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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática: 17. Teoria Política

CONTRA AGAINST DEMOCRACY: Uma crítica à epistocracia como solução para os problemas da democracia

Luiza Brandes

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política Universidade Federal de Santa Catarina

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Resumo Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xx (máximo de 250 caracteres) Palavras-chave: (máximo 5) Abstract Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xx (máximo de 250 caracteres)

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Introdução

Quase um terço dos eleitores americanos não sabe que o slogan marxista “de cada um segundo sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade” não está na constituição norte-americana (BRENNAN, 2016). A maioria dos eleitores esquece em quem votou logo depois das eleições (ALMEIDA, 2006; ACHEN, BARTELS, 2016). Grande parte deles não sabe quais são as atribuições e responsabilidades das autoridades públicas e responsabilizam, por exemplo, os governos federais por políticas de competência dos governos locais (SOMIN, 2013). Os eleitores também punem políticos por infortúnios naturais, como ataques de tubarão (ACHEN, BARTELS, 2016). Não seria melhor desistir da democracia?

Uma que série de estudos tem chamado a atenção para os dilemas e dificuldades não superados pelas ideias e práticas democráticas, especialmente pela democracia eleitoral, que se construiu desde as primeiras lutas pelo sufrágio universal. Vários desses estudos, como os produzidos pela crítica elitista da democracia de massas e pela escola de Michigan, chamaram a atenção para a incapacidade do eleitor médio de desenvolver um juízo qualificado para orientar a escolha de representantes ou plataformas partidárias. A partir desses estudos críticos concentram-se em evidenciar, inclusive empiricamente, os problemas e as dificuldades da democracia moderna, com o intuito de aperfeiçoa-la. No entanto, alguns deles vão mais a diante, buscando derivar das evidências dos problemas da democracia argumentos em defesa de modelos alternativos de regime político. Este é o caso do difundido livro de Jason Brennan, Against Democracy (2016).

Embora as críticas à democracia sempre tenham se feito presentes, é inegável que ela, desde meados do séc. XX, tenha sido bastante aprovada, tanto pelo senso comum quanto pelos teóricos políticos. Há pouco tempo podíamos dizer que a democracia reinava absoluta enquanto horizonte normativo e forma real de governo, uma vez que não parecia haver alternativa consistente a ela após a derrocada dos sistemas comunistas (MOUNK, 2020). No séc. XXI, a nossas certezas estão abaladas e a democracia parece estar em risco. Assistimos, com isso, à multiplicação de trabalhos que buscam lidar com o problema das crises na democracia, nos chamando a atenção para os sinais que prenunciariam o colapso desse sistema, para que possamos reagir antes que o fim chegue e a morte seja declarada1.

Ao contrário desse movimento, o filósofo estadunidense busca apresentar motivos para abandonar o instrumento de formação de governos das democracias, trocando-o por um

1 Como a democracia chega ao fim; Como as democracias morrem; O povo contra a democracia;

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“martelo melhor”2 ou mais eficiente. O movimento de Against Democracy contra a corrente mais tradicional da teoria política contemporânea é, no mínimo, inquietante. Já no prefácio o autor afirma estar insatisfeito com a visão romantizada que embasa a defesa de filósofos e teóricos políticos à democracia e que, por isso, se viu incitado a fazer o papel de “advogado do diabo” (BRENNAN, 2016, p. vii).

O autor tenta demonstrar como o ideal de igualdade em que se fundamenta a democracia deu aos cidadãos interessados e informados sobre política o mesmo poder de participação que têm os cidadãos pouco interessados e ignorantes e, segundo ele, isso nos tem levado à tomada de decisões ruins, prejudiciais e injustas. Para Brennan, é preciso buscar um regime com resultados substantivamente mais eficientes, a epistocracia. A maior diferença entre a democracia e a epistocracia, diz o autor, é que nesta última “as pessoas não têm, por padrão, o mesmo direito de votar ou concorrerem a cargos”3 (BRENNAN, 2016, p.208), nesse regime, o “poder político é formalmente distribuído de acordo com a competência, a habilidade, e a boa-fé para agir com base nessa habilidade” (BRENNAN, 2016, p. 14). Assim, de acordo com o filósofo, é menos injusta a desigualdade no direito de votar e ser votado, do que permitir que a igualdade nesse quesito traga como resultado decisões ruins e maus governos. O que o autor não responde é o que são decisões ruins e como se classificam maus governos.

Vale ressaltar, contudo, que o livro de Brennan vem a público num contexto histórico de recessão democrática4, de guinada conservadora e ascensão de governos populistas autoritários. Desta forma, o contexto mais recente, tende a apoiar a tese de Brennan de que eleitores ignorantes podem fazer escolhas que podem ser consideradas desastrosas. Os exemplos são abundantes: Bolsonaro, no Brasil, Donald Trump, nos EUA, Brexit, no Reino Unido, a ascensão dos partidos populistas em democracias aparentemente consolidadas, como a França, Grécia, Hungria, Itália, entre outros. Talvez, se as pessoas mal informadas politicamente não participassem dessas decisões, o desfecho desses eventos teria sido outro,

2 O autor apresenta a analogia do martelo para enfatizar sua visão da democracia como um valor

instrumental, se contrapondo às visões que atribuem à democracia um valor intrínseco ou simbólico.

3 Essa e as demais traduções dos textos referenciados em língua estrangeira são de minha

autoria.

4 Conforme relatório da Freedom House disponível em:

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defendem alguns5. Trump6 e Brexit7 foram considerados por Brennan resultado da ignorância dos cidadãos. A defesa da supressão da ampla participação popular nos processos de decisão política, nesse contexto, pode ser entendida como uma tomada de posição anti-conservadora e progressista.

Contudo, a proposta de desequilibrar o poder político entre os cidadãos, por critérios de conhecimento, parece ser o tipo de solução que traz mais danos que benefícios. Assim, o presente trabalho pretende analisar as críticas às democracias contemporâneas, que tem mobilizado argumentos já conhecidos na tradição da teoria democrática, cujo exemplo acabado é obra de Jason Brennan. O trabalho está dividido nas seguintes seções: reconstrução das críticas à democracia; descrição do modelo epistocrático, formulado como alternativa; argumentação sobre os problemas da solução proposta, bem como apresentação dos motivos pelos quais a epstocracia não parece ser uma boa maneira de resolver os problemas da democracia; e, por fim, defesa do porque não desistir da democracia. Argumenta-se que a constatação de que a democracia tem problemas, que deveriam ser corrigidos, não implica que devamos então abandoná-la, muito menos que devêssemos adotar a epistocracia, já que é possível aperfeiçoar a democracia e promover adaptações.

1. Os problemas da democracia (seção não finalizada)

Ficou bastante célebre a frase atribuída à Churchill de que “o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano”. Embora se diga que essa frase nunca saiu da boca do ex primeiro ministro inglês8, essa visão sobre a democracia já foi bastante comum. Muitos críticos da democracia, começando por Platão, acreditavam que o resultado desse tipo de governo seria sermos governados por ignorantes. Conforme afirma Ruciman:

Até o final do século XIX, o consenso era de que a democracia, no geral, significava uma péssima ideia: é arriscado demais conferir poder às pessoas que não sabem o que fazem. Claro, esse era o consenso apenas entre

5 A título de exemplo ver texto da Carta Capital: Donald Trump, Brexit e a maioria silenciosa.

Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/internacional/donald-trump-brexit-e-a-maioria-silenciosa>.

6 Conforme escreveu Brennan em: Trump Won Because Voters Are Ignorant, Literally.

Disponível em: < http://foreignpolicy.com/2016/11/10/the-dance-of-the-dunces-trump-clinton-election-republican-democrat/>.

7 Brennan compara o referendo do Brexit à decisão de um médico incompetente e irracional em

artigo publicado por Uri Friedman, Should the Brexit Vote Have Happened at all? Disponível em: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2016/06/brexit-vote

referendumdemocracy/488654/>.

8 Conforme lista feita por Michael Richards de citações atribuídas à Churchill que nunca foram

ditas por ele, disponível em: https://winstonchurchill.org/publications/finest-hour/finest-hour-141/red-herrings-famous-quotes-churchill-never-said/.

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intelectuais. Não temos muito como saber o que as pessoas comuns pensavam a respeito. Ninguém lhes perguntava (RUCIMAN, 2018, n.p.).

Ainda no início do séc. XX, Max Weber não tinha dúvida de que o sufrágio universal era um risco, devido a irracionalidade das massas. Segundo ele:

O perigo político da democracia de massas para o Estado jaz primeiramente na possibilidade de elementos emocionais virem a predominar na política. A 'massa' como tal (independentemente das camadas sociais que a compõem em qualquer exemplo particular) só é capaz de pensar a curto prazo. Pois, como toda experiência mostra, ela está sempre exposta a influências diretas puramente emocionais e irracionais (WEBER, 1980, p. 82).

2. A proposta de governo epistocrático

Em A República, Platão defendeu que melhor governo seria aquele no qual os filósofos fossem reis ou os reis fossem filósofos. A convicção de que as massas eram incapazes de dirigir o governo e que, portanto, esse papel deveria ser assumido pelos mais sábios e mais aptos, colocou o filósofo grego no quadro dos que defendiam um governo aristocrático (dos melhores). Dificilmente alguém discordaria que seríamos mais bem governados se aqueles que estivessem à frente do Estado fossem também os que sabem governar melhor. Porém, esse argumento tautológico não nos permite ir muito longe. Os problemas começam quando precisamos decidir quem são os “melhores”. Para Platão, aqueles que amam a verdade, têm alma racional e buscam o conhecimento, deviam compor a classe dos governantes. Os filósofos, porque sabem discernir sobre o que é justo e são, segundo ele, muito bons em contemplar as ideias até chegar à essência das coisas e podem alcançar conhecimento imutável, seriam os melhores reis. Assim, a concessão de poder deveria ser baseada em critérios epistocráticos, ou seja, com base no conhecimento. Mas, nada garante que na prática as coisas correriam tão bem assim: bons filósofos serão necessariamente bons governantes? Como decidir qual filósofo será o filósofo-rei? Talvez devesse ser Platão.

É com base na ideia de competência que Jason Brennan defende, que sejam adotados critérios epistocráticos para balizar o direito de votar ser votado9. O autor defende que a participação política tende a produzir corrupção ao invés desenvolvimento intelectual e moral, que a participação política e as liberdades políticas não têm valor propriamente instrumental ou intrínseco e que é mais provável que se produzam resultados políticos mais justos se substituirmos a democracia por alguma forma de epstocracia.

9 Apesar de Brennan afirmar que o modelo proposto se refere a votar e ser votado, na maior

parte do livro as questões abordadas dizem respeito ao direito ao voto. Por isso, esse texto também focará nesse aspecto da participação política.

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Segundo esse autor, as massas não seriam apenas incapazes de exercer um bom governo, mas também de tomar decisões democráticas, como a escolha de representantes, porque são mal informadas, desinteressadas pelos assuntos da política, ignorantes e irracionais. Assim, seria um erro condenar inocentes a sofrer as consequências das decisões estúpidas da maioria dos eleitores.

De acordo com Brennan, sua tese não tem pretensões normativas, pois não idealiza uma sociedade perfeitamente justa, mas se propõe pensar a participação política num mundo de pessoas em que é generalizada a incompetência dos votantes. Ele argumenta, que ao contrário do que especulava John Stuart Mill, a democracia não só não deixa os cidadãos mais esclarecidos, como oferece poucos incentivos para que isso ocorra. O princípio “um eleitor, um voto” num universo que, muitas vezes, envolve milhões de pessoas, produz um efeito de 1/número total de eleitores, ou seja, extremamente pequeno e tendendo a zero. Assim, o custo de se informar e ponderar sobre as várias questões que estão em jogo (propostas, avaliação retrospectiva, ficha dos políticos, etc.) excede a oportunidade de influir nos resultados eleitorais e obter os benefícios esperados. Desse modo, é racional, diz Brennan, que os eleitores não se interessem por política10.

O autor classifica os eleitores em três tipos ideais. Resumidamente são eles: 1) Hobbits: não sabem e não querem saber de política. Têm opiniões fracas e instáveis sobre questões que envolvem assuntos políticos além de conhecimento vago sobre mundo e a história nacional. Nas eleições eles proferem se abster11; 2) Hooligans: interessados por política, mas fanáticos e tendenciosos. Consomem informação de forma seletiva, rejeitando quaisquer dados que ponham em dúvida suas crenças, e qualificam quem pensa diferente como estúpido, mal, egoísta ou desinformado. Eles são os eleitores regulares12, ativistas, membros de partidos e políticos; 3) Vulcans: apoiam suas ideias sobre política na ciência e na razão. São interessados em assuntos políticos, mas desapaixonados, imparciais e abertos a opiniões divergentes, só confiam no que as evidencias permitem.

10 É importante notar que Willian Riker e Peter Ordeshook, em A theory of the Calculus of Voting,

já disseram que, se considerarmos o “paradoxo do voto” apenas como um cálculo da probabilidade de um eleitor ter um voto decisivo, menos a soma de todos os custos de votar, teremos um resultado virtualmente negativo e que, portanto, seria racional que os eleitores (pelos menos nos países em que o voto não é obrigatório) sempre se abstivessem de votar. Sabemos que isso não acontece na realidade. O que falta na equação, de acordo com esses autores, é a satisfação que os indivíduos sentem ao participar do processo decisório. Assim, o incentivo que os eleitores têm de se informar politicamente, não deve ser resultado apenas do cálculo sobre a oportunidade (baixa) de influenciar as eleições e dos benefícios subjacentes, como propõe Brennan, mas também da satisfação de terem sua opinião considerada.

11 Brennan está se referendo ao eleitor dos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório. 12 Idem nota 12.

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Segundo Brennam, embora se tratem de conceitos arquétipos, a grande maioria dos eleitores estão em algum lugar entre hobbit e hooligan, muito poucos são vulcans e os menos informados, os hobbits, são hooligans potenciais. Portanto, estaríamos melhor se restringíssemos a participação política, delegando mais poder aos mais sábios.

Como forma de pôr em prática um governo epistocrático, Brennan sugere várias alternativas: 1) sufrágio restrito: apenas os considerados competentes e bem informados (por algum tipo de métrica) podem votar; 2) voto plural: todos votam, mas o voto das pessoas consideradas capacitadas vale mais; 3) credenciamento aleatório: um processo de seleção aleatória é feito para a formação política de algumas pessoas, as quais será concedido o direito de votar, mas todos podem ser selecionados; 4) veto epistocrático: todos têm direito de votar, mas é formado um conselho restrito de pessoas competentes que podem vetar as escolhas do eleitorado; 5) votação ponderada/ simulação de oráculo: todos votam e preenchem um questionário sobre conhecimento político, o voto é ponderado de acordo com o conhecimento objetivo apresentado no teste.

Para decidir sobre a competência política das pessoas Brennan sugere que seja aplicado um exame de conhecimento político básico. A lógica é a seguinte: da mesma forma que um médico precisa estar habilitado para tratar um paciente e não o colocar em risco, para os cidadãos terem o direito ao voto deveriam ser considerados aptos, para que não comprometam o futuro de inocentes com decisões irresponsáveis.

Porém, a defesa da epistocracia como solução para os problemas da democracia, que seriam gerados pela falta de conhecimento do eleitor, tem uma série de fragilidades. Passarei agora a tratar das que parecem mais evidentes.

3. Problemas da epistocracia

Se assumirmos que cidadãos bem informados produzem governos melhores, podemos aceitar que seria melhor que pessoas que não estivessem preparadas para votar não o fizessem e que apenas aquelas que dominam mais os assuntos concernentes à vida política do Estado comparecessem nas urnas, o que poderia ocorrer simplesmente pela não obrigatoriedade do voto13. Contudo, estabelecer mecanismos para privilegiar grupos com determinados atributos, como “saber mais”, além de ser um passo bem mais incerto, para dizer o mínimo, enseja problemas patentes. Como sabemos quem “sabe mais”? Quem avalia

13 Brennan reconhece que os cidadãos que sabem menos sobre políticas, nos EUA, tendem a

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e quem decide o que é saber mais? Apenas informação é suficiente para definir um posicionamento político? Teríamos que ter eleitores filósofos? Filósofos serão bons eleitores?

Brennan afirma que os eleitores são ignorantes e irracionais. Ignorantes porque sabem pouco sobre política e irracionais porque tomam decisões baseadas em julgamentos errados. Para demonstrar a irracionalidade dos eleitores, Brennan afirma que:

Na política (e outras áreas), padecemos de “do grupo/fora do grupo” ou “viés de grupo”. O viés “do grupo/fora do grupo” significa que somos tribalistas, na conotação mais negativa da palavra. Temos tendência de formar grupos e de nos identificarmos fortemente com eles. Tendemos a criar animosidade em face de outros grupos, mesmo quando não há qualquer fundamento. Temos tendência de assumir que o nosso grupo é bom e justo, que os membros de outros grupos são maus, estúpidos e injustos. Tendemos a perdoar a maior parte das transgressões do nosso próprio grupo e a condenar pequenos erros dos outros. O nosso compromisso com nossa equipe pode sobrepor-se ao nosso compromisso com a verdade ou a moralidade (BRENNAN, 2016, p. 39, grifos meus).

Sendo assim, para acabar com a irracionalidade da democracia com a adoção da epstocracia teríamos que assumir que o conhecimento torna as pessoas imunes aos julgamentos enviesados. Mas nada nos garante que as pessoas que se saíssem bem num exame de conhecimento geral sobre política não sofreriam do mesmo viés cognitivo quando precisassem eleger alguém. De acordo com Larry Bartels e Christopher Achen (2016), como bem lembra David Ruciman (2018), mesmo os instruídos, e os altamente instruídos, cometem erros tão frequentes de julgamento moral e político quanto às demais pessoas.

Já sobre a ignorância dos eleitores, de fato, existe um amplo consenso na literatura da Ciência Política de que os eleitores sabem pouco sobre política. Mesmo assim, o grau de conhecimento do eleitor foi alvo de visões mais pessimistas e mais otimistas. Os estudos da escola de Columbia, principalmente The People’s Choice (Lazarsfeld et al, 1944), e de Michigan, especialmente The Amerian Voter (Campbell et al.,1960), apontavam para um grau de conceptualização dos eleitores extremamente baixo. Já os estudos revisionistas, nos anos 60 e 70, afirmavam que "os eleitores não são tolos" e que eram capazes de atuar de forma condizente com a democracia republicana pois atualizaram suas crenças com base no desempenho do governo (KEY, 1966), e também que o eleitorado americano havia se sofisticado (NIE et al.,1976). Fiorina coloca o contraponto entre as duas leituras afirmando que após intenso debate “o consenso foi que a escola de Michigan havia exagerado as deficiências políticas do eleitor médio, mas certamente não tanto quanto os revisionistas afirmavam” (FIORINA, 1997, p. 396). Mesmo assim, para os teóricos do voto retrospectivo, os eleitores não precisariam de um conhecimento enciclopédico para avaliar os governos, pois bastaria que eles olhassem para os seus bolsos e suas vidas e percebessem se houve uma melhora ou não (FIORINA, 1981; LUPIA, 1994).

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Assim, a crítica à democracia fundada no conhecimento dos eleitores é problemática. Mesmo que permaneçam muito fortes na literatura os estudos que apontam para a o baixo nível de conhecimento políticos dos eleitores, as consequências da falta de informação, nas atitudes e comportamentos políticos, é algo que ainda está em debate (TURGEON; RENNÓ, 2010). Além disso, simplesmente não sabemos os efeitos das avaliações dos eleitores na qualidade da democracia e das políticas adotadas (HEALY; MALHOTA, 2013).

Uma corrente de autores acredita que a informação afeta pouco a escolha dos eleitores14. Em contrapartida, outros estudos têm evidenciado que a informação política afeta as atitudes e preferências dos eleitores (ALTHAUS, 1998; BARTELS, 1996; TURGEON; RENNÓ, 2010, entre outros). Mas, como se disse, os efeitos que essas distorções podem trazer para os outros níveis do governo, inputs e outputs, são pouco conhecidos. De acordo com ALTHAUS (1998), o efeito agregado das assimetrias do conhecimento dos eleitores sobre política parece ser algo palpável, porém, não parece ser algo decisivo na formação das preferências coletivas. Além disso, mesmo que os eleitores acabem cometendo erros como o de responsabilizar os políticos por ações além de seu controle (ACHEN; BARTELS, 2016), para Healy e Malhota, o “tamanho desses efeitos costuma ser pequeno, sugerindo que esses erros podem fazer diferença apenas em eleições apertadas” (HEALY; MALHOTRA, 2013, p. 286). De qualquer modo, Dowding entende que “se algumas pessoas votarem com a devida consideração e outras votarem aleatoriamente, os eleitores aleatórios não afetarão a direção da decisão” (DOWDING, 2017, p. 37). Dessa forma, apenas se comprovássemos que os eleitores votam sistematicamente contra seus próprios interesses “poderíamos acreditar que a qualidade do voto é reduzida pela ignorância” (DOWDING, 2017, p. 37).

14 Ver por exemplo levantamento presentado por Turgeon e Rennó (2010) sobre autores que

convergem nesse sentido: “a maioria das pessoas vota como deveria e têm atitudes "corretas" ou previsíveis, mesmo com níveis informacionais baixos. Ou seja, os eleitores comportam-se da mesma forma quando têm pouca ou muita informação política (Bowler & Donovan, 1998; Lupia, 1994; Lupia & McCubbins, 1998; Popkin, 1991; Sniderman, Brody & Tetlock, 1991). A explicação corrente é que eleitores usam atalhos cognitivos e dicas recebidas através de redes de amigos, membros da família ou grupos para informar os seus votos e atitudes (Huckfeldt e Sprague, 1995; Baker, Ames e Rennó, 2006). Por exemplo, Brady e Sniderman (1985) e Sniderman, Brody & Tetlock (1991) sugerem que as pessoas adotam a "heurística do apresso" (likability heuristic), abraçando posições ideológicas similares às dos grupos que gostam e opostas às dos grupos que não gostam. De forma similar, Lupia (1994) acredita que os eleitores baseiam seus votos nas indicações dos grupos de interesse que apóiam causas próximas às suas [...] Outros pesquisadores acreditam que a falta de conhecimento tem poucas conseqüências por outros motivos. Segundo Page e Shapiro (1992), por exemplo, as pessoas cometem "erros" quando fazem suas escolhas eleitorais, mas no final das contas, os erros cancelam-se quando agregados, deixando a distribuição das atitudes e preferências políticas de um grupo mais próximas às dos mais informados na sociedade. Portanto, a falta de informação individual não afeta os níveis coletivos de informação em uma sociedade. Assim sendo, segundo eles, a falta de conhecimento tem conseqüências ao nível individual mas não tem impactos ao nível agregado. (TURGEON E RENNÓ, 2010, p. 144).

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Assim, o diagnostico pessimista de Brennan, em relação ao baixo grau de informação dos eleitores e o mau desempenho da democracia, não é tão óbvio quanto o autor faz parecer. Além disso, a adoção de um novo tipo de sistema de formação de governos não parece ser uma boa saída para resolver esse problema, que é inerente à democracia de acordo com ele. Podemos pensar em três aspectos que podem interferir na capacidade do eleitor se informar: 1) acessibilidade e fiabilidade das mídias; 2) complexidade do sistema político e eleitoral (SOARES E RENNÓ, 2006); 3) características socioeconômicas: renda, gênero, raça, escolaridade, etc. (RENNÓ, 2007). Porém, nos problemas relacionados a quaisquer dessas dimensões, o mais razoável não parece ser alterar formalmente a correlação de forças políticas dos cidadãos.

Das três questões levantadas acima, Brennan discorre sobre a terceira. Ele reconhece a tendência de que grupos que pertencem aos estratos mais privilegiados da sociedade adquiram mais poder num sistema epistocrático:

Os brancos, em média, sabem mais do que os negros, as pessoas no Nordeste sabem mais do que as pessoas no Sul, os homens sabem mais do que as mulheres, as pessoas de meia-idade sabem mais do que as jovens ou as velhas e as pessoas de alta renda sabem mais do que as pobres. Em geral, as pessoas que já são favorecidas estão muito mais informadas do que as pessoas desfavorecidas. A maioria das mulheres negras pobres, no momento, pelo menos, falharia mesmo um exame de qualificação eleitoral leve (BRENNAN, 2016, p. 226).

Então, se a maioria das pessoas das classes desfavorecidas, como negros, pobres e mulheres, não conseguem se demonstrar muito informadas, para o autor, é melhor desconsiderar a opinião dessas pessoas. Então quem decidiria por elas?

Se a permissão ao voto for restrita àqueles que forem julgados aptos pelo critério do conhecimento, devemos também supor quais serão os grupos mais interessados em receber a “licença” de eleitor. Primeiro, provavelmente estarão mais dispostos a gastar seus recursos de tempo e dinheiro com cursos, livros, obtenção de informação, etc., para se tornarem conhecedores da política, os que têm mais a ganhar ou a perder com as políticas adotadas pelos governos em termos absolutos. Em outras palavras, pessoas mais ricas, grandes empresários, banqueiros, enfim, as classes mais privilegiadas da sociedade, serão provavelmente as que terão mais interesse de, e mais disponilidade para, se classificarem como votantes. Em segundo lugar viram aqueles que Brennan rejeitaria como bons eleitores, os mais engajados politicamente, partidários, ativistas, etc., os próprios hooligans.

Assim, Brennan desvaloriza o caráter semiótico do direito de voto, enquanto expressão do respeito pelo estatuto de igualdade dos cidadãos e afirma que “objeção demográfica” à epistocracia não são forte o suficiente. Para ele 1) essas distorções já existem na democracia; 2) os eleitores não votam egoisticamente, e racionalmente não o fariam pois o custo de votar

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de forma egoísta excede o benefício de fazê-lo; 3) na democracia os políticos tendem a dar às pessoas o que elas querem e não o que elas precisam e pessoas desinformadas (geralmente as desfavorecidas) querem coisas ruins para elas mesmas. Podemos dizer, no entanto, que: 1) o fato de essas distorções já existirem na democracia não torna a epistocracia preferível; 2) se podemos assumir que os eleitores não votam egoisticamente, esse parece ser um ponto em favor da democracia e não da epistocracia, pois, se o voto no sufrágio universal tem um valor infinitesimal e não compensa investi-lo em esperança de benefícios próprios, como diz Brennan, então a ampliação do sufrágio favorece a decisão altruísta enquanto sua supressão favorece o voto egoísta; 3) não parece clara a relação entre inputs ruins e outputs ruins, posto que os políticos querem continuar sendo eleitos e se fizerem coisas que tornam a vida das pessoas pior, provavelmente perderiam aprovação, assim como não temos motivos para acreditar que o grupo que passasse em um “teste simples de conhecimento político” teria um discernimento melhor para decidir sobre o que é melhor para a população.

O autor de Against Democracy diz que se deveria buscar promover a justiça social, tratando a doença e não o sintoma, porém, a epistocracia parece não só não ser apta para tratar o problema, como ser potencialmente propícia a agravar os sintomas. Como Brennan reconhece, é um sistema que tende a favorecer os favorecidos. Assim, ao invés de diminuir o número de eleitores e então corrigir as injustiças sociais, como propõe o autor, parece mais plausível que se defenda a correção das injustiças sociais para “melhorar os eleitores”.

Brennan acredita que Mill estava errado quando conjecturou sobre o aumento da sofisticação política dos cidadãos na democracia. Contudo, Mill também afirmou que “sem salários decentes e alfabetismo universal nenhum governo de opinião pública é possível” (MILL apud PRZEWORSKI, 2010, p. 74). De fato, a desigualdade social, que tem no nível educacional um de seus principais índices, tem sido preocupação permanente de muitos teóricos que defendem o aperfeiçoamento da democracia. O aumento do nível educacional dos indivíduos é um dos aspectos que têm se mostrado relevante na sofisticação política (VIDIGAL E PEREIRA FILHO, 2017) e também na diminuição da corrupção dos eleitores (USLANER E ROTHSTEIN, 2017), dois pontos essenciais da crítica de Brennan à democracia. Deste modo, um dos problemas mais óbvios a ser atacado é o baixo nível educacional, porém, Brennan se coloca cético em relação a isso e diz que não sabemos como tornar as pessoas mais educadas. Mas, derivar disso que se deve foçar a diminuição da participação de quem “sabe menos” traz uma série de novas dificuldades.

Além dos problemas de fundamentação na defesa da epistocracia muito mais poderia ser dito. Apenas para citar (mais) algumas questões, do ponto de vista dos valores morais seculares que embasam a política moderna, tal como a soberania popular, os direitos

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humanos e a dignidade das pessoas, no governo em que apenas um grupo seleto de pessoas pudesse votar e ser votado, como este se legitimaria e justificaria? Como se daria o vínculo entre representantes e representados que engendra as noções de representação e responsividade? Como se daria o vínculo identitário e ideológico com a política? Como se evitaria que esses selecionados se corrompessem e vendessem o voto? Ao que parece a epistocracia seria mais propensa a trazer novos problemas políticos, do ponto de vista prático e conceitual, e agravar os que já existem.

Assim, antes mesmo de defender a instauração de um sistema epistocrático, deveríamos pensar se estamos dispostos a abrir mão do governo democrático já que, segundo o próprio Brennan, os países sob tal regime são lugares melhores para se viver do que os que estão sob sistema alternativo: ditaduras, governos com apenas um partido, oligarquias ou monarquias, e por que não dizer, que os governos epistocráticos, se estes existissem. Em suma, como diz a famosa frase de Churchill, e parece válido lembrar, “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras que se tem experimentado de tempos em tempos”15.

4. Porque não democracia?

As sociedades democráticas, em comparação com os outros regimes, são mais competentes, bem-sucedidas e menos violentas, sucesso que não pode ser meramente atribuído às elites. Além disso, elas quase nunca vão à guerra entre si, raramente matam suas próprias populações, quase sempre têm transições de governo pacíficas e respeitam mais os direitos humanos (CRAIN, 2016).

Embora seja bastante vago o que de fato pode ser considerado uma democracia e ainda que a busca por uma definição jamais tenha chegado ao fim, podemos dizer que ela conta hoje com um índice de aprovação jamais alcançado anteriormente16. Além disso:

15 Winston Churchill, Câmara dos Comuns, 11 de novembro de 1947, disponível em:

https://winstonchurchill.org/resources/quotes/the-worst-form-of-government/.

16 De acordo com a 7ª rodada da World Values Survey (2017-2020), ao serem perguntados sobre

o quão importante consideram viver num país governado democraticamente, numa escala de 0 a 10, em que 0 é “não muito importante” e 10 “absolutamente importante”, 50,2% dos entrevistados, dos 77 países analisados nessa rodada, responderam que é “absolutamente importante”, ou seja, a maioria das respostas se concentraram no ponto máximo da escala, tendo as opções de 0 a 5 concentrado apenas 11,2% das respostas. Isso significa que, em termos de valores, a democracia tem forte aprovação social. Além disso, a média de respostas que consideram viver num país democrático “absolutamente importante” cresceu em relação às pesquisas anteriores, sendo que na 6ª rodada (2010-2014) o percentual foi de 41,5% e na 5ª (2005-2009) foi de 47,7%. Dados disponíveis em:

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A maioria dos regimes reclama algum tipo de direito ao título de “democracia”; e aqueles que não o fazem insistem que seu exemplo particular de governo não democrático é um estágio necessário no caminho para a "democracia" definitiva. Em nosso tempo, até mesmo os ditadores parecem crer que um ingrediente indispensável de sua legitimidade é uma pitada ou duas da linguagem da democracia (DAHL, 2012, p.2).

No campo da teoria política, a democracia é desde meados do séc. XX o horizonte normativo, implícito ou explícito, da maioria dos filósofos, teóricos e cientistas políticos. Contra essa tendência, Brennan dedica as quase 300 páginas de seu livro. Ele critica essa forma de governo por 1) promover e ser promovido por eleitores ignorantes, como tentou-se desenvolver na sessão anterior; 2) por não conseguir atingir seus ideais.

Mas, como questiona Isaac (2017), o que ele tem a dizer sobre a enormidade de textos e autores que mesmo reconhecendo os problemas e limites dos regimes democráticos continuaram a defendê-los? Será que ele acredita que autores como Robert Dahl, John Rawls, Jürgen Habermas etc. podem ser algo como advogados dos anjos?

É claro que os teóricos da democracia enfrentaram muitos dilemas. Em razão de as teorias sobre as formas políticas que devem reger as sociedades estarem, em grande medida, ancoradas em questões da filosofia relativas aos “mundos possíveis”, que diferem entre si e diferem em suas aplicabilidades, há sempre “certa indecidibilidade filosófica quanto à validade desses discursos” (LESSA, 1998, p. on-line). Na democracia o problema de validação do discurso está colocado pelo fato de ele estar relacionado, ao mesmo tempo, com concepções normativas, de um dever ser, e com regimes políticos reais (HELD, 2012; SARTORI, 1994). Disto resulta que o real está sempre muito aquém do ideal e o ideal sempre em disputa. Como aponta Dahl: “um exame cuidadoso das ideias e práticas democráticas revelará, necessariamente, um número considerável de problemas que parecem não ter nenhuma solução definitiva” (DAHL, 2012, p. 3).

A dificuldade de conciliar o ideal à prática dividiu, grosso modo, as teorias democráticas em duas correntes principais: as teorias maximalistas, defendidas por autores como Jürgen Habermas, Hannah Arendt, Carole Pateman, etc., que são formadas por um conjunto de abordagens da democracia como uma forma de vida, de autonomia individual e social. Esses pensadores se apoiam principalmente em questões morais que envolvem participação e deliberação e defendem a atuação ampliada dos cidadãos nos assuntos políticos. A arena política é o fórum capaz de educar os cidadãos para a salvaguarda da vida pública. Para essa corrente, democracia é um bem em si mesma (ELSTER, 2007). Já nas teorias minimalistas, defendidas por autores como Joseph Schumpeter, Anthony Downs, etc., entendem a democracia como um método de escolher representantes. Tal perspectiva é fracamente apoiada em concepções morais, a decisão política se dá de forma privada, pelo

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indivíduo. O campo político funciona como um mercado (ELSTER, 2007), em que os eleitores são maximizadores e egoístas. A democracia é um instrumento.

Reconhecendo essa divisão, Brennan diz que as teorias que forneceram valor intrínseco à democracia estão erradas. A democracia nada mais é do que um “martelo” de tomar decisões políticas que, contudo, deve ser substituído caso se encontre um “martelo” melhor. Embora o autor afirme que a epistocracia não tem um apelo normativo, ao propô-la, inevitavelmente, traz à tona as questões normativas que embasam o reconhecimento da igualdade no direito ao voto. O sufrágio universal não é somente um instrumento de selecionar governos, embora também o seja, mas é um valor compartilhado pelos ideais de igualdade entre os indivíduos, sobre o qual se ergue a sociedade democrática moderna, e é ele que confere legitimidade aos governos.

Por essas razões, a democracia não é algo que pode ser descartado ou superado de maneira simples. Ela adquiriu força simbólica e retórica em sua fundamentação, realizações práticas e legado, de modo que é amplamente considerada legítima, ainda que sua substância seja vaga.

Nem mesmo os autores mais céticos em relação às qualidades intrínsecas da democracia, que tinham uma visão mais tecnocrata desse sistema, propuseram algo para substitui-la. Schumpeter, que chegou a ser considerado um antidemocrata (HELD, 1987) por definir tal regime como um mero método de escolher representantes e por caracterizar o cidadão comum como irracional, não deixou de considerar o sufrágio universal como um ponto nevrálgico na produção de lideranças legítimas. Na verdade, ele entendia que esse era o único método de formar governos que “pode desempenhar a função, ou o único que a pode desempenhar melhor” (MACPHERSON, 1978, p. 88). Desta forma, o autor considerado elitista não abdica do controle social, mas apenas estabelece uma divisão de trabalho (MELO, 2002): o povo escolhe e os governantes governam.

Mas, mesmo que pudéssemos nos fiar na ideia bastante simplista de que o mal da democracia está no voto dos eleitores ruins será que apenas isso serve para diminuir todas as outras vantagens que esse sistema pode ter? Os problemas da democracia apresentados por Brennan de fato existem e ele está certo quando diz que os próprios defensores dela são chamados a defendê-lo, mas nada disso realmente advoga em favor da epistocracia. O mais interessante seria buscar corrigir os problemas que prejudicam a eficiência da democracia ao invés de abandoná-la para tentar algo que parece ser melhor.

Conclusão

No livro Against Democracry, Jason Brennan critica a democracia por cultivar eleitores ignorantes. De acordo com ele, isso traz maus governos e decisões ruins. Assim, seria melhor

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que a participação política fosse restrita aos que “sabem mais” sobre política. Para tal, o autor propõe a adoção de um regime epistocrático, que significa que o direito à participação política se daria por critérios de conhecimento. A lógica, diz ele, é que assim como os médicos, motoristas e encanadores precisam se mostrar aptos para exercer o ofício, para votar o cidadão também deveria comprovar aptidão. Mas, há um problema de simetria em tal comparação. Uma coisa é ter que demonstrar conhecimento fazer algo que envolve técnicas e procedimentos muito particulares, que podem ser aprendidos para atingir um fim pré-definido – retirar um tumor maligno, conduzir passageiros de uma cidade a outra, consertar uma tubulação, etc. - outra coisa é apresentar uma qualificação formal em assuntos gerais sobre política.

Como se tentou demonstrar na primeira sessão, são frágeis os fundamentos nos quais o autor tenta embasar a defesa de epistocracia enquanto “martelo melhor” que a democracia, simplesmente porque não se tem um consenso sobre os efeitos negativos da baixa informação dos eleitores para a qualidade da democracia e decisões governamentais. Assim, a proposta epistocrática não só não oferece garantias de tornar os governos e as decisões políticas melhores (com toda a imprecisão que “melhor” pode ter nesse caso), como parece apta a criar problemas sérios de legitimidade na formação de governos. Além de, provavelmente, agravar as desigualdades políticas dos grupos socialmente desfavorecidos (mulheres, negros, pobres).

Ao criticar a igualdade na democracia para propor uma nova forma de exclusão, baseada no conhecimento, Brennan não está dando peso suficiente aos processos históricos que culminaram no sufrágio universal, que além de ter um desdobramento formal e prático, também tem forte apelo simbólico.

As falhas e os aspectos nocivos da democracia não deixaram, desde Platão, de ser considerados por aqueles que se dedicaram a analisar criticamente essa forma de governo, em especial às suas falhas e contradições na realização de seus ideais (mesmo que o debate na literatura para definir tais ideais seja complexo e impreciso). Porém, disso não é necessária a derivação de que deveríamos tentar outra forma de governo, conforme acredita Brennan. As mais diversas doutrinas formuladas pelo mundo afora já nos mostraram que uma teoria não acarreta por si mesma sua própria concretização, quanto mais quando eivada por ideais construídos por contextos diversos ao longo da história, passando por gregos, romanos, florentinos, ingleses, norte americanos e se espalhando por grande parte dos países, tal como a democracia. Aliás, esses episódios de democracia (teórica e prática) só mostram o quanto ela foi se modificando e adaptando aos interesses e necessidades de cada época. O que nossa experiência tem demonstrado é que esse termo tem uma estrutura bastante elástica e pode incluir elementos diversos e às vezes contraditórios.

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Conclui-se que percepção de que a democracia tem problemas, que deveriam ser corrigidos, não implica que devemos então abandoná-la, muito menos que deveríamos adotar a epistocracia, já que é possível aperfeiçoar a democracia e promover adaptações. Se, aumentar o conhecimento sobre política dos eleitores importa, talvez pudéssemos começar diminuindo o custo de informação, ampliando o acesso à internet e a abrangência dos programas de transparência dos dados e informações públicas, bem como tornar os sistemas eleitorais mais inteligíveis e diminuir as desigualdades sociais. Porém, Brennan não considera essas possiblidades e prefere apostar em algo bem mais incerto que, no entanto, rende muito mais polêmica.

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