• Nenhum resultado encontrado

O porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça? A nova classe trabalhadora e representações midiáticas da distinção social.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça? A nova classe trabalhadora e representações midiáticas da distinção social."

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

   

PPGCOM  ESPM  –  ESPM  –  SÃO  PAULO  –  COMUNICON  2013  (10  e  11  de  outubro  2013).  

“O porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça?” A nova classe trabalhadora e representações midiáticas da distinção social.1

Janaína Vieira de Paula Jordão2 Universidade Federal de Goiás (UFG) Resumo

Este artigo vai buscar analisar algumas representações sociais a respeito da nova classe trabalhadora, chamada pela mídia de “nova classe média”. Neste movimento de ascensão social desta classe, cuja visibilidade se dá especialmente no consumo, há uma espécie de reação de alguns segmentos da sociedade em que se podem observar os anseios de distinção, em nome do capital cultural. Utilizando teorias sobre as representações sociais e desigualdades duráveis, buscaremos discutir as hierarquizações na luta pelo espaço social, de forma com que o outro não seja considerado somente diferente, mas também pior.

Palavras-chave: representações sociais; distinção; classe social; mídia; desigualdade. Introdução

Em novembro de 2012, a jornalista e escritora brasileira Danuza Leão escreveu na sua coluna na Folha de S. Paulo um texto cujo título é “Ser especial”3. Segundo o texto, somos todos verdadeiras crianças e só queremos ser únicos, raros e especiais; que bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que somente nós temos acesso, e, se todos fossem ricos, a vida seria um tédio. A autora exemplifica com o caso de viagens, em que ir à Nova York assistir aos musicais da Broadway não tem mais graça, uma vez que o porteiro do prédio também pode ir. A única solução, para evitar uma experiência compartilhada, que para a jornalista é uma “banalidade insuportável”, seria trancar-se em casa sozinha e ler um bom livro. Depois a jornalista pediu desculpas4, afirmando

que o exemplo do porteiro foi infeliz, mas reforçou a necessidade de se sentir única, dando como                                                                                                                          

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 – Comunicação, Consumo, Gênero e Classes, do 3º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013.

2 É Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG); Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da UFG; e Professora no curso de Publicidade da FIC/UFG. janainajordao@ufg.com

3 LEÃO, Danuza. Ser especial. São Paulo. Folha de S. Paulo, 25 nov. 2012. Disponível em <

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/danuzaleao/1190959-ser-especial.shtml> Acesso em: 5 Ago 2013.

4 APÓS esbravejar conra ascensão social dos pobres, Danuza pede desculpas. Pragmatismo político. 3 dez. 2012. Disponível em: <

(2)

http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/12/danuza-artigo-desculpas-ascensao-social-  

exemplo uma hipotética situação constrangedora de estar em uma festa com a mesma roupa da Madonna, ou de cruzar com um iate idêntico ao de Donald Trump.

O curioso é que, para tentar desfazer o “mal entendido”, Danuza Leão reforça a questão da distinção, mas agora se comparando com celebridades mundiais e reconhecidamente ricas. O ponto é o mesmo, a única coisa que mudou foi o objeto de comparação. Mas será por que ele incomodou a ponto de um pedido de desculpas (sabe-se lá às custas de quantas reclamações)? Talvez porque tenha deixado escapar um certo racismo de classe, já que a distinção em relação à Madonna e ao Donald Trump parece inócua, já que se apresenta quase em um nível de competição, na qual os jogadores têm mais ou menos as mesmas armas para jogar, tanto no campo econômico, quanto no cultural.

Mas, o que parece incomodar a jornalista no seu primeiro texto não é a capacidade de compra de produtos similares, mas sim da experiência de sensações ligadas ao campo cultural.

Já se foi o tempo em que ir a Paris era só para alguns; hoje, ninguém quer ouvir o relato da subida do Nilo, do passeio de balão pelo deserto ou ver as fotos da viagem - e se for o vídeo, pior ainda - de quem foi às muralhas da China. Ir a Nova York ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas, por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça? Enfrentar 12 horas de avião para chegar a Paris, entrar nas perfumarias que dão 40% de desconto, com vendedoras falando português e onde você só encontra brasileiros - não é melhor ficar por aqui mesmo? Viajar ficou banal e a pergunta é: o que se pode fazer de diferente, original, para deslumbrar os amigos e mostrar que se é um ser raro, com imaginação e criatividade, diferente do resto da humanidade? (LEÃO, 2012)

Como se pode ver, não é a compra em si. Mas a experiência distintiva da compra, ou seja, são os aspectos simbólicos do consumo – como consumir de forma diferente e original – o lugar onde a autora quer se distinguir das classes populares.

Este é o ponto de partida deste trabalho: discutir um enrijecimento das fronteiras entre classes sociais, especialmente em um momento de um expressivo acesso ao consumo das camadas populares, em que se fazem sobressair as diferença de gosto, a falta de “refinamento”, e o principal: uma hierarquização que sugere que uns sejam melhores do que outros na sociedade. Para sermos mais explícitos, segue um comentário que defende o ponto de vista da autora5.

                                                                                                                         

5 APÓS esbravejar conra ascensão social dos pobres, Danuza pede desculpas. Pragmatismo político. 3 dez. 2012. Disponível em: < http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/12/danuza-artigo-desculpas-ascensao-social-pobres.html> Acesso em: 5 Ago 2013.

(3)

 

Consumo como comunicação.

O estudo sobre o consumo não é novo, e há várias áreas do conhecimento científico buscando lançar um olhar sobre este tema, que é hoje central na nossa sociedade. Segundo Rial e Souza (2012), primeiramente o consumo era visto como ação voltada para a subsistência, mas depois vários autores, especialmente os ligados à Antropologia e à Sociologia, começam a enxergá-lo como uma confrontação ostentatória, ou seja, não somente pela posse ou troca de objetos em si, mas também pelo prestígio que os bens podem carregar.

Nestes trabalhos, o consumo não é percebido como algo contruído meramente através de uma troca material. Ao contrário, as relações que fundamentam o consumo são bem mais complexas, e geralmente nos chamam a pensar sobre questões mais amplas, abordadas através das subjetividades dos sujeitos, dos processos criativos definidores de um “estar no mundo”, do poder e agência que os sujeitos se autoatribuem ao estabelecerem relações de produção-circulação-consumo. Em várias pesquisas etnográficas o consumo está sendo percebido e analisado através de uma “desalienação” dos sujeitos, que buscam refletir eles próprios sobre o que produzem, o que criam, o que trocam, o que consomem e mesmo o que descartam ou reaproveitam (RIAL; SOUZA, 2012, p. 14-15)

Segundo Douglas e Isherwood (1990), o próprio fato de haver normas sociais que definem as circunstâncias e para quem se pode dar presentes e para quem se pode dar dinheiro, é o primeiro passo em direção a uma teoria do consumo em termos culturais, em que os bens têm significados sociais (são comunicadores) e servem para estabelecer e manter relações sociais. Assim, segundo os autores, a função essencial do consumo é a sua capacidade de dar sentido.

Olvidemos de la idea de la irracionalidad del consumidor. Olvidémonos de que las mercancías sirven para comer, vestirse y protegerse. Olvidemos su utilidad e intentemos en cambio adoptar la idea de que las marcancías sirven para pensar; aprendamos a tratarlas como un medio no verbal de la facultad creativa del género humano (DOUGLAS; ISHERWOOD, 1990, p. 77)

Se o consumo comunica, todos os bens são portadores de significados e servem para dar visibilidade a juízos nos processos de classificação das pessoas e dos acontecimentos. E isso independe da característica do bem. Segundo Douglas e Isherwood (1990), há nos bens

(4)

 

componentes materiais e imateriais, o que dissolve a dicotomia cartesiana entre experiência física e psíquica. Assim, exemplificam os autores, a comida e a bebida, apesar de proporcionar a satisfação de necessidades físicas, portam significados como o balé ou a poesia.

Podemos pensar que não só há significados nos bens, mas também na forma de consumi-los. Significados estes que são categorizados de forma hierárquica de maneira que um bem ou a maneira de consumi-lo pode ter maior ou menor prestígio em relação a outros tipos de consumo e modos de consumo. Afinal, todo consumo é feito com o objetivo de se distinguir, mesmo que não haja a intenção, de forma a caracterizar os grupos por estilos de vida diferentes no espaço social (BOURDIEU, 2012).

Há uma “nova classe média” no Brasil?

Quando no Brasil se faz referência à “nova classe média”, termo cunhado por Neri (2010), isso diz respeito a uma nova camada da população que passou a pertencer ao que o critério da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD)6, chama de Classe C, a classe intermediária (“média”) em uma escala de A a E. As Classes A e B têm renda de, no mínimo, R$ 4.591,00 (aproximadamente U$ 2,300); a Classe C tem rendimento total familiar de R$ 1.064,00 a R$ 4.591,00 mensais (aproximadamente U$ 530 a U$ 2,300), seguida pelo rendimento de R$ 768,00 a R$ 1.064,00 mensais (aproximadamente U$ 380 a U$ 530), para a Classe D. A renda da Classe E se encontra abaixo desta faixa, sendo a última na classificação, tendo a linha da miséria como base.

Mas é necessário delimitar um marco teórico a respeito do conceito de classe, para que não se corra o risco de reduzir classe ao aspecto puramente econômico e arbitrário, especialmente devido aos aspectos simbólicos que têm atravessado a discussão dos estilos de vida das classes no Brasil, que vão muito além da academia. Afinal, não tem sido raro encontrar conteúdos nos meios de comunicação de massa apresentando uma “nova classe média”.

Neste trabalho, aspectos como o compartilhamento de chances de vida da teoria de Weber (2012) e o capital simbólico de Bourdieu (2012) são fundamentais para oferecer uma lente mais adequada para o tipo de relação de classe que se quer discutir. Isso porque entram em questão os diferentes tipos de capitais apropriados: o capital objetivado (econômico) e o capital incorporado (cultural), no seu volume, e na sua composição (BOURDIEU, 2007) de forma que

podemos recortar classes no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, como toda a probabilidade, atitudes e interesses                                                                                                                          

(5)

 

semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes (BOURDIEU, 2012, p.136) [grifo do autor].

O que está em jogo, nas relações entre grupos, segundo Bourdieu (2007), é a força e a propensão de cada grupo para tomar e dar a sua verdade como a verdade das relações entre os grupos. O autor coloca a diferenciação entre os tipos de gostos, em que o gosto popular teria a razão inversa ao capital escolar, considerando o gosto como a “faculdade de julgar valores estéticos de maneira imediata e intuitiva” (Bourdieu, 2007, p. 95). O gosto, então, passa a ser o aspecto simbólico de distinção entre as classes, e o cimento para a solidificação das fronteiras entre as classes, já que, segundo Bourdieu (2007), a disposição estética é uma dimensão de uma relação distante e segura com o mundo e com os outros. A disposição estética

une e separa: sendo o produto dos condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência, ela une todos aquele sque são o produto de condições semelhantes, mas distinguindo-os de todos os outros e a partir daquilo que têm de mais essencial, já que o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado (Bourdieu, 2007, p. 56).

Se classes são conjuntos e há uma infinidade de bens na sociedade, pode-se pensar que há bens que podem ser objeto de interesse de classes distintas, especialmente se vizinhas. Se o capital econômico e o capital cultural são trunfos em um jogo (BOURDIEU, 2012), podemos levantar como hipótese que uma vez que há uma aproximação entre o consumo dos bens via economia – especialmente neste momento da economia brasileira mais estável, em que as classes trabalhadoras7 detêm um expressivo aumento no poder de compra, seja via acesso ao crédito, programas de distribuição de renda ou aumento de salários – o capital cultural vira o trunfo de maior valor para a classe média. E é engano pensar que a proximidade possa fazer duas classes mais similares. Segundo Bourdieu (p. 230), “o mais ‘vizinho’ é o que mais ameaça a identidade social”, já que a “vizinhança social, lugar da última diferença, tem todas as chances de ser também o ponto de maior tensão”.

                                                                                                                         

7  Segundo Souza (2012), acreditar que esta classe em ascensão econômica é a nova classe média é o mesmo que dizer que o Brasil está se tornando um país de primeiro mundo, onde as classes médias – e não os pobres, os trabalhadores e os excluídos – formam o fundamento da estrutura social. Para o autor, isso é uma meia-verdade. É verdade pelo lado de que há mudanças reais. Mas é mentira porque essas mudanças têm sido interpretadas por um modo distorcido, como se ocorressem sem conflitos e contradições. Segundo o autor, o termo mais apropriado para esta classe é a nova classe

trabalhadora brasileira, que se situa entre os excluídos, a “ralé”, e as classes média e alta, e que destas últimas se

diferencia por não ser detentora dos principais tipos de capitais, que asseguram o acesso privilegiado aos bens materiais e culturais.

(6)

 

Se a luta simbólica tende a se circunscrever na vizinhança imediata e se ela não pode jamais operar senão revoluções parciais, é também porque encontra seu limite (...) na institucionalização dos índices de consagração e dos certificados de carisma como os títulos de nobreza ou os títulos escolares, marcas de respeito objetivadas que atraem as marcas de respeito, aparelho e aparato que têm como efeito não somente manifestar a posição social, mas também o reconhecimento coletivo que se lhe atribui unicamente pelo fato de autorizá-la a fazer semrelhante exibição de sua importância (BOURDIEU, 2009, p. 231).

Isso foi o que o texto de Danuza Leão deixou transparecer. O objetivo agora é ver se outras publicações midiáticas refletem o mesmo teor.

As representações sociais.

Segundo Moscovici (2011), todas as interações humanas – entre duas ou mais pessoas, ou entre grupos – pressupõem representações. Aliás, isso que as caracteriza, uma vez que as ações devem ter um sentido compartilhado para que tenham o efeito esperado (o próprio conceito de relação social weberiano). As representações, desta forma, são formadas diante dos nossos olhos, pela mídia, nos locais públicos, nos processos de comunicação, que nunca ocorrem sem uma transformação. Por isso, as práticas, na vida cotidiana, que se tornam senso comum, são o material prototípico para o entendimento das representações sociais, porque, o senso comum, assim como a ciência, é uma forma de compreender o mundo e de se relacionar a ele.

Assim, as representações vão determinar tanto o caráter da ação, quanto da reação, uma vez que são um sistema de valores, ideias, crenças, ideologias, conhecimentos (inclusive o científico) e práticas, que estabelecem uma ordem que possibilita a orientação das pessoas no mundo a comunicação entre elas, fornecedo-lhes um código para nomear e classificar os vários aspectos da vida. Para o autor, não existe neutralidade nas representações sociais, pela lógica do sistema, em que cada objeto e ser devem possuir valor positivo ou negativo, assumindo um determinado lugar numa escala hierárquica. Isso quer dizer que pessoas e coisas são classificadas, seus caracteres descritos e sentimentos e ações explicados.

Segundo Moscovici (2011), “a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo não familiar” (p. 54). Quando nos deparamos com pessoas que pertencem a outras culturas – e por que não outras classes sociais -, por exemplo, ficamos incomodados porque são como nós, mas, ao mesmo tempo, diferentes. Isso porque o não familiar intriga, alarma, incomoda e ameaça, já que “quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que ‘não é exatamente’ como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida” (Moscovici, 2011, p.

(7)

 

56). Com a representação, podemos transformar este incomum em comum, e o desconhecido pode ser colocado em uma categoria convencional, conhecida.

Segundo o autor, existem dois processos geradores das representações sociais: a)

ancoragem, que fundamentalmente é classificar e dar nome a alguma coisa, pessoa ou

acontecimento, em que se reduzem as ideias estranhas a imagens comuns, colocando-as em uma categoria familiar. A partir daí, rotulamos: o “não-familiar” adquire características desta categoria ou é reajustado para que nela se enquadre. Segundo o autor, “pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo” (Moscovici, 2011, p. 62); b) objetivação, que é o momento da materialização das representações, pois se transfere o que está na mente em algo que exista no mundo físico. Assim, “nós personificamos, indiscriminadamente, sentimentos, classes sociais, os grandes poderes, e quando nós escrevemos, nós personificamos a cultura, pois é a própria linguagem que nos possibilita fazer isso” (Moscovici, 2011, p. 76).

Como as representações vão se tornando senso comum, e aceitas como verdade, o autor defende que, para estudá-las, é necessário tentar descobrir a característica não familiar que a motivou, de preferência que esta característica seja observada no momento exato que está emergindo na esfera social. O não familiar que se considera neste trabalho é a ascensão de uma nova classe trabalhadora a patamares próximos de poder de consumo aos da classe média, e, uma vez considerada como consumidora, saiu da invisibilidade e passou a figurar ainda mais nas novelas, a ser temas de matérias jornalísticas e a marcar sua presença em espaços antes ainda não explorados.

A produção do mau gosto

Não são raros e nem recentes os conteúdos caricaturescos na mídia fazendo uma representação das classes populares. Programas como “A Grande Família”, “Sai de Baixo”, ambos da Rede Globo, e mais recentemente o “Vai que Cola”, exibido no canal Multishow, são uma constante na televisão brasileira, em que em grande parte a piada está em eleger um “mau-gosto” das classes populares e os “jeitinhos” para se dar bem na vida – éticos ou não.

O Programa “Zorra Total”, também exibido pela Rede Globo, faz uma representação grotesca de seus personagens, especialmente os das camadas populares, de forma que as mulheres e gays são os que mais apresentam essa “produção do mau gosto”. Aliás, as mulheres praticamente são representadas desta forma, ou a mostrar seus corpos e com uma suposta disponibilidade sexual.

(8)

 

Zorra total: representação social de gays, pobres e mulheres.

A “produção do mau gosto” pode ser entendida como uma desqualificação do capital cultural das classes populares. É a falta de manejo intelectual para gerir os objetos consumidos em casa ou no corpo. É a falta de capacitação ou cultura, para ter uma experiência estética legítima.

Também tem circulado na internet – recebemos por e-mail – uma “produção do mau gosto” em que se imita uma publicação jornalística, a respeito do dia a dia das pessoas das camadas populares.

(9)

 

Precariedade cultural, que se reflete em mau-gosto, em proximidade com a criminalidade, em notícias “importantes”, como varrer a calçada, ou na banalização das escolhas de lazer, é representada por uma atribuição (objetivação) de aspectos hierarquizados para baixo que buscam desqualificar as diferenças especialmente no campo cultural.

Já trabalhamos em outro momento (JORDÃO, 2012) esta desqualificação das classes populares pelo capital cultural, a partir da análise que a revista Veja fez da presença da nova classe trabalhadora na novela Avenida Brasil, da Rede Globo. Conforme observamos, houve a expressa distinção entre gosto legítimo e popular, quando a matéria afirmou que as casas de personagens centrais da novela primavam por uma exagerada ostentação não necessariamente alinhada com o

(10)

 

bom gosto clássico. E um outro ponto que demonstrou a desqualificação do capital cultural explicitamente foi quando a revista considerou que a presença de um gato de porcelana na decoração da casa da personagem Carminha seria a prova de que a “golpista Carminha ganhou dinheiro, mas não um curso de história da arte”8. Além disso, houve uma atribuição de uma moda de roupas justas e decotadas como um estilo característico de uma parcela das mulheres das classes trabalhadoras, como se mostrar o corpo fosse um aspecto de gênero ligado à classe social.

Este tipo de viés cultural também parece atravessar o imaginário dos criativos na publicidade. A partir de algumas análises9, percebemos uma assunção de uma estética e estilos específicos, em que narrativas mais complexas, cores frias e aspecto visual limpo, sem muitos elementos, são reservados para os públicos mais favorecidos economicamente, enquanto as cores quentes, muitos elementos e um estilo argumentativo mais simples são direcionados para os grupos populares. Muitas vezes, na falta do acesso a pesquisas de mercado, os informantes afirmaram que estes critérios são definidos pelos anunciantes e suas agências, a partir de suas próprias impressões subjetivas, e também pela observação do que a própria mídia veicula (JORDÃO, 2011).

Apesar de considerarmos que as representações midiáticas refletem, mas também podem contribuir em alguma medida na construção das representações sociais de grupos sobre o que pensam de si, e sobre o que pensam de outros grupos, não partimos da premissa de que isso aconteça sempre de forma consensual. Também da mídia retiramos um exemplo de negação deste tipo de representação que desqualifica o capital cultural das classes populares. Eis um trecho de um texto publicado no jornal Folha de S. Paulo:

Sou ex-pobre. Todos querem me vender geladeira agora. O trem ainda quebra todo dia, o bairro alaga. Mas na TV até trocaram um jornalista para me agradar.(…) Há empresas, publicações, planos de marketing e institutos de pesquisa exclusivamente dedicados a investigar as minhas preferências: se gosto de azul ou vermelho, batata ou tomate e se meus filmes favoritos são do Van Damme ou do Steven Seagal. (Aliás, filmes dublados, por favor! Afinal, eu, como todos os membros da classe C, aparentemente tenho sérias dificuldades para ler com rapidez essas malditas legendas.) (MACHADO, 2012)10.

                                                                                                                         

8 Zylberkan, Mariana. A classe C no horário nobre. Como – e por que – a Rede globo celebra a classe média emergente em suas duas principais novelas. Veja, 20 de abril de 2012. Disponível em <

http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/a-globo-e-pop > Acesso em 16 de ago 2012.

9 Foram entrevistados 10 profissionais da área de criação de agências de publicidade a respeito de escolhas estéticas para criação de peças voltadas para a nova classe trabalhadora.

10 MACHADO, Leandro. De repente Classe C. Folha de S. Paulo, 15 jul. 2012. Texto completo disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/54594-de-repente-classe-c.shtml> Acesso em 28 jul 2013. O autor do texto é estudante de letras na Universidade Federal de São Paulo e escreve no blog Mural, do jornal em questão.

(11)

 

A crítica parece mostrar justamente uma resistência a estas representações que hierarquizam as diferenças, de forma que o diferente vire sinônimo de pior. Mas, ainda que considerando as resistências, é importante fazer uma interpretação crítica dos significados e mensagens dos conteúdos midiáticos e dos sentidos que circulam na sociedade, uma vez que eles podem acabar sinalizando as trilhas percorridas pela cultura, com os conceitos que vão se criando (nos vários campos sociais) e se incorporando ao senso comum. Isso, especialmente, se pensamos que os conteúdos veiculados principalmente na mídia de massa são produzidos para falar com o máximo possível de pessoas, veiculando, portanto, conteúdos mais consensuais do que polêmicos. A partir daí pode-se ter uma nuance das principais representações sociais de grupos em uma determinada época, inclusive sobre o que pensam sobre si e sobre outros.

O que não se pode perder de vista é que a produção dos conteúdos na comunicação de massa é feita por pessoas que estão localizadas em determinadas posições sociais e a própria escolha do que vai ou não ser veiculado pode ser reflexo de desigualdades duráveis ou combustível para que elas se perpetuem. E que, apesar de este tipo de conteúdo depreciativo das classes populares não terem necessariamente passado a existir com a asensão da nova classe trabalhadora, pode-se pensar na possibilidade da ancoragem desta parcela da população a uma representação social já categorizada e legitimada no senso comum, que é a da depreciação do gosto popular.

A desigualdade e as fronteiras entre grupos.

A desigualdade, segundo Tilly (1998), é a distribuição desigual de atributos entre tipos de unidades sociais, como indivíduos, categorias, grupos ou regiões, e seu interesse de estudo é voltado para aquelas desigualdades entre pares categóricos que duram por carreiras, vidas. Esses pares categóricos são constituídos por grupos que dividem uma fronteira entre si, havendo um controle aos acessos, e uma categorização hierárquica entre os lados da fronteira, o que gera desigualdades, na constituição de insiders e outsiders. Para o autor, esses bens que são distribuídos de forma desigual não são somente os salários, mas podem se configurar como o controle de terras, a exposição a doenças, o respeito por parte dos outros, o risco de homicídios etc. Pode-se inferir que há, dentro da divisão categóricas, apropriações diferentes tanto de bens econômicos, quanto de aspectos simbólicos, como respeito, por exemplo, que poderia ser medido pelas próprias representações sociais que um grupo tem de outro, e as chances de vida. O foco de Tilly (1998) é analisar as fronteiras entre categorias, que consistem em um arranjo de atores que partilham uma fronteira que os dinstingue, e ao mesmo tempo os relaciona; coloca junto um grupo de pessoas

(12)

 

consideradas similares11 e separa os não similares, definindo a relação entre os dois grupos, promovendo scripts dentro das fronteiras que vão desenhar as práticas, com uma maior probabilidade de solidariedade interna e distinção em relação ao exterior.

Desta forma, é possível pensar, por meio da mídia, a nomeação, via representações sociais, que se faz da nova classe trabalhadora, criando ou fortalecendo uma fronteira entre grupos vizinhos (a classe média e a nova classe trabalhadora), oferecendo então uma espécie de mapa identitário para ambos. O que é preciso pensar é que

as pessoas que se encontram em posições dominadas no espaço social também estão em posições dominadas no campo de produção simbólica. Não se vê de onde seria possível que lhes viessem instrumentos de produção simbólica de que necessitam para exprimirem seu ponto de vista sobre o social (BOURDIEU, 2012, p. 152).

Ou seja, não vem das classes trabalhadoras a visão hegemônica que está sendo construída ou refletida na mídia. Se esta visão define fronteiras, classifica, nomeia, pode-se pensar que há aí uma luta simbólica pelo espaço social, em que as armas são desigualmente distribuídas entre os grupos vizinhos.

Segundo Tilly (1998) as raízes da desigualdade categórica entre grupos se encontra em dois mecanismos: a exploração12 e o acúmulo de oportunidades13. Em relação aos conteúdos midiáticos, não podemos dizer que haja uma relação de exploração, afinal, não se pode dizer que os conteúdos midiáticos mediariam uma relação em que um grupo ganha e outro perde, rivalizando dois lados antagônicos e mobilizados, ou, nos termos de Tilly (1998), que se ancora na teoria marxista, em que um grupo se apropria dos esforços dos outros e os excluem do valor total feito pelo esforço. Mas, pode-se pensar que os conteúdos midiáticos reforçam um acúmulo de oportunidades, em que não há a apropriação dos esforços dos outsiders, mas há a exclusão deles ao acesso aos recursos relevantes. Sequestra-se para si conhecimento, linguagem, casamentos, religiões, créditos, ou seja, toda forma de capital econômico e cultural e, consequentemente, o prestígio que vem disso, o capital simbólico (BOURDIEU, 2009), formando uma rede distinta, em que os recursos valoráveis são apropriados, e crenças e práticas são criadas para a sustentação e o controle dos recursos da rede (Tilly, 1998). O sequestro de que se trata aqui é o do bom-gosto, do capital cultural.

                                                                                                                         

11 Similaridade, neste sentido, não quer dizer homogeneidade. O autor exemplifica que um muçulmano vai ser mais ou menos muçulmado em relação a outro. Mas em relação a um judeu, ele será indiscutivelmente muçulmano.

12 O conceito de exploração de Tilly (1998) segue a concepção marxista sobre a apropriação dos esforços de outros e exclusão destes do valor total feito pelo esforço.

13 Acumular oportunidades, para o autor, é adquirir acesso a recursos regulamente a partir do modus operandi de uma organização, criando crenças e práticas que sustentem o seu controle. Neste caso, não há o requerimento do esforço de outras pessoas, mas há a exclusão das mesmas do acesso aos recursos relevantes.

(13)

 

Além disso, segundo Tilly (1998), um dos processos que generalizam os efeitos das desigualdades estão a emulação e a adaptação. A emulação é a reprodução dos mecanismos de dominação em outras instâncias, multiplicando as desigualdades e passando a ilusão de ubiquidade e inevitabilidade. E pode-se pensar que é isso o que a mídia tem feito, que é copiar os sentidos da desigualdade que operam na sociedade e reveiculá-los de forma massiva. A adaptação consiste na elaboração de uma rotina diária, com ajuda mútua e o uso de influência política na base das estruturas desiguais. É a organização de mecanismos para a possibilidade e perpetuação da dominação. Pode-se pensar que a adaptação no caso desta análise é a própria capacidade que a mídia tem que adaptar os sentidos contidos nas desigualdades categóricas duráveis dentro das estruturas das telenovelas e dos conteúdos jornalísticos.

Tilly (1998) afirma que a combinação de categorias exteriores e interiores reforça as desigualdades na organização. Pode-se fazer um paralelo com o discurso midiático, de forma que, se as categorias exteriores ao que se diz na mídia, ou seja, nos campos sociais, nas ações e relações sociais das pessoas, se combinam com os discursos midiáticos, mais forte este discurso pode se tornar na sociedade, já que um sentido reforça o outro, tornando a apropriação e a negociação mais fortes do que a negação dos sentidos. Ou seja, um sentido prevaleceu sobre outros e houve, portanto, dominação.

Assim, pensar a partir dos pares categóricos pode ser uma ferramenta bastante útil para descortinar essa naturalização das desigualdades duráveis, que atribui as desvantagens no campo social a diferenças individuais de capacidade ou de empreendimentos, quando na verdade, desempenhos diferentes de indivíduos podem ser efeitos da desigualdades persistentes entre grupos. Conclusão

Este trabalho buscou analisar algumas representações sociais a respeito da nova classe trabalhadora brasileira. O que une esses discursos é a desqualificação via capital cultural, do gosto das classes trabalhadoras. À luz da distinção e dos mecanismos de geração e reprodução das desigualdades, é possível pensar que esta noção depreciativa que se faz da nova classe trabalhadora na mídia de massa possa ter relação com a proteção de uma “honra” que vai além da condição econômica.

As repetidas investidas na questão do mau gosto e no capital cultural precário podem refletir uma defesa de um território simbólico entre classes sociais – média e trabalhadora -, em que a fronteira é enrijecida nos casos em que analisamos, sob a bandeira de um capital cultural (ou do

(14)

 

acesso aos bens culturais tidos como legítimos), desta forma buscando acumular as oportunidades da experimentação estética somente para quem esteja dentro de um dos lados desta fronteira. Como se pôde ver no texto de Danuza Leão, é preferível o isolamento em casa à abertura das fronteiras e a convivência com o Outro.

Em outras palavras, hierarquizar faz parte da constituição de pares categóricos e das representações sociais. E o que esta hierarquização parece sugerir é que, apesar de a nova classe trabalhadora ter agora um maior poder de consumo, alguns discursos a desqualificam, como se trabalhassem em uma perspectiva distintiva, em que pode-se até diminuir as distâncias de capital econômico entre as classes, porém a classe popular continuará sendo o Outro, já que não traz consigo o mesmo capital cultural, adquirido pela educação e pelo acesso aos bens culturais. Mas mais que isso: um Outro que não é só diferente. É pior.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

______. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes (Coleção Sociologia), 2009.

______ O espaço social e a gênese das “classes”. In O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. El mundo de los bienes: hacia una antropología del consumo. México: Grijalbo, 1990.

JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Comunicando o gosto: a publicidade para a Classe C. Anais do Comunicon – I Congresso Internacional de Comunicação e Consumo. Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM. São Paulo: ESPM, (2011).

______. “Olhai as periguetes”: a representação das classes populares na mídia e a estetização da diferença. Anais do Comunicon – II Congresso Internacional de Comunicação e Consumo. Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM. São Paulo: ESPM, 2012.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

NERI, Marcelo. A Nova Classe Média: O Lado Brilhante dos Pobres. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010. RIAL, Carmen; SILVA, Sandra Rubia da; SOUZA, Angela Maria de (orgs). Consumo e cultura material: perspectivas etnográficas. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2012.

(15)

 

Souza, Jessé. Os Batalhadores Brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

Tilly, Charles. Durable Inequality. Berkeley: University of California Press, 1998.

Referências

Documentos relacionados

Foi apresentada, pelo Ademar, a documentação encaminhada pelo APL ao INMETRO, o qual argumentar sobre a PORTARIA Nº 398, DE 31 DE JULHO DE 2012 E SEU REGULAMENTO TÉCNICO

Neste trabalho avaliamos as respostas de duas espécies de aranhas errantes do gênero Ctenus às pistas químicas de presas e predadores e ao tipo de solo (arenoso ou

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

Estudo descritivo retrospectivo que descreve o perfil de pacientes adultos, internados em um centro de terapia intensiva de um hospital universitário de Porto Alegre, Rio Grande do

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de