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Nos caminhos do riso: possibilidades metodológicas para análise de charges publicadas durante a segunda onda dos feminismos no Brasil (1970)

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Nos caminhos do riso: possibilidades metodológicas

para análise de charges publicadas durante a

segunda onda dos feminismos no Brasil (1970)

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Resumo

O humor tem sido alvo frequente de discussão em um cenário de esforço de consolidação dos “politicamente corretos”. Não sem poucas controvérsias, o tema tem agradado e também causado desconforto, em função do debate ético-político-ideológico que envolve o tratamento de temas considerados delicados com nuances de zombaria. É a partir dessa observação que apresento a proposta “risonho-metodológica” desse artigo que, a partir da análise de 3 charges selecionadas, produzidas por Millôr Fernandes e publicadas na revista Veja sobre o tema feminismos em 1970, pretende explorar a análise do discurso

como ferramenta metodológica e o riso como instrumento interventor na construção de modos de pensar, sentir e viver.

Palavras-chave: humor, charges, revista Veja, feminismos e discurso.

ABstRAct

The mood has often been the subject of discussion in a scenario of consolidation effort of the “politically correct”. Not without a few controversies, the issue has pleased and also caused discomfort, according to the ethical-political-ideological debate involving the discussion of issues considered sensitive to nuances of mockery. From this observation I present the proposal “smiley-methodological” of this article from the analysis of three selected cartoons produced by Millôr Fernandes and published in Veja magazine on the subject of feminism in 1970, aims to explore the analysis of discourse as methodological tool and laughter as a tool in building intervenor ways of thinking, feeling and living.

Key-words: mood, cartoons, Veja magazine, feminism and discourse.

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Há quem diga que rir é o melhor remédio, afinal, é grátis. Há também quem afirme que aquele que ri por último, ri melhor. Há ainda os/as que defendem que se há muito riso, é porque tem pouco juízo. O riso, ação ou efeito de rir, apesar de integrar o nosso vocabulário popular cotidiano e de ser um grande promotor de empregos (palhaços, humoristas, atores, chargistas), não tem ocupado espaços muito célebres na historiografia que, não atentando ao seu potencial subversor, tem deixado de lado uma ferramenta de crítica bastante flexível. É pensando na “falta de humor” que tem assolado a disciplina história que proponho a escrita do presente artigo com o objetivo de refletir sobre o seu potencial subversivo a partir de 3 charges produzidas por Millôr Fernandes1 em 1970, período conturbado politicamente

em função da ditadura civil-militar, mas também efervescente no que se refere a emergência de um dos movimentos sociais mais importantes do século XX no Brasil e no mundo, o movimento feminista, objeto predileto de críticas do referido chargista2.

Estudos já se dedicaram a refletir sobre décadas de anti-feminismo na imprensa que, por meio do humor, do riso, da chacota e da piada, ocupou-se de desqualificar tudo e todas/todos que, de alguma maneira, identificavam-se ou eram identificados/ as com o feminismo. A imprensa alternativa, mais especificamente

O Pasquim (1969-1991), foi acusado por Rachel Soihet (2005, p.

1 Milton Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1924. Pouco tempo após o seu nascimento o pai faleceu e o nível de vida da família baixou imediatamente. Aos 14 anos, Millôr (apelido que teria começado a reinar 3 anos depois) já começou a trabalhar como jornalista, profissão apreendida no labor. Em 1944 adentrou a gráfica “O Cruzeiro” como jornalista da revista O Cruzeiro. Em pouco tempo progrediu na carreira, ganhando prestígio e dinheiro, o que lhe possibilitou ir morar em Copacabana, bairro boêmio e bem cotado no mercado imobiliário carioca. Em 1964 fundou o jornal alternativo O Pif-Paf, que durou pouco tempo, mas a experiência foi repetida com a fundação d’O Pasquim, esse sim com uma vida duradoura. Paralelamente a essas atividades Millôr Fernandes expôs desenhos no MASP, escreveu peças que enfrentaram o problema da censura e traduziu uma porção de outras vindas do exterior. Disponível em: http://www2.uol. com.br/millor/aberto/biografia/index.htm Acesso em 10 de julho de 2011.

2 A proposta desse artigo abarca uma pequena parcela da dissertação em fase de elaboração que desenvolvo junto ao Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulada “Veja o feminismo em páginas (re) viradas (1968-1989)” cujo objetivo é refletir sobre os sentidos legados aos feminismos e aos movimentos feministas nos discursos produzidos e difundidos pela revista Veja entre os anos 1968 e 1989, momento de emergência dos feminismos de 2ª onda no Brasil.

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609) de promover uma espécie de violência simbólica, através de suas charges e entrevistas, contra mulheres que buscavam a transformação social; a grande imprensa, teoricamente, pouco teria se esforçado para publicizar a causa feminista de segunda onda3. Millôr Fernandes, que trabalhou entre 1969 e 1975 n’O Pasquim, e entre 1968 e 1982 em Veja, revista integrante do

que se convencionou chamar de grande imprensa, recebeu das pesquisadoras do campo dos estudos de gênero o desonroso título de machista e misógino. Contudo, é em Veja4 que me apoio para

demonstrar o tratamento diferenciado que o referido jornalista concedeu aos feminismos brasileiros.

No texto que segue, não pretendo negar ou rejeitar o poder do humor no que se refere ao seu potencial danoso, capaz de construir estereótipos e fortalecer-se sobre eles, fazendo rir por meio da chacota, da piada, da ridicularização de algo ou alguém. Quentin Skinner (2002, p. 9) destaca que por meio do riso podemos arruinar a causa do adversário e persuadir a audiência por meio do insulto. Nessa perspectiva o humor é compreendido como ferramenta eficaz no combate a certas posturas políticas, sociais, culturais e etc., questão relativamente conhecida, na medida em que não chega a ser novidade os alcances do riso na

3 Didaticamente o feminismo é dividido em duas ondas: a primeira onda refere-se às manifestações que reivindicavam a ampliação dos direitos civis de mulheres em que se incluía o direito de votar e ser votada no final do século XIX e início do século XX; a segunda onda faz referência as manifestações iniciadas na década de 1960 em que as bandeiras de luta estavam articuladas a questões da sexualidade e subjetividade, lutava-se pelo usufruto do corpo e combatia-se o patriarcado. Apesar dessa estrutura de ondas ser funcional, é importante pensarmos o feminismo como um acontecimento e, portanto, se desenvolve de diferentes maneiras em variados espaços.

4 Veja foi lançada em 11 de setembro de 1968, sendo a primeira semanal a trazer o modelo Time ao Brasil, estilo caracterizado pelo caráter noticioso e informacional. Era um projeto de 1960 que acabou sendo adiado em função da crise política de 1961 e seu nome, Veja, reflete o objetivo da revista de ser vista, com uso de muitas imagens (Ameida, 2009, p. 23). Com uma das maiores campanhas publicitárias da imprensa brasileira, a revista chegou às bancas e demorou alguns anos até que se estabelecesse financeiramente (Almeida, 2009, p. 38). Contudo, é preciso levarmos em conta que esta foi fundada pelo grupo Abril, editora comandada por Victor Civita e seu filho, Roberto Civita, em um contexto capitalista e liberal. Nesse ponto é importante lembrarmos que a grande imprensa, como empresa, não sofreu tanto no período de 1964-1985 (Smith, 2000, p. 58), apesar desse período ser sempre citado como de “crise”, em função da ditadura e da decorrente opressão sobre os meios de comunicação.

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desqualificação de acontecimentos, pessoas e ideologias. Rachel Soihet (2007, p. 50), em sua pesquisa sobre os preconceitos (re) produzidos nas charges d’O Pasquim, segue essa perspectiva, ao apontar o semanário construindo imagens de feministas como feias e homossexuais. Henri Bergson (1978, p. 98) destaca que o riso é um gesto com significação e alcance sociais, mas que ao final serve como castigo que se estabelece por meio da humilhação.

Entretanto, mesmo diante dessas primeiras impressões, gostaria de ir além para explorar a fatia positiva do riso. Para isso julgo importante pensarmos que o riso “[...] jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém jamais conseguiu torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre uma arma de liberação [...]” (Bakhtin, 2002, p. 81). Nessa perspectiva, pretendo pensar as charges produzidas por Millôr como instrumentos de reflexão, na medida em que sua atuação em Veja demarca não uma simpatia pelos feminismos, mas, no mínimo, um interesse em divulgar muitas das reivindicações feministas que estavam sendo elaboradas naquele momento.

Aliada a essa perspectiva diferenciada do riso proponho uma metodologia bastante específica para o tratamento das charges: a análise do discurso, disciplina emprestada da lingüística que no campo dos estudos históricos tem se mostrado de grande valia, na medida em que sugere a articulação entre descrição e interpretação, como apontou Michel Pêcheux (1990, p. 17). Isso porque, acatando a proposta de Ulpiano Bezerra de Menezes, lanço o olhar para o campo da visualidade como objeto detentor de historicidade (Menezes, 2003, p. 11) e também como documento de natureza discursiva (Menezes, 2003, p. 16). Assim, da mesma maneira que outras fontes, as imagens precisam ser compreendidas no seu contexto amplo, de produção, autoria, distribuição, trajetória, bem como em seus sentidos iconográficos, perspectiva que pode ser articulada as preocupações da análise do discurso, disciplina que:

[...] não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr

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por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2009, p. 60).

A análise do discurso, portanto, não visa uma análise linguística puramente, em que os termos sejam semanticamente analisados e compreendidos. Essa metodologia objetiva o discurso, que implica o trabalho de explicitar, descrever, relacionar e interpretar montagens sócio-históricas de sentidos. O discurso não é estanque, ele é produzido por mulheres e homens a partir de suas subjetividades, experiências, contextos, tempos. Nesse sentido, a analista de discurso prima pela observação das redes com as quais os discursos se entremeiam, o que o caracteriza como constituidor de sujeitos e de sentidos. O discurso, portanto, é compreendido como fruto da união entre língua e história (Orlandi, 2007, p. 40), sendo que:

[...] não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação (ORLANDI, 2009, p. 21).

Ao apropriar-me de charges como fontes, além de considerá-las como produto do meio e como expressão visual, entendo-as como dispositivos capazes de constituir sujeitos e sentidos, não apenas para leitoras e leitores, como também para seus/suas produtores/produtoras que ao produzirem sentidos, também estão se produzindo. Partindo da premissa de que a língua significa porque a história intervém (Orlandi, 2007, p. 46), a análise do discurso serve a esse artigo como instrumento metodológico capaz de enriquecer e aperfeiçoar o tratamento dado ao discurso que, nessa disciplina, apresenta-se sempre articulado a sua exterioridade (Orlandi, 2006, p. 54).

Para elaborar esse experimento foram selecionadas 3 charges da coluna Humor assinada pelo jornalista (dos anos 1970, 1974 e 1977), de um universo de mais de 30, publicadas em Veja5 durante

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o período em que Millôr colaborou com a revista6. Os critérios

de escolha são de certo modo subjetivos, no entanto busquei para esse artigo destacar as imagens que dialogam mais diretamente com marcos que costumam ser lembrados em articulação ao tema feminismos: sexo/gênero, violência contra as mulheres e divórcio. A primeira delas coloca em discussão a história de Adão e Eva e os novos tempos feministas.

Revista Veja. Millôr. 29 de abril de 1970. Edição 86. p. 13.

A charge acima, que em sua versão original ocupa mais de metade da página, representa uma cena muito comum na coluna de Millôr que, com bastante freqüência, utiliza-se do casal Adão e Eva para satirizar os mais variados assuntos. Os personagens, habitantes do paraíso, onde podem circular nus, protagonizam a imagem em que se destaca ainda a macieira e a serpente. Eva, receptiva e com um sorriso largo, afirma para um Adão assustado e com uma postura resistente: Adão, nós somos unisex! Respeitando a sugestão de Eni Orlandi (2007, p. 27) sobre a determinação histórica das palavras, é relevante refletirmos sobre o que nos diz o texto imagem e o texto escrito, relacionando-os e ainda

veja.abril.com.br/acervodigital/

6 A primeira edição que contou com a colaboração de Millôr na coluna Humor foi a número 13, de 14 de dezembro de 1968. A última coluna assinada pelo jornalista foi a de número 744, em 1982. Na edição seguinte foi substituído por Luis Fernando Veríssimo que permaneceu até 1989, quando Jô Soares passou a ser o colunista de humor de Veja.

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articulando-os ao contexto imediato e amplo de sua produção7.

De acordo com Zaíra Ary, que disserta sobre a desvalorização do feminino no imaginário católico, a partir do relato javista do Gênesis sobre a criação do mundo por Deus, Eva foi feita da costela de Adão para acabar com sua solidão e com ele procriar. Como herdeiras de Eva as mulheres incitaram o homem ao “pecado original”, sendo responsáveis pela expulsão do paraíso e pelos males que afligem a humanidade como o trabalho e o parto doloroso. Sendo vulneráveis às tentações, essas seriam consideradas frágeis e ainda sexualmente perigosas e prejudiciais (Ary, 2000, p. 76-77). Millôr Fernandes reelabora um dos mitos da criação incorporando nele um sentido bastante contemporâneo que remete, exatamente, não só as mudanças sócio-culturais no que se referem à vestimenta da década de 70, como também aos feminismos que se ocupam em contestar a visão estanque e binária dos sexos, visão que serve a manutenção da desigualdade.

Apesar da carga histórica dispensada à figura de Eva, a representação de Millôr Fernandes nos permite extrapolar os sentidos a priori estabelecidos a ela. A fala Adão, nós somos unisex! remete às rupturas que estavam sendo empreendidas no período, em que mulheres, felizes com os avanços, assim como Eva, partiam em direção ao rompimento de velhas estruturas, mantidas também por homens assustados e resistentes, como Adão, às possibilidades que o unisex permitiria. A palavra unisex significa algo que serve aos dois sexos, contudo uma possibilidade que podemos manter em aberto é a não-referência à palavra unissex, essa sim integrante da língua portuguesa, sendo unisex de origem inglesa, podendo ser apontado como uma licença poética, ou mesmo como um sinal de que esse rompimento seria fruto de estrangeirismos8. Independente dos variados sentidos que

7 Contexto imediato é o que envolve o discurso, seu suporte, sua produção, sua assinatura. O contexto amplo é o que traz para discussão os efeitos da sociedade, suas instituições (Orlandi, 2009. p. 30-31).

8 Estados Unidos e França são considerados os “berços” do feminismo, o que fomentava as críticas aos feminismos brasileiros, em função de serem vistos como um capricho de mulheres instruídas e de classe média. Entretanto, os movimentos feministas que se desenvolveram no país nesse momento foram fruto de um contexto bastante distinto do que marcou o feminismo de segunda onda de países como Estados Unidos e França, na medida em que a identificação de opressão das mulheres aliou-se ao combate ao regime

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possamos extrair da charge em questão, é relevante pensarmos o que essa imagem sinaliza, visto que, mesmo que a expressão unissex não seja de uso corrente no campo dos estudos de gênero e feministas, ela e todo o cenário armado pelo jornalista, apontam uma mudança dos tempos, mudança estreitamente articulada aos movimentos feministas da época, movimentos que ainda discutiam sobre os limites da categoria sexo quando se desejava discutir as problemáticas sócio-culturais implicadas com ele.

Joana Maria Pedro destaca que os movimentos feministas na década de 1980 passaram a fazer uso da palavra gênero no esforço de reforçar a idéia de que as diferenças entre os homens e mulheres são pautadas na cultura e não no sexo, tido como uma questão biológica (Pedro, 2005, p. 78). Joan Scott, citada a exaustão na década de 90, em função de ter buscado teorizar sobre a categoria gênero, circulante, mas ainda nova, afirmou que gênero é criação social imposta sobre um corpo sexuado (Scott, 1995, p. 75). Portanto, as diferenças entre homens e mulheres estariam vinculadas ao gênero, e não meramente ao sexo. Entretanto, anos depois, Linda Nicholson afirmou que “[...] diferenças sutis na forma como o próprio corpo é pensado podem ter algumas implicações fundamentais para o sentido do que é ser homem ou mulher e representar, consequentemente, diferenças importantes no grau e no modo como o sexismo opera” (Nicholson, 2000, p. 31). Assim, pesquisas recentes têm refletido sobre a mútua relação que se estabelece entre sexo e gênero.

Millôr, nessa charge, apresenta a leitoras e leitores uma sátira da história de Adão e Eva, apontando a mudança dos tempos e o rompimento de barreiras biológicas no seu sentido sexual sem, em minha leitura, mostrar-se desconfortável ou mesmo negativamente crítico em relação a isso. Pelo contrário, o chargista sequer relativiza a feminilidade dessa Eva que comemora seu

status de unisex. O jornalista, um homem instruído, mas pouco

dado às discussões de gênero que começam a ser empreendidas ainda na década de 1980, apesar do tratamento ácido que

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concede aos feminismos e às feministas em outras publicações, nessa primeira charge selecionada de Veja apresenta a leitoras e leitores de forma bem humorada, satirizando a história de Adão e Eva, a mudança dos tempos e o rompimento de barreiras biológicas no seu sentido sexual sem, em minha leitura, mostrar-se desconfortável ou mesmo negativamente crítico em relação a isso.

A próxima charge que apresento para reflexão traz o corpo de uma mulher exposto, sem roupas, mas destacando-se por um humor pernicioso, refletindo sobre um problema social sério através da sátira9.

Revista Veja. Millôr. 10 de julho de 1974. p. 13.

A imagem originalmente ocupando uma página inteira, cujo título é Triângulo passional, faz uma alegoria com uma situação complexa que nessa época já vinha causando comoção no país: a violência contra as mulheres, mais especificamente, a violência

9 Florência Paula Levín levanta discussões interessantes sobre o riso e o humor, visto que debate sobre os limites do representável ao analisar charges que tem como temática a repressão clandestina na ditadura argentina. Sua pesquisa aborda o Clarín e destaca que o humor trazido pelas charges publicadas pelo jornal permitiram a leitoras e leitores terem acesso a cenários silenciados e ocultados, mas também violentos e chocantes (Levín, 2010, p. 11). Ver mais: LEVÍN, Florência Paula. En los limites de lo representable. Víctimas, verdugos y mecanismos de la represíon clandestina em la óptica de los humoristas del diário Clarín, 1973-1983. “Prepared for delivery at the 2010 Congress of the Latin American Studies Association, Toronto, Canada October 6-9, 2010”. pp. 1-25.

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conjugal justificada por atos de amor. Nesse período já não eram raras as notícias que denunciavam casos de assassinatos de mulheres sob a justificativa de legítima defesa da honra.

A violência doméstica e familiar praticada contra mulheres no Brasil costumava e ainda costuma ser encarada como um problema de foro privado em que os poderes públicos não tem o poder de legislar, a velha máxima em briga de marido e mulher,

ninguém mete a colher é o grande apanágio do problema que na

década de 1970 já era uma das grandes preocupações feministas no Brasil e que, em meados de 1980, tornou-se uma das principais causas dos feminismos desenvolvidos no país. Estudos apontam que desde o século XIX o Brasil experimentou alguns focos de “epidemia” em que o assassinato de mulheres era o grande vírus. Segundo a autora, esse histórico adentrou o século XX e, como podemos constatar, também o século XXI (Blay, 2009, p. 41-42). Somente em 1985, 3 anos antes da nova Constituição, é criada a primeira Delegacia da Mulher em São Paulo, após muitos embates feministas que conseguiram sensibilizar o Estado. A Constituição de 88 é considerada um dos marcos no que concerne a mudança do tratamento das relações de gênero (Blay, 2009, p. 44).

Millôr, na charge que permite uma série de elucidações históricas no que se refere a violência contra as mulheres, fazendo uso de um humor que em muito incomoda, em função de satirizar um assunto extremamente sério, enquadra a mulher como principal figura do triângulo amoroso, visto que é ela quem sofre a violência10. Além disso, essa mulher é apresentada

com o dedo em riste e a boca aberta, como em ato de fala. Talvez, uma feminista ou uma mulher liberada que, como muitas outras, sofre violência. O jornalista, com essa imagem, traz à tona um tema ainda não muito difundido pela imprensa e, mais

10 Céli Regina Jardim Pinto relembra o caso Doca Street que é inicialmente absolvido da morte de Ângela Diniz em 1976, assassinada a tiros por seu marido, provocando uma campanha pública contra a violência e a jurisdição, inaugurando uma nova fase da história da violência contra as mulheres no Brasil (Pinto, 2003, p. 80), tema que vai ocupar boa parte do fôlego feminista ao longo da década de 1980 até a criação da Lei Maria da Penha em 2006, nome inspirado em uma mulher que sobreviveu a recorrentes violências cometidas pelo marido em 1983. Ver mais: PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

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especificamente, por Veja, revista que se restringia a pequenas notas que noticiavam casos de morte de mulheres pelas mãos de seus companheiros. A charge, explorando a figura geométrica como instrumento letal, metáfora para apontar os resultados de casos amorosos a três, denuncia o contexto de violência daquele momento, colaborando para a divulgação do problema.

A última charge que incorporo na análise trata de tema bastante difundido na imprensa do período: o divórcio.

Revista Veja. Millôr. Charge. Dia 10 de agosto de 1977. Edição 466. p. 15.

Ocupando um ambiente doméstico, aparentemente uma sala de estar, encontram-se um homem e uma mulher. Ele, sentado ao sofá, de costas, com um copo na mão assistindo, talvez, ao noticiário. Ela está de pé, acariciando a cabeça dele com a mão esquerda e empunhando um revólver na mão direta. No pé da página: - E não adianta vir com agradinhos não, Catarina, eu não dou

o divórcio. Nesse ponto confirmamos a desconfiança de que se

trata de um casal que, se pela cena cotidiana e estereotipada pode ainda deixar dúvidas, pela menção ao divórcio, encerra essa mesma dúvida. Deduz-se que essa é a fala mental da mulher, cínica e ameaçadora, acarinhando com uma mão e ameaçando com a outra. Privilegio essa primeira dedução, todavia destaco que a fala poderia ser do homem, talvez uma ambigüidade buscada por Millôr.

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de 1977 foi o exato ano de ferrenha discussão sobre a Lei do Divórcio, também chamada de Lei Nelson Carneiro. De acordo com Marlene de Fáveri (2007, p. 366) as discussões parlamentares tiverem início em junho, estendendo-se até dezembro, quando da aprovação da lei, que desagradou a Igreja e outros setores conservadores. A charge de Millôr foi publicada em agosto, portanto, durante o debate que agitou os parlamentares.

Na charge a esposa estaria recusando agradinhos que, podemos supor, pode ser a própria Lei do Divórcio, lei muito festejada pelas feministas na época de sua aprovação, o que apontaria a postura de Millôr em acentuar as contradições vividas pelo movimento, em função de sua própria pluralidade humana e de reivindicação. Isto é, a mulher que reivindica a existência da lei, também ameaça o marido caso ele ouse fazer uso dela. Nesse cenário conjugal saliento ainda a representação do homem sentado a frente da tv, em aparente postura de passividade.

Em tempos de discussão sobre os politicamente corretos, nesse trabalho, o riso assume uma performatividade transgressora, caráter que, talvez, aponte para a construção de novos caminhos que podem ser trilhados pelos movimentos feministas atuais. Pensar o humor como marcador da memória, como aponta Joana Maria Pedro (2009, p. 11), talvez, seja uma das maneiras de perceber sua eficácia política, na medida em que o riso povoa memórias de forma singular. Millôr Fernandes, mesmo diante das acusações que acompanham sua carreira, em Veja, brinda leitores e leitoras com um olhar crítico e reflexivo a partir de charges ricas em cores, em metáforas, em criatividade e imaginação. Aliado a isso, temos as possibilidades da escrita da história que, ao compreender a natureza discursiva das imagens, permite a construção de diferentes sentidos para uma documentação produzida com o objetivo de fazer rir e refletir, mas que, contudo, sob as lentes da história e de suas possibilidades metodológicas, assume novas formas.

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FoNtes:

Revista Veja. Millôr. 29 de abril de 1970. Edição 86. p. 13. Revista Veja. Millôr. 10 de julho de 1974. p. 13.

Revista Veja. Millôr. Charge. Dia 10 de agosto de 1977. Edição 466. p. 15.

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Referências

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