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Os portuenses perante o Santo Ofício : século XVI

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I

Congresso

s o b r e

a

Diocese do Porto

Tempos e Lugares

de

Memória

H o m e n a g e m

a

D. Domingos de Pinho Brandão

ACTAS

V O L U M E I 1

PORTOIAROUCA, 2002

Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandáo Universidade Catbiica

-

Centro Regional do Porto Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Depaflamento de Cièncias e Tecnicas do Petrimonio

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OS PORTUENSES PERANTE O SANTO

OFÍCIO

-

SÉCULO XVI

Elvira Cunlza de Azevedo Mea Faculdade de Letras da Pono

Ao longo da Idade Média as vicissitudes da comunidade judaica do Porto acompanharam fielmente a História do burgo, pelo que o seu paulatino desenvol- vimento e progresso são o espelho da evolução da cidade.

Assim e ultrapassando toda a problemática das várias judiarias, desde a da Cividade na rua das Aldas, à de Monchique e da Munhata, o facto é que em fins do século XIV e meados do século XV havia duas judiarias na zona do Olival, abrangendo uma área que incluiria sensivelmente as ruas de Belomonte, Taipas, S. Miguel, S. Bento da Vitória, Vitória, Viela de S. Roque, Viela do Ferraz e Escadas da Esnoga, muito embora as duas judiarias estivessem separadas pelos acessos que iam de S. Domingos a Monchique - Miragaia, e limitadas a norte pela rua da Minhata e Porta das Virtudes.

Em pleno século XV a judiaria nova ou do Olival de Cima chegava à Porta do Olival' e em função desse mesmo desenvolvimento nas últimas duas décadas do século, multiplicou-se a sublocação d e casas na comunidade, em simultâneo com um número crescente de judeus dispersos a habitarem em vários pontos da

cidade, como junto da Ponte de S. Domingos, Cangostas e na Ribeira.

'Ver Arthui Carlos de Barros Basto, "Os Judeus no Vellio Porto", Lisboa, 1926: Amflcar Paulo, "A Comuna Judaica da Porta. Apontamentos para a sua história", Parto, 1965 e "A Sinagoga do Olivil. Um Problema Arqueológico", Sep. das Acias do IV Colóquio Poitucnsc de Arqueologia". Porta, 1966; Maria José Pimenta Ferro Tavares, "Os Judeus em Ponugal no Século XV", Lisboa, 1982. pp. 62-69: Geraldo Amideu Coelho Dias. "O Cabido da Sé do Porto e a Cornuna dos Judeus". in "Humanistica e Teologia", Porto. 1983, pp. 323-358 e "Vestígios da Presen~n Judaica no Porto". in "Arqucologia", n.' 10. Porto. 1984, pp. 50-56; Humberto Clirlos Baquero Moreno "Os Judeus na Cidade do Porto nos

Séculos XIV e XV". Actas do Congresso "Xudeus e Conversar na História", I1 vol., Santiago de Compostela. 1994, pp. 337-350.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

À semelhança do resto do país, a comunidade judaica portuense gozava d e grande independência relativamente ao poder local, nomeadamente a nível judi- cial, administrativo, fiscal, militar e económico, pautando-se pela sua boa organi- zação religiosa, política, social e económica, factor que certamente determinou a estabilidade d e relações consensuais com a maioria cristã, como se verificou aquando da rejeição da fixação famílias conversas castelhanas no Porto em 1483- -87 e no período conturbado da conversão forçada.

Parece ter sido uma constante da História do Porto, o saber discernir sempre o interesse da cidade relativamente a outros, que, não obstante a sua maior valia, não deveriam subrepôr-se às perspectivas dos portuenses e daí que durante a Idade Média a cidade tivesse arrostado com várias interdições e excomunhões, uma delas durou 61 anos (1345-1406), em que apesar de muitos obstáculos se divulgou o mote "excomunhão não brita osso" e "o vinho não amarga ao excomungado". É precisamente esse espírito e atitude dos portuenses perante a vida com que deparamos ao longo do século XVI relativamente quer à Igreja, por exemplo, quer à minoria cristã-nova.

Assim, em 1560 a tentativa de desistência de implantação do Colégio de S. Lourenço da Companhia de Jesus na cidade, visto ter havido quem advertisse para o perigo de transferência da Universidade para o Porto e automaticamente o aumento do custo de vida na cidade, assim como o desvio de jovens para a Companhia quando eram tão precisos nas crescentes tarefas da vida civil, nomeadamente no negócio.

Quanto aos cristãos-novos verificamos que a sua relação com a maioria não é substancialmente afectada pela repressão inquisitorial, já que nos portuenses a adesão aos ditames da Igreja e do Santo Ofício se imbue dum certo senso impedi- tivo do empenhamento laborioso na repressão inquisitorial, visto ser possível fac- tor de risco para o progresso citadino. Esta constante, que permanece ao longo do tempo, explica a ausência de conflitos sociais, comuns em meados do século, em grande parte fruto da pretensa paridade de direitos e deveres entre cristãos-velhos e novos e das dificuldades imensas de integração do cristão-novo. Também neste caso, o portuense, em matéria religiosa, não se deixou entusiasmar demasiado pela onda de messianismo d e meados do século, não perdendo nunca o bom senso indispensável à coexistência. É que, não esqueçamos, o cristão-novo era também um portuense e como tal se comportava, pelo que a sua inserção na vida econó- mico-social da cidade permitia-lhe múltiplos contactos e uma convivência vanta- josa para os dois núcleos sociais.

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I CONGRESSO SOBRE A OIOCESE DO PORTO

De notar também, que até às grandes prisões d e 1618, o comércio por grosso do Porto era controlado pelos seus cristãos-novos2.

Neste contexto não é difícil explicar a problemática da Inquisição do Porto, instituição que existiu entre 15413 e 1546, apesar da sua actuação efectiva se verificar apenas entre 1542-44.

Ultrapassada há muito a questão posta por Herculano relativamente à actua- ção do bispo do Porto, D. Fr. Baltazar Limpo, como inquisidor4, neste momento na posse da maior parte da documentação, esparsa pelos vários tribunais, já pode- mos fazer um balanço da acção do Santo Ofício no Porto.

Com uma jurisdição que abrangia o bispado do Porto e o arcebispado de Braga, o tribunal procedeu a uma visitação a Mesão Frio em 1542, que se justifica apenas por se tratar duma localidade situada já nas franjas do bispado e dum núcleo influente de cristãos-novos, partindo do pressuposto que o prelado contro- lava bem a situação no resto do bispado. E trata-se de um pressuposto dado que existe um hiato documental grave quanto i s visitas pastorais do bispado, garantes do controlo da ortodoxia e da moral e costumes cristãos, ainda por estudars.

Dos 53 processos encontrados, 48 referem-se a judaísmo- 90%, 3 a blasfé- mias

-

6 % e 2 a práticas contra o Santo Ofício - 4%, nestes casos, falsos teste- munhos e tentativa de suborno. São sentenciadas 78 pessoas, 62% mulheres e 38% homens; 64% dos penitenciados são oriundos do Porto, 21% de Mesão Frio e 15% de Vila do Conde6.

É óbvio que o Judaísmo foi o objectivo principal da Inquisição do Porto, como continuou a sê-lo ao longo do século em todo o país, como continuou na centúria seguinte no tribunal de Coimbra que abrangia a área aqui focada.

Francisco Ribeiro da Silva, "O Porto e seu termo (1580-1640). Os Homens, as Instituiç6es e o Poder", Porta. 1988. 1 vol., p. 346.

' N i o obstante o funcionamento do santo Ofício em Portugal datar de 1536. A.N.T.T., "Corpo Chronalogico Ponuguer", 3.'pane. m. 15, doc. 54. Ver o nosso truballio "A Inquisição do Porto", Sep. da "Revista de História", vol. 11. Porto, 1979.

'"História da Origem e Esiiibelecimenta da Inquisiçãa em Portugal". t. 111. 4." ed., Lisboa. 1885, pp. 160-171.

'Parece-me oportuno neste 1.' Congresso da Diocese do Pona apelar para a urgência no estudo deita e de outras fontes documenrais do Arquivo do Pata. que impossibilitam equacianar muitas sit"aç"es por estar ainda fechado aos estudiosos.

'

Herminia Vaacancelas Vilar, "A Inquisição do Porto: Actuação e Funcionamento (1541-1542)". "Revista de História Económica e Social", n.' 21, Lisboa, 1987.

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ELVIRA CUNHA De AZEVEDO MEA

Nesta primeira metade do século XVI, a gama d e rituais judaicos é variada, desde os enterramentos, às principais festas, aos jejuns e ajuntamentos, dado que é muito difícil às primeiras gerações mimetizarem ou até anularem actos essen- ciais à sua crença. No entanto e, ao contrário do que é comum neste período, em que é visível a dificuldade de auto-domínio dos cristãos-novos face à exterioridade d o cristianismo e as provocações da maioria, no Porto surgem apenas três casos de manifesta incompreensão das práticas cristãs, com repercussão natural da vigi- lância cristá-velha e um único exemplo d e exaltação da origem judaica7.

Esta situação está de acordo com o já apontado, ausência de marginalização e uma contenção notável por parte da minoria. Aliás, a maioria dos denunciantes são indivíduos de extratos sociais mais baixos, como ex-criados e vizinhos, focos de desconfiança e faróis de vigilância que com o tempo váo sendo apagados.

Assim, se nesta época os cristàos-novos se encontram dispersos, já se nota o interesse num regresso à rua de S. Miguel'e em finais do século concentram- -se nas ruas da Fonte Dourina, Mercadores, Rua Nova e Ponte de S. Domingos. A atenção perante os criados é menor, até pelo que tudo indica, era mais fácil arranjar criados cristãos-velhos e daí um certo descuido até se chegar a uma situação difícil de ultrapassar como verificaremos com a Visitação de 1570.

A diáspora, por seu turno, mediante as fontes que temos para o Porto, não foi nesta época sintomátiaca, cerca de uma dezena de ausentes explicitamente referidos, dados que, mesmo com as aferições devidas perante as circunstâncias, nos consentem afirmar que no Porto a situação não era propriamente dramática, ou melhor, a inclusão profunda nos negócios da cidade facultava uma certa seguran- ça, tanto maior quanto, por seu turno, o tribunal do Santo Ofício, ainda não tinha criado critérios de funcionamento a nível nacional.

Nestas circunstâucias a estratégia usada era contestar sistematicamente o libelo acusatório, de modo a rapidamente o réu apresentar contraditas, que, por costume, recusadas, permitiam apelações eficazes9

'Naturalmente que se lornnm siispcitos certas comportamentos, como n distraçzo na igreja. tapar a cara perante a elevaçzo da hóstia c coment6rios pejorativos h imaginbria. A.N.T.T., Inquisiç2o d e Coimbra, pracs. n.' 584, 587, 796, 9796 e 3589.

9 0 s 40 réus crist$os-novos do Pono, 17 moravam na rua de S. Miguel, 4 na Ponte de S. Domingos, 4 na rira Nova. 3 na rua dor Mercadores. 2 no Postigo da Judiaria, 2 na iuu da Lágea, 2 na Pona do Olival.

2 na ma de Santa Catarina, I na Fonte Dourins, I na rua das Taipas, I em Miiagain e I em Matosinlios.

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1 CONGRESSO SOBRE A DIOCESE 00 PORTO São precisamente as apelações a grande pecha deste tribunal: o Inquisidor geral aceitou sistematicamente um número elevado de apelaçõeslO, pelo que se criou um certo mal estar com os inquisidores portuenses, o que transparece da formalidade dos próprios documentos, até porque, não raro, o tom em que o In- fante remete este tipo de missivas não deixa dúvidas quanto à sua reprovação". Todavia, deixa-nos que pensar a abundância de testemunhas d e abonação ou corroborantes das contraditas que se ausentam, induzindo um possível suborno, como afirmavam os inquisidores portuenses.

Existem mesmo situações com contornos muito dúbios, inverosímeis até, como é o caso de uma jovem cristã-nova, Filipa Álvares, que foge quando a mãe e a irmã são detidas. Ela justifica o facto por doença e forte indisposição, que, entretanto, lhe permitem dirigir-se a Lisboa, onde se mune com um alvará de fiança passado pelo Inquisidor geral, a fim de se apresentar no Porto sem problemas...'?

Muito provavelmente a solução estará na sua geneologia: é filha de Henrique Álvares, um abastado comerciante da Praça da Ribeira", onde possui a tenda e casas. Da actuação do Santo Ofício no Porto 8 pessoas foram absolvidas, 22 foram sentenciadas com penitências espirituais e pecuniárias, 16 "levi" suspeitas, 44 "veementi" suspeitas, donde 42 condenadas a cárcere a arbítrio dos inquisidores ou perpétuo, 5 a degredo para fora do bispado e I I relaxados à justiça secular (6 ausentes e um defunto). A maioria incluiu-se nos dois autos-de-fé realizados no Campo da Porta do Olival em 1543 e 1544'J.

Em Setembro de 1544 o Papa Paulo I11 suspende a execução das sentenças do Santo Ofício, o tribunal do Porto deixa, portanto, de funcionar, não sendo reactivado em 1547 quando Paulo 111 restabelece a Inquisição.

O Porto transcorre então um período praticamente incólume enquanto inse- rido na Inquisição de Lisboa até à reposição do tribunal de Coimbra em 1565.

'OA.N.T.T., Inquisição d o Porto. M. I , procs. ".O2 e 8: M. 2, procs. n." 1 e 6 ; M. 3, proc. n.'3:

M. 4. proc. n." 2 e 3, etc.

" "... E eu "50 sinto que mayor agrava que "50 lhe receberem contraditas de pensaas. que pro- vadas, ficãa absolutos, pois as objeções são [no legitimas ut nihil super, a siber. todas fundadas e m inimititi&s e adios muito eficazes com estes reus... resta estes reua serem desagravados mandando que

lhe recebam a apellação quod cum expensis". A.N.T.T., Inquisição d o Porto. M. 1, proc. n." 2. R. 24. Elvira Azevedo Mea. "A Inquisifão do Parta", cit., pp. 12-13.

" A.N.T.T.. InquisiçBo do Porto. M. 1, proc. n." 9. "Então um dos locais mais caros da cidade. "Respectivamente em 11 de Fevereiro e 27 de Abril.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

Em 1564-1565 procede-se a visitações às cidades do Porto e Braga, não pro- priamente em função do novo tribunal mas tendo como objectivo primeiro, apurar e travar a turbulenta contestação às aplicações do Concílio de Trentol5, portanto com uma evidente incidência clerical, perigosa para o clima de renovação em que tanto se empenhava o metropolita bracarense, D. Frei Bartomomeu dos Mártires. Dada a situação, verifica-se, antes d e mais, um certo concluio entre eclesiás- ticos do Porto e Braga para reforçarem uma posiçáo conjunta tendente a obstacular disposições tridentinas lesivas dos seus interesses, como a implantação dum semi- nário, corte de benefícios a quem não cumprisse os requisitos necessários ou levasse vida irregular etc., pelo que os primeiros dias da visitaL6 são totalmente dedicados a esta questão.

De notar, que no que concerna ao resto da maioria cristã-velha, aos leigos, as poucas denúncias feitas estão muito ligadas a uma vivência pragmática, muito terra a terra que leva as pessoas a, mais ou menos desassombradamente, não demonstrarem crença na vida eterna, depreciarem a Confissão ou estarem contra a Inquisição". Aliás, o "arrenegar" e descrer são pecha do Porto, como o provam as Constituições Diocesanas do Bispado do Porto d e 1585".

Mercê da prioridade da visita, os outros delitos não foram alvo da mesma atenção por parte do visitador, o Licenciado Pedro Álvares Paredes, pelo que os resultados não corresponderam à realidade, nomeadamente no que diz respeito à comunidade cristã-nova, como se comprovou mais tarde.

Aliás, dos 28 acusados de judaísmo, 24 eram mulheres, das quais 8 ou estavam ausentes ou tinham sido já detidas, não se tendo considerado conotações e enredos tendentes à clarificaçáo de situações, que normalmente acarretavam outras detenções.

" " ... que n sua noiitiii era vindo que, nesrii dicta Cydade, algiimar pesous. per pcrsuazio do demonyo. posposto o tcmor dc Dcus. em graude pcrjuiza de suar almas e detrimento de nossa Relyçião cliristi. sentindo mal da qiie tem e ensyna n Sntita Madre Içr+ de Roma, se atreverão dizer palavras enorbitantes e muito escundalos;is contra o Sacrosancio ecornenyco Concilyo Geral Tridentino e sacras decreios ncllc decernidos, afirmando que cra injusta c que se nnm avyn de obedecer, Iicm guardar nem dar a divyda cxccuçio, acrescentando ouirna palavras mal souiites e de muito cscandnlla em desacato de sacio Concilio." A.N.T.T.. I n q u i s i ~ i o de Coirnbra, Livro n.' 659, 8. 2.

'%*a decorre entre 3/12/1564 e 10/1/1565.

"Fiei Antónia da Rosário, "Liuro da Inquisição da Cydade do Porto [15641". Bartholomueana Monimeiita - VII. Arquivo Histórico Dominimno Ponuçuês. Porto, 1976, pp. 5.6, 17, 25, 26, 28, 47. 50, 51, 53. 54, 60.

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I CONGRESSO SOBRE A DIOCESE DO PORTO

Na verdade a visita de 1570, muito próxima, portanto, da anterior, deve ter apanhado muita gente desprevenida, facto, que conjugado com o cuidado de que foi alvo, em termos de preparação e actuação, lhe conferiu impacto19, determinantes para a proliferação denunciatória, como o prova a prorrogação do tempo d e graça (de quinze dias para um mês)" e o número de depoimentos - 290 e 102 confissões. Perante estes dados é conveniente referir que nesta conjuntura a discrepância entre cristãos-velhos e cristãos-novos é perfeitamente visível, não só pelas circuns- tâncias apontadas mas também pela situação económico-social que paulatinamente vai gerando desiquilíbrios, já d e certo modo sensíveis no Porto.

Com efeito as potencialidades do movimento expansionista e a modernização e burocratização do Estado foram bem aproveitadas pelos cristãos-novos, dado que mercê das suas anteriores estruturas, usufruíam de condições excepcionais para a concretização de consórcios mercantis a nível internacional ou interconti- nental, possibilidade de contactos e informações a longas distâncias, um alto ín- dice de alfabetização, etc., o que provocava por parte de outras camadas sociais, desconfiança, inveja e animosidade, como acontecia com o baixo clero e povo, gente muitas vezes preterida em funções e cargos que até paridade de direitos lhe era inerente.

De notar, porém, que relativamente visitação anterior, mesmo com o curto distanciamento de cinco anos, as denúncias contra cristãos-novos por parte de vizinhos são apenas 5; em contrapartida acusam-nos 35 criados ou ex-criados, alguns envolvidos em situações peculiares, como o suborno, a ameaça" ou a pri- são, como aconteceu com uma certa Guiomar Gonçalves", uma mãe solteira, que chamada a depôr, negou ter conhecimento do judaísmo dos patrões, facto tornado evidente pela apresentacão do patrão, Simão Álvares. Este mercador da Ribeira

'I O próprio cerimonial foi mais complexo. em vez do Edito da FS. scrmão e oiitros pormenores se realizamm na Sé. como acontecera em 1564. desta feita muito embora todo o complicado cerimonial tivesse itiício na Sé. houve uma procissão salcne desde a catedral até ao Mosteiro de S. Domingos, onde foi publicado a édita e sc celebrou a missa solene com o sermão alusivo proferido pelo reitor da rccém instalada Companhia de Jesus, Rui Vicente. O que significa uma passagem imponente por todo

o centro da cidadc.

'O A partir de 4/6/1570. A visita acabou n 1118.

?' A.N.T.T.. Inquisiçiio de Coimbra. "Livro I.' da Visitação Gcral d'Antre-Douro-e-Minho", de- núncias de 1416. 2016, 2116, 1117. 1717. 2017, 118. etc. Ver Elvira Azevedo Mea, "A Iliquisição dc Coimbra no Século XVI. A Instituifno, os Homcns e a Sociedade". Porto. 1997, pp. 233-234.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

pode ser o paradigma duma característica desta visitação

-

a inusitada confissão d e cristãos-novos relativamente a pecados menores, como o não cumprimento de jejum ou abstinência ou mesmo Judaísmo, numa antecipação que não era propria- mente sinal de medo ou até d e arrependimento mas indiscutivelmente o tirar par- tido duma situação vantajosa.

Na verdade deparámos com vários casos, como o de Simão Álvares, que em consequência duma confissão oportuna, seguida pelas dos familiares directos", em consonância perfeita, determinaram, como a lei previa, ultrapassar a situação sem prejuízo, ou seja, sofrer uma sentença simbólica de penitências espirituais, sem prisão e confisco de bens.

Algumas destas confissoes revelam-se mais tarde um logro total, pois não só escamotearam a realidade, em termos de dimensão do judaísmo, como provaram que o confitente visava tão s ó usufruir do perdão imediato e fácil, para continuar a seguir a sua lei ou, nalguns casos, para preparar a fuga.

Uma outra criada, Apolónia, esteve presa 22 meses por ter jurado falso a fim de proteger os patroes, que, diga-se de passagem, não eram uns patrões quaisquer - tratava-se de Leonor Ferreira e Pero de Baeça torcedor de seda e mercador, da Rua de S. Miguel, gente muito abastada. Talvez por isso, o casal conseguiu trazer d e Lamego uma sobrinha fugida Inquisição, conservando-a escondida em sua casa, até a põr a salvo em Aveiro, não obstante a denúncia de várias pessoas e da própria confissão de Pero de Baeça durante a vi~itação'~.

Aparecem também cerca de dez casos de anticlericalismo, poucas blasfémias e palavras escandalosas, geralmente sem gravidade, do que resultaram pouquíssimos

" A.N.T.T.. Inquisição de Coimbra. piacs. ti." 8718. 29-13, 5824 c 1194. Este. referente a Pero Fernundes &a Rosa. cunhado de Simão Álvares, que nZa esperou pura ver os resultados e fugiu, foi relaxado i justiça secular em estátua e m 1583.

I' Foi um dos casos mais I O C ~ ~ ~ O ~ ~ S C O S do tribunal de Coimbra durante o século XVI. Na verdade, só alguém com muito dinheiro. iiiteligéncia e coragem como Pero de Bueç* conseguia ter escondida

cm casa uma pcsroa fugidn no tribunal d o Santo Ofício, e m plena visiração. As primeiras denúncias datam de 8 e 15 de Junho. aliás uma delas 6 simultaneamente a contisdo dum cisrelhana. cristZo- -velho, quc duratite d g u m tempo escondeu a rapariga de Lamego. Durante este pcríado a rapariga ainda estava em cJsa doa tias, onde o familiar d o Santo Ofício não a encontrou porque, entre ourros, a criada jurou que li não estava ninguém escondido. Contudo logo a 27. 28 e 30 do mesma mês, Apolónia. o próprio Peio de Baeça e uma filha deste. Leonor. apresentam-se ao visitador. portanto qiiondo a rapariga já estava a salva em Aveiro. A.N.T.T.. Inquirição de Coimbra, Pracs. n.' 2189. 8721 e 8729, respectivamente de Apolónia e Pero e Leonar de Bueçii.

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1 CONORESSO SOBRE A OIOCESE DO PORTO

processos com sentenças de "levi s~speito"'~.

Deve dizer-se que ao longo do século não existem praticamente delitos no tribunal coimbrão contra os cristãos-velhos portuenses, o que s e poderá explicar tão só pela prioridade dada ao judaísmo como também certamente pelo cuidado tido pelos seus bispos na sua erradicação, que de algum modo se pode acompanhar através da evolução e estudo comparativo das Constituições Diocesanas do Bispa- do, sempre elaboradas "a posterior?', neste caso as de 1540 de D. Frei Baltazar Limpo e de 1585 de D. Frei Marcos de Lisboaz6.

Sendo, como apontámos, o judaísmo nesta época o principal objectivo a combater pelo Santo Ofício, o tribunal coimbrão tomou a dianteira, em função essencialmente do seu distrito abarcar relevantes comunidades de cristãos-novos, que, a pouco e pouco vão sendo "entradas", essencialmente mediante visitas inqui- sitoriais, como a de 1579 à Beira", em 1582-83 a Trás-os-MontesZ8 e em 1587 a Riba Coa.

Elas pi-oporcionam resultados substanciais que levam à superlotação dos cár- ceres até ao Perdão geral de 1605 e, portanto, a uma paragem na prossecução de visitas, não obstante a insistência de vários prelados, como os de Lamego e Viseu. A disparidade d e resultados relativamente ao Porto deve-se antes d e mais, a tratar-se de zonas virgens de operações inquisitoriais, possuírem grandes comuni- dades que no interior ainda mais rapidamente ultrapassaram a nível económico- -social os seus conterrâneos cristãos-velhos, acarretando uma crispação, animosi- dade, que, nalgumas localidades chegou à bipolarização social, patente não só neste tipo de fontes como noutras - data de 1574 uma provisão proibindo os cristãos-novos de servirem na Câmara de Vila Flor.

"

A.N.T.T., Inqiiisiçáa de Coimbra, piocs. de Inês da Rocha. mull~er bup - n." 8741; Nicolaii Barbosa - n.' 9386; l a i g e Gonçalves. ferreiro - n.' 10006 e Br8s BrandZo Pereira. fidalgo - n." 15. ?'Elvira Azevedo Me*. "As Constiruiçõcs Diocesnnas d o Porto (1585)" e Coimbia (1591) à luz do Concílio D i o c e s ~ n o de Briga (1566)". Sep. das Actiis d o Congresso Internacional d a "IV Centenjrio da Morte de D. Frci Bartolameu dos Mbrtires". FJtima. 1994. Esperamos muito e m brcve. assim que o arquivo Diocesano esteja disponível. iprofundar melhor a qiiestso com basc nas visitas pastorais.

"Nomcndamente B Cavilhá. Teixoso, Belmonte, Guarda. Cclaiicn d a Beira, Truncoso. Castelo Rodrigo, Almeida, Castelo Bom e Viliir Maior.

A v i s i t ~ ç à o foi realirada em duas fnzes distintas. uma a partir de Miranda, Bragança, Vinhais

e Chaves; a outra, abrangendo Guimaráes. Me530 Frio, Vila Real, Torre de Mancoivo, Feixo de Espada 2 Cinta e Mogadouro.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

Não pode deixar de salientar-se também a pequenez de muitos destes meios, onde nunca se sanaram ódios antigos, como a onda de messianismo que grassou no Nordeste e Beiras, onde os cristãos-novos chegaram a actos extremos d e rejei- ção do Cristianismo, provocando a revolta geral.

No Porto, estas situações nunca se deram, uns e outros guardaram o bom senso e pragmatismo necessários para colocarem os seus interesses acima de con- vicções e "preconceitos" religiosos, de modo que em pleno século XVI s e reali- zaram casamentos mistos, então uma raridade e deparámos com gente da nação integrada em várias facetas da vida da cidade.

"De facto, durante a 2." metade do século XVI haviam prosperado nos ne- gócios e melhorado o status social: efectivamente, "alguns vereadores'' haviam casado com filhas de mercadores ricos com benefícios imediatos para estes, como por exemplo, serem isentos de fazer a representação da Santa Catarina e Santa Madalena na procissão do Corpo d e Deus. Outros, viviam honradamente, segundo a lei da nobreza, vestíbulo de ascenção social efectiva. Quantos destes através do casamento e da aquisição de cargos importantes se terão integrado totalmente na sociedade portuense?

Não deixa de ser sugestivo que, em 1610, tendo o Rei proibido que a eleição para os cargos da Misericórdia se fizesse em cristãos-novos, acabou por recuar e permitir que os irmãos que já tivessem servido tais cargos pudessem voltar a ser eleitos. Daí para o futuro a limpeza de sangue seria exigida para a própria admis- são. Mas a esponja lançada sobre o passado não deixa de ser um facto significa- t i ~ o " ' ~ . Não esqueçamos, todavia, que para este estado d e coisas em muito contribuiu a posição de lima autêntica elite cristã-nova, que ein termos meramente mercantis dominava, como é evidente num quadro apresentado pelo Prof. Ribeiro da Silva relativo aos mercadores com maior volume de mercadorias na Alfândega do Porto durante o século XVI

-

22 cristãos-novos em 50 mercadore~'~.

Todavia a diferença existia, com tendência para aumentar, o estatuto da limpeza de sangue encarregava-se de a marcar, impedindo uma integração que no Porto até era possível, s ó que um estigma é sempre um estigma e daí que "os cris- tãos-novos dificilmente conseguiam vencer o estigma da raça: e m 1575, o Doutor

In Francisco Ribeiro da Silva, "O Porto e o seu Termo (1580-1640)". cit.. p. 346.

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L CONGRESSO SOBRE A DIOCESE DO PORTO

Lopo Dias da Cunha que acabara de prestar excelentes serviços à cidade na cura do tabardilho e que alcançou mais tarde grande fama como médico a ponto d e os seus préstimos serem requeridos pela Corte de Madrid, viu rejeitado o seu pedido d e inclusão nos cidadãos.

..

Em 1602, o licenciado Sebastião Pereira, advogado nos auditórios da cidade, não conseguiu que o seu nome figurasse na pauta dos almotacés por ser 'de n a ~ ã o ' ' ' ~ ' .

O Santo Ofício, por seu turno, contribuiu decisivamente para a desagregação, mas só deu realmente o seu xeque-mate à gente "de nação" portuense no século XVII, por vários motivos, nomeadamente as frutuosas "entradas" no nordeste e a própria resistência destes portuenses que ao longo do século jogaram sempre tudo por tudo.

Assim, no maior escândalo de corrupção de funcionários da Inquisição de Coimbra desempenharam um papel primordial dois cristãos-novos do Porto - Tris- tão Rodrigues Vila Real, mercador, com grandes ligaçóes ao Brasil e Simão de Crasto, tratante d e seda, sal, azeite e bacalhau.

Ambos, na década de setenta pagam quantias chorudas para receberem infor- maçóes detalhadas sobre os seus processos e instruçóes quanto ao modo de pro- ceder nas sessões com os inquisidores, dados que, por escrito ou oralmente, Ihes são facultados pelo notário e dois guardas da prisão do tribunal de Coimbra.

Ambos sobressaiem do grupo de "privilegiados" porque um, Tristão Rodrigues Vila Real chega ao cúmulo de receber a visita da esposa nos "incomunicáveis" cárceres da Inquisição; o outro, Simão de Castro, não só tinha papel, tinta e dinheiro na cela, objectos mais que proibidos, como enviou e recebeu uma série de men~agens'~. Destacam-se também porque quando o negócio foi descoberto, se adiantaram às pesadas sentenças que todos sofreram - Tristão Rodrigues Vila Real enforcou-se na cela", Simão de Castro deixou-se morrer por inanição, sendo as suas últimas palavras: "Que grande carga tenho"".

"

Ibidem, p. 301.

'? "... Confessa que escrevia várias mensagens numa meia-calça, por vezes escritas nos dois lados num lenqo de pano da índia. o qual engomara com pão e clara de ovo, utilizando tinta de cnrvzo misturada com vinagre". Par vezes escrevia mesmo em código, chamando "marmelos" aos homene e "maçL" 2s mulheres. "A Inquisiçno de Coimbra no Século XVI", cit., p. 352.

"

A.N.T.T., Inquisiçzo de Coimbra, prac. n." 806. " A.N.T.T., Inquisi$io de Coimbia, proc. n.' 1730.

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ELYIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

Nos 160 processos de cristãos-novos portuenses relativos à 2.' metade do século XVI, surgem-nos duas épocas distintas - uma, ainda mais ou menos ligada às visitações, portanto, anos sessenta-setenta, outra, já na década de noventa, reflexo duma incisão em algumas famílias e de contactos com gente hansmontana presa, uma penetração lenta, segura, que se adivinha suculenta, interrompida pelo Perdão geral de 1605.

Já na primeira fase se denota como características mais evidentes dos portu- enses detidos, uma crença bem arreigada, nalguns casos mesmo inabalável, uma resistência granítica que esmaga. São factos que determinam e tomam compren- síveis situações incompreensíveis, como uma Guiomar Cardosa, da família dos Coimbras, que e m 1569 afirma não saber oração alguma d e cristão"; situações provocantes, como o grupo de mulheres que rezam, guardam os sábados e jejuam regularmente na cela, inclusivamente o jejum grande da Rainha Ester. Destas, apenas duas, Guiomar Rodrigues e Dionísia de Vitória, com o processo adiantado, já depois de terem contestado o libelo por negação, confessam no mesmo dia, única e exclusivamente esses actos do interior da prisão3'.

Há até situações suicidas, como Graça Rodrigues, Isabel Ribeira e Clara Gonçalves, que fazendo parte do grupo, nada dizem, permanecem mudas, negati- vas. Clara Gonçalves, viúva, de 60 anos, lembra só, vinca, logo na primeira ses- são, em que fornece os seus dados pessoais, família, etc., como que fazendo parte da sua identificação, que tinha sido já presa pelo Santo Ofício duas vezes, uma pelo tribunal do Porto há 24 anos, a segunda há dez pela Inquisição de Lisboa. As três são relaxadas à justiça secular3'.

Data desta altura o início ininterrupto da diáspora que se dirige para Castela (utilizada como trampolim para as colónias espanholas) e sobretudo já para o Brasil. A segunda revoada de prisões começa em 1590 com a denúncia de uma família de cristãos-velhos da Rua dos Mercadore~'~, contra o sirgueiro Leonel Femandes, viúvo e filhas, de 18 e 17 anos, Catanna Pinheira e Isabel R o d n g ~ e s ' ~ , que, apanha-

'*

A.N.T.T., InquisifZo de Coimbra, prac. n." 9421.

"Têm sentença de circere c hábito perpétuo, sem remissão, com insígnias de fogo, pura eviden- cias nem que estiveram prestes a sei condenadas A pena máxima. A Dionísia de Vitória acrestenra-se o pagamento de 100 cruzados em favor dos presos pobres. A.N.T.T.. Inquisição de Coimbra. procs. n."

5252 e 4940.

"A.N.T.T., Inquisição dc Coimbr,?. procs, n." 1058. 8153 e 1074.

" Alcixo Alão e irmh, Maria da Silva e Graça Morais. A.N.T.T., Inquisi@o de Coimbra, procs. n." 1006, 1202 e 987.

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I CONGRESSO SOBRE A DIOCESE DO PORTO

dos de surpresa pelo solicitador do tribunal coimbrão, que os detém, surprendem por seu turno o oficial inquisitorial, ao encontrar um livro de orações com calendário hebraicos numa arca da casa, por ser muito raro um achado destesq0.

Durante um ano e m duas investidas4' são detidas mais dezoito pessoas, fa- miliares, amigos e conhecidos do sirgueiro, que não se deixam abater e muito me- nos atemorizar pelo stress do cárcere.

Assim, alguns continuam a jejuar e guardar os seus sábados, outros, a maio- ria, entram em contacto a fim de saberem informações de quem está preso, quem "deu" em quem, que fazer, quando e como confessar ou não deste ou daquele, numa última tentativa de consertar o desconserto.

Dai que as únicas revogantes, por inexperiência e falta de conselhos, são precisamente as jovens Catarina Pinheira e Isabel Rodrigues, que ainda na prisão contactam com um outro conjunto arrojado, constituído, entre outros, por quatro das suas tias maternas e liderado por uma delas, Janebra Pinheira"?, a qual lá fez jus ao marido, o solicitador de demandas, Simão G o n ~ a l v e s ~ ~ .

Com efeito, logo de princípio tomou as rédeas do seu destino e do dos outros, sobretudo das irmãs, a quem a cada passo aconselhava o passo seguinte. À irmã Beatriz Rodrigues: " Ou lá, tende mão em vós e no leme

...

querendo

dizer-lhe pelas ditas palavras que se calasse e não fizesse cousas por onde o alcaide a castigasse"".

Mas a Beatriz não esmoreceu e noutra altura, "à boca da noite", chamou a irmã Janebra e disse-lhe que se lembrasse ". .. do Governador da sua terra, ao que respondeo a dita Janebra Pinheira que se lhe lembrava a ella, Briatis Rodrigues do filho de Jacob que estivera preso sete annos no Egipto e dipois saira em hum carro triunfante por salvador das gentes, e que Deus que salvara a elle salvaria a ellas tambem. E perguntando ella, confitente, dipois a ditta Janebra Pinheira a que proposito lhe dizia sua irmã Briatiz Rodrigues que se lembrasse do Governador da sua terra, a ditta Janebra Pinheira lhe respondeo que isso dizia para que ella, Jane- bra Pinheira estivesse muda e não falasse, assi como o ditto Governador estando

''O descuido deve ter estado lionda h morte recente da mãe das jovens e h inesperada prisão.

"

A 219 de 1590 e 512 de 1591.

'? A.N.T.T.. Inquisição de Coimbra, ~ ~ procs. n."1733,3310, 1736 e 8649. relativos n Violante Pinhcira. Beatriz Rodriçues, Jnnebra Pinlicira e Filipa Ângcia.

"Morreu no cúrcere. A.N.T.T., Inquisiçilo de Coimbra, proc. n.' 383.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

cativo em África, estivera dous annos sem falar, para que mais facilmente lhe dessem liberdade..

.""

Tanto à vontade acarreta pesadas penas para a maioria das pessoas deste conjunto, como acontece com duas destas irmãs, que embora tenham tido licença para irem para a sua terra, ainda no ano do auto, 1593, só em fins de 1600 Ihes foi permitido tirar o hábito penitencial, o que significa que s ó nessa altura teriam regressado ao Porto, dado que era costume os penitenciados permanecerem em Coimbra até poderem sair livremente, sem quaisquer resquícios da ignomínia. Janebra Pinheira é relaxada à justiça secular, tendo tido todos confisco de bens. Este tipo de situações levou certamente os portuenses a reflectirem sobre o teor e eficácia da sua resistência.

Na realidade não ter medo, ou pelo menos não o demonstrar, não chegava - o sistema não servia, pois as sentenças eram pesadas e o confisco d e bens uma desgraça. Havia que ir mais longe - e por que não seguir o exemplo do Gover- nador e não falar, esperar para ver, custasse o que custasse?

Assim, a nova leva que entra nos cárceres d e Coimbra em 1595, na sua maioria opta por confessar o mínimo possível, quase sempre referenciando corre- ligionários presos, ausentes e defuntos, pelo que a diminuição relativa ao rol das denúncias quando não há grande discrepância, acarreta invariavelmente uma sen- tença de tormento, a fim de se esclarecerem dúvidas quanto à veracidade da con- fissão diminuta.

A resistência tortura permite sair com uma sentença leve, normalmente "vehemente suspeito na Fé" e quase sempre com isenção d e confisco de bens, pelo que havia que aguentar.

São realmente os portuenses que proporcionalmente sofrem mais a sentença de tormento e são vários os que aguentam até ao fim sem tugir nem mugir.

Leonor Dias, 40 anos, viúva, sentenciada a ir a tormento, é atada e começada a levantar mas o cirurgião advertiu que ela "não era capaz para o tormento da polé, era melhor e mais seguro dar-lhe o tormento do potro, no qual foi lançada. Sendo apertada de todas as partes, quanto pareceu ao cirurgião que podia sofrer e lhe foi dado um garrote de água; e por a Ré desacordar, o cirurgião disse que não era

"

Depoimento dc Ana Lopes, uma das ponuenscs desic çmpo. transcrito para o processo de Bcairiz Radrigucs.

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I CONGRESSO SOBRE A DIOCESE DO PORTO

capaz de mais tormento,. ."46

Violante Pereira, 56 anos, casada, detida desde 18 de Julho de 1595, a 5 de Maio de 97 ao ser conduzida ao local do tormento e começada a atar, não resiste e denuncia algumas pessoas, todas przsas, ausentes ou defuntas. Sendo levantada na polé, denun- cia a irmã e os sobrinhos ausentes, pelo que foi "mandada hir ao potro e foi atormen- tada nelle com dous guarrotes d'auga sem dizer cousa alguma e lhe foi dada huma volta a todos os arrochos e lhe foi dado outro guarote d'auga e não disse nada...""

A 14 de Fevereiro de 1598 tem nova sentença de tormento, porém mal chega ao dito lugar não aguenta e denuncia quatro pessoas. Sendo atada, o cirurgião intervém, considerando "ser muito velha e já outra vez atormentada, náo podia sofrer mais tormento e também ter satisfeito o principal de suas diminuições ...''48

Tem sentença de cárcere perpétuo e confisco de bens.

Havia que permanecer mudo desde o principio, como fez o mercador Lopo Nunes Coutinho, 47 anos, que "foi atado, começado a alevantar, alevantado e teve dous tratos expertos e um comdo", até exactamente o médico, Dr. Gonçalo Dias considerar que não podia sofrer mais por ser velho e doente. Neste caso foi con- siderado "vehementi suspeito na Fé" e não teve confisco de bens.

Todavia Lopo Nunes Coutinho, talvez para se comprometer consigo próprio e com os outros, antes ainda de ser sentenciado a tormento, já tinha afirmado a outros companheiros da prisão:

"Por isso está o cárcere cheo porque se todos fosem de minha condiçam, bem me podiam dependurar pola lingoa mas eu não diria nada, mas a hi tantos que dam em seu pai, irmãos e parente^..."'^

A mesma sorte não teve Maria Álvares, 70 anos, casada com um cristzo- -velho, mercador, Francisco Álvares, o Depena Galinhas, pois de nada lhe vale permanecer muda e queda e ser mulher de cristão-velho, uma atenuante, visto que dada a quantidade e qualidade das denúncias, nem sequer vai a tormento; é con- denada à pena máxima50.

"

A.N.T.T., Inquisiçio dc Coimbra, prac. n." 7325. fl. 36v.-37 da 2." numeiaqio.

"

A.N.T.T., Inquisição de Caimbra. proc. n.' 596, fl. 58.58~.

'S A.N.T.T., Inquisição dc Coimbra, proc. n." 596.

'"Testemunha d o guarda Jorge laão n 2014195, poitanlo quando o réu estava detido há j8 três anos. A.N.T.T., Inquisiçio de Caimbra. proc. n." 2200.

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ELVIRA CUNHA DE AZEVEDO MEA

Havia que ir mais longe..

.

Em 1598 Maria Álvares, 48 anos, mulher dum tratante de peixe de Matosinhos agarra-se

i

esperança duma solução, que imagina para breve - um Perdão geral. Conta a uma companheira de Viseu que um filho do Bem Talhado do Porto, da Ordem de S. Fraiicisco, que segundo se lembrava se chamava Frei Isidro, estava em Roma a buscar um breve de Sua Santidade para perdoar

a

gente d e nação5'.

As negociaçõs demoraram sete anos e o Perdão geral de 1605 custou aos cristãos-novos 1700000 cruzados, para o que certamente muito contribuíram os portuenses, que relativamente ao Santo Ofício se continuaram a pautar por uma posição de antes quebrar que torcer, como se verificou mais tarde.

Com efeito, uma nova visitação inquisitorial ao Porto, e m 1618, a última, foi catastrófica para a comunidade cristã-nova, cada vez mais influente e, talvez por isso mesmo, confiante e confiada e por tal, foi d e certo modo apanhada despre- venida, até porque juridicamente esta visitaçáo era uma novidade total.

Quebraram mais de cento e cincoenta pessoas pertencentes a estratos sócio- -económicas e culturais elevados, pelo que a comunidade cristã-nova em grande parte se desmoronou. A cidade registou o abalo e nada ficou como dantes, como se lamentava a Câmara em 1623:

"A gente de negocio se alguma ouve em algum tempo nesta Cidade sesara com

as prisões que ouve pello Santo Officio cuja confiscaçáo nella se entendia importara mais de trezentos mil cruzados para a Fazenda Real..."s'

Vivia-se então a época áurea do tribunal do Santo Ofício e por conseguinte um período negro, calamitoso para a gente de nação.

-~ ~

"

A.N.T.T.. InquisiçZo de Coimbra, piac. n." 2984.

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