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Academic year: 2018

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DEMOCRACIA NO BRASIL

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Marcos Paulo de Lucca-Silveira

é doutorando e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas em

teoria política contemporânea e pensamento político brasileiro. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: <mpluccasilveira@gmail.com>

http://dx.doi.org/10.1590/0102-053087/101

Grande parte dos direitos civis e políticos foi signifi-cativamente limitada devido à ordem política autoritária cristalizada pelo regime militar implantado em 1964 e sus-tentado por mais de duas décadas no Brasil. Essa ordem política autoritária ocasionou, no país, uma reavaliação da importância dos direitos civis e políticos. As reivindicações pela defesa de liberdades individuais e políticas ganharam particular força ao longo das décadas de 1970 e 1980. Nessas circunstâncias, o conceito de democracia emergiu como cate-goria-síntese, dotada de uma pluralidade de significações, de um elevado número de aspirações expressas em diversas manifestações que se opunham às práticas realizadas pelo regime autoritário. Dessa forma, as demandas de variados

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atores políticos e grupos sociais assumiram, de modo cres-cente ao longo dos anos pós-1964 – com especial ênfase nos anos da transição política –, a luta pela democracia como uma questão fundamental no (e para o) Brasil.

Imerso nessa conjuntura político-social, um grupo de intelectuais comunistas destacou-se entre outros atores polí-ticos. Oriundos, sobretudo, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tais intelectuais – entre os quais: Carlos Nelson Coutinho, David Capistrano Filho, Ivan de Otero Ribeiro, Leandro Konder, Luiz Werneck Vianna e Marco Aurélio Nogueira – desenvolveram a temática da questão democrá-tica tanto no debate interno ao partido, quanto no campo mais amplo da esquerda política brasileira, sobretudo de orientação teórica marxista. Manifestando suas opiniões em semanários, revistas e jornais, vinculados (direta ou indire-tamente) ao PCB, tais intelectuais apresentaram inovações teórico-políticas, sem buscar apresentar, ao menos intencio-nalmente, clara ruptura com a tradição mais influente na esquerda política brasileira.

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citados apresenta um claro posicionamento político empí-rico (enquanto ação política a ser seguida) e teóempí-rico: a ade-são à democracia política e a suas instituições é defendida de modo explícito e irredutível.

A democracia é, assim, apresentada por esses intelectuais não só como questão teórica, mas também como a melhor solução para os problemas que o país enfrentava. Consequentemente, a produção associada a esse grupo de intelectuais assumiu par-ticular posição teórico-política dentro de parte do marxismo brasileiro, especialmente de matriz comunista.

Neste artigo, buscar-se-á apresentar e examinar o movi-mento teórico realizado por esse grupo de intelectuais comunistas brasileiros que aderiu política e conceitualmente à democracia. Inicialmente, apresentar-se-á a hipótese his-tórica de que a publicação realizada por Carlos Nelson Coutinho do ensaio “A democracia como valor universal”, em 1979, é o momento decisivo em torno da adesão à demo-cracia por intelectuais marxistas, particularmente vinculados ao comunismo, no Brasil. Examinar-se-á, posteriormente, a argumentação apresentada pelo autor nesse ensaio, assim como as principais críticas a tal argumentação expostas na época. Em sequência, será apresentada uma interpretação a partir da qual se buscará evidenciar o original movimento teórico-conceitual realizado por Carlos Nelson Coutinho, assim como pelos outros intelectuais comunistas que ade-riram à democracia no período. Conceitos como revolução passiva, via prussiana de modernização, revolução-restauração e modernização conservadora passam a ser constantemente uti-lizados pelos intelectuais em suas interpretações da histó-ria e da conjuntura política brasileira, as quais justificam (e

potencializam para a esfera nacional2) a adesão à

democra-cia. Por fim, serão apresentadas breves considerações finais.

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Uma hipótese

A publicação, em março de 1979, do ensaio “A demo-cracia como valor universal” de Carlos Nelson Coutinho, na revista Encontros com a Civilização Brasileira, pode ser consi-derada, a nosso ver, momento decisivo em torno da questão democrática no campo da esquerda brasileira – sobretudo, marxista de matriz comunista.

É reconhecido que, ao longo de sua longa história, o PCB manteve uma relação ambígua com a democracia política, apresentando em variados momentos um descompasso entre teoria(s) e prática(s) políticas sobre a democracia. Em diver-sos períodos, o partido assumiu uma postura teórica revolu-cionária não democrática, ao mesmo tempo em que parte de seus quadros defendia e praticava uma ação política demo-crática. Essa pode ser considerada uma das expressões de des-compasso entre ação e discurso, entre prática e teoria, que marcaria grande parte da história do PCB (Brandão, 1997).

Ainda na década de 1950, nos anos posteriores ao suicí-dio de Vargas (1954) – e em especial após os debates sobre

o stalinismo de 1956-19573 –, é possível observar uma

espé-cie de “praticismo ilustrado” em que a valorização da ação política democrática assume certa centralidade na prática do partido.

É também de notável destaque a posição assumida pelo partido nos anos pós-1964, direcionada, em parte, para a defesa da centralidade das liberdades democráticas e luta pela democracia política. Parte significativa desses esforços pró-democracia pode ser observada nos diversos periódicos ligados ao partido, assim como nos esforços editoriais de Ênio Silveira. A defesa da importância de eleições e a aposta

analisados, há uma nítida ênfase da “especial validade” da tese para o caso brasi-leiro (devido à característica prussiana, particular da história brasileira).

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na democratização política do país, assim como a luta pela constituição de uma frente única democrática – que resultará na participação dos comunistas no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) –, são feições da experiência política pró--democrática na qual grande parte dos comunistas brasileiros (e o próprio PCB) assumiu posição de destaque.

Ao direcionarmos a análise a aspectos de cunho teó-rico é possível identificar a presença de movimentos que se dirigem a certa postura democrática, com certa preocupação democrática, em mais de um documento do PCB da década de 1950. Entre esses, destaca-se a “Declaração de março de 1958”, na qual – a partir de um léxico teórico interno ao

marxismo-leninismo4 – é apresentada uma visão distinta da

situação do Brasil, que possibilita uma ressignificação do papel disponível à democracia no interior das ações políti-cas dos comunistas brasileiros. Entretanto, a questão demo-crática aparece na declaração como temática secundária à questão nacional e à luta contra o imperialismo.

Uma distinta visão do “capitalismo brasileiro” – em que soluções positivas, tais como “reformas de caráter nacionalista e democrático” (ou seja, “anti-imperialistas”) oriundas da união pluriclassista são defendidas – que rompe com o usual “estagnocismo” comunista do período, em que o país era visto como “formação estagnada”, é também apresentada de

modo inacabado na “Declaração de março”.5

Essas novas possibilidades da democracia no Brasil, no inte-rior das teses comunistas, continuaram, em parte, a ser mani-festadas nas teses do V Congresso do PCB (1960). Em algumas publicações desse período, mesmo que as referências centrais continuem a respeito da ordem econômica (e não política),

4 Com certo grau de maoísmo, tal como pode ser observado nos usos da categoria contradição principal, nacional (Segatto e Santos, 2007, p. 24)

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assim como a principal temática (a defesa da luta contra o imperialismo e à favor da modernização) continuasse outra, é possível verificar certa “tendência democratizante” (Segatto e Santos, 2007, p. 25). Marco Aurélio Nogueira, por exemplo, reconhece que, de modo até surpreendente, dadas estrutura e organização teórica marxista-leninista assumidas pelo par-tido, desenvolveu-se em seu interior, “a partir de 1958, uma formulação política engenhosa, sensível à concreta realidade brasileira, favorável à elaboração de programas democráti-cos amplos e unitários, aberta aos temas institucionais e de governo, ao pluralismo e aos direitos básicos da cidadania” (Nogueira, 1988 [1985], pp. 143-144).

Contudo, os movimentos teóricos do comunismo bra-sileiro não se caracterizam por uma linearidade pró-demo-cracia; ou seja, eventuais retrocessos frente à valorização da democracia política podem ser verificados. Ao longo desses anos e seguintes, grande parte dos comunistas brasileiros continuava a defender e propagar uma visão na qual a demo-cracia era considerada instrumento das classes dominantes. E, mais do que isso, seria equivocado dar plena centralidade à questão democrática nos desenvolvimentos teóricos e nas mobilizações realizados pelos comunistas ao longo da histó-ria. Como nos afirma Toledo, de modo abrangente:

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59 Enquanto o desenvolvimento econômico e as reformas

estruturais não se efetivassem, a democracia política não deixaria de ser “formal” ou “abstrata” para o conjunto dos trabalhadores e das massas populares (Toledo, 1994, p. 114).

Dessa forma, podemos indicar um movimento das ideias ao longo da história do pensamento político de esquerda no país: inicialmente há uma centralidade da questão do desen-volvimento em relação à questão democrática, ocorrendo pos-teriormente uma inversão, a partir da qual a democracia ganha centralidade. No mais, conjuntamente a essas duas questões (do desenvolvimento econômico e da democracia), destacam-se a questão nacional e a questão agrária como preocupações tam-bém presentes no interior do pensamento político brasileiro, em especial de esquerda. Nas formulações políticas associadas ao PCB, essas questões – sobretudo a questão nacional – divi-diam centralidade, e, até mesmo, se confundivi-diam com a temá-tica do desenvolvimento em variados momentos históricos. E, mais do que isso, a importância das questões agrária e nacio-nal – em especial da primeira – será preservada mesmo após o deslocamento do centro temático para a questão democrática.

Assim, propomos que as questões desenvolvidas no artigo de Coutinho, “A democracia como valor universal”, não são uma espécie de “raio em céu azul” no comunismo brasileiro, ou ainda, mera importação das ideias do euroco-munismo – como parte da bibliografia sobre o tema afirma (ver, por exemplo, Magane, 2007). Se há importantes inova-ções, assim como referências e inspirações nos partidos polí-ticos e teóricos marxistas europeus (em especial italianos), essas refletem, em parte significativa, um debate já existente

no interior do comunismo brasileiro.6

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Como delineado previamente, desde, ao menos, mea-dos da década de 1950, a temática da democracia já era apresentada no interior dos desenvolvimentos teóricos mar-xistas no país, e a valorização da ação política democrática era realizada por parte dos comunistas brasileiros. Porém, a nosso ver, o momento fundamental em que a questão democrática deixa de ser temática secundária ou derivada de outras questões – tais como a questão nacional, a ques-tão agrária, o anti-imperialismo – para se tornar central se realiza de modo inovador no ensaio de Coutinho. Ou seja, mais do que uma inovação do tema, o que se verifica é uma realocação das questões abordadas, deslocando-se a centra-lidade para a democracia, a qual deixa de ser subjacente.

E, mais do que isso, propõe-se que, sobretudo a par-tir dos desenvolvimentos teóricos presentes no ensaio de Coutinho, a teoria marxista (comunista) brasileira e a prá-tica políprá-tica de certa vertente frente à democracia tendem a se conciliar. Ou ainda, o descompasso característico entre ação e discurso, prática e teoria, presente no interior da linguagem comunista sobre a questão democrática começa a ser solucionado no Brasil. Mesmo que de modo difícil, a conciliação entre essas duas esferas – sobre a democra-cia – passa a ser proposta no interior de uma linguagem comunista.

A tese de Coutinho

Partindo do possível vínculo entre socialismo e demo-cracia, o qual estaria, segundo Coutinho, presente no processo de formação do pensamento marxista, o autor defende explicitamente a tese de que a democracia possui valor estratégico e universal, não possuindo, portanto, valor apenas instrumental e tático aos socialistas.

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controvérsia entre “revisionistas” e “ortodoxos”, assim como reaparecendo nos debates pós-Revolução de Outubro. No mais, ressalta Coutinho que a rejeição da universalidade do “modelo soviético” também seria oriunda do enfrentamento da questão democrática.

Realizando apropriação de uma formulação de

Berlinguer,7 Carlos Nelson Coutinho enfatiza a relação de não

ruptura entre socialismo e democracia, defendendo a univer-salidade, em termos práticos e geográficos, da democracia. Ou seja, opondo-se às correntes teóricas que afirmam que a demo-cracia política – por sua própria natureza – seria uma forma de dominação da classe dominante (burguesia), Coutinho dis-serta que há um vínculo intrínseco entre socialismo e demo-cracia e, mais do que isso, tal vínculo possuiria especial signifi-cação para o caso brasileiro. Nas palavras do autor:

Em primeiro lugar, tentaremos indicar como o vínculo socialismo-democracia é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e, em segundo, mostraremos como a renovação democrática do conjunto da vida social – enquanto elemento indispensável para a criação dos pressupostos do socialismo – não pode ser encarada apenas como objetivo tático imediato, mas aparece como o conteúdo estratégico da etapa atual da revolução brasileira (Coutinho, 1979, p. 35).

Se a demonstração de um vínculo entre democracia política e socialismo já não é tarefa de fácil realização ao se levar em consideração a teoria marxista reinante no inte-rior da esquerda comunista da época, soma-se ainda maior

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dificuldade ao trabalho de Coutinho, dada a particular vertente do pensamento marxista em que o autor buscará demonstrar a centralidade e universalidade do valor da democracia: o pensamento marxista oriundo de Lenin.

Para o marxista brasileiro, Lenin – em polêmica com Kautsky – não negou a existência do valor universal da democracia, mas buscou ressaltar que o substantivo demo-cracia sempre, na dimensão do real, aparece adjetivado, visto que regimes estatais sempre possuem conteúdo de classe determinado (salvo mínimas exceções temporais). Ainda, segundo Coutinho, a autonomia relativa das superestruturas no seio da totalidade social não é negada por Lenin, dado que valoriza a práxis política. Se, para a perspectiva marxista, é inegável que as liberdades democráticas – em sua forma moderna – tenham sua gênese histórica nas revoluções burgue-sas, o movimento teórico que Coutinho busca questionar, para assim validar a democracia como valor permanente, é a identidade mecânica entre gênese e validade no interior do

materialismo histórico (Coutinho, 1979, p. 35-36).8

O respeito a pluralidade e a autonomia deve permane-cer vigente no socialismo, para que os interesses divergen-tes se manifestem na sociedade socialista. Mas enfim, o que seria essa democracia socialista? Mera extensão da demo-cracia liberal? De modo sintético, Coutinho responde que não. Não é mera continuidade ou progresso da democracia liberal, o movimento se caracteriza pela superação dialética (Aufhebung). A democracia socialista eliminaria, conservaria

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e elevaria a nível superior as conquistas da democracia libe-ral (Coutinho, 1979, p. 40).

Portanto, a democracia socialista não se caracteriza-ria somente por uma continuidade da democracia liberal, visto que “a democracia política no socialismo pressupõe a criação (e/ou a mudança de função) de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas embrionaria-mente, na democracia liberal clássica” (Coutinho, 1979, p. 37). Em seu entender, a democracia socialista combinaria os mecanismos de representação indireta com mecanismos de representação direta, nos quais sujeitos políticos coletivos atuariam, visto que o socialismo, para Coutinho, se realiza a partir da socialização dos meios de produção assim como dos meios de governar. Como descreve:

Em outras palavras: o socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo; elimina também – ou deve eliminar – a apropriação privada dos mecanismos de dominação e de direção da sociedade como um todo. A superação da alienação econômica é condição necessária mas não suficiente para a realização do humanismo socialista: essa realização implica também a superação da alienação política (Coutinho, 1979, p. 38).

No mais, uma diferença fundamental se apresenta no ceito gramsciano de hegemonia, a qual seria exercida pelo con-junto dos trabalhadores representados através da pluralidade dos seus organismos. Novamente, nas palavras de Coutinho:

Se o liberalismo afirma teoricamente o pluralismo e

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Ocorrendo, segundo o marxista, em longo prazo, a absorção do Estado pelos organismos autogeridos da socie-dade civil. Além do mais, a tese do valor da democracia polí-tica ganha, segundo Coutinho, uma dimensão ainda mais concreta no caso brasileiro. As vicissitudes da história bra-sileira transformaram a questão da democracia em uma tarefa urgente, prioritária e decisiva. Devido à tendência dominante na história brasileira de ser portadora de cará-ter elitista e autoritário, na qual movimentos de conciliação são praticados, assim como medidas de “cima para baixo”, a renovação democrática assumiria função-chave, pois se caracterizaria como alternativa histórica à via prussiana que marca grande parte da história brasileira e é radicalizada até seu ponto mais alto no regime militar pós-1964.

Caberia, portanto, à oposição ao regime militar conce-ber a unidade como valor estratégico, constituindo, assim,

um bloco democrático a partir do qual se praticaria a guerra

de posições frente às tentativas de golpismo (internas à pró-pria oposição ou ao regime militar), alcançando um consenso majoritário com a incorporação permanente – e antiprussiana – de novos sujeitos políticos individuais e coletivos. Desse modo, caberia à oposição lutar pela renovação democrática no Brasil, a qual se desdobraria em dois planos principais:

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65 para empreender medidas de caráter antimonopolista e

antiimperialista e, numa etapa posterior, para a construção em nosso País de uma sociedade socialista fundada na democracia política (Coutinho, 1979, p.45-46).9

As críticas

As proposições apresentadas por Carlos Nelson Coutinho no ensaio “A democracia como valor universal” receberam críticas formuladas por autores dos mais distin-tos espectros políticos. Se, por um lado, José Guilherme Merquior questionou o problema da compatibilidade do leninismo com a democracia, criticando o excessivo leni-nismo – ou, ao menos, a constante referência ao autor – no

interior da proposta de Coutinho,10 de outro lado, Adelmo

Genro Filho e Márcio Naves questionaram a validade da tese do “valor universal da democracia” para o marxismo.

De modo claro, Merquior ressalta as qualidades da opo-sição realizada por Coutinho frente à concepção instrumen-talista da democracia; contudo, ao mesmo tempo, o autor realiza fortes críticas ao marxismo-leninismo presente no ensaio do comunista brasileiro. Em suas palavras:

Carlos Nelson denuncia, constante e louvavelmente, a concepção tática, instrumentalista, de democracia, esposada pelos marxistas que não reconhecem o perene valor

humano e social das liberdades democráticas e as reduzem

9 A frase citada possui ligeira alteração quando publicada em livro, A democracia como valor universal e outros ensaios (Coutinho, 1984). A passagem “lógica e crono-logicamente” é abandonada. A crítica de Genro Filho realizada diretamente a esse ponto, acusando-o de “não dialético” pode ter refletido nessa alteração realizada por Coutinho. Outras mudanças e acréscimos no ensaio de Coutinho podem ser observados ao realizarmos uma leitura comparada do seu artigo originalmente publicado em Encontros com a Civilização Brasileira e a versão em livro.

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a simples instrumento da revolução. Contudo, o Lenin democrata invocado em seu livro [A democracia como valor universal] é exatamente o tático de O Estado e a Revolução

(1917) ou o líder do comunismo de guerra, dos anos da luta pela sobrevivência do regime, quando o apoio das massas proletárias e camponesas era simplesmente vital (Merquior, 1981, p. 233).

E, de modo ainda mais direto, afirma o crítico que “a questão, nítida e factual, é saber se esse mesmo antidemo-cratismo refletia ou não o cerne da política de Lenin. E a resposta é uma só: refletia” (Merquior, 1981, p. 235). Assim, Merquior afirma a incompatibilidade entre leninismo e democracia, ou ainda, a incompatibilidade entre a “política do partido”, tal como defendida por Lenin, e as liberdades democráticas.

De certo modo, a crítica de Adelmo Genro Filho pode ser considerada a outra face da crítica de Merquior. Fundamentalmente, o argumento é o mesmo, mas com apelo normativo inverso. Se, por um lado, José Guilherme Merquior busca explicitar a incompatibilidade – prática e, mesmo, teórica – entre leninismo e os valores democráticos para, desse modo, defender um abandono do primeiro em defesa das liberdades e conquistas democráticas, de outro lado, Genro Filho realiza o mesmo movimento de explici-tação da incompatibilidade, mas para declarar a adesão à teoria revolucionária leninista.

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67 A teoria leninista do Estado como “comitê executivo da

burguesia” e da revolução como ruptura forjada por um contra-poder que destrói o aparelho estatal é, ainda, o cerne racional do marxismo revolucionário (Genro Filho, 1979, p. 199).

Não deveria, portanto, o marxismo, devido aos erros do stalinismo, “tomar emprestado o espelho da democracia burguesa para mirar-se nele” (Genro Filho, 1979, p. 201). E, mais do que isso, por causa da inexistência da democracia em geral, o único valor a ser defendido é “a mobilização constante da classe operária e demais camadas populares no exercício direto do poder” (Genro Filho, 1979, p. 202), visto que o socialismo implicaria uma ruptura fundamental com os valores capitalistas e liberais.

Dessa forma, as tarefas da esquerda brasileira não se caracterizavam pela busca das liberdades e valores demo-cráticos, tal como defende Carlos Nelson Coutinho. Para Genro Filho, seria um equívoco se preocupar com a univer-salidade do valor da democracia política:

A revolução burguesa já ocorreu no Brasil de forma completa, paralela mesmo ao processo de

internacionalização da economia. Não podemos, portanto, nos limitar as tarefas da luta operária pelos critérios do liberalismo emedebista: Estado de Direito, eleições livres, liberdades sindicais e Assembleia Constituinte (Genro Filho, 1979, p. 200).

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em uma forma jurídica apropriada. Equívoco explicitado nas propostas eurocomunistas, as quais redimidas dos peca-dos do golpismo, da ortodoxia e do sectarismo, proporiam a comunhão da democracia e do pluralismo (Naves, 1981, pp. 111-112). Figuras da ideologia jurídica burguesa – tais como Estado de direito, sufrágio universal e legalidade – propicia-riam a ocultação ou a dissimulação da luta de classes. Nas palavras de Naves (1981, p. 113): “A ‘Democracia’ faz silên-cio sobre a luta de classes, dissolve o caráter de classe do Estado; torna impensável a ruptura revolucionária e supe-rado o conceito de ditadura do proletariado”.

Ou seja, a proposta de Coutinho de transformar a democracia em “protagonista exclusiva” da política era equivocada, pois, efetivamente, equivaleria à “recuperação” da democracia burguesa. Se alguma democracia deveria ser valorizada, seria somente a da classe proletária, ou para usarmos termos mais precisos, a ditadura do proletariado. Ainda, segundo o autor:

A ausência de distinção entre o conteúdo de classe da democracia burguesa e da democracia operária (ditatura do proletariado), e a recusa em perceber o vínculo necessário entre democracia e reprodução das condições econômicas, políticas e ideológicas para a acumulação do capital, permitem a Coutinho pensar a democracia como uma eterna continuidade que se vai aperfeiçoando na história (Naves, 1981, p. 113).

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era uma generalização equivocada, a nível metodológico, de um desenvolvimento específico de Marx referente à arte grega, não possuindo validade geral; e além do mais, a pro-posta de universalidade do valor democrático era derivada da utilização equivocada do conceito de “superação dialé-tica” (Aufhebung) no interior da teoria marxista.

Ao invés de avaliarmos a correção dessa crítica epis-temológica, o que gostaríamos de ressaltar aqui é como a crítica realizada por Naves busca explicitar que a escolha por uma “via democrática” frente a uma “via autoritária” ou “golpista” seria equivocada, visto que esse problema “seria exterior ao campo da luta de classes e à sua história”, ou ainda, uma aplicação reducionista fruto de se “subordinar o marxismo revolucionário às categorias abstratas da ‘ciência política’ burguesa” (Naves, 1981, p. 118). Assim, segundo o crítico, a democracia adquire uma função mágica (que autoriza sua associação com o projeto socialista) na proposta de Coutinho. Obscurece-se, desse modo, a relação existente entre a democracia e o capital, entre os valores democráticos e as condições da produção capitalista.

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Usos conceituais: uma interpretação

Sincronicamente à opção política pela democracia, verifica-se a utilização de novos conceitos e referenciais teóricos, assim como um movimento de redescoberta de teóricos já centrais para os comunistas brasileiros. Carlos Nelson Coutinho utiliza esse novo repertório conceitual ao apresentar a proposta democrática que apresentamos como momento decisivo na história da esquerda política brasi-leira. Entretanto, esse movimento de renovação do reper-tório conceitual marxista também pode ser observado nos demais autores comunistas que constituem o que nomea-mos anteriormente de “grupo” que aderiu à democracia.

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71 Os tipos básicos de transformação do mundo agrário, sob

hegemonia da burguesia, consistiriam no que se chama de modelo prussiano e no seu oposto, o norte-americano. O primeiro corresponde à situação em que a modernização e o capitalismo transformam a economia feudal – e se poderia dizer de forma mais geral, as relações sociais agrárias – tendo como agente decisivo a grande propriedade de renda da terra. A liquidação das antigas relações de propriedade no campo não se faz num só processo, mas por uma adaptação progressiva, mais lenta nuns casos do que noutros, ao capitalismo. O tipo norte-americano depende de uma articulação diversa, em que a pequena propriedade camponesa joga um peso considerável, acabando por eliminar revolucionariamente a excrescência do latifúndio feudal do organismo social, desenvolvendo-se, a partir, daí em direção a economia capitalista (Vianna, 1999, p. 163-164).

Alocado de modo particular na reconstituição da histó-ria brasileira, o conceito de via prussiana de modernização, conjuntamente com as categorias revolução passiva, revolução--restauração e modernização conservadora, constituiu o eixo da

nova compreensão histórica e conjuntural do país.11

Como hipótese analítica de interpretação desse fenô-meno, apresentamos o Fluxograma 1. A nosso ver, associa-damente ao movimento de valorização da democracia (1), podemos observar uma renovação teórico-conceitual (2). Estes movimentos se retroalimentam de forma particular, mas, sobretudo, de modo indireto. Há um terceiro movi-mento – uma nova interpretação da história e conjuntura brasileira (3) – presente na teoria dos intelectuais comunis-tas que aderiram à democracia, esse sim, é em grande parte decorrente do movimento de renovação teórico-conceitual.

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O movimento (3) pode ser subdividido em uma nova inter-pretação da história brasileira (3*) (de modo amplo), o qual possibilita a nova interpretação da conjuntura político-social brasileira (3**). Esse movimento geral (3) justifica e valida o

movimento (1), de adesão à democracia.12 De modo gráfico:

Fluxograma 1:

Ou seja, o que estamos buscando explicitar é como esse grupo de comunistas brasileiros apresenta uma renovada intepretação da história brasileira a partir de usos concei-tuais inéditos, e, mais do que isso, deriva-se dessa nova inte-pretação da história uma renovada inteinte-pretação da conjun-tura política nacional, a qual legitima a adesão à democracia. Compreendendo, de modo geral, a história brasileira a partir das categorias de via prussiana de modernização, revolução-res-tauração, modernização conservadora e revolução passiva, tais inte-lectuais deslocam a situação do Brasil perante a teoria marxista

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da história, ressignificando o valor da democracia. O Brasil é, fundamentalmente, visto nesta nova interpretação como um país capitalista moderno, caracterizado por uma história repleta de elos de continuidade com o seu passado. As

mudan-ças históricas seriam realizadas pelo alto, centralmente pelo

Estado, ocorrendo a manutenção das elites e a exclusão das classes populares ao longo da história do país. Como afirma Leandro Konder:

Na evolução da sociedade brasileira, as transformações não resultam de revoluções, não foram a conseqüência direta de movimentos populares. […]

As mudanças eram realizadas mediante acordo entre os grupos economicamente dominantes. Ao Estado cumpria ensejar tais acordos e manter as massas afastadas da vida política (para isso, eram constantemente fortalecidos os aparelhos burocráticos de dominação direta).

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Essa leitura do país, sintetizada por Konder, abre cami-nho para a adesão à democracia. Aderir à democracia, segundo esses intelectuais, significa uma forma de ruptura com o decorrer da história brasileira (com a via prussiana), a qual manteve marginalizado o povo, e assumiu seu ápice no regime militar pós-1964 brasileiro. E, mais do que isso, signi-fica romper com os “preconceitos antidemocráticos” presen-tes na ideologia local propiciando nítidos ganhos materiais às classes subalternas.

Com essa tese tais intelectuais se distinguem dos diag-nósticos e programas políticos dominantes na esquerda política brasileira até o período, os quais privilegiavam as questões relativas à justiça social e à soberania nacional, con-siderando a democracia uma consequência dessas questões primeiras (Reis, 2006, p. 13). E, mais do que isso, a tese for-mulada por Coutinho e demais intelectuais do grupo aqui analisado realiza uma completa inversão causal do “modelo clássico” das formulações das esquerdas brasileiras – entre as quais, as realizadas pelo próprio PCB – sem romper, con-tudo, com um tipo de linguagem e desenvolvimento argu-mentativo-conceitual marxista do período. Se anteriormente existia uma análise causal que afirmava a necessidade de “jus-tiça social” e “independência nacional” para a ocorrência de uma democracia não-burguesa, a nova formulação, pro-posta por Coutinho e demais intelectuais, vê na democracia o ponto de ruptura que levará à justiça social.

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na questão nacional/independência frente ao imperia-lismo perde centralidade enquanto questão a ser resolvida de modo independente. Ou seja, na nova argumentação apresentada, a democracia política se tornou centro argu-mentativo, ocorrendo clara inversão de causalidade: se, anteriormente, a verdadeira democracia era vista como con-sequência, agora passa a ser considerada causa primordial no caminho ao socialismo.

É verdade que, nos trabalhos da época realizados por Coutinho e grupo de intelectuais, a passagem da democra-cia para o sodemocra-cialismo não está desenvolvida por completo. Além disso, podemos observar em tais a ocorrência remi-tente de uma clara associação entre democracia política e justiça social, porém com inversão de vetores – se compa-rada com a literatura comunista anterior. De acordo com a nova interpretação proposta, a luta pela democracia política direcionaria a sociedade à justiça social, ao caminho ade-quado ao socialismo.

Ao retornarmos novamente às críticas realizadas por teóricos marxistas às teses desse grupo de intelectuais, pode-se explicitar a inovação realizada por Coutinho e demais intelectuais. Como afirmado, na nova formulação proposta, a conquista política da democracia se realizaria como ruptura frente à história prussiana de marginalização das classes populares.

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constitui em um objeto estratégico, […] e que traduz, antes de mais nada, uma grave confusão entre poder de Estado e forma de Estado, pois o objetivo perseguido pela classe operária na luta de classes, a sua meta estratégica é a conquista do poder político (poder do Estado), e não uma das formas pelas quais esse poder é exercido (formas de Estado)” (Naves, 1981, p. 122).

Ou seja, o que Naves diagnostica é a determinação do conteúdo a partir da forma; isto é, a forma de Estado (demo-cracia) em Coutinho teria anterioridade em relação ao poder de Estado, determinando a priori a conquista e o fun-cionamento do poder. Em outras palavras, “a Democracia surge como elemento fundante do Estado proletário” (Naves, 1981, p. 122), desaparecendo o papel da luta de classes.

Contudo, o que Naves não reconhece é o deslocamento da noção de ruptura no interior da teoria de Coutinho se comparada com as teses marxistas-leninistas tradicionais. Como mostramos, Naves – assim como Genro Filho – enfa-tiza a incapacidade da tese de Coutinho produzir (e/ou levar em consideração) uma ruptura fundamental entre o socialismo e os valores capitalistas presentes na democracia burguesa. Porém, o que tais marxistas não levam em con-sideração é que tal ruptura está deslocada na proposta de Coutinho. Se, de fato, não se verifica uma distinção nítida – mas, sim um processo de superação dialética – entre demo-cracia (não adjetivada) e socialismo na proposta de Carlos Nelson Coutinho, a ruptura se daria entre uma nova situa-ção democrática e a história e conjuntura política de cará-ter prussiano em que se encontrava o Brasil – ápice de um amplo movimento de revolução passiva, com componentes de transformismo, no qual um Estado ampliado buscava sufocar, o quanto possível, a emergente sociedade civil.

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histórica do país, o grupo de comunistas apresentou par-ticular conciliação do relacionamento (tenso, ao menos, até esse momento) entre marxismo e democracia política no Brasil. Além do mais, não há, consequentemente, alte-ração no núcleo da teoria marxista para realização desse movimento conciliatório. De modo distinto a outros grupos de intelectuais marxistas que também aderiram aos valo-res democráticos, os comunistas brasileiros não realizaram uma mudança fundamental no núcleo conceitual da lin-guagem marxista, mas, sim, realizam usos de acréscimos conceituais, os quais foram utilizados em compreensões da história e da conjuntura política do Brasil que legitimam o movimento democrático.

Ao contrário do que em um primeiro momento pode-se pensar, essa contribuição teórica dos comunistas brasileiros não é inferior a dos demais intelectuais que aderem aos valores democráticos realizando alterações fundamentais na linguagem marxista. Pelo contrário, se entendermos o comunismo como opção que abrange todas as esferas da vida – uma ética da convicção que abrange a totalidade da existência (Hobsbawm, 2003) –, a qual o indivíduo carrega ao longo de todo o seu viver, tal como os próprios comunistas gostavam de enfatizar, as realizações dos intelectuais brasileiros ganham impor-tância ainda maior. Sem abandonar o materialismo his-tórico – continuando a alocar um rígido conceito de ver-dade na História –, o grupo comunista brasileiro valida teoricamente, no interior do marxismo (não distante do

clássico),13 a adesão à democracia política, a suas

insti-tuições e, até mesmo, a valores liberais. Se ler Gramsci – ou mesmo Lukács e, sobretudo, Lenin – não determina obrigatoriamente, nem de modo direto ou imediato, a

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conversão de um comunista a democrata, os intelectuais aqui analisados produziram uma significativa contribui-ção teórica. Tal contribuicontribui-ção ocorreu por meio da apro-priação desses autores e da realização de usos conceituais a partir das referências teóricas para, do interior de um repertório marxista, validarem a adesão à democracia política. A ocorrência na Europa, em especial na Itália (com o Partido Comunista Italiano (PCI)), de um movi-mento teórico-político semelhante, não reduz a inovação política e conceitual dos intelectuais brasileiros.

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cultural – e a superestrutura política das sociedades burgue-sas (Nogueira, 2013, p. 16).

Além do mais, há elevada complexidade em torno dos usos conceituais realizados pelos intelectuais analisados neste estudo que invalida as teses que defendem que os inte-lectuais comunistas brasileiros que aderiram à democracia a partir dos anos 1970 realizam apropriação das teorias do cha-mado “eurocomunismo”. Sem dúvidas, podemos observar o uso de determinada linguagem conceitual comum entre os variados intelectuais brasileiros e seus referenciais teóri-cos, tais como Gramsci e Lukács, a qual também pode ser encontrada em parte das obras “eurocomunistas”, sobretudo ligadas ao PCI. Contudo, a verificação de uma semelhança de linguagem não nos autoriza validar uma identidade completa entre as ideias apresentadas por Carlos Nelson Coutinho, por exemplo, com as de um intelectual “euro-comunista”. Ainda, a hipótese de apropriação enquanto importação conceitual carece de sentido ao notarmos que os conceitos políticos, ao menos os utilizados por Coutinho e demais intelectuais, são categorias interpretativas. A cada uso conceitual referido a uma circunstância empírica deter-minada, há um movimento de recriação/redefinição do conceito. Dessa forma, legitima-se a afirmação de Marco Aurélio Nogueira (1988 [1985], p. 139): “O eurocomunismo não foi imitado ou grosseiramente copiado, mas tratado como elemento de vanguarda da moderna teoria socialista, uma espécie de ponte que permitiu saltar as armadilhas do ‘marxismo-leninismo’”.

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brasileiros realiza uma reconstrução particular da teoria, a

partir de um uso particular das referências teóricas, as quais também são realocadas e reconstruídas constantemente. Os usos de Gramsci no debate brasileiro são distintos dos pre-sentes no debate argentino, ou mesmo italiano, por

exem-plo.14 Como Benedetto Fontana observou, “parece haver

tantos pontos de vista sobre Gramsci quantos são seus intér-pretes” (apud Germino, 2003, p. 127).

A verificação de um mesmo núcleo conceitual não nos autoriza a validar uma identidade nos usos conceituais nem dos próprios intelectuais comunistas brasileiros. Se, de modo mais abrangente, podemos validar a hipótese de que há um movimento comum nos usos conceituais a partir do qual os comunistas brasileiros justificam a adesão à demo-cracia, o que merece ser destacado aqui é como uma análise conceitual detalhada revela os usos distintos (não antagôni-cos) dos conceitos.

Ao voltarmos o enfoque ao ensaio “A democracia como valor universal”, podemos observar, sobretudo em “O caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à ‘via prussiana’” (parte final desse ensaio), como as proposições de Coutinho em grande parte se enquadram no movimento que estamos buscando demonstrar. Como já afirmamos, enfatizando a característica “prussiana”, de conciliação da história brasileira, o autor busca explicitar que a tarefa prio-ritária aos brasileiros é a de renovação democrática, a qual seria uma alternativa histórica à “via prussiana”.

Utilizando-se de ampla gama de conceitos gramscia-nos e lukacsiagramscia-nos, Coutinho evidencia o crescimento da “sociedade civil” que abriria possibilidades concretas de

14 Além disso, deve-se considerar que as leituras de uma determinada referência teórica

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intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia

política,15 a qual deveria se caracterizar pela hegemonia dos

trabalhadores das classes populares. Contudo, a nosso ver, o que pode particularizar os usos conceituais do autor perante os demais intelectuais brasileiros é sua proximidade teórica a certo pensamento de cunho republicano, em especial, Rousseau. Associando a categoria de hegemonia (Gramsci) ao uso conceitual de vontade geral de Rousseau, Coutinho busca solucionar problemas centrais à teoria marxista (Coutinho, 2008 [1994]; 2008). Por exemplo: como conciliar interesses conflitantes no socialismo? Caberia ao parlamento realizar uma “síntese política”, porém os demais sujeitos coletivos possuiriam importância na construção do “consenso”

demo-crático.16 Ressalta-se o movimento entre os conceitos:

demo-cracia política → hegemonia dos trabalhadores → consenso.

Porém, antes de realizarmos apressadas conclusões que leva-riam a demonstrar uma teoria com possível cunho totalitá-rio, explicita-se que na tese de Coutinho há evidente huma-nismo socialista.

Já nas demais obras e artigos de Coutinho, assim como em grande parte das obras e artigos de Leandro Konder, os usos conceituais oriundos de Gramsci e Lukács ganham uma inclinação para o campo estético e simbólico, em especial literário, assim como estão focalizados na questão do papel dos intelectuais na sociedade.

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Esses usos conceituais podem ser contrastados com os realizados por Luiz Werneck Vianna, em Liberalismo e sin-dicado no Brasil, originalmente tese de doutorado

defen-dida em 1976 na Universidade de São Paulo.17 Todavia, ao

contrário do que em primeiro momento pode-se imaginar, tal trabalho de Werneck Vianna, mais do que uma tese acadêmica ou monografia especializada, pode ser conside-rado – utilizando-se das palavras do próprio autor – “um ato de resistência”, “um documento político em forma de tese” (Vianna, 1999). Se de modo amplo a tese apre-sentada nessa obra é, novamente, similar ao movimento conceitual mais geral que apresentamos aqui, os desen-volvimentos internos são distintos. Fortemente inspirado pela obra de Lenin, Werneck Vianna busca apresentar uma compreensão distinta da Revolução de 1930 presente na bibliografia histórica brasileira. Concordando com a hipótese formulada por Lenin, que “o caráter específico de uma formação social do modo de produção capitalista depende de como a burguesia encaminha a resolução da questão agrária e das vicissitudes da realização desse enca-minhamento” (Vianna, 1978, p. 128), Werneck Vianna busca em seu trabalho explicar como no Brasil o capita-lismo se desenvolveu de modo particular. Segundo sua tese, sob a égide do Estado corporativo de 1930, ocorreu no Brasil uma “revolução sem revolução”, que possibilitou a modernização capitalista brasileira.

Preocupação também semelhante, mas de ordem dife-rente, está presente nos artigos de Ivan de Otero Ribeiro. Utilizando-se, sobretudo, do conceito de via prussiana, Ribeiro apresenta um nítido posicionamento no debate em torno da questão da terra, da propriedade agrícola e

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da reforma agrária. Sempre ressaltando a urgência e a centralidade da reforma agrária para a transição e conso-lidação da democracia no Brasil, Ivan Ribeiro dialoga, em especial, com a literatura de enfoque econômico e histórico (Ribeiro, 1988). Entre essa bibliografia, destaque merece ser dado ao debate em torno da transição do feudalismo para o capitalismo travado entre Dobb e Sweezy, mas envolvendo também Polanyi, Takahashi, Hilton, Lefebvre, Hobsbawm, entre outros. Se, como o último autor busca ressaltar, não há obviedade na aceitação, caracterização e generalização de um modo de produção, é interessante observar como entre variados estágios de desenvolvimento histórico, relaciona-dos por Marx, “o feudal e o capitalista foram aceitos sem problemas sérios” (Hobsbawm, 2004, p. 201). Porém, “por outro lado, o problema da transição do feudalismo para o capitalismo provavelmente deu origem a discussões marxis-tas mais numerosas do que qualquer outro relacionamento com a periodização da história mundial” (Hobsbawm, 2004, p. 201). E é justamente esse debate que, a nosso ver, inter-fere indiretamente em todo o grupo de intelectuais comu-nistas analisados, mas, em especial, nas teses de Ivan Ribeiro (Ribeiro, 1988).

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política se conquistariam vitórias nas diversas esferas sociais e econômicas, uma inversão do entendimento mais corri-queiro em teorias marxistas das relações entre economia e política. E, mais do que isso, é esse “marxismo político” – uma das características particulares da “alma positiva” do comunismo brasileiro, a qual se manifestou em parte dos quadros internos do PCB ao longo de sua história – que esse grupo de intelectuais buscou reavivar e explicitar, bus-cando uma conciliação (a nosso ver, inovadora) entre prá-tica democráprá-tica e teoria políprá-tica marxista, no interior do

comunismo brasileiro.18

Desse modo, podemos propor que tais intelectuais buscam (e, até mesmo, conseguem) romper com a clássica dicotomia entre reforma e revolução presente no pensamento de esquerda. O que seria, aos olhos de alguns marxistas, “reformismo democrático”; no caso brasileiro, adquiriria um caráter revolucionário frente à história de especificidade prussiana característica do país, se a hipótese que formula-mos aqui for válida. Ou seja, ao levarformula-mos em consideração a análise apresentada pelo grupo de intelectuais comunistas brasileiros que aderiram à democracia, a questão da simples dicotomia reforma/revolução se desfaz e, mais do que isso, as próprias categorias são completamente ressignificadas, fazendo que os significados usuais das duas categorias care-çam de sentido (ou se tornem completamente externos) se aplicados às teses formuladas pelos integrantes de tal grupo aqui analisado.

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Considerações Finais

Neste artigo, buscou-se apresentar uma interpretação do movimento de adesão à democracia política realizado por um grupo de comunistas brasileiros ao longo das déca-das de 1970 e 1980. Buscou-se validar a hipótese de que a publicação, realizada por Carlos Nelson Coutinho, do ensaio “A democracia como valor universal” pode ser considerada momento decisivo dessa adesão à democracia do interior de uma linguagem marxista-comunista.

Contudo, ao contrário do que em primeiro momento pode se supor, afirmou-se que em tal ensaio verifica-se uma realoca-ção dos temas já desenvolvidos anteriormente no interior de publicações comunistas. A questão da democracia já estava pre-sente em parte da produção e dos debates internos ao comu-nismo brasileiro desde meados da década de 1950. Todavia, essa questão era apresentada quase sempre de modo secundá-rio, subordinada a outras, tais como a questão do desenvolvi-mento econômico, a questão agrária, do imperialismo.

Segundo nossa análise, foi, sobretudo, a partir de uma reinterpretação da história brasileira – e então da conjun-tura política do período – com usos conceituais de Gramsci, de Lukács e de Lenin, que a adesão à democracia foi justifi-cada e validada com base em uma linguagem marxista não distante da tradicional. A ressignificação do local do Brasil na história mundial legitimou a defesa política da democra-cia – a qual passou a ser considerada uma forma de ruptura positiva frente às características prussianas que marcavam a história brasileira – no interior do marxismo-comunismo, possibilitando uma (proposta de) superação, ao menos para o caso brasileiro, da dicotomia reforma-revolução presente no interior do pensamento político de esquerda.

Marcos Paulo de Lucca-Silveira

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universidade. Desenvolve pesquisas em teoria política con-temporânea e pensamento político brasileiro.

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INTELECTUAIS COMUNISTAS E A QUESTÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL

MARCOS PAULO DE LUCCA-SILVEIRA

Resumo: Neste artigo, analisar-se-á o movimento de ade-são teórico-conceitual e política à democracia, realizado por um grupo de intelectuais comunistas brasileiros ao longo dos anos 1970 e 1980. Apresentar-se-á a hipótese histórica de que a publicação realizada por Carlos Nelson Coutinho do ensaio “A democracia como valor univer-sal”, em 1979, deve ser considerada momento decisivo em torno da adesão à democracia por intelectuais marxistas, particularmente vinculados ao comunismo, no Brasil. Posteriormente, uma meticulosa interpretação de como o movimento de adesão à democracia política foi realizado e justificado a partir de um renovado arcabouço teórico--conceitual marxista – com conceitos de Lukács, Gramsci e Lenin – é apresentada.

Palavras-chave: Marxismo Brasileiro; Democracia; Comunismo; Carlos Nelson Coutinho.

COMMUNIST INTELLECTUALS AND THE DEMOCRACY ISSUE IN BRAZIL

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theoretical-conceptual framework – with concepts from Lukács, Gramsci and Lenin.

Keywords: Brazilian Marxism; Democracy; Communism; Carlos Nelson Coutinho.

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