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Os desafios de campo da perícia antropológica: uma experiência em Terras Indígenas Guarani do litoral norte de Santa Catarina 1

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Academic year: 2021

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1 Os desafios de campo da perícia antropológica: uma experiência em Terras

Indígenas Guarani do litoral norte de Santa Catarina1

Viviane Coneglian Carrilho de Vasconcelos

Resumo

Este artigo traz uma experiência de perícia antropológica judicial realizada no litoral norte do estado de Santa Catarina referente à demarcação das Terras Indígenas Guarani de Piraí, Tarumã, Pindoty e Morro Alto. Estas estão distribuídas entre os municípios de Araquari, Balneário Barra do Sul e São Francisco do Sul e totalizam aproximadamente 9.300 hectares das poucas áreas de remanescentes de Mata Atlântica da região.

As quatro áreas são compostas por oito aldeias, que fazem parte de um complexo maior da rede de aldeias Guarani dessa região que totalizam dez aldeias Guarani. Aquelas que compõem as quatro terras indígenas são designadas por: aldeia Tiaraju (Terra Indígena Piraí, em Araquari), aldeias Tarumã e Tarumã Mirim (Terra Indígena Tarumã, em Araquari), Yvapuru, Jabuticabeiras, Pindoty e Conquista (Terra Indígena Pindoty, Araquari e Balneário Barra do Sul) e aldeia de Morro Alto (Terra Indígena Morro Alto, em São Francisco do Sul). As duas outras aldeias que fazem parte deste contexto litorâneo são: Yakã Porã em Garuva e Reta em São Francisco do Sul, ambas ainda não estão com seu processo de regularização fundiária iniciado.

O estudo pericial antropológico um momento possui especificidades por ser um estudo com finalidades jurídicas. A pesquisa de campo pericial apresenta questões sui

generis que não se apresentam em condições triviais de trabalho de campo

antropológico. Este é um processo bastante conflituoso dado o próprio contexto em que se cria, e bastante violento para as comunidades periciadas. Sendo assim, este artigo apresenta propostas para tornar o processo pericial com maior representatividade indígena maior respeito à integridade das comunidades em áreas sub judice.

Palavras-chave: Perícia antropológica, violência, índios Guarani.

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“Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN”.

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Para um melhor entendimento do contexto em que esta perícia judicial nasceu será retomado o histórico de estudos de natureza antropológica, bem como, os de regularização fundiária empreendidos pela Funai na região do litoral catarinense. Isto porque tanto os históricos de ocupação indígena quanto os de regularização fundiária estão intimamente relacionados.

O primeiro estudo que se têm registro da região do litoral norte catarinense foi realizado por Ladeira (1991) e tinha por objetivo mapear locais de ocupação e mesmo aqueles anteriormente ocupados de forma intermitente ou não pelos Guarani. Ele trás em anexo outro estudo de natureza científica realizado por Bott (1975) para uma disciplina de etnologia indígena, na Universidade Federal de Santa Catarina, no qual registra já em meados da década de 1970 a ocupação Guarani na Terra Indígena de Morro dos Cavalos, litoral centro do estado. Esta terra indígena possui fundamental importância histórica na ocupação e fundação das atuais aldeias Guarani ao longo deste litoral, e constituía-se em um dos principais locais de parada quando das caminhadas advindas do sul. Ainda neste estudo, as informações referentes ao litoral norte incluem um caso de expropriação da terra sofrida pelos Guarani ao qual a autora tentava acompanhar, mas do qual não obteve maiores informações a não ser que depois de expulsos do local designado por Corveta 2 pelos estudos fundiários da Funai e tekoa Kuri’y pelos indígenas, foram levados para um lote urbano com condições precárias de moradia, sem água, da qual era coletada de balde de um vizinho apelidado de Paraíba.

Foi através do encaminhamento deste levantamento para a Funai alertando sobre a existência destas aldeias e da demanda territorial indígena que a instituição iniciou a regularização da Terra Indígena de Morro dos Cavalos em 1993 e posteriormente M’Biguaçu em 1994, através dos estudos de Wagner Oliveira, que foram posteriormente adaptados por conta das novas regras para elaboração de RCID dados pela Portaria n° 14/MJ/96.

Em meados da década de 1990 outros estudos são empreendidos sobre as comunidades indígenas dessa região. Foi por conta do início dos processos de duplicação da BR 101 que, em 1996 foi elaborado o “Relatório sobre as áreas e comunidades Guarani afetadas pelas obras de duplicação da BR 101 no estado de Santa Catarina, trecho Garuva – Palhoça” de autoria de Ladeira, Darella e Ferrareze com objetivo de identificação de impactos decorrentes deste empreendimento sobre as comunidades Guarani que ocupavam inúmeras localidades ao longo desta rodovia ou nas proximidade.

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Esses estudos apontaram como principal demanda a importância das regularizações fundiárias das áreas Guarani do litoral catarinense, através de demarcação ou aquisição de área. Este estudos foram realizados com recursos advindos do Convênio DNER/FUNAI PG-122/97-00, de 28 de agosto de 1997, no qual à Funai cabia realizar os estudos de identificação e delimitação das áreas Guarani do litoral, neste área de influência do estudo (ou seja, Garuva a Palhoça). Para tanto foi criado o GT – Grupo Técnico, instituído pelas Portarias n° 641/PRES 699/PRES/1988 com objetivo de eleição, identificação e delimitação das áreas indígenas do norte de Santa Catarina.

Os Guarani não aceitaram as conclusões do estudo empreendido pela coordenadora do GT Iane Andrade Neves no qual este não reconhecia a tradicionalidade das terras ocupadas nessa região. Além disso, as áreas foram consideradas diminutas e insuficientes para a reprodução física e cultural do grupo. Por isso, iniciou-se um rápido movimento entre os indígenas e a resposta da Funai também foi rápida, pois logo que cancelou os despachos de eleição da criação de reservas indígenas Morro Alto e Pindoty, (n° 184 e 185 respectivamente, através dos Despachos n° 06 e n° 45) instituiu novo GT de identificação, delimitação e demarcação pelas Portarias n° Portaria nº 428/PRES de 15 de maio de 2003.

Foi por conta desta aparente e “abrupta” contradição que vieram os principais questionamentos dos autores para a Funai, durante o momento do contraditório do processo de demarcação dessas Terras Indígenas. Os principais argumentos diziam respeito à Funai empreender estudos com vistas a criação de reserva indígena, com base no art. n° 26 do Estatuto do Índio Lei 6001/73, através de eleição e aquisição das áreas e logo depois, empreender outro estudo com vistas a demarcação como terra tradicional. Os critérios utilizados pela Funai para o reconhecimento das áreas indígenas como de ocupação tradicional seriam, na visão dos autores, questionável.

Estas terras indígenas foram fundadas a partir de passagens de famílias Guarani que em seus deslocamentos ao litoral receberam apoio e oferta de local de moradia por não-indígenas, alguns com nítidas intenções de garantir a posse da área em favor pessoal. Tal fato coincide com uma ocupação antiga que vinha se apresentando no local mesmo antes destas primeiras parentelas a chegarem na região, pois estas são recorrentes também nas falas dos ancião e muitos são os relatos daqueles que de tanto ouvir as histórias sobre o litoral desejavam aqui fazer moradia. Vale lembrar, que essas parentelas que chegaram á região em 1979 já faziam parte de um movimento de vindas

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para essa região ou mesmo em direção ao norte subindo o litoral, segundo narram os indígenas e como apontam autores como Schaden (1974):

“não se pode afirmar que esteja encerrado definitivamente o ciclo das migrações Guarani em direção do litoral. Ainda em meados de 1947, encontrei no oeste catarinense, na região de Xapecó, várias famílias Mbüá, que manifestavam a intenção de ir até o litoral, a fim de se reunirem a seus parentes e amigos. Haviam realizado parte da viagem e estavam à espera da ordem divina para levá-la a cabo”.

Os indígenas ficam na área porque eles entendem que essas áreas fazem parte de seu território tradicional. Existe um forte sentimento de pertença com o estado de Santa Catarina, e por isso, querem permanecer no litoral, local onde habitaram seus ancestrais. Apesar das mais diversas evidências da ocupação Guarani, a ideia de que “nunca teve índio” na região é parte do discurso hegemônico dos não-indígenas.

Os relatos das caminhadas Guarani deixam claro que as parentelas andam em relação umas às outras. A ideia é a de que enquanto umas vão “à frente” outras vão “atrás”. No mais das vezes os relatos, narrados em geral pelos homens, também fazem alusão ao fato de seguirem o casal de sogro e sogra. Ou seja, as caminhadas se fazem na relação entre as parentelas. O que reforça a ideia da terra de parentes nas quais as caminhas são empreendidas em função da procura de parentes.

O emprego da expressão “fazer a volta” – oodjeyu foi recorrentemente usado nos relatos Guarani. Os caminhos realizados pelos Guarani Mbya possuem um traçado bastante definido e pode-se mesmo dizer que este é diferente do traçado empreendido pelos Chiripa, mas estes se entrecruzam em dados momentos. Saindo das matas do interior do Brasil, Paraguai e Argentina, esses grupos chegam ao litoral do Rio Grande do Sul e iniciam a sua caminhada à borda do oceano – yvy rembere.

São frequentes os relatos das passagens e mesmo moradias pela região de Jaguaruna, Morro dos Cavalos, Rio do Meio, em Itajaí no litoral norte catarinense. Os Guarani mais antigos contam que vinham seguindo os mais parentes mais velhos e dizem que estes estavam em busca da terra sem mal – yvy mara ey. Inúmeros são os relatos de uso tradicional e da importância simbólica desses locais ocupados ao longo do litoral e no litoral norte do estado mais especificamente. Segundo os indígenas, o não reconhecimento destas áreas como terras tradicionais fere a história e memória indígenas (Leonardo Whera Tupã apud Darella, 2010).

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Após ser judicializado o processo de demarcação de tais áreas, os argumentos trazidos pelos advogados dos autores em suas petições iniciais era a de que não haveria habitação tradicional anteriormente a 1988. Estes não apenas eram errôneos como um dos próprios autores da ação, a empresa têxtil Karsten, têm parte de sua área sobreposta a uma antiga aldeia em estilo tradicional e considerada uma aldeia ideal para os Guarani. Esta antiga aldeia se localizava dentro de onde hoje a sede da fazenda Araquari, de plantação de eucaliptos para abastecimentos dos fornos da empresa, feitos à lenha.

Durante a caminhada até a antiga aldeia de Corveta 2, de onde os Guarani sofreram um emblemático e violento caso de esbulho, foi sugerido pelo assistente técnico da empresa que o fato de não ser encontrado vestígios materiais de ocupação, então a afirmativa de que houve ocupação destes indígenas no local seria inverídica. O indígena que nos acompanhava ficou bastante ofendido, pois isto fere um dos valores máximos do ethos Guarani: a honestidade. Além disso, a mentira é considerada um desacato com deus. Todos os parentes de sua esposa haviam residido no local denominado de Corveta 2 e ele mesmo visitara seu sogro por diversas vezes. Após um discurso emocionado no qual lamentava ser tido por desonesto, Aristides da Silva, cacique da aldeia de Tarumã Mirim, Terra Indígena Tarumã, nos concedeu entrevista.

Sendo assim, os Guarani não apenas ocupam tais locais anteriormente ao marco da constituição de 1988, bem como, a ocupam de modo tradicional, segundo os usos, costumes e tradições. Infelizmente devido a esta confusão com um dispositivo que na prática só tinha validade legal para o caso da demarcação da Raposa Serra do Sol que não possui efeitos vinculantes a outras demarcações de terra no Brasil. Porém, o medo que se cria por conta do marco temporal não deixou não indígenas falar em datas. Poucos não-indígenas, mais corajosos falaram em datas. Alguns discursos violentos de não-indígenas e as vezes mesmo da parte dos assistentes técnicos dos autores não são raros na rotina de campo pericial.

O antropólogo não pode perder o caráter antropológico de trabalhos dessa natureza, como nos lembra, João Pacheco de Oliveira Filho (1994, p. 115). Não é um trabalho judicial no sentido de colher depoimento (como lembra Eremites e Pereira (2009).

Mesmo com esses cuidados foram estas e tantas outras violências e violações de direitos indígenas em campo pericial que motivou a escrita deste artigo. Sendo assim, ele é uma denúncia do modo como acontecem as perícias judiciais antropológicas no

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Brasil. A indicação realizada pela ABA – Associação Brasileira de Antropologia, do perito ainda é pouco para diminuir as violações aos direitos e desrespeito a integridade indígena em processos de perícias judiciais. A proposta deste artigo é que o a perícia judicial antropológica deve ser um processo consultivo, para possibilitar não apenas o direito a escolha, bem como, para que as comunidades possam se organizar internamente.

Os trâmites deveriam ser mais detalhados, os quesitos devem ser apresentados e a comunidade deve redigir uma carta de aceite deste processo em suas áreas. Deve-se ter um tempo para a comunidade se manifestar e se organizar para entender o processo. Os indígenas devem ter acesso aos quesitos. Devem ter um tempo próprio para apropriarem-se deste importante momento de decisão sobre o destino de suas terras.

Referências:

DARELLA, M. D. et al. Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto do Meio Ambiente. Duplicação da Rodovia BR 280 trecho São Francisco do Sul – Jaraguá do Sul/Santa Catarina. Ilha de Santa Catarina, 2010.

E. DE OLIVEIRA, J; e PEREIRA, L. Ñande Ru Marangatu. Laudo antropológico e histórico sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora, UFGD, 2009.

LADEIRA, M.I; DARELLA, M. D. e FERRAREZE. Relatório sobre as áreas e

comunidades Guarani afetadas pelas obras de duplicação da BR 101 no estado de Santa Catarina, trecho Garuva – Palhoça, 1996.

LADEIRA. M.I. Relatório Projeto Guarani/CTI. Áreas do litoral de Santa Catarina, 1991.

OLIVEIRA, W.A. Terra Indígena M’Biguaçu (etnia Guarani), município de Biguaçu/SC, 1994.

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Schaden, E. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. Edusp: São Paulo, 1974.

SILVA, O.S.; LUZ, L; HELM, C; M. Os instrumentos de bordo: Expectativas e Possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: A perícia antropológica em processos judiciais. Editora da UFSC, Florianópolis, 1994.

Referências

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