Literatura - o
que ? Podemos dizer que o
conjunto
dos textosliterrios. Mas isto pouco, embora
seja
sensato ficar poraqui.
Literatura o
conjunto
dos textos literrios que houve, que h e porhaver. A
riqueza
da literatura, ariqueza
danoo
de literatura resideantes de mais nesse estado de
permanente
possibilidade,
de permanen teinquietao,
no facto de no se reduzir a umpatrimnio
convenien tementearquivado.
Alis,
oprprio patrimnio
est em permanentemutao,
textos saindo e entrando ao sabor dos tempos e dos gostos, oraexpulsos
porque cados emdesgraa,
ora sendorecuperados,
reabilitados.
A literatura consiste em textos em que a
palavra
o cerne mesmodo
trabalho,
em que a matriaprima
para aconstruo
de umobjecto
esttico a
prpria lngua
que o artistapartilha
com os seusprimeiros
interlocutores.
Por banda desenhada, ou BD,
podemos
entender oconjunto
dos textos narrativos queinterligam,
de modo dinmico,palavras
e imagens desenhadas. Os textos de banda desenhada tambm so conheci
dos como "histrias aos
quadradinhos"
por oquadrado
ser, tradicionalmente,
a unidade sintctica mnima em que sedecompe
umapgina.
H,
desdelogo,
umadiferena
ntida entre banda desenhada eliteratura,
eprecisamente
no modo derepresentar,
no modo desuscitar a
formao
deimagens
noesprito
do leitor. A BDrepresenta
com cones. A
relao
entre uma rvore desenhada mais estreita,Revista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 10, Lisboa, Edi
pelo
menosaparentemente,
com o referente rvore do que apalavra
"rvore". O desenho surge como uma
representao
que fala umasuposta
linguagem
universal,
um esperanto bem sucedido, ao contrrio da
lngua.
Temos assim que, por
exemplo,
num livro de Tintin s a compo nente verbal traduzida - acomponente icnica
prescinde
desse trabalho de
ganho
eperda
que toda atraduo.
J umatraduo
deTintin para rabe
implica
umaoperao
algo
maiscomplexa:
que seinverta a
pgina,
dado que em rabe se l da direita para aesquerda
eno da
esquerda
para a direita.Estas so
diferenas
bvias. A mim interessam-me asaproxima
es.
Tanto literatura como BD seconfiguram
em textosestticos,
isto , que se autonomizam de um
qualquer
referente externo. Ambasexigem
que o leitor domine uma tcnica - a tcnica de leitura - e tenhaincorporado
o gosto - oprazer - de o fazer. Ambas so
criaes
que tm o
papel
por suporte, na sua quase totalidade, e ambas so, na suaexpresso
maissimples, produto
de uma escrita sobre afolha
branca. Mesmo
hoje,
na era doscomputadores,
ainda h quem escreva mo. E mesmohoje,
na era doscomputadores,
quase toda aBD desenhada mo. H uma liberdade econmica bastante
grande
nestas duas artes, e umaindependncia
notvel emrelao
ao corpohumano. Um livro de BD ou um texto literrio
permitem
uma liberdade de movimentos ao
leitor,
ao mesmo tempo que omergulham
numisolamento em
relao
ao que o rodeia.*
Se para ns mais ou menos claro o que
seja
literatura,j
maisconfuso se torna saber o que banda desenhada. Muitos diro, e
dizem: banda desenhada so bonecos. mesmo a
expresso
maiscorriqueira:
"Ests a ler os bonecos". Para mim, o contrrio, bandadesenhada
palavras.
O que mais me interessa na BD o modo como seinterligam palavras
e desenhos para fazer uma coisa que, como h 150 anos disseRodolphe Topffer,
no uma coisa nemoutra. Eu acho que :
duplamente
a mesma coisa. E nesse sentidoque a BD me
interessa,
quer como autor, quer como leitor, quer comoestudioso.
E tambm,
j
me iaesquecendo,
como tradutor. Permitam-mefazer uma pequena
digresso
e contar a histria de umatraduo
quefiz de um livro - de literatura ou de banda
desenhada? - de Matt
Groening.
Talvezseja
maisexplcito
se disser no "um livro de MattGroening",
mas um livro dosSimpsons.
A minhaexperincia
comotradutor foi
simples
-exigi
ser bem pago. O editor ainda argumentouque muitas
pginas
no tinham muito texto, o queimplicava
menostrabalho.
Retorqui
que antespelo
contrrio, eu tinha sempre que fazer umadupla
leitura,
porque no se tratava apenas de traduzir umcdigo
uniforme - o verbal
-mas a
articulao
entre doiscdigos.
Ganheieu, no porque os meus argumentos fossem mais fortes
-apesar de o serem - mas
porque estava na
posio
ideal paraqualquer
assalariado:no
precisava
daencomenda,
mas o industrialprecisava
de mim. certo que havia uma margem considervel dedesemprego
entre ostradutores,
o quepoderia
baixar atabela,
quevergonhosa
em Portugal.
Mas o editorqueria
um tradutor que no s estivesse familiarizado com a
linguagem
dos comics como ainda com o modus vivendinorte-americano.
Pagou
o quepedi
ecomprei
uma mota, que aindahoje
uso e com aqual,
com um bocado de sorte, no terei um acidentemortal nos
prximos
anos.Repito. Apesar
dediferena
entre a BD e a literatura, h pontosonde ambas se encontram: no amor
imagem
e, no tosurpreenden
temente comoisso,
no amorpalavra.
Beethoven era surdo e amava a msica.
Borges,
se no gostavade banda
desenhada,
pelo
menos tinha sentido de humor suficientepara, se
algum
lheperguntasse,
responder
que sim. Gostariapelo
menos do seucompatriota
Breccia. SeBorges
no o conhecia, Brecciaconhecia-o
bem,
a ele e sua obra. OEternauta,
obraprima
em colaborao
com oescritor,
oumelhor,
o co-escritor HectorHoesterheld,
pode
ser lido como umavariao
deBorges.
Tal como opoeta
quecada vez mais caminha para o silncio, talvez
seja
iluso minha, masat em bandas desenhadas onde no h
palavras vejo
o trabalhoesttico sobre a
palavra.
Porque
num texto deBD,
mesmoquando
hcolaborao,
no h um desenhador e um escritor. Ambos escrevem e ambos desenham.Escrever com
imagens,
desenhar compalavras.
Em ambas h umaprescinde
dorepresentado, quando
arepresentao
se torna o representado.
* *
*
Para culminar esta pequena
digresso pelos
modos de representao
quepodemos
encontrar na literatura e, dentrodela,
na sua ver tente BD,gostaria
de dizer o que que a BD e a literatura represen tam para mim. Duas coisas: Como autor, um trabalho sobre apalavra,
emrelao
ou no com outros aspectos. Comoleitor,
um usufruto de um texto esttico. Emqualque
dos casos, umaforma
diferente
de trabalhar a
palavra
Sejam
ou no a mesmacoisa,
incorporam-se pontualmente
uma na outra e, ainda que mantendo-se territriosautnomos,
h um cada vez maior nmero de textos que se reclamam tanto de uma como de outra. Textos"mestios",
por assim dizer, queperturbam
tanto um como outro sistema,pois
pem
em causa a suapureza.Para muitos amantes da coisa
literria,
aimagem
visual surge no texto como umaperturbao,
como um rudo e, eventualmente, como uma marca de menoridade do texto, que no se consegue ampararsozinho na
palavra,
napalavra,
napalavra.
Para muitos amantes da bandadesenhada,
tambmimprprio pretender
que estaseja
oupossa ser
algo
mais do que um divertimento infantil, do que uma nostalgia
dequando
aindaprecisvamos
de bonecos para nosajudarem
aler. Estes amantes
guardam
a banda desenhada como quemguarda
aprpria
infncia e, infelizmente, fazemalgum
mal coisa que amam,dizem amar, ou
julgam
amar. Mais gravequando
colocam a tnicada banda desenhada no desenho. O
prprio
termoadoptado
sinaldisso.
Penso que ambas as partes esto erradas. Para a literatura, a
banda desenhada
pode surgir
como um espao criativo para trabalhar apalavra,
e no est escrito que esta s se exera emplenitude
numabrilhante carreira a solo.
Mais,
a histria da literatura, entidademutante e
mutvel,
integra
no poucos casos deinteraco
entrepala
vra e desenho. Desdealguma poesia
visual barroca portuguesa atobra de Ernesto Melo e Castro, Fernando
Aguiar
ou mesmo doisdocentes desta casa, Ana
Hatherly
e Alberto Pimenta.talo
Calvino,
que acreditava noconstrangimento
como estratagema estimulante da actividade
criadora,
publicou
em 1973 O Casteloedito-ra Bertrand. Nesse livro Calvino rene duas novelas subordinadas a
um mesmo
princpio:
ainteraco
entreimagens
- ascartas do Tarot
- e
palavras. Aps
atravessar uma florestamgica
onde tinhaperdido
a
fala,
o narradorchega
a um castelo. mesa esto reunidas vriaspersonagens: uma dama, um frade, um pagem, um cavaleiro...
Despo
jados
dopoder
da fala, os comensais vem-seobrigados
arecollfer
a um baralho de cartas para contar a sua histria. O narrador ter deinterpretar
o que o interlocutor lhe conta, atravs da escolha das cartas e da ordem em que so colocadas. Oproblema
que se coloca ao narrador de Calvino o
seguinte:
a histria que eu reconstituo na minhamente a que o outro me est a contar? E a mesma que os outros
esto a "escutar"?
No h
representaes
quefaam justia
aorepresentado.
Num texto esttico,seja
literrio, de banda desenhada ou outro, no assistimos a uma
representao,
porque uma dascondies
do texto esttico, para o ser, no se representar seno a si mesmo. O que
chega
aoleitor nunca o que est no texto, e muito menos o que havia antes do
texto
(a
coisarepresentada),
mas o que o leitor retira do texto. Retirar no bem apalavra:
maispr.
Pessoa disse isto de forma muito maissinttica,
quando despachou,
quase irritado: "Sentir? Sinta quem l!"E esse investimento do leitor, sem o
qual simplesmente
no htexto, que leva Scott McCloud a considerar que a banda desenhada
,
sobretudo, "uma arte do invisvel". O mesmo se passa com a litera
tura,
suponho.
Ambas, BD e literatura, so artes do invisvel. O maisimportante
no o corpo do que estl,
mas o que se encontra entre oque est