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Pensamentos e práticas sonoras no documentário:
trilha sonora, sound design e experimentação
Renan Paiva Chaves
11 Possui graduação em Música pela Universidade Estadual de Campinas (2012),
mestrado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (2015) e realiza atualmente doutorado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. Dedica-se, em suas pesquisas, à temática do som no cinema não ficcional.
VO L . 5 , N . 1 • R EBEC A 9 | JA N E IR O - JU N H O 2 0 1 6 Resumo
Neste artigo lido com pensamentos e práticas sonoras do domínio documental em momentos-chave de sua conformação, especialmente das décadas de 1930 e 1940. Busco colaborar com a construção de uma teoria e história do som fílmico no documentário e, também, com uma espécie de pré-teoria e pré-história do sound design no cinema, debruçando-me sobre transposições, inversões e interpolações da música, voz e ruído nos arcabouços fronteiriços que dividem as típicas funções de cada uma dessas três pistas na trilha sonora. A partir de escritos da época e de análise fílmica, trago para a discussão perspectivas sobre a teoria e prática do som no documentário que podem contribuir com o campo de estudos do som no audiovisual.
Palavras-chave: Cinema documentário;; Trilha sonora;; Sound design.
Abstract
In this paper, I deal with sound in the documentary film field at key moments of its conformation, especially in the 1930s and 1940s. My goal is to collaborate with the construction of a film sound theory and history of the documentary film and with a kind of pre-theory and pre-history of sound design in film, observing transpositions, inversions and interpolations of music, voice and noise through boundaries that divide the typical functions of each of these three tracks on the soundtrack. From writings of the period and film analysis, I discuss perspectives on the theory and practice of sound in documentary film that can contribute to the film sound studies.
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O campo do documentário encontrou no General Post Office (GPO) Film Unit (1933-1940), na Grã-Bretanha, um espaço privilegiado para experimentação, especialmente naquilo que concerne ao som fílmico. As intenções e o clima da preocupação e do interesse com o som ecoaram entre os realizadores e podemos notá-los, para além dos próprios filmes, nos volumes dos anos 1930 dos periódicos
Cinema Quarterly, Sight and Sound e World Film News and Television Progress e
nos relatos posteriores dos envolvidos na produção de documentários desse período.
As experimentações começaram efetivamente a partir da compra de aparatos de gravação (sistema Visatone-marconi em substituição ao British acoustic film) e da aquisição de um pequeno estúdio próprio em janeiro de 1934 (REED, 1987, p. 35). Antes disso, a parte sonora dos filmes era reduzida à prestação de serviços de uma orquestra e um narrador e, nessas condições, como relata John Grierson (1934a, p. 215), líder da produção da GPO entre 1933 e 1937, o controle final da trilha sonora fugia das mãos dos realizadores e experimentos eram impossíveis. Três filmes sonorizados antes de 1934, no antigo sistema de produção e sob o nome da Empire Marketing Board Film Unit, precursora da GPO Film Unit, evidenciam os limites da produção: Industrial Britain (1933), O’er Hill and Dale (1932), de Basil Wright, e Upstream (1932), de Arthur Elton. A respeito desses filmes, Grierson (1934a, p. 215) afirma que sob nenhum ponto de vista eles representaram algo em relação à arte e à prática sonora.
Peça central nos avanços e experimentos em relação ao som na GPO foi Alberto Cavalcanti, que relatou: “estava obcecado pela banda sonora e comecei, então, uma série de experiências neste sentido”. (CAVALCANTI, 1957, p. 66). Grierson, ainda em 1933, disse-lhe (conforme relata o próprio Cavalcanti): “Fique conosco, divirta-se explicando aos rapazes as suas ideias sobre som. Ainda não fizemos nada a esse respeito”. (CAVALCANTI, 1957, p. 73). Edgar Anstey (1966, p. 7), realizador de um dos marcos de experimentação sonora da GPO – 6.30
Collection (1934) –, ressalta a validade da presença de Cavalcanti: “Nós tínhamos
no meio dos anos 1930 o conselho e, de fato, a inspiração de Alberto Cavalcanti, o qual Grierson trouxe especialmente para exercitar nossas imaginações no uso criativo do som”.
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Walter Leigh, músico da GPO, que fez parte do grupo realizador do 6.30
Collection, foi também peça-chave na experimentação sonora nesses primeiros
anos e, junto com Cavalcanti, lançou outro importante marco de experimentação sonora, Pett and Pott (1934), e, em seguida, com Basil Wright, lançou Song of
Ceylon (1934). Esses três filmes formam com outras duas produções seguintes, os
filmes Coal face (1935), de Cavalcanti, e Night Mail (1936), de Harry Watt e Basil Wright, que contaram com a participação do músico Benjamin Britten e do poeta W. H. Auden, um conjunto relevante de filmes no que diz respeito à experimentação sonora no documentarismo clássico britânico.
O ponto que quero ressaltar desses experimentos encontra-se, sobretudo, no tocante a momentos de indiscernibilidade, tanto do ponto de vista do esquema de realização quanto do espectatorial, entre as pistas de música, voz e ruído – a clássica divisão tripartite da trilha sonora consolidada no cinema nos anos 1930, tanto na perspectiva da organização produtiva quanto na perspectiva teórica, especialmente no domínio ficcional. Essa discussão apresenta-se, assim, como uma espécie de “os primórdios” daquilo que vemos se consolidar no cinema na década de 1970 e 1980.
O que podemos notar a partir dos anos 1970 é a consolidação do “artista do som” no mercado cinematográfico, ou sound designer2 – termo usualmente creditado a Walter Murch e Ben Burtt –, que acaba por contribuir com o esgotamento teórico da noção tripartite da trilha sonora como caminho explicativo para o som de muitas das produções cinematográficas. De certa forma, o que se percebe é a invasão, transposição e interpolação da música, voz e ruído nos arcabouços fronteiriços que dividem as típicas funções de cada uma destas três pistas no cinema clássico. Em outras palavras, torna-se mais complicado explicar e reconhecer separadamente, com clareza, na totalidade do filme, a música como
2 Embora haja certa polêmica em torno da nomenclatura, referencio-me, quando uso o termo “sound
designer”, a novas dimensões do tratamento sonoro que começam a se consolidar na indústria
cinematográfica nos anos 1970 e 1980, mas que têm lastro em práticas sonoras “autorais”, “experimentais” ou que redimensionam as funções clássicas das pistas da trilha sonora, e que, em grande parte, contam com profissionais que supervisionam, dirigem ou se responsabilizam pela parte sonora do filme.
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música, a voz como voz e o ruído como ruído em suas funções clássicas3. Eduardo Mendes (2006, p. 191-192) sintetiza bem essa ideia:
Os elementos formadores da trilha sonora cinematográfica tradicionalmente seguiam funções específicas e obedeciam a uma ordem hierárquica. A voz tinha a função maior de informar o tema, o desenvolvimento da história e a caracterização dos personagens. A música refletia situações de caráter emocional dos personagens ou da história. Já os ruídos de sala e efeito eram responsáveis pela manutenção do caráter verossimilhante da imagem enquanto os sons ambientes serviam para indicar quando e onde os fatos ocorriam. (ZETTL, 1973)4.
Quanto à audibilidade, continuava a hierarquia onde a trilha de vozes era a mais intensa e a trilha de música, a segunda mais audível. Nos trechos sem falas, a trilha de música crescia para o mesmo nível de intensidade usado na pista de vozes. Em seguida, eram ouvidas as trilhas de ruídos onde internamente também havia uma hierarquia de intensidade: os ruídos de efeitos, ruídos de sala e ruídos ambientais, do mais ao menos intenso.
Walter Murch rompeu, em seus trabalhos dos anos 70, com essa tradição, fazendo com que qualquer estímulo sonoro pudesse servir para acentuar tanto o caráter verossimilhante como o caráter emocional da obra, seja ele música, ruído ou voz.
Enfim, algumas dessas características podem ser encontradas nos filmes mais experimentais da GPO e em outros produzidos pela Crown Film Unit (CFU), a sucessora da GPO.
É interessante notar que Ken Cameron, que assumiu o departamento de som em 1938 na GPO e depois na CFU, usa a palavra “design”, em 1947, ao se referenciar ao trabalho do sound-engineer e do técnico de som na trilha sonora, décadas antes de Murch e Burtt: “[...] o espectador que paga para ser entretido não tem, na maioria dos casos, noção da quantidade de processos que estão envolvidos no design e execução da trilha sonora”. (CAMERON, 1947, p. 1). E talvez, ainda mais interessante, é o uso do termo sound-composer por Leigh e sua
3 Esse assunto é central na atual pesquisa de Claudiney Carrasco “Música experimental e sound
design no cinema: a emergência de um novo conceito de trilha sonora” e também nas discussões do
“Grupo de Pesquisa em Música Aplicada à Dramaturgia e ao Audiovisual” liderado, também, por Carrasco.
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explicação e prognóstico a respeito do uso dos sound effects, ainda em 1935:
O uso de sound effects, não alusivamente, mas, por assim dizer, musicalmente, para propósitos diretamente emocionais, é o próximo passo após o uso do som natural em contraponto com a imagem. As possibilidades neste campo foram ainda pouco exploradas, mas é claro que desde que o vocabulário do sound-composer compreenda todos os sons conhecidos que são possíveis de gravar, não há nada que o impeça de orquestrar sons que não são puramente musicais para produzir certos efeitos. Desde que [Erik] Satie [compositor e pianista francês] empregou uma máquina de escrever na música do Parede [balé composto e executado na segunda década do século XX], houve vários casos de ruídos não musicais combinados ritmicamente com a música, e, em filmes, o barulho do trem como uma base de percussão, e o método de Hans Sachs de martelar5, como em Man of Aran, são
bastante familiares. Mas o uso mais delicado e tênue dos ruídos, ou seja, criar certas atmosferas [e ambientes] da mesma forma como a música faz, tem ainda que ser desenvolvido, e é, sem dúvida, neste sentido que os avanços mais criativos e as descobertas mais ricas serão feitas. (LEIGH, 1935, p. 73-74).
Grierson (1933, p. 8), que escreveu que o “documentário, ou tratamento criativo da realidade, é a nova arte [...]”, compreendia que o som, assim como a imagem, deveria ser tratado criativamente:
No início, escutar nossas sombras falarem e cantarem e escutar o chiado do presunto e dos ovos fritando na panela foi uma novidade suficiente, mas se você reparar no tema, você verá que o microfone, assim como a câmera, pode fazer coisas melhores que simplesmente reproduzir [...]. O microfone também pode captar o mundo. Assim sendo, ele tem o mesmo poder sobre a realidade, tal como a câmera o teve antes do microfone. Ele tem o poder de trazer às mãos do artista criativo mil e um elementos vernaculares, mil e um sons que cotidianamente compõe o andar do mundo. Considerado simplesmente como um coletor de matéria-prima, o microfone, tal como a câmera era antes, ainda tem que se libertar das amarras do estúdio. A matéria- prima, é claro, não significa nada em si. É somente conforme ela é usada que ela se torna matéria da arte. A questão final é como nós usamos o som criativamente em vez de reprodutivamente. (GRIERSON, 1934b, p. 101).
5 A referência aqui é ao segundo ato da ópera Die Meistersinger von Nürnberg, de Richard Wagner, de
1868, no qual há um personagem baseado na figura histórica de Hans Sachs (1494-1576). Nessa ópera, a orquestra, com seus instrumentos e arranjo, faz alusões aos sons de marteladas.
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E um importante aspecto das ideias de Grierson era sua abertura, como líder de uma produção, para as possibilidades e para as potencialidades do som ainda não exploradas, sem, necessariamente, propor regras para o uso do som. Ou seja, uma abertura imprescindível para a experimentação:
Você pode, com uma tesoura e um pote de cola, juntar qualquer som com qualquer outro. Você pode orquestrar pedaços de som como você desejar. Chame isso de orquestração horizontal. Você pode também, com a junção de trilhas, colocar qualquer som em cima de outro som [...]. Você pode obviamente colocar qualquer som ou sons que você seleciona ao longo de qualquer imagem. Aí você tem o segredo de todo o negócio. [...] Nós temos o poder da fala, o poder da música, o poder do som natural, poder do comentário, poder do coro, e mesmo o poder de fabricar sons que nunca foram escutados antes. E esses diferentes elementos podem todos ser usados para gerar atmosfera, drama e referência poética ao assunto em mãos. E quando você lembrar que você pode cortar sons tal como você pode cortar imagens e que você pode orquestrar qualquer desses elementos, ou todos juntos, no tempo exato com o mudo [silêncio], as possibilidades tornam-se enormes. (GRIERSON, 1934b, p. 101-102).
Essas ideias ressoaram entre os realizadores da GPO e a proposta de fazer algo não convencional era uma constante, tal como podemos notar nos relatos de Cavalcanti (1957, p. 177) ao longo do livro Filme e realidade, como em sua perspectiva de que os ruídos deveriam ser usados dramaticamente;; nos escritos de Anstey (1966, p. 7), quando, por exemplo, afirma que estavam mais interessados nos sons do que na fala e que miravam seus ouvidos para todas as máquinas, todos os processos auditivos, na esperança de isolar sons que pudessem comunicar a essência dos temas tratados nos filmes;; na teorização de Leigh (1935, p. 71-74), quando afirma que o músico, que deve ser um especialista em som e em seus efeitos emocionais, deve organizar os sons numa partitura – o que ele, assim como Basil Wright (1935, p. 178), chama de sound-score –, na qual cada som é calculado em relação às imagens e aos outros sons e que o músico faria bem em abandonar muitas convenções musicais em favor de experimentar e desenvolver convenções próprias da nova arte, que é o filme sonoro, composto pelo som fílmico.
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potencializam na forma em que os filmes começavam a ser produzidos na GPO. Grierson (1934a, p. 215-216) falava da importância do trabalho e da criação coletiva entre os realizadores para todos os aspectos do filme, da quebra da barreira entre o produtor e o resultado que ele quer. O produtor do filme deveria trabalhar na concepção do som, assim como o músico e o engenheiro do som deveriam trabalhar na construção das falas e vice-versa.
Na prática fílmica, começamos a notar essas pretensões se concretizarem no filme 6.30 Collection. Logo no início do filme, encontramos uma composição sonora, arranjada por Walter Leigh, que foi escrita para um rebobinador de filme, um trompete, duas máquinas de escrever, uma garrafa vazia, um projetor, algumas conversas gravadas, uma lixa, um sino, chimbais e triângulo, todos tocados por membros da GPO. (GRIERSON, 1934a, p. 217). Grierson (1934a, p. 217) diz que
6.30 Collection é um relato altamente sinfônico da Western District Sorting Office
(organização de serviços postais em Londres), que teve grande parte dos sons do escritório como tema do filme orquestrado, com controle de dinâmica, escolha de material sonoro, cortes sonoros, junções de timbres de corpos diferentes, todos pensados ante as imagens e as intenções e climas da narrativa. É interessante notar que, mesmo o trompete, os chimbais e o triângulo sendo os únicos instrumentos tipicamente musicais presentes, Grierson adjetiva a trilha sonora de “altamente sinfônica”. Nesse exemplo, podemos notar que a separação das pistas de música e ruído da trilha sonora, tanto do ponto de vista teórico quanto do espectatorial, perdem sentido. A confusão com a pista de voz ocorre também, por mais que modestamente, quando temos vozes (e assobios) sendo articuladas com os outros elementos sonoros.
Caso que nos lembra da dedicação dada ao tratamento sonoro em 6.30
Collection é o do documentário Song of heroes (1932), de Joris Ivens, no qual
muitos dos sons não musicais foram postos em filme segundo noções musicais de acento, ritmo, pausa, timbre e dinâmica (forte, pianíssimo, crescendo,
decrescendo) e são frutos do trabalho do compositor Hanns Eisler, como bem nota
Claude Brunel (1999, p. 202) em estudo sobre os filmes de Ivens.
Filmes que também nos fazem lembrar Shipyard (1935), de Paul Rotha, que contou com uma construção sonora detalhada, tímbrica e ritmicamente
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“orquestrada”. Vale a pena conferir o entusiasmo com o qual John Grierson fala sobre o filme no artigo “Two paths to poetry”. Segue um curto trecho a respeito de Rotha e seu filme:
Paul Rotha é com certeza criativo. Ele vem equipado com um grande esplendor de trabalho de câmera. Ele tem a força e o fervor da descrição ritmada6 melhor que
qualquer um antes dele, ele soube como usar o som para intensificar suas impressões (GRIERSON, 1935, p. 196).
Considerações que também podem ser estendidas às construções de ambientes sonoros em Face of Britain (1935), de Rotha, especialmente na parte “The smoke age”, na sequência em que se veem homens trabalhando na indústria, na qual é evidente a construção melódica e rítmica dos sons (tradicionalmente não musicais) numa estrutura musical quaternária.
Nessa linha, um dos trabalhos mais notáveis talvez seja o de Helen van Dongen em Lousiana Story (1948), de Robert Flaherty. Virgil Thomson (apud HOWE, 2012, p. 2) diz que o filme possui três tipos de música, e um deles é a noise-music, composta e modelada por Helen van Dongen, editora do filme. Há em especial uma sequência do filme que chama atenção, a “oil derrick sequence” (sequência da torre de petróleo). Nas notas de trabalho do filme, Dongen (apud HOWE, 2012, p. 4) a chama de “Ballet of the roughnecks”. O pensamento musical de Dongen transparece, para além do próprio material que escutamos, em suas notas para o filme, seja por se referenciar à sequência como “balé”, por chamar os ruídos de “instrumentos”, a edição de “orquestração” ou por falar de “pitch” (frequência) dos ruídos e que eles devem estar “in tune” (afinados) entre si.
Voltando à produção britânica, temos Pett and Pott, dirigido por Alberto Cavalcanti, que contou, tal como 6.30 Collection, com a presença de Walter Leigh e que foi, deliberadamente, realizado como um experimento com a finalidade do grupo da GPO adquirir experiência no uso do som. (REED, 1987, p. 40). Um dado relevante ao se falar deste filme é que a trilha sonora foi gravada antes das tomadas visuais serem iniciadas, técnica geralmente reservada aos desenhos
6 Traduzi “tempo”, uma expressão italiana que se refere ao andamento musical de uma obra, como
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animados (REED, 1987, p. 40) – algo análogo ao caso de Entusiasmo (1930) de Dziga Vertov, do qual trataremos mais adiante, que teve o script sonoro feito antes do visual. Hebert Read (1934, p. 18-21), escritor e crítico de arte, ainda em 1934 na Cinema Quarterly, classifica Pett and Pott como um dos experimentos mais interessantes de “contraponto” entre som e imagem do cinema. Ele descreve, de forma sucinta, momentos relevantes da construção sonoro-visual do filme:
Para além do que pode ser considerado como dispositivo normal – um acompanhamento musical que induz um estado de espírito – há sugestões de uma construção sinfônica mais complicada;; o entrelaçamento de sons naturalistas diretos com o ritmo musical formal: em um ponto, por exemplo, o ruído sem sentido de um quebra-quebra de uma luta se encaminha para o ritmo musical. Mais original é o coro utilizado, por exemplo, em uma cena que retrata um trem suburbano, cheio de suburbanos lendo o mesmo jornal da noite. Eles começam a ler os cabeçalhos das últimas notícias suburbanas, um roubo com violência. Suas vozes começam a subir gradualmente em coro e o coro encaixa um ritmo, que pode ser associado ao ritmo do trem. A cena é cortada suavemente para uma cena real de violência, com a aparição de uma mulher, o apito do trem se encaixa com o grito dela [frente ao susto que toma com o ladrão, a cena é, então, cortada para dentro do trem novamente, e o apito que continua serve aí como despertador para os passageiros, a estação chegou]. Pett and
Pott é um excelente exemplo de comédia popular, intensificada por uma utilização
inteligente das potencialidades da técnica de cinema. (READ, 1934, p. 18-21).
Há outra sequência relevante no filme na qual o ambiente sonoro é composto por sons de pássaros. Porém, a melodia do canto dos pássaros se encaixa como melodia de uma base musical que soa concomitantemente. Há também em dois momentos o uso de uma voz sombria (grave e lenta) sem referente visual, que funciona como um breve comentário dramático sobre os planos próximos, mas que não se caracteriza como narração. Enfim, em Pett and Pott podemos notar que as três pistas se diluem ou se misturam em certos pontos: as vozes, no momento do coro dos “suburbanos”, além de não perderem suas características linguísticas e semânticas, funcionam como construção do ruído do trem, que, por sua vez, não é mero ruído, é também uma construção bastante musical dos sons do trem;; o grito da mulher é também o apito do trem;; o som dos pássaros, que na tradição cinematográfica é muito utilizado, como nota Michel Chion (1994, p. 75), como
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por sua contínua presença, é usado no filme tanto para compor o espaço fílmico como elemento musical;; as vozes invisíveis, sem referentes visuais, que geralmente coincidem com aquilo que chamamos de voz over ou narração, são aí utilizadas de forma semântica, mas também como inflexão dramática devido a suas características tímbrica e misteriosa7.
O trabalho com as vozes no referido trecho de Pett and Pott nos faz lembrar uma sequência do documentário norte-americano The city (1939), de Ralph Steiner e Willard Van Dyke. Na terceira parte, quando o filme começa a tratar da cidade, dos aspectos urbanos propriamente ditos (depois de tratar da indústria), há uma construção “orquestrada” das vozes, semelhante, por analogia à polifonia melódica, a um contraponto. A respeito dessa sequência, em notas não publicadas para a construção sonora do filme, Henwar Rodakiewicz (1973, p. 282), roteirista e produtor associado do filme, diz:
A música forma a base do som nessa sequência. Efeitos naturais, como sirenes, apitos, sinos, trens, também aparecem. Mas, além da música e dos sons naturais, vozes são ouvidas. Entretanto, as vozes e as distintas palavras faladas não são, em nenhum sentido, narração, como nós geralmente entendemos o termo. De fato, as vozes – talvez uma boa meia dúzia facilmente distinguível – são tratadas como se elas fossem parte de uma partitura musical. Isso é, nós pensamos nelas como instrumentos adicionados à orquestra. Elas emergem do fundo, sobrepõem seus temas e voltam ao fundo novamente, da mesma forma que os oboés, os violoncelos ou as trompas fazem na partitura. Eles não são, em nenhum sentido, word effects sobrepostos, mas uma parte genuína e integral da orquestra. Nós devemos sentir que as pessoas que falam estão sentadas entre os instrumentistas e que as palavras são escritas para a música e entrelaçadas com a música.
Após essas produções britânicas, é lançado Song of Ceylon, filme no qual Walter Leigh, além de se responsabilizar pela parte sonora, codirige com Basil Wright. Nesse filme, a experimentação não ocorre apenas em alguns pontos da trilha sonora, como nos filmes supracitados. Podemos afirmar que é um projeto
7 Podemos dizer que esse mistério se aproxima um pouco do “poder mágico” da voz acousmêtre de
Chion (1994), não vemos o corpo de quem fala, e as incertezas que cercam a voz exercem um mistério sobre a figura de quem que a emite, seu lugar no plano dramático.
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sonoro mais ousado, e a concepção inteira da trilha é experimental. Nas palavras de Walter Leigh (1935, p. 74),
[...] no filme Song of Ceylon, foi feita uma tentativa [...] de construir uma sound-score, que tivesse uma forma definida, e que não fosse só um acompanhamento para os eventos visuais, mas que acrescentasse elementos que não estivessem contidos nas imagens. O filme, de fato, foi todo cortado com olhos para a sound-score. Sua forma é musicalmente concebida;; uma análise de seus quatro movimentos poderia ser lida como uma sinfonia. Cada som foi selecionado para a sua aparente inevitabilidade, como harmonias são na música. Mesmo o comentário é calculado como um efeito e não como um incômodo necessário.
Poucos parágrafos não cabem para citar todos momentos relevantes. Nesse sentido, vale a pena conferir o ensaio “The Audio-visual rhythms of modernity:
Song of Ceylon, sound and documentary filmmaking”, de Jamie Sexton (2004), que
se dedica à análise dos elementos sonoros de Song of Ceylon, e, também, a última página do artigo “The musician and the film”, de Walter Leigh (1935), no qual o compositor faz comentários sobre o próprio filme.
De qualquer forma, alguns pontos gerais importantes e que valem a pena ser citados concernem ao uso não semântico das vozes (a língua cingalesa explorada em sua sonoridade e prosódia);; ao uso de canções como ambientação sonora e índice cultural;; ao uso de materiais a priori não musicais para compor padrões rítmicos e musicais;; ao uso simbólico da orquestração musical (associada à cultura europeia) e da percussão e canto (associado à cultura cingalesa);; à manipulação de sons de código Morse (sonoridade muito próxima às obtidas pelos sintetizadores nos filmes de ficção dos anos 1950 norte-americanos, como em
Planeta proibido, de 1956) e a outros sons em estúdio, captação sonora
experimental (captação do som de gongo usando o microfone em movimento, por exemplo) (LEIGH, 1935, p. 74), combinação não hierárquica dos diversos elementos sonoros na construção das atmosferas sonoro-visuais, que, como afirmado por Jamie Sexton (2004, p. 6), rompe com a típica divisão entre música e outros sons da trilha sonora, além do uso do som de maneira informativa (som sincronizado) e expressiva (som em contraponto com as imagens). (SEXTON, 2004, p. 5;; LEIGH, 1935, p. 71-74).
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Em 1935, outro filme experimental foi lançado, Coal face. E, como ressalta Philip Reed (1987, p. 70), houve um evento significante no que diz respeito a Benjamin Britten – músico contratado pela GPO em 1935 e que trabalhou no Coal
face – e aos filmes comentados nos parágrafos anteriores, especialmente Pett and Pott e Song of Ceylon. No diário de Britten (apud REED, 1987, p. 70), em relação
ao dia 24 de maio de 1935, lia-se:
Fui a Soho Square GPO Film offices às 10h30 para ver alguns filmes da GPO com Cavalcanti. Um muito apaixonante sobre “Ceylon” com bons efeitos musicais – embora não seja perfeito – uma parte da música não era particularmente interessante. Uma pequena comédia apaixonante de Cavalcanti. “Mr Pett & Mr Pott” é um trabalho de gênio – o qual os charmosos distribuidores ingleses não quiseram comprar! Por ser muito bobo! Também o famoso “Weather Forecast”.
Reed (1987, p. 71) aponta que era claro que Cavalcanti estava mostrando as possibilidades da música fílmica para Benjamin Britten, que seria convidado por Cavalcanti para participar de seu projeto experimental, Coal face. Reed continua e afirma que “os valores experimentais [então] em circulação na GPO Film Unit são cruciais para formar nosso completo entendimento do empreendimento de Coal
face”. Essas informações nos dão indícios de que a intenção experimental,
passado um ano de euforia desde a compra dos novos aparatos de gravação e do pequeno estúdio, continuava viva.
Coal face marca ainda o início de uma parceria profícua entre Britten e W. H.
Auden, escritor e poeta, que incluiria, entre diversos filmes e músicas, o trabalho em Night mail. O trabalho deles em conjunto, na totalidade dos elementos e com Cavalcanti, foi decisivo para os resultados alcançados. O script, a música e a montagem foram orquestrados conjuntamente pelos envolvidos no filme, além da participação de outros membros da GPO, como Stuart Legg, Humphrey Jennings, Basil Wright e William Coldstream, num trabalho em que a decupagem das imagens, o script e o som emergiam concomitantemente. (REED, 1987, p. 70-101). Uma das análises de som mais completa do filme pode ser encontrada na tese de Philip Reed (1987), resumida no livro The Cambridge companion to Benjamin
Britten, organizado por Mervyn Cooke (1999).
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o tratamento das vozes. Elas foram pensadas e escritas musicalmente na partitura de Britten para o filme e, conforme Reed (1987, p. 89-92), podem ser divididas em quatro tipos: 1) Comentário: texto falado não metrificado;; 2) Comentário: texto falado metrificado;; 3) Coro (dos mineiros): texto falado metrificado;; 4) Texto cantado.
O primeiro caso, o texto falado não metrificado, é o mais raro no filme e, mesmo quando usado, tem o apoio de um background musical. Na Figura 1, temos um exemplo no qual o texto não está metrificado, mas aparece com o background de piano e percussão, além do texto receber a indicação musical ad lib[tum], conferindo-lhe liberdade recitativa.
O segundo e o terceiro caso, o texto falado metrificado e o coro metrificado, são os mais abundantes no filme e estão envolvidos completamente na composição musical. Na Figura 2, podemos ver o comentário metrificado, acompanhado de piano e percussão e na Figura 3, o coro metrificado, divido em tenor 1 e 2 e baixo 1 e 2, acompanhado de percussão.
O quarto caso, o texto cantado, que se opõe ao texto falado não metrificado, é escrito com alturas definidas e ritmo. Na Figura 4 o notamos dividido em sopranos, altos, tenores e baixos, acompanhados de percussão e piano.
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Figura 2: Trecho da partitura de Benjamin Britten para Coal face com comentário metrificado.
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Figura 3: Trecho da partitura de Benjamin Britten para Coal face com coro metrificado.
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Figura 4: Trecho da partitura de Benjamin Britten para Coal face com texto cantado.
Fonte: Reed (1987, ex. 26).
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música, seja pela maneira que foi produzida, em conjunto, não havendo departamentos ou pessoas específicas trabalhando separadamente para cada uma delas, seja do ponto de vista espectatorial, que, apesar de notarmos no comentário não metrificado – que cabe ressaltar, é o mais raro no filme – o caráter informativo clássico, temos os textos metrificados e musicalizados que se colocam na fronteira da função semântica, própria das vozes e das funções da música fílmica clássica, como a emotiva, a de gerar climas pela dinâmica, conduzindo ao clímax e ao relaxamento na narrativa.
Há também o caso específico do coro metrificado, que, mesmo se pensarmos no limite da pista de voz, confunde-se enquanto comentário e voz dos mineiros.
Na Figura 3, podemos reparar também a atenção com a dinâmica das vozes: no rodapé da imagem, veem-se siglas referentes às distâncias da voz em relação ao microfone, que são utilizadas para dar diferentes intensidades e espacializações às linhas das vozes.
Há ainda outros pontos interessantes. Cada ruído escutado no filme foi escrito na partitura e não há, na verdade, como podemos dizer, sons naturais em origem. De maneira semelhante ao que ocorre em 6.30 Collection, no qual há a orquestração de sons tipicamente não musicais, parte da partitura de Coal face foi escrita para vinte e dois instrumentos tipicamente não musicais, como chapa de metal, marreta de madeira, carrinho sobre amianto arenoso e copo em balde d’água. (REED, 1987, p. 440). Há também o caso de um longo trecho de assobio escrito na partitura, elemento sonoro que, na tradição cinematográfica, não ocupa comumente a pista de música. Do ponto de vista mais macroestrutural da trilha sonora, há ainda que pontuar a associação que ocorre entre “mineiro como máquina” e “mineiro como ser humano” – dois aspectos centrais do filme – e comentário não metrificado e texto cantado, respectivamente. Esse tipo de associação é costumeiramente feito no cinema pela música, quando, por exemplo, existe a demarcação de dois grupos e a cada um deles se associa uma música diferente – uma música com textura densa e grave para um e uma música com poucas vozes e aguda para o outro, por exemplo. Em Coal face essa função é delegada à voz, mas uma voz que já não se define unicamente pelas típicas funções da pista de voz e sim uma voz imiscuída em elementos musicais.
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Com uma equipe de trabalho semelhante a de Coal face, foi lançado no ano seguinte Night mail. Notadamente, a experiência adquirida em Coal face foi determinante para o aspecto mais experimental da trilha de Night mail (a sequência no final do filme em que temos o comentário/ poema musicado, com instrumentos musicais e instrumentos tipicamente não musicais, compondo o ambiente sonoro e os sons que aludem ao trem). A exploração desses elementos – voz, música e ruído – em Night mail caminhou, definitivamente, por vias semelhantes às de Coal face.
Nas Figuras 5, 6 e 7 (um trecho da referida sequência), vemos a voz com suas definições de altura e ritmo orquestrada com instrumentos musicais e com instrumentos tipicamente não musicais, sand-paper (lixa) e wind-machine (máquina de vento). O diferencial de Night mail é que a voz, além de cumprir seu papel informativo e musical, coaduna-se aos outros elementos sonoros para compor, sobretudo ritmicamente, a sonoridade que se associa aos sons do trem, configurando-se como um elemento que, se mantida a perspectiva tripartite da trilha sonora, transitaria pelas três pistas.
Outros dois casos de experimentação sonora no documentarismo britânico ocorrem nos filmes London can take it e Listen to Britain, já na década de 1940 e um pouco distante do clima experimental de meados dos anos 1930. Esses exemplos são interessantes porque remontam a algumas experimentações relativas às sinfonias metropolitanas, mais diretamente a Entusiasmo e Weekend (1930), de Walther Ruttman. Em London can take it, temos quase dois minutos de uma construção sonora, sem instrumentos musicais, que extrapola os limites da construção de ambiente sonoro ou de sincronização de ruídos, e que é precedida do seguinte comentário do narrador do filme: “Isso não são efeitos sonoros hollywoodianos, isso é a música que toca toda noite em Londres: a Sinfonia da Guerra”. Em Listen to Britain, construções semelhantes ocorrem, mas os momentos estão mais diluídos ao longo da trilha sonora. Contudo, da mesma forma, o narrador faz menção à “sinfonia da guerra”:
Eu sou um canadense. Eu tenho ouvido a Grã-Bretanha. Eu ouvi o som de sua vida, de dia e de noite. Muitos anos atrás, um grande americano, falando da Grã-Bretanha, disse que na tempestade da batalha e do conflito havia um rigoroso segredo e um
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pulso como o de um canhão. No excelente filme sonoro que é apresentado aqui, você também vai ouvir o pulso do coração. Misturados em uma grande sinfonia, está a música da Grã-Bretanha em guerra. O hino da noite do [pássaro] cotovia, o rugido do [avião] Spitfires, os bailarinos no grande salão de baile em Blackpool, o barulho de máquinas e trens de manobra [...]. O trompete chama por liberdade, a canção de guerra de um grande povo. As primeiras notas, sem dúvida, da marcha da vitória, como você e eu, escutamos a Grã-Bretanha.
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Figura 5: Partitura de Benjamin Britten para o trecho final de Night mail.
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Figura 6: Partitura de Benjamin Britten para o trecho final de Night mail.
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Figura 7: Partitura de Benjamin Britten para o trecho final de Night mail.
Fonte: The British Library (Disponível em: http://www.bl.uk).
A semelhança desses casos com o de algumas sinfonias metropolitanas reside na ideia de compor com os ruídos cotidianos uma sonoridade representativa de um
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local, de um momento ou de uma ideia, desprendida da ideia rígida de ambientação sonora ou de amarras com a sincronização de ruídos com as imagens, aproximando-se de conceitos musicais de construção e diluindo as fronteiras entre as pistas de ruído e música.
Em Entusiasmo, um experimento sonoro sofisticado, os ruídos, de forma geral, não se associam necessariamente a fontes visíveis e nem a um imaginário fora de campo óbvio (embora se note em diversos trechos essas intenções). Antes disso, os sons, na maneira que se organizam verticalmente e se sobrepõem horizontalmente, ganham força metafórica, e não apenas geram atmosferas sonoras representativas. A grande chave da trilha sonora de Entusiasmo é entender que nele o som é fruto de um processo de montagem, de uma organização do material sonoro do mundo, trabalhado como planos sonoros, num desvendamento do mundo através da articulação fílmica. E podemos dizer “planos sonoros” porque a noção de uma unidade sonora, que é passível de corte, de edição e de colagem se evidencia nas mudanças abruptas, nos contrastes tímbricos e tonais e na manipulação dos sons da trilha sonora.
Para além disso, o pensamento musical insere-se profundamente na concepção dos outros sons do filme, e podemos notar a aproximação conceitual de sons “musicais” e “não musicais” na partitura escrita por Nikolai Timofeev e Vertov em 1929.
Na Figura 8, como nota John MacKay (2015, p. 8), na última linha da partitura, ainda na seção “J”, antes da “K”, temos o tique-taque de um relógio (de grande relevância na narrativa) em métrica indeterminada, embora indicado por repetições intervalares iguais (semínimas se repetindo), que, nesse final de seção “J”, ganha o acompanhamento abrupto de um som de motor, indicado pelas ondas acima das semínimas.
Na figura 9, em outro exemplo, na seção final da partitura de Entusiasmo, a notação musical, em sua construção rítmica, está “no ritmo de um rádio-telégrafo” (como se lê em russo no topo da partitura).
Vertov e Timofeev não eram os únicos realizadores de documentário na União Soviética que lidavam com a aproximação ruído-música. Arseny Avraamov, responsável pelo som de The plan of the great Works (1930), de Abram Room,
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deixa explícito que para ele não havia contradição entre música e ruído. (SMIRNOV, 2013, p. 159). Sobre a realização desse filme, Avraamov (apud SMIRNOV, 2013, p. 159) escreve que “[...] a maioria dos chamados ruídos que foram usados no filme não foram reproduzidos por meio de instrumentos ruidosos, mas em vez disso foram produzidos por meios musicais por instrumentos musicais reais”.
Figura 8: Partitura de Entusiasmo com tratamento musical de ruído.
Fonte: MacKay (2015, p. 8).
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A imbricação dos ruídos e da música é de notória importância nas obras de Vertov, tal como foi para a carreira musical de Avraamov.
Silvio Da-Rin (2006, p. 109) localiza a importância do sonoro em Vertov:
Toda obra de Vertov começou pelo som. Eis como ele rememora seu interesse particular pela possibilidade de gravar sons documentais, ao ouvir suspiros, sinos, risos, motores e chiados, caminhando em 1918 pelas ruas de Moscou: “caminhando eu penso: é preciso conceber um aparelho não que escreva, mas que inscreva, fotografe, estes sons. De outro modo, seria impossível organizá-los, montá-los. Eles fogem, como o tempo. Uma câmera talvez? Inscrever aquilo que se vê... Organizar um universo não propriamente audível, mas visível. Seria a solução?... Neste momento, eu encontro Mikhail Kolstov que me propõe fazer cinema”. (VERTOV, 1972, p. 60)8.
Foi a partir daí que Vertov começou a trabalhar com cinema, “com os ouvidos atentos, imaginando o equipamento cinematográfico como um dispositivo apto a registrar e editar imagens”. (DA-RIN, 2006, p. 110). Quando, portanto, Vertov fala
8 Tal trecho citado por Da-Rin pertence à tradução para o francês dos escritos de Vertov. No nosso
referencial bibliográfico, que é a tradução dos mesmos escritos para o espanhol, tal citação encontra-se em Vertov (1974, p. 53).
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de um cinema livre da música (da literatura e do teatro) – no manifesto “Nós”, publicado originalmente na revista Kinophot, n. 1 de 1922, e na Resolução do grupo Kinoks, de 1923, por exemplo – não se pode entender que ele era contra o uso dela, e sim que ele era a favor do tratamento dos sons pela montagem – a música como documento sonoro.
O rádio-orelha é a montagem do ‘eu escuto’! O Cine-olho é a montagem do ‘eu vejo’! Cidadãos, eis o que lhes ofereço em um primeiro momento, em lugar da música, da pintura, do teatro, do cinematógrafo e de outros escoamentos estéreis. (VERTOV, 1974, p. 29).
É comum vermos em algumas análises, como na do próprio Da-Rin, que caminha em consonância com a de Georges Sadoul (1973), ou na dissertação de Michelle Magalhães (2005), a associação da experiência sonora de Vertov com ideias futuristas, mais especificamente com o manifesto “A arte do ruído”, de Luigi Russolo (1986 [1913]), que, em linhas gerais, aponta que a arte de trabalhar com os sons não deve se limitar a uma função imitativa, concordando com a vida real, e sim combinando e justapondo os ruídos. De maneira geral, percebemos que o pensamento de montagem sonora de Vertov incorpora essa ideia: os sons do mundo deveriam ser interpretados, captados e montados de uma maneira significante, que cooperasse com o desvendamento dos fenômenos sociais.
Todavia, não podemos negligenciar que, para Vertov, essa prática não pressupunha um deslocamento via de regra entre o sonoro e o visível, ou melhor, não implicava a negação do uso sincronizado do som no cinema, tal como temiam Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov na “Declaração sobre o futuro do cinema”. Segundo Vertov:
A concordância ou não do visível com o audível de modo algum é obrigatória, nem para os documentários nem para os filmes atuados. As imagens sonoras, assim também como as mudas, se montam com o arranjo de princípios idênticos;; sua montagem pode fazê-las concordar ou não, ou inclusive misturá-las em distintas associações necessárias. (VERTOV, 1974, p. 122-126).
Pudovkin, apesar de ter assinado a declaração com Eisenstein e Alexandrov, mostra outro ponto de vista no texto “Asynchronism as a principle of sound in film”,
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de 1928 (PUDOVKIN, 1985), no qual compartilha ideias parecidas com Vertov: em resumo, a união entre imagem e som não existe necessariamente por imitação, de maneira naturalista, ela pode ser resultado de uma construção e de uma interação de ações, que caminham em sentido de uma significação que pode representar uma realidade que não é necessariamente uma representação imediata e superficial dela. Em suma: a escolha e o momento do uso sincronizado do som podem ganhar significado, ou seja, o som sincronizado pode não ser naturalista, apenas se assemelhando a tal.
Enfim, em Entusiasmo, o que notamos na trilha sonora é certa indiferença entre o que é voz, música e ruído, especialmente no sentido de que todos os sons são documentos sonoros do mundo e de que todos eles devem ser montados e organizados. Inclusive, a única música que foi composta especialmente para o filme é encarada como documento sonoro, uma vez que a escutamos e vemos sendo regida no estúdio, num processo reflexivo, que explicita ao espectador etapas de construção do material sonoro.
Em carta enviada por Charles Chaplin a Vertov em 1931 (Figura 10), ano em que Entusiasmo estava sendo exibido em Londres, o comentário mais interessante também concerne à organização dos sons:
Nunca havia imaginado que sons mecânicos poderiam ser arranjados com tanta beleza. Considero “Entusiasmo” uma das sinfonias mais emocionantes que eu já escutei. Dziga Vertov é um músico. Os professores deveriam aprender com ele e não arrumar confusão com ele. Parabéns.
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Figura 10: Carta de Charles Chaplin a Dziga Vertov.
Fonte: Film Museum (Disponível em: <http://www.filmmuseum.at>).
Essa concepção de som fílmico que podemos notar assistindo ao filme, pode também ser notada nos escritos em que Vertov articulou uma espécie de script sonoro de Entusiasmo. (VERTOV, 1974, p. 306-309, grifo do autor):
1 - O tique-taque de um relógio. Fraco a princípio. Cada vez mais forte. Mais forte ainda. Insuportavelmente forte (quase marteladas). Retorna gradualmente a um nível médio, claramente audível. Como a batida de um coração, mas muito mais forte. Ressoam passos que sobem uma escada, aproximam-se. Passam ao lado. O ruído se apaga. O tique-taque do relógio. Passos voltam a se aproximar. Chegam bem próximo. Se detêm. O tique-taque do relógio, como a batida de um coração. A primeira badalada de sino de uma igreja. O som se apaga, cede seu lugar ao tique- taque do relógio. Segunda badalada. O som se apaga, cedendo novamente o lugar ao
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tique-taque do relógio. Terceira badalada, que se transforma num carrilhão em festa. Fragmentos do Ofício Divino se misturam ao som do sino. O som do sino misturado com o Ofício não consegue se manter por muito tempo no registro solene. Se sente a ironia, que busca um lugar. O tom solene é incessantemente interrompido. Os ares religiosos parecem executar uma dança. Durante alguns breves instantes, os sons desaparecem, cedendo seu lugar ao tique-taque do relógio, logo as ondas dos sons voltam a se elevar novamente. O tocar de uma sirene de fábrica, potente e prolongado, estoura enfrentando o tique-taque, interrompendo-o. Depois da primeira sirene, uma segunda, uma terceira interrompem a música e o som do sino. Como se estivessem espantados, os sons se detêm em câmera lenta. Interrompem-se. O sino da igreja emite seus últimos sons. Silêncio.
2 - O tique-taque do relógio como a batida de um coração. O sinal de uma ofensiva: uma sirene aguda e prolongada. Logo uma segunda sirene, uma terceira. Ao fundo, eleva-se uma marcha: tambores dos pioneiros, temas da Komsomol, orquestra operária. A sirene toca, forte, grandiosa, logo o som se reduz progressivamente. Permanece uma nota que ressoa por um longo tempo como o zumbido de um motor. 3 - Zumbido único. Ao longe, escutam-se os ruídos da fábrica. Os sons de uma marcha militar alegre (fanfarra) aproxima-se. A orquestra está bem próxima. Por um momento os sons se interrompem e o trompete lança um sinal agudo (Ao ataque! Adiante!). A mesma marcha, mais rápida, mas não tão forte, de maneira que se escute o ruído de fundo da fábrica que se situa nas proximidades. Mais rápido, animado e fraco, e de repente o ganido cômico da cruz que cai. A orquestra emite um grito de entusiasmo. A sirene. A cruz cai com ganido cômico. A orquestra aplaude entusiasmadamente. A sirene. O sino cai com ridículos melindres sonoros e, ao tocar o chão, emite um gemido fúnebre (mais exatamente, adota a pose do “gemido fúnebre”, de tal modo que provoca o escárnio e não a piedade). Neste rápido tratado irônico irrompem gritos de entusiasmo, “hurra” (expressados pelas orquestras). Este “hurra” vitorioso expressado pela orquestra se transforma em marcha dos komsomols, em regozijo e em dança juvenil. Em alguma parte, um relógio faz tique-taque. Um relógio?
4 - O tique-taque como a batida de um coração. O rádio-telégrafo começa a trabalhar. Começamos a ouvir o coração da fábrica, a central da força motriz. A pulsação da central é executada por diversos grupos instrumentais. Ouvimos durante muito tempo esta pulsação elétrica abaixo da terra nas minas, perto dos fornos e em todas as outras oficinas da fábrica. A batida do pulso elétrico se intensifica graças ao funcionamento geral de todos os grupos de instrumentos de percussão e logo a intensidade começa a diminuir;; agora se escuta o que acontece longe. O rádio- telégrafo funciona. O grito agudo da fanfarra irrompe, repetido três vezes sobre o