Victor Hugo estava inspirado – podia-se atingir o Ponto Sublime onde o Verdadeiro, o Belo e o Bem se confundiam. (SARTRE, 2005, p. 42)

Essa literatura que buscava conduzir ao absoluto é própria da Estética das Luzes, formulada durante o século XIX, e foi essa concepção de literatura, junto com traços da Estética Moderna, emergente entre o final do século XIX e início do XX, que o senhor Schweitzer tentou levar ao pequeno Sartre.7 A ideia de literatura tal como concebia o século XVIII defendia uma arte cuja finalidade era voltada para si mesma; ao artista cabia unicamente a tarefa de criar o Belo e, consequentemente, revelaria também a Verdade e o Bem. Quanto à Estética Moderna, predominava em seus traços essenciais a ideia de distanciamento ou aproximação entre o mundo e o texto. (TODOROV, 2009, p. 46 - 48)

A primeira aproximação de Sartre com a literatura foi algo que marcou profundamente sua relação com esse universo artístico ao longo de sua vida. Se quisermos pensar seus próprios romances devemos retomar não apenas os escritores norte americanos que tanto o impressionaram, e que inclusive o levou a escrever sobre durante a década de 1940,8 mas também a assimilação desses estilos de narrativa com os quais teve contato durante seus primeiros anos de vida, tanto por parte de seu avô, quanto por parte de sua mãe, que preferia a literatura folhetinesca. O outro ponto que motiva a pesquisa sobre sua relação primeira com a literatura é o fato dela influenciar diretamente sua própria noção de escrita literária e sua vinculação ao engajamento. A dicotomia entre “arte pela arte” e arte como diálogo com o mundo, o que expressamos, apropriando-nos dos termos de Todorov, respectivamente como a

7 Cf. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009. 8

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Estética das Luzes e a Estética Moderna, foi uma das questões centrais tratadas em Que é a literatura? (1947). Além disso, os romances que leu por intermédio de sua mãe o influenciaram a querer viver do mesmo modo que os heróis em suas aventuras.

É possível perceber, a partir do registro que deixou dessas suas memórias em As palavras, que os livros foram figura central em sua vida desde a infância:

Comecei minha vida como hei de acabá-la: no meio de livros. No gabinete de meu avô havia-os em toda parte. [...] Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas. [...] Fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão. [...] Eu achara a minha religião: nada me pareceu mais importante que um livro. Na biblioteca, eu via um templo. (SARTRE, 2005, p. 30 - 33)

Sartre se muda de Paris para a cidade interiorana de La Rochelle, em 1917, com a mãe e o novo padrasto. Lá, Sartre passa por uma série de dificuldades, algumas típicas do início da adolescência e outras oriundas da violência propagada pela guerra. Como a maioria dos homens adultos estavam no front, as crianças e os adolescentes do sexo masculino da cidade aproveitavam para realizar todo tipo de traquinagem e brincadeiras, muitas delas excludentes e violentas, e Sartre, por ser novo no lugar, servia muitas vezes de bode expiatório da turma.9

É esse momento da vida de Sartre que torna possível pensar numa certa descontinuidade do percurso “intelectual” do autor. Se desde a infância já era considerado brilhante para a sua idade – sobretudo por conta das leituras precoces de autores consagrados da literatura universal, como vimos falando –, a saída da casa dos avós, a perda da centralidade na vida da mãe10 e a mudança de cidade fazem com que Sartre perca seus referencias e laços afetivos, além de afastá-lo do mundo letrado com o qual tinha tido contato até então. Sua qualidade de criança precoce e pequeno gênio não teve serventia diante de adolescentes sedentos por aventuras e numa sociedade em que a violência é presença marcante, seja em suas vidas, seja diariamente nos jornais. Todas essas mudanças serviram para a formação de Sartre e contribuíram para sua nova tomada de posicionamento. Vindo de uma família burguesa em decadência, morando em uma grande cidade e sendo o centro das atenções da família, o Sartre adolescente passa a viver agora em uma cidade de interior,

conviver com pessoas à margem da sociedade, assistir ao terror e ao espanto causados pela guerra e perder seu status de “pequeno reizinho” da casa. Todos esses novos elementos contribuíram para a construção de sua nova personalidade.

9 Sobre o período em que morou em La Rochelle e suas vivências na cidade, ver seu documentário: ASTRUC,

Alexandre; CONTAT, Michel; SÉLIGMANN, Guy. Sartre par lui même. [Filme] Produção de Pierre-André Boutang e Guy Seligmann. Instituto Nacional do Audiovisual de Paris, 1976.

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Entre os doze e os quinze anos, atacado por todos os lados, exposto a tantos estigmas, Jean-Paul Sartre, furioso, indignado, lança os alicerces de uma personalidade social: a sua. Encontra considerável energia para se desfazer não só do personagem que imita os adultos, mas também da delicadeza do menino mimado. [...] ódio, violência, inépcia, reflexos de animal acuado, o príncipe adulado acorda e vê que virou sapo, o pequeno reizinho não passa de mísero fanfarrão, abrindo caminho numa indescritível mistura de fracassos, rejeições mentiras e ódio de si mesmo. (COHEN-SOLAL, 2008 p. 77)

Tais acontecimentos desconstroem sua trajetória de gênio precoce, ao mesmo tempo em que podem ser vistos como um fator central na sua mudança de postura, passando de uma criança mimada e fruto de uma família burguesa para um adolescente mais crítico e consciente dos problemas do mundo. 11

Em 1921 volta para Paris e se matricula novamente no Liceu Henri IV, período que descreve como otimista em seu Diário de uma guerra estranha, em que volta a se destacar intelectualmente, sendo “Mil Sócrates” (SARTRE, 1984, p. 96). Acreditando que podia ser tudo, se interessava por filosofia, psicologia, literatura, cinema e teatro. A partir daí, e de sua passagem posteriormente pela Escola Normal, Sartre começa a demostrar sua aversão aos modos tradicionais e acomodados de vida, em outras palavras, aos burgueses.

Um demonstrativo de sua posição contrária ao modo de vida burguês, à sociedade

provinciana e ao elitismo do sistema pedagógico da Escola Normal é a falta de hábitos de higiene e de organização sua e de alguns de seus colegas, podendo ser interpretadas como uma forma de contestar a autoridade e os padrões rígidos impostos pelo universo escolar ao

qual pertenciam. Sua postura diante das convenções sociais, das normas de etiqueta e de higiene não é um mero detalhe em sua biografia, pois em O ser e o nada ele faz a seguinte colocação em torno da relação entre o modo de se comportar cotidianamente dos indivíduos e sua negação diante dos padrões impostos. Numa palavra, de como as escolhas de cada um evidenciam o mundo em que se quer viver.

O valor das coisas, sua função instrumental, sua proximidade e seu afastamento reais [...] nada mais fazem do que esboçar minha imagem, ou seja, minha escolha. Minhas roupas (uniforme ou terno, camisa engomada ou não), sejam desleixadas ou bem cuidadas, elegantes ou ordinárias, meu mobiliário, a rua onde moro, a cidade onde vivo, os livros que me rodeiam, os entretenimentos que me ocupam, tudo aquilo que é meu, ou seja, em última instância – pelo menos a título de significação subentendida pelo objeto que vejo ou utilizo –, tudo me revela minha escolha, ou seja, meu ser. (SARTRE, 2013a, p. 571)

Foi no ano de 1929 que conheceu Simone de Beauvoir, o seu “amor necessário”, a pessoa com quem compartilhou a vida dali por diante. Sua relação não era das mais convencionais: não se casaram, não tiveram filhos e na maior parte dos anos em que

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conviveram moraram em lugares separados. Apesar de terem sido muito hostilizados pela opinião pública, parece que deram certo e continuaram juntos por 51 anos. Em nossa opinião, o que deve ser evidenciado em sua relação é que com ela realizaram uma espécie de crítica às uniões burguesas tradicionais. Sartre e Simone foram “dois intelectuais que inventaram, contra a sociedade em que não querem se ‘integrar’, costumes, normas, códigos, novos modelos que, mais tarde, terão adeptos” (COHEN-SOLAL, 2008, p.122).

Após concluir seus estudos na ENS, Sartre começa a viver uma crise de melancolia, torna-se professor, distancia-se de Simone, que vai dar aula em Ruão enquanto ele fica na cidade do Havre, e não consegue ter êxito em sua vida de escritor. (SARTRE, 1983, p. 99) Enquanto professor, como é de se esperar, não toma uma postura de “mestre”, de autoridade dentro de sala. Não obstante sua experiência no magistério tenha sido produtiva e Sartre a tenha aproveitado à sua maneira, como escritor seus planos não estavam se concretizando. Estava frustrado por já ter mais de 30 anos e não ser um escritor famoso. Em seus Diários diz que “era assustador imaginar que aquela vida de grande homem era possível, que fora vivida por outros homens, em outros tempos, em outros lugares, e que eu não a viveria jamais” (SARTRE, 1983, p. 101-102). Tentara publicar seu romance Melancolia (futuro A náusea)

pela editora Gallimard, mas sua proposta fora recusada duas vezes.

No entanto, esses tempos difíceis melhoraram, a começar pela aceitação da publicação de A náusea pela Gallimard e de O muro na Nouvelle Revue Française, em 1937, e sua

nomeação para professor em Paris. Sartre diz: “Senti-me, de súbito, invadido por uma imensa e profunda juventude, estava feliz e a vida era bela. Nada tinha da ‘vida de um grande homem’, mas era a minha vida” (SARTRE, 1983, p. 103). A partir daí o autor não quer mais construir uma vida para ser narrada ou construir os alicerces para no futuro ser um grande escritor. Quer apenas viver, já que a vida é mesmo injustificável e contingente.

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Sartre percebia que para organizar com coerência as ideias que o dividiam precisava de auxílio. [...] ele foi vivamente atraído pelo que ouviu dizer da fenomenologia alemã. Raymond Aron passava o ano no Instituto francês de Berlim e, enquanto preparava uma tese sobre história, estudava Husserl. Quando veio a Paris, falou com Sartre. Passamos uma noite juntos no Bec de Gaz, [...] pedimos a especialidade da casa: coquetéis de Abricó. Aron apontou seu copo: “Estás vendo, meu camaradinha, se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia.” Sartre empalideceu de emoção, ou quase; era exatamente o que ambicionava há anos: falar das coisas tais como as tocava, e que fosse filosofia. (BEAUVOIR, 1984, p. 138)

Chega então o início da guerra e Sartre é convocado na função a qual se alistou, a de meteorologista. Entre setembro de 1939 e março de 1941 ele participa da chamada “guerra

estranha”, que teve papel central em sua vida, sendo considerada pelo próprio Sartre como um divisor de águas – sobretudo para sua carreira de escritor, uma vez que a guerra força uma

pausa, ou pelo menos uma mudança de rumo, na sua trajetória artística. Para afastar a melancolia, a solidão e o horror causados pela guerra, correspondia-se com amigos através de inúmeras cartas e escreve um diário, apesar de não ser muito afeito a esse tipo de gênero literário. Em Diário de uma guerra estranha ele escreve sua rotina como soldado, sua vida pessoal, seus estudos em literatura e filosofia e onde fica claro seus problemas com a hierarquia do exército e com o seu secundarismo dentro do pelotão. Também encontra-se nos diários o relato de sua “descoberta” de Husserl e Heidegger e onde registra os primeiros passos para a construção de sua moral (influenciada pela leitura de Heidegger, sobretudo), sendo considerado a própria germinação de sua principal obra filosófica, O ser e o nada.

Em 21 de junho de 1940 é capturado pelos alemães, ficando nove meses preso num campo de concentração nazista. A estadia no cativeiro, obviamente, foi muito mais marcante para a vida de Sartre e para sua mudança de postura perante os problemas da sociedade, diante da própria historicidade (conceito apropriado de Heidegger) e para sua filosofia como um todo. Em 1973, relata em entrevista a Jonh Gérassi, que encontrou “no Stalag uma modalidade de vida coletiva que nunca mais tinha visto desde a Escola Normal”, onde encontra verdadeiramente uma sociedade sem classes e sem privilégios. (SARTRE, 1982, p. LXI).

Annie Cohen-Solal defende contundentemente a marca de ruptura da guerra e da

prisão do filósofo, como um processo de metamorfose do individualista, isolado e apolítico Sartre, para um escritor engajado. Sobre essa mudança, a seguinte passagem é esclarecedora:

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escritor que desdobra seu talento em gêneros diversos, politicamente militante e querendo ser assim mesmo: um escritor consagrado que se converterá poucos meses depois, em celebridade internacional. (COHEN-SOLAL, 2008, p. 173)

Para ela, a guerra fez com que Sartre descobrisse os outros homens e passasse pela experiência de nivelamento comum, através do compartilhamento das mesmas lutas e estratégias de sobrevivência.

É preciso, no entanto, por em questão mais uma vez os relatos de Sartre, tanto os de seus Diários quanto os de suas entrevistas. Não se duvida do abalo que uma guerra dessas proporções possa causar na vida de qualquer pessoa que a tenha vivenciado, mas daí chegar a acreditar que houve um antes e um depois, assim como relatou posteriormente Sartre, talvez seja deveras complicado. Tendo em vista que a memória é algo que vai sendo construído ao longo do tempo, podemos pensar que em 1973, ano em que Sartre relata a ruptura causada pela guerra em sua vida, o autor já se encontrava distante temporalmente do ocorrido e tinha interesses envolvidos para defender essa posição. Nessa tentativa de narrar a própria história, provavelmente ele tenha tentado buscar um fato determinante, ou um ponto inicial dessa sua postura engajada de intelectual. Pode-se pensar que encontrou na guerra a origem de sua abertura para a história e para a política e sua biógrafa corrobora com tal discurso. Mais uma vez surge o tema da ilusão biográfica, que nos leva a questionar essa ideia de que a guerra foi um momento de verdadeira ruptura, de que há um antes e depois dela, de que Sartre era apolítico e a-histórico e passou a ser o intelectual total depois dessa experiência.

A própria autora nos dá indícios de que essa posição de dicotomização pode ser

questionada. Em um deles, quando trata da publicação de O muro – livro composto de cinco contos escritos em 1937, antes da guerra, portanto –, e das críticas destinadas à obra, ela afirma o seguinte:

Ninguém notou, nem podia notar, que no conjunto da coleção de cinco contos de O

muro [...] dois textos já deixam entrever pela primeira vez a atenção de Sartre com os

problemas históricos da época. [...] Sucessivamente, na coleção lançada em fevereiro de 1939: ‘O muro’, ‘O quarto’, ‘Eróstrato’, ‘Intimidade’, ‘A infância de um chefe’, com exceção dos três contos centrais [...], o primeiro e o último mostram perfeitamente a influência crescente dos acontecimentos políticos sobre o escritor. Que outro texto, aliás, compatível ao conto “A infância de um chefe”, apresenta análise mais penetrante dos movimentos fascistas entre as duas guerras? [...] Pequeno resumo magistral, a novela já contém certos temas, certas chaves, em suma, o embrião de quase todo o Sartre do pós-guerra. (COHEN-SOLAL, 2008, p. 163)

Se só depois da Segunda Guerra Sartre dá mais atenção aos problemas históricos, como pode denunciar o fascismo então emergente na Espanha do entre guerras já nesses contos de 1937? Acreditamos que não há, portanto, uma grande quebra ou mudança a partir

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demonstram tais preocupações. Se durante o conflito e com o seu término Sartre tenha se tornado um grande intelectual, mais engajado politicamente e participando dos principais eventos,12 já antes de 39 não negligenciava totalmente as questões históricas, porém sua preocupação maior ainda eram as questões filosóficas, publicando livros como A transcendência do Ego, A imaginação e O imaginário.

2.2 A questão do intelectual

Graças a um atestado falso alegando uma suposta deficiência visual, o que o impossibilitaria de ficar preso, Sartre é solto em março de 1941 e volta a Paris. Todavia, a cidade não é a mesma que vira em sua última visita. Ela está ocupada pelos alemães, o que implica uma série de mudanças na rotina de seus habitantes, como toques de recolher e restrições a suplementos alimentícios. A vida dos escritores, especificamente, passa por outros processos além desses e aos quais devem se adaptar, tais como a perseguição e a censura dos nazistas. Contra a Ocupação insurgem-se vários grupos de patriotas rebeldes, cujo movimento convencionou-se denominar de Resistência, que durante o período organizavam atividades de

propaganda contra os nazistas e até grupos de guerrilha.

Sartre volta da guerra com várias ideias de como combater esse inimigo agora em seu próprio território. Negligenciando as ações do movimento de resistência já então existente, ele

acreditava que sua experiência no front o ajudaria a convencer o maior número de franceses a resistir aos alemães. Em depoimento dado a Simone e registrado em A cerimônia do adeus, ele diz: “Eis o que parecia ser a primeira coisa a fazer, ao chegar em Paris, isto é, criar um grupo de resistência; tentar, pouco a pouco, angariar a maioria das pessoas para a resistência e criar assim um movimento de violência que expulsaria os alemães” (BEAUVOIR, 2012 , p. 510).

É então que se une a Simone de Beauvoir, Maurice Merleau-Ponty, Jacques-Laurent Bost, Jean Pouillon, Olga Kosakiewicz, dentre alguns outros poucos nomes (a maioria eram seus alunos ou ex-alunos), e fundam o grupo Socialismo e Liberdade. Embora seus membros não entrassem num consenso quanto a todos os seus posicionamentos, eles tinham em comum a oposição ao regime de Vichy e a qualquer colaboracionismo. Denominaram-se Socialismo e Liberdade, por acreditar que a França depois da guerra caminharia para um regime socialista,

12 Sobre a participação de Sartre no conflito, durante a resistência e no pós guerra, conferir o debate feito por

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contudo pautado na liberdade. Sartre fala em entrevista dada a Simone em A cerimônia do adeus, que o grupo estava ligado à “ideia de uma coletividade ordenada na qual cada um se desenvolve segundo princípios que são os seus, e, por outro lado, a ideia de uma liberdade, ou seja, um livre desenvolvimento de cada um e de todos” (BEAUVOIR, 2012, p. 474). O grupo logo encerra suas atividades, contudo, por mais que tenha tido vida curta e pouco impacto se comparado aos demais movimentos, ele pode ser considerado como uma primeira contribuição à prática política empreendida por Sartre, sendo o preâmbulo de algumas posições que Sartre e Beauvoir tomarão posteriormente, sobretudo a ideia de não se aliar a nenhum partido ou organização formal, mantendo-se à margem ou, para utilizar a expressão que mais lhe cabe, construindo uma “terceira opção” (COHEN-SOLAL, 2008, p. 219).

Mesmo com o fim do grupo Sartre continuou lutando. O filósofo contribuiu com alguns periódicos clandestinos do período, como Les Lettres Francaises e Combat (liderado pelo então amigo Albert Camus). Escreve uma importante peça para sua carreira como dramaturgo, As moscas (1943), que é encenada em meados de 1943 e recria a história da lenda grega de Orestes. Filhos de Agamêmnon, rei de Argos, Orestes e Electra tentam vingar a morte do pai, que fora assassinado pela mãe e por seu amante, coroado rei após a morte de

Agamêmnon. Os deuses infestam a cidade com moscas para punir seus habitantes por se calarem diante do assassinato. Por trás da metáfora envolta pelo mito, há uma crítica ao governo de Vichy que, aliado a Igreja católica francesa, justificam com a ideia de destino a

derrota contra Hitler e se resignam diante dela. Além disso, ela exortava o povo francês a lutar contra os alemães, que seriam “as moscas” que empestearam a cidade. A peça também trata dos temas da liberdade e da má-fé, não obstante ter sido escrita ao mesmo tempo que SN. Desde o primeiro ato até o último, é possível ver na fala de Orestes o convite à luta e a defesa da liberdade: “Há homens que já nascem dispostos a lutar e há outros que calam [...]. Eu fiz o que tinha que fazer, Electra, e não me arrependo [...]. Não sou senhor nem escravo, Júpter. Sou minha liberdade! Mal me criaste e deixei de ser teu [...]” (SARTRE, 2005b, passim).

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uma peça tão incendiária passar pelos censores, mesmo que alguns integrantes da Resistência a tenham desprezado por isso” (ARONSON, 2007, p.59).

Em 1944 outra peça sua é apresentada, Huis clos (cuja tradução para o português foi Entre quatro paredes), dessa vez obtendo mais êxito diante do público. A história narra a chegada de três pessoas ao inferno, Inês, Garcin e Estelle, mas não é o inferno como comumente construído pelo imaginário cristão, com demônio, fogo e estacas. Na verdade, o inferno sartriano seria o convício diuturno entre os próprios personagens, numa sala fechada, sem direito a dormir ou a qualquer outra atividade que os fizessem distrair-se de si ou dos outros. É dela a famosa frase “o inferno são os outros”. Como não associar esse “inferno” sartriano composto de quatro paredes e infindáveis corredores com os ambientes da guerra, sobretudo com os campos de concentração e de extermínio criado pelos alemães? Não é possível, portanto, separar a peça de seu contexto histórico. Tampouco pode-se dissociar sua escrita com a terceira parte de O ser e o nada, em que o autor trata da questão do outro.

Com a Libertação da França e o fim da guerra, Sartre torna-se mais amplamente reconhecido, tanto dentro da geração de escritores que então se formou durante o final dos anos de 1930 e primeira metade de 1940, quanto diante do grande público que a cada dia mais

se apaixonava pelo existencialismo, termo que designava uma corrente de pensamento cujos principais representantes seriam Sartre e Simone de Beauvoir, mas cuja origem remonta a Kierkegaard ou mesmo a Pascal.13 Embora o uso indiscriminado do termo tenha diluído seu

significado primordial, passando a ser usado em várias situações como algo pejorativo e pessimista, Sartre o definiu em sua conferência O existencialismo é um humanismo, de 1945, a partir da premissa “a existência precede a essência”. Uma vez que não se nasce com uma essência dada por Deus ou por qualquer outra entidade, é o próprio homem que constrói a si mesmo – ele nasce condenado à liberdade e, portanto, é totalmente responsável por si. De acordo com suas próprias palavras, dizer que a existência precede a essência

significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. [...] O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. (SARTRE, 1987, p. 6)

Funda em 1945 a revista Les Temps Modernes junto com outros colegas, dentre eles Simone, Merleau-Ponty, Raymond Aron, Alberto Ollivier, Jean Paulhan e Michel Leiris. Tentam abranger todo tipo de manifestação escrita, como a poesia, a crítica literária, ou um

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ensaio filosófico, buscando dar conta de todas as áreas do conhecimento, não somente filosofia ou literatura, sempre no intento de alcançar uma sofisticação teórica que geralmente não se encontrava nas outras revistas. A revista desejava ser a voz daquela geração, dando conta de todo tipo de assunto que estivesse na ordem do dia, colocando o engajamento com palavra de ordem. Seu posicionamento político era totalmente esquerdista sem, no entanto, vincular-se ao Partido Comunista nem à União Soviética.

Como uma revista engajada, Les Temps Modernes pretendia ser, e para muitos o foi, a consciência crítica da sociedade; [...] Profética e moral, ela lutava em todas as frentes e queria criar uma ‘antropologia sintética’. Mostrando um leque de novos autores importantes [...], ela imediatamente atraía outros, e logo se tornou a principal revista cultural da França, o modelo para qualquer outra revista séria. (ARONSON, 2007, p. 81-82)

A partir da crescente visibilidade de Sartre, com todas as suas publicações até então – romances, peças, artigos nos principais jornais do período e na direção de uma importante revista – o autor torna-se uma figura eminente no cenário francês. Ele consegue, ao mesmo tempo, dialogar com o meio acadêmico e com o público em geral – fato difícil dentro do universo literário francês – não somente pelo fato de publicar em diversos gêneros, mas também por ser alvo de inúmeras críticas, dado o fato de suas obras serem muitas vezes “mal” lidas.

Mas por que Sartre e os que estavam próximos, principalmente Simone e Camus – que, diga-se de passagem, não gostava muito dessa alcunha de existencialista, tampouco de ser visto como da famille14 – passaram a ter tamanha popularidade dentro desse cenário do pós guerra, sendo considerados os intelectuais mais importantes de então? Possivelmente a resposta para tal pergunta esteja relacionada à identificação que aquela geração de 1945 encontrava nesses sujeitos, pois eles conseguiam dar voz ao que sobretudo os mais jovens e letrados viveram nos anos de guerra e de Ocupação nazista, porque passaram pelos mesmos sofrimentos e privações, e estavam formulando qual seria o futuro da França. Ou seja, além dessa vivência em comum e da escrita sobre ela, eles ofereciam, a partir de seus romances, peças e artigos, heróis à juventude. Eles foram os responsáveis (ou pelo menos acreditavam

que seriam) por formular a ideologia do pós-guerra. É Simone de Beauvoir quem escreve mais claramente sobre esse grupo de intelectuais ao qual pertencia e quais as suas ambições:

Nós nos prometemos continuar unidos para sempre contra os sistemas, as ideias, os homens que condenávamos; a hora da derrota deles ia soar; o futuro que então se abriria, nós teríamos que construí-lo talvez politicamente, em

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todo caso no plano intelectual: precisávamos criar uma ideologia para o pós guerra. (BEAUVOIR, 2012, p. 513)

Eles eram os representantes de uma nova geração que surgira com o advento da

guerra, uma vez que os escritores de antes do conflito, como Gide e Malraux, não davam mais conta de expressar o sentimento de absurdo do mundo, como fazia Camus, por exemplo. Se

uma geração se define a partir de dois pontos – primeiro como um grupo gerido por um acontecimento fundador que teve grandes repercussões em suas vidas; segundo tendo uma outra geração como referencial, seja para segui-la, seja para combatê-la (SIRINELLI, 1996, p. 254-255) –, podemos pensar que a geração de intelectuais cujo principal representante seria Sartre teria a Segunda Guerra Mundial como acontecimento fundador e os escritores do entre guerras como a geração contra qual deveriam se opor. O grupo mencionado na referida citação de Simone comporia uma estrutura de sociabilidade, ou seja, uma “rede” na qual há em comum uma sensibilidade ideológica e cultural. Não obstante suas próprias individualidades, dentro desses grupos convenciona-se determinadas formas de conviver em conjunto. Jean-François Sirinelli fala o seguinte a respeito das estruturas de sociabilidade dos intelectuais:

Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de conviver. São [as] estruturas de sociabilidade. (SIRINELLI, 1996, p. 248)

Esse novo campo literário no qual Sartre estava inserido formava-se em função das consequências trazidas pela guerra (acontecimento fundador) e seus componentes se ocupavam, por exemplo, com o debate sobre os expurgos e com o rumo político que a França

seguiria. Reunindo-se nos cafés e nas redações de jornais, eles vão

esboçar as futuras linhas de força, os grandes contornos do pós-guerra: uma vez passado o ciclone, varrendo, soprando, reduzindo a nada as modas e os modelos – Mauriac, Malraux, Gide, Rolland, Martin du Gard já pertencem ao passado. Uma nova geração surge dos debates dos expurgos. (COHEN-SOLAL, 2008, p. 262)

Sartre era considerado o centro desse grupo de intelectuais, sobretudo porque escreveu sobre a guerra. Como já mencionado, ele participou do conflito de maneira breve, inicialmente como meteorologista, mas sem participar de nenhum confronto direto com os alemães e, num segundo momento, ao ser preso, sofrendo as privações que tal condição lhe impunha, parece não ter passado por tantas privações como os prisioneiros comuns,15 sendo solto por um atestado falso. Durante a Ocupação também não participou diretamente das

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ações da Resistência, fato que o tornou passível de inúmeras críticas, como as de Camus ao referir-se ao então colega que defendia a escrita como forma de se engajar, mas parecia se eximir da luta direta:

Gosto mais dos homens que tomam um partido do que das literaturas que tomam partido. Coragem na vida e talento nas obras já não é nada mau. E, depois, o escritor só é comprometido quando quer. O seu mérito é o movimento. E se isso deve passar a ser uma lei, um ofício ou um terror, onde está então o mérito? (CAMUS, s/d, p. 335)16

Contudo, durante todo esse período Sartre foi bastante profícuo em sua escrita. Ele era um “escritor que resiste e não um resistente que escreve” (SARTRE, 1982, p. LXIII). Como já mencionamos, ele escreveu várias obras no período e alguns artigos em jornais, o que o

classificaria como um combatente, embora à sua maneira. Se “Escrever é agir”, segundo sua própria fala, podemos concluir que ele foi um homem de ação.17 Seus escritos sobre a guerra

influenciaram sobremaneira os jovens a compreenderem aquela situação histórica. Sartre se tornou o narrador principal da França no pós-guerra escrevendo contundentes textos sobre a experiência da Ocupação. Os principais foram reunidos pela editora Gallimard no compêndio Situações III: A República do silêncio, Paris sob Ocupação e Que é um colaborador, todos de 1945.

Que Sartre foi um grande intelectual, talvez o mais conhecido no século XX, não há dúvida alguma. Pensemos, então, a respeito da definição de intelectual. Inicialmente, pode-se pensar que não há necessidade de se discutir e buscar uma definição para um termo tão utilizado e de comum entendimento. Em linhas gerais, o intelectual seria aquele que não exerce atividades manuais ou utilitárias e que se ocuparia de tarefas do intelecto, tais como o fariam professores, jornalistas, escritores, altos funcionários do governo, entre outros. Todavia, quando se recorre à bibliografia sobre o tema é possível perceber inúmeras problemáticas levantadas a partir de sua definição, bem como as várias discussões sobre sua função dentro da sociedade contemporânea e sua relação com a política e a cultura de determinado período.

16 Não entraremos aqui no debate empreendido pelos dois filósofos por ser demasiado denso e longo para os

limites a que nos propomos. Vale salientar, todavia, que a memória construída em torno de Sartre e sua relação com a guerra foi a de um militante ativo e engajado contra os alemães, ao passo que a Camus ficou relegada apenas a memória da fundação e participação da revista Combat, quando não ao esquecimento. Pode-se atribuir a fama do primeiro ao fato de ele estar em evidência como escritor e intelectual nos anos do pós-guerra, apesar de não ter sito tão ativo durante o conflito e dentro da Resistência; enquanto Camus, bastante participativo nesta e com grandes contribuições dadas pela sua revista, não obteve grande destaque findado o conflito. Isso justifica (é em parte sua defesa) seu “ataque” às literaturas engajadas em detrimento do engajamento pessoal enquanto tal, ao qual refere-se na citação que mencionamos.

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A respeito de sua definição, a que foi dada anteriormente parece simples e genérica em demasia, não sendo de grande serventia para os propósitos a que se destina nossa investigação. Optamos então por buscar outros significados do conceito de intelectual e duas posições nos pareceram hegemônicas dentro da literatura sobre o tema. A primeira defende que o intelectual existe desde muito tempo, pelo menos desde a Grécia antiga, e que em toda sociedade existe um ou vários sujeitos que exerça o papel do que hoje chamamos de intelectual (mesmo admitindo que o termo seja recente, surgido no final do século XIX). A segunda posição relaciona o aparecimento do intelectual ao surgimento da própria palavra, o que se deu na França com o conhecido caso Dreyfus18 e vincula-se mais estreitamente à noção de engajamento.

É possível citar pelo menos dois estudiosos contemporâneos pertencentes à primeira vertente: Francis Wolff e Norberto Bobbio. Em seu livro Os intelectuais e o poder, Bobbio defende que os temas discutidos pelos intelectuais existe desde Platão, embora tais figuras tenham recebidos variadas denominações.

Que esses sujeitos históricos sejam prevalentemente chamados “intelectuais” apenas há cerca de um século, não deve obscurecer o fato de que sempre existiram os temas que são postos em discussão quando se discute o problema dos intelectuais, quer esses sujeitos tenham sido chamados, segundo os tempos e as sociedades, de sábios, sapientes, doutos, philosophes,

clercs, hommes de lettres, literatos etc. (BOBBIO, 1997, p. 110 – 111)

É possível concluir, a partir da posição do autor, que por existir a atividade e alguém que a exercesse, então já existia esse sujeito, embora com nomes diversos.

Francis Wolff tem opinião semelhante, acreditando que o surgimento do intelectual tenha ocorrido junto com o aparecimento do primeiro filósofo, Sócrates, que encarnaria as três principais características do intelectual: a tagarelice, a crítica aos valores aceitos na sociedade e a “intromissão” em assuntos que não lhe dizia respeito. Ao falar do nascimento dos intelectuais na Grécia, atribuindo a Sócrates o papel de primeiro filósofo e intelectual, Wolff propõe três condições essenciais para a sua existência, que seriam: “um certo tipo de sujeito social, um certo tipo de objeto (universal) e um certo espaço onde ele possa se exprimir”

(WOLFF, 2006, p. 47). Em outras palavras, é preciso que haja indivíduos capazes de exercerem atividades de criação e mediação e, portanto, um considerável desenvolvimento social e econômico na sociedade em que vivem; há igualmente a necessidade de um senso

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comum de valores morais universais; e, por fim, a existência de um espaço público para a livre expressão das opiniões e defesa dos valores universais. A primeira sociedade que reuniu essas três características, segundo o autor, foi a Grécia do século X a.C., que reunia “homens que tinham tempo livre para se dedicar às ideias, à sua produção e difusão; uma consciência do universal com o ‘nascimento da razão’[...]; e um regime, a democracia direta, que permitia a expressão das opiniões[...]” (WOLFF, 2006, p. 48). Seria Sócrates o primeiro intelectual por reunir suas principais características: ser perseguido não por suas ideias, mas simplesmente por exercer a função do pensamento, por ser aquele que fala ao invés de trabalhar, que põe em questão valores tradicionais de sua sociedade e que interfere em assuntos que inicialmente não seriam os seus, buscando assim uma defesa da coletividade.

A segunda posição, como já mencionado, está relacionada ao surgimento do termo intelectual, o que ocorreu em 1898 na França com o caso Dreyfus, e vincula-se mais claramente à noção de engajamento. Desde essa data o termo é usado para designar aquele sujeito produtor de bens simbólicos, que influencia e possui inclusive responsabilidade dentro da vida em sociedade – o que não equivale dizer que as demais pessoas que a compõe aceitem de forma passiva e acrítica as opiniões e ideologias dos intelectuais de sua época, mas que

estes conseguiam impor-se para além de seu “pequeno mundo estreito”, para utilizar a expressão de Sartre e Japão, alcançando a comunidade nacional e muitas vezes internacional. O intelectual deveria, portanto, representar a sua comunidade, defender valores universais e

lutar pelas causas que acreditava serem justas. Ele tinha poder dentro da sociedade e, quanto maior seu poder, maior sua responsabilidade. (BOBBIO, 1993, p. 96)

Ele é quem possui competência e prestígio em determinada área do saber e, dotado desse poder, aproveita para intervir no debate sócio-político. Se no decorrer do século XX o intelectual passou a ser uma figura com mais poder, a consequência disso é que sua responsabilidade também aumentou. Sartre foi talvez quem melhor representou essa posição. Eis então a justificativa de se ter discutido o conceito de intelectual em nosso trabalho: sua noção, essa mais estreita, vincula-se a Sartre, uma vez que remete ao engajamento e esta é a principal cobrança do autor aos demais intelectuais, além de relacionar-se diretamente à liberdade, seu principal problema filosófico.

Mas por que o filósofo adquiriu tamanha notoriedade, chegando a ser nomeado de “intelectual absoluto”?19 Por que quando morreu chegou-se a falar em “silêncio dos

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intelectuais”?20 Por que foi tão lido e seguido pela juventude? Porque representava essa geração. Porque, como já assinalamos, conseguia expressar as angústias e os sofrimentos, assim como um projeto de futuro, que essa geração sentia e ansiava. “[...] ele é o intelectual absoluto. Espera-se dele o que nunca se esperou, e que, sem dúvida, nunca mais se esperará de nenhum outro. Eis sua grande força: esperava-se algo dele; era o objeto não só de uma fé, mas de um fervor, uma impaciência.” (LÉVY, 2001, p. 33). Descontando-se a dramaticidade da escrita de Bernard-Henri Lévy, é realmente pertinente a questão da centralidade da figura de Sartre para a França daquela geração. Novamente – e para concluir esse ponto a respeito da pertinência de Sartre na discussão sobre os intelectuais –, essa centralidade se justifica pelo diálogo proporcionado pelos seus diversos gêneros da escrita e pela situação histórica que favorecia o surgimento desses “heróis” e de um público sedento de quem os representasse, ao mesmo tempo sendo sua voz.

Mas Sartre tem sua própria posição a respeito do intelectual, e ela sofre mudanças ao longo de sua vida. Segundo Beauvoir, em A cerimônia do adeus,

até então [nas conferências que fez no Japão], Sartre concebera o intelectual como “técnico do saber prático” que rompia a contradição entre a universalidade do saber e o particularismo da classe dominante da qual era produto [...]; satisfazendo sua consciência através dessa própria má consciência, julgava que ela lhe permitia situar-se ao lado do proletariado. Agora Sartre julgava que era preciso ultrapassar essituar-se estágio: ao intelectual clássico contrapunha o novo intelectual, que nega em si o momento intelectual, para tentar encontrar um novo estatuto popular, o novo intelectual procura fundir-se com a massa, para fazer triunfar a verdadeira universalidade. (2012, p. 15, grifo da autora).

Pelo que explica a filósofa em suas memórias, Sartre tinha uma posição até os anos de 1960, período em que, através do marxismo, se aproxima mais das classes trabalhadoras, e a partir daí propõe uma nova concepção de intelectual. Antes desse momento acreditava que o intelectual seria uma contradição por defender a universalidade das leis científicas ao mesmo tempo que “a ideologia particularista de obediência a um Estado, a uma política, às classes dominantes” (SARTRE, 1994, p. 26). Já no segundo momento assume outra posição, que é exposta em suas conferências no Japão, reunidas e publicadas com o título Em defesa dos intelectuais, na qual acredita ser o intelectual o agente do saber prático que contesta a ideologia que o formou. Descobrindo a contradição da sociedade a partir de sua própria contradição, o intelectual deve se colocar ao lado das classes oprimidas, uma vez que é nelas em que há a possibilidade de universalidade.

E Sartre buscou realmente ser esse tipo de intelectual, sobretudo nesse segundo momento. Citaremos apenas um exemplo que mostra o quanto buscava ser participativo e

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próximo à classe trabalhadora. Simone narra em A Cerimônia do adeus o caso da prisão de um operário que participava de um comício, em 1970, em cujo processo Sartre tinha sido chamado como testemunha. Negando-se a assumir o papel convencional que lhe fora designado perante a justiça burguesa, preferiu ir pra frente de uma fábrica e, sobre um tonel, falar aos operários então presentes:

“Quero dar meu testemunho na rua, porque sou um intelectual e acho que a ligação do povo e dos intelectuais, que existia no século XIX – nem sempre, mas que deu resultados muito bons – deveria voltar a existir atualmente. Há cinquenta anos que o povo e os intelectuais estão separados; é preciso agora que sejam um só.” (BEAUVOIR, 2012, p. 24)

Sua crítica aos “técnicos do saber prático” enquanto burgueses, enquanto não

contestadores da ideologia dominante e nem de sua própria situação enquanto pertencentes a essa classe, pode ser percebida desde seus Diários de 1939. Embora sua concepção de

intelectual tenha sofrido mudanças desde então, está já aí presente a crítica à burguesia que o intelectual deveria realizar. Em seu registro de uma discussão com um colega de pelotão, chamado Pieter, presente nos seus relatos de guerra, fica clara tal postura. Em diálogo com o colega, Sartre lhe critica um amigo que mesmo em campo de batalha desfruta de regalias que os demais colegas não possuíam. Em contrapartida, Pieter acusa Sartre de ter os mesmos privilégios e de também ser um burguês, de ser um homem da teoria e não da prática. Na fala de Pieter: “Começo a conhecer você [...], não quer ser incomodado; escreve o dia inteiro e quando tem vontade de almoçar em um restaurante, não diz nada a ninguém” (SARTRE, 1983, p. 16). Sartre se defende dizendo que está entre burgueses e o que faz não é estranho a eles, e Pieter o indaga a presença no meio de pessoas que tanto o aborrece. Sartre rebate dizendo que foi um erro antigo se alistar para meteorologista, mas seu interlocutor não aceita as desculpas, acusando-o de ser um salafrário, porque se vale dos mesmos privilégios que os de quem critica e ainda continua a receber seu ordenado de professor enquanto muitos outros que estão participando da guerra não tem quase nada. Sartre dá a réplica:

É diferente. Existem os privilégios da paz e existe uma sociedade baseada nesses privilégios. Em tempos de paz, não se trata de um indivíduo renunciar aos seus privilégios, o que seria uma gota d’água no oceano, mas de lutar pela supressão de todos os privilégios. (SARTRE, 1983, p. 18)

Mesmo sabendo do problema de se separar teoria e prática em termos tão rasteiros, como faz Pieter, é possível creditar alguma validade em seu argumento contra Sartre, pois enquanto este critica o burguês que desfruta regalias sabendo que outros passam necessidades ou morrem na

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É preciso, porém, ir além dessa dicotomia teoria/prática, que resume o pensamento e a vivência do autor em uma contradição: Sartre critica a burguesia, defende o engajamento do intelectual e a sua aproximação com os trabalhadores (no segundo momento) enquanto é reconhecidamente um burguês e seu engajamento é mais literário que com ações diretas – sobretudo durante a guerra. Como assinalado algumas vezes até aqui, sua escrita já era, desde O muro, vinculada aos acontecimentos do presente e possuía um posicionamento político. Ele já era engajado desde então e, mesmo reconhecendo-se burguês, tentava desvelar as contradições de sua posição, tornando-se assim um intelectual, e também buscava defender os valores que julgava justos e universais.

Acusaram-no, durante a década de 1970, com a escrita de O idiota da família (1971), de não estar a serviço da classe trabalhadora, porque uma obra como aquela, que tomava grande parte de seu tempo e esforço e que se propunha a fazer um estudo da vida de Gustave Flaubert, escritor romântico do século XIX, não contribuiria com a causa operária. Ao assumir seu pertencimento à burguesia, como todos os intelectuais o são, e ao mesmo tempo procurando trabalhar em função do proletariado, Sartre justifica a escrita de O idiota da família pela essencialidade de se pensar os homens, em qualquer lugar ou época. Muito provavelmente o público leitor dessa obra não tenha sido o proletariado, ele próprio sabia que escrevia para burgueses, mas “sua ideia profunda era que em qualquer momento da história, qualquer que fosse o contexto social e político, continuava a ser essencial compreender os

homens, e que, para isso, seu ensaio sobre Flaubert poderia ajudar” (BEAUVOIR, 2012, p. 19).

Esboçado brevemente a trajetória de Sartre nos anos de guerra e seguintes, estando clara nossa posição quanto à sua participação durante o conflito, seu posicionamento em relação à noção de intelectual e sua própria vivência enquanto tal, faz-se necessário agora discutir sobre sua principal forma de engajamento: a escrita. Sartre defendia a obrigatoriedade do engajamento para a literatura e assim o fez em suas obras.

2.3 A literatura engajada

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