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Legitimidade democrática da jurisdição constitucional: contribuições da discussão entre procedimentalismo e substancialismo à práxis judiciária brasileira

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DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL E PROPEDÊUTICA BACHARELADO EM DIREITO

JOÃO LUCAS MEDEIROS E SOUZA FONSECA

LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONTRIBUIÇÕES DA DISCUSSÃO ENTRE PROCEDIMENTALISMO E

SUBSTANCIALISMO À PRÁXIS JUDICIÁRIA BRASILEIRA

NATAL-RN 2019

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LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONTRIBUIÇÕES DA DISCUSSÃO ENTRE PROCEDIMENTALISMO E

SUBSTANCIALISMO À PRÁXIS JUDICIÁRIA BRASILEIRA

Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Graduação em Direito como parte dos requisitos para obtenção do Título de Bacharel em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Tinoco de Góes

NATAL-RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas – CCSA

Elaborado por Shirley de Carvalho Guedes - CRB-15/440 Fonseca, Joao Lucas Medeiros e Souza.

Legitimidade democrática da jurisdição constitucional: contribuições da discussão entre procedimentalismo e substancialismo à práxis judiciária brasileira / Joao Lucas Medeiros e Souza Fonseca. - 2019.

70f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito Processual e Propedêutica. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Tinoco de Góes.

1. Direito - Monografia. 2. Poder judiciário - Monografia. 3. Jurisdição constitucional - Monografia. 4. Legitimidade democrática - Monografia. I. Góes, Ricardo Tinoco de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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Em tom de fechamento de um ciclo importantíssimo, não poderia deixar de agradecer a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para a minha chegada até aqui, pois hoje sou um pouco de cada uma dessas pessoas.

Agradecimentos primeiramente à minha família, em especial aos meus pais e avós, que, apesar da distância física, apoiaram-me e fizeram o possível e o impossível em prol do meu sucesso. Agradecimentos também aos meus bons amigos (tanto aos mais antigos quanto aos que fiz ao longo do curso), que estiveram juntos a mim e me proporcionaram momentos de muita alegria. Por fim, aos mentores intelectuais que tive ao longo dessa caminhada, agradeço por todo conhecimento compartilhado e pelos ensinamentos que levarei para a vida.

Nesse último ponto, um agradecimento especial ao professor Ricardo Tinoco, meu orientador, por toda a paciência e cuidado, e por dar um suporte teórico profundo à consecução da presente pesquisa.

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―Todo poder emana do povo‖. A partir dessa proposição fundamental, que principia a Constituição Federal Brasileira e nos remete a um dever se lastrear o exercício de todo poder político em um fundo democrático, é que se buscará desenvolver o presente trabalho, com vistas a uma investigação do fundamento da legitimidade democrática do exercício da jurisdição constitucional pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, a problemática pode ser resumida com uma pergunta: de onde vem o fundamento legitimador que autoriza juízes constitucionais, que não receberam um voto popular sequer, a dar a última palavra sobre questões afetas à Constituição, um documento com tamanha importância ao regime democrático? Partindo disso, para a construção do raciocínio aqui posto, explorar-se-á inicialmente as condicionantes principais da problemática e os motivos pelos quais ela tem acompanhado a justiça constitucional ao longo de toda sua história. Depois, a partir das teorias procedimentalistas e substancialistas se buscará responder à resposta central da problemática. Valendo-se de uma síntese das posições abordadas, chegar-se-á a uma conclusão principal: a legitimação democrática da justiça constitucional perpassa pela garantia dos direitos fundamentais essenciais ao bom funcionamento da democracia. Chocando tal proposição com a realidade histórica brasileira, chegar-se-á a uma segunda conclusão, de que a legitimação democrática da justiça constitucional no Brasil, um país de modernidade tardia, deve estar pautada em uma atuação compatível com o caráter dirigente da Constituição brasileira, compromissada com as promessas de modernidade constantes em seu texto. Contudo, a defesa dessa atuação, como se verá ao final do trabalho, não implica na adesão a um voluntarismo judicial, fragilizador da autonomia e integridade do Direito, contra o qual a jurisdição deve ser completamente refratária.

Palavras-chave: Legitimidade democrática. Jurisdição constitucional. Constitucionalismo. Democracia. Procedimentalismo. Substancialismo.

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―All power emanates from the people‖. From this fundamental proposition, starting point of the Brazilian Constitution which reminds us of the duty to fill any political power exercise with a democratic background, the present study is going to be developed, examining the reason to the democratic legitimacy of constitutional jurisdiction exercise by the judicial branch. The problematic can be summed up in one question: from where does the legitimacy reason that authorizes constitutional judges, holders of non-elegible offices, to give the last ruling in constitutional matters, a very important document to the democratic regime, come? Considering this, to the optimal construction of the stated reasoning, the main conditions of the problematic and the reasons why it has followed the constitutional jurisdiction in all its history are going to be explored. Afterwards, starting from the proceduralist and substantialist theorys a answer to the main problem will be sought. Utilizing a summary of the addressed positions, a central conclusion will be reached: constitutional jurisdicton‘s democratic legitimacy comes from the protection of the essential fundamental rights to democracy‘s well being. Confronting said proposition with Brazilian historical reality, a second conclusion will be reached: that Brazilian constitutional justice‘s democratic legitimacy, a late modernity country, must be aligned with a compatible procedure to constitution‘s ruling character, committed to the modernity promises layed in its text. However, the defense of this procedure, as it‘s going to be seen at the end of the study, doesn‘t implie adherence to a judicial voluntarism, a weakener of law‘s autonomy and authority, wich the jurisdiction must be absolutely against.

Keywords: Democratic legitimacy. Constitutional jurisdiction. Constitutionalism.

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1. INTRODUÇÃO ... 8 2. DA TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA... 11

2.1. A CONSTITUIÇÃO COMO MATERIALIZAÇÃO DA LIMITAÇÃO DO PODER NO ESTADO LIBERAL ... 11 2.2. DA TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO

RECÉM-NASCIDO ESTADO LIBERAL ... 13 2.3. DAS TENTATIVAS CONCILIATÓRIAS ... 16 2.3.1. A proposta habermasiana de coesão interna entre Estado de direito e democracia ... 16 2.3.2. A interdependência entre constitucionalismo e democracia na concepção comunitária substantiva de Ronald Dworkin ... 20 2.4. UMA SÍNTESE DAS POSIÇÕES CONCILIATÓRIAS ABORDADAS ... 24

3. CONSTITUCIONALISMO E O JUDICIÁRIO NA TEORIA DA DIVISÃO DE PODERES ... 26

3.1. O ESTADO LIBERAL E O PODER JUDICIÁRIO NA CLÁSSICA TEORIA DA DIVISÃO DE PODERES ... 26 3.2. ASCENSÃO DO PODER JUDICIÁRIO COM O ADVENTO DO

CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO ... 30 3.3. CONSOLIDAÇÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMO TÉCNICA DE INSTRUMENTALIZAÇÃO DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL ... 34

3.3.1. O modelo norte-americano de judicial review ... 35 3.3.2. O modelo europeu de controle concentrado de constitucionalidade ... 37 3.4. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA TRADIÇÃO JURÍDICA

BRASILEIRA ... 38

4. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ... 42

4.1. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: A DISCUSSÃO ENTRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO ... 43

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4.2.2. A legitimidade democrática da jurisdição constitucional no procedimentalismo discursivo de Jürgen Habermas ... 45 4.3. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL SUBSTANCIALISTA ... 49 4.4. UMA INTERFACE ENTRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO NA RESPOSTA À PROBLEMÁTICA DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ... 53 4.5. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL EM PAÍSES DE MODERNIDADE

TARDIA: O CONTRAPONTO FEITO POR LENIO LUIZ STRECK ... 53

5. TODOS CONTRA O SUBJETIVISMO: CONTRIBUIÇÕES DA DISCUSSÃO ENTRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTACIALISMO À LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA ... 58

5.1. NEOCONSTITUCIONALISMO, PÓS-POSITIVISMO E A CRIAÇÃO DE UMA JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES À BRASILEIRA ... 59

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 65 REFERÊNCIAS ... 68

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1. INTRODUÇÃO

Com a superação do individualismo privatista que marcou o nascimento do Estado Moderno, a Constituição, antes um documento desprovido de juridicidade, foi alçada à categoria máxima nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, gozando de supremacia sobre as demais categorias normativas. Com isso, seria preciso que de alguma forma essa supremacia constitucional fosse instrumentalizada e efetivada. É a partir disso que a jurisdição constitucional surge como forma de garantir tal supremacia.

Além disso, com o advento do constitucionalismo contemporâneo, no período pós-Segunda Guerra Mundial, as teorias da Constituição, já incorporadas à ideia de supremacia constitucional, passaram por diversas mudanças, que naturalmente repercutiram em novas concepções de Estado e de Direito. As Constituições, que no liberalismo se limitavam a definir a organização do Estado e alguns poucos direitos fundamentais de liberdade, passaram a conter decisões políticas substantivas e um extenso rol de direitos fundamentais. Assim, além de exercer posição de supremacia no ordenamento jurídico, as Constituições se tornaram a espinha dorsal do Estado Democrático de Direito, sendo sua condição de possibilidade.

Somando todos esses fatores, com a ascensão vertiginosa das constituições, nada mais natural que houvesse uma similar ascensão também do seu guardião: o Poder Judiciário – e aqui especialmente a justiça constitucional –, antes secundarizado frente à força do legislativo e do executivo, chegando a ser tratado meramente como ―boca da lei‖.

Com a maior abrangência da Constituição, houve também aumento das matérias judicializáveis, pois, ao se positivar um direito na Constituição, o constituinte democrático acaba por retirá-lo do campo da deliberativo das instâncias majoritárias para colocá-lo no campo jurídico e, portanto, jurisdicional, passível de ser deduzido em uma pretensão jurisdicional. Tal fato naturalmente ampliou sobremaneira poder decisório conferido ao Judiciário, principalmente no exercício da jurisdição constitucional.

Diante disso, passou-se a questionar fortemente o fundamento da legitimidade democrática do exercício da jurisdição constitucional pelo Judiciário; os questionamentos podem ser resumidos em uma pergunta central: de onde vem o

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fundamento legitimador que autoriza juízes constitucionais, que não receberam um voto popular sequer, a dar a última palavra sobre questões afetas à Constituição, documento com profundas repercussões no campo político e social, podendo eles, inclusive, invalidarem leis provenientes de um processo legislativo democrático?

A essa pergunta fundamental as teorias constitucionais e a filosofia do direito modernamente têm dado inúmeras respostas, sendo elas normalmente agrupadas, para fins didáticos, em dois principais eixos teóricos: procedimentalista e substancialista. Como se verá mais à frente, dessas duas linhas de pensamento decorrem posições diversas acerca tanto do papel da Constituição quanto da esfera de poder destinada à jurisdição constitucional.

É precisamente aqui onde se manifesta a problemática central da pesquisa ora intentada e o caminho que será percorrido no desenvolvimento do tema proposto.

Assim, tem-se como objetivo central do presente trabalho uma investigação sobre como se opera a legitimidade democrática de jurisdição constitucional a partir das teses procedimentalistas e substancialistas, com vistas no preenchimento das lacunas de legitimidade da jurisdição constitucional brasileira a partir das contribuições que podem ser extraídas duas linhas de pensamento.

Para tanto, passar-se-á pelo primeiro aspecto da problemática, qual seja a tensão entre o constitucionalismo e a democracia, com a finalidade de entender como a Constituição se tornou a espinha dorsal dos regimes democráticos.

Após isso, a partir de uma retrospectiva de como a passagem do Estado liberal ao Estado social e do constitucionalismo liberal ao constitucionalismo contemporâneo, com a ascensão institucional do Judiciário e a propagação da jurisdição constitucional como mecanismo de garantia da supremacia constitucional, buscar-se-á construir o segundo aspecto da problemática, qual seja o do aumento de poder decisório nas mãos do Poder Judiciário, que gerou um aprofundamento nos questionamentos acerca da legitimidade democrática da jurisdição constitucional.

Por fim, adentrar-se-á de maneira mais forte nas correntes procedimentalistas e substancialistas para investigar como deve ocorrer a legitimação democrática da justiça constitucional, principalmente em países de modernidade tardia como o Brasil, deixando, ao final, a título de conclusão, algumas

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contribuições da discussão entre procedimentalismo e substancialismo à práxis judiciária brasileira.

A pesquisa aqui desenvolvida ganha importância quando se considera o momento pelo qual a República Brasileira passa em nossa história institucional. Não precisa refletir muito para se chegar à conclusão de que as instituições republicanas estão, por diversos motivos, passando por uma profunda fragilização. Desse modo, dentro do recorte temático aqui proposto, mostra-se imperioso fazer uma reflexão acerca da legitimidade do exercício de poder pela justiça constitucional no Brasil, isso com vistas a alinhá-la à sua função ideal no regime democrático.

No que concerne à metodologia utilizada, pode-se dizer que a pesquisa a ser realizada terá uma abordagem essencialmente qualitativa do objeto pesquisado, visando uma análise teórica dos fenômenos estudados. Em relação ao tipo de pesquisa levando em consideração os objetivos, cabe a definir como exploratória, pois essencialmente buscará encontrar o(s) fundamento(s) da legitimidade democrática do exercício da jurisdição constitucional tomando como base as teorias procedimentalista e substancialista.

O método utilizado para a coleta de dados, por sua vez, será o de pesquisa bibliográfica, ou seja, as informações serão coletadas a partir de textos científicos inseridos no universo teórico do tema. Aqui se pode destacar como instrumentos utilizados especialmente livros e artigos científicos, a servirem de base para o deslinde da pesquisa.

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2. DA TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA

2.1. A CONSTITUIÇÃO COMO MATERIALIZAÇÃO DA LIMITAÇÃO DO PODER NO ESTADO LIBERAL

Quando se pensa na origem do movimento constitucionalista, observar-se-á que seus antecedentes históricos remontam ao próprio surgimento do Estado moderno. A esse respeito, Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2017, p. 34) ensinam que o Estado moderno surge, ao longo dos séculos XV, XVI e XVII, com a derrocada gradual do modo de produção e de organização social típicos do período medieval, geralmente identificado com o sistema feudal. Nesse processo histórico, os autores relatam que o poder político, antes fragmentado em diversos núcleos, num arranjo bastante particular do feudalismo, torna-se, a partir do Estado moderno, centralizado, indivisível e absoluto, depositado nas mãos do monarca, cuja soberania se fundava no direito divino.

Ao falarem do tema, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2012, p. 54) atribuem papel importantíssimo ao Absolutismo na formação do Estado moderno e no estabelecimento das bases que permitiram o desenvolvimento da economia capitalista:

Na Idade Média havia a convivência de ordenamentos jurídicos particulares, como os das corporações de ofício e dos feudos, com ordenamentos jurídicos com pretensões universalistas: o direito romano e o direito canônico. A fragmentação verificada no período medieval era um obstáculo grave ao desenvolvimento das forças econômicas emergentes. Cada feudo tinha suas próprias regras jurídicas, sua própria moeda, seu próprio sistema de pesos e medidas. O pluralismo impedia a expansão do comércio, reduzindo os limites dos mercados. A partir da organização dos Estados modernos, a pluralidade de fontes de produção normativa cede lugar ao ordenamento jurídico estatal. O Estado moderno se construiu tanto em luta contra as organizações políticas menores, no sentido da unificação do poder, quanto em luta contra a Igreja, com o intuito de obter a secularização do poder político. A anterior situação de pluralismo jurídico é substituída pelo monismo, com a monopolização da produção normativa pelo Estado.

Contudo, o Estado Absolutista, inicialmente um facilitador do modo de produção capitalista, gradativamente foi se tornando um entrave ao seu desenvolvimento. Com a ascensão vertiginosa da classe burguesa, que detinha imenso poder econômico sem correspondência na esfera política, nasceu-se um

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cenário de acirramento no qual a burguesia passou a questionar os privilégios da nobreza, à época já em decadência.

Nas palavras de Sarmento e Souza Neto (2012, p. 54-55), a burguesia emergente tinha como interesses primordiais

Proteger a liberdade, a propriedade e os contratos também do eventual arbítrio dos governantes. Emerge a noção de que também os governantes deveriam se submeter a ordenamentos jurídicos providos de estabilidade e racionalidade. Daí a plena convergência entre os interesses da classe econômica ascendente — a burguesia — e o ideário do constitucionalismo, de contenção do poder estatal em favor da liberdade individual.

No campo filosófico, foi precisamente nesse período que nasceu o indivíduo enquanto titular de direitos a ele inerentes, os conhecidos direitos de liberdade, que surgiram justamente como uma afirmação da autonomia do ser humano perante o poder estatal.

Esse substrato fático acabou por criar a tempestade perfeita que culminou nas revoluções burguesas do século XVIII, dando origem ao Estado liberal, principalmente fundado na ideia de Estado de direito, que, grosso modo, nada mais é do que o submetimento da atuação do Estado ao direito legislado.

Para o objeto do presente trabalho, ganha particular relevo um dos desdobramentos das revoluções liberais: o movimento constitucionalista, que nas palavras de Barroso (2015, p. 29), ―significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of the law, Rechtsstaat)‖.

Na lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2012), o constitucionalismo fora gestado sobre três fundamentos básicos, que, por sua vez, refletiam de maneira muito profunda o ideário do pensamento liberal, eram eles: a contenção do poder por meio da separação de poderes; a garantia de direitos individuais, concebidos como direitos negativos oponíveis ao Estado; e a necessidade de legitimação do governo pelo consentimento dos governados. Todavia, os autores ressaltam que, na prática, esse último fundamento, que poderia atestar um suposto viés democrático presente no constitucionalismo moderno, muitas vezes era relegado a segundo plano em relação aos dois primeiros.

Historicamente, a humanidade assistiu a três principais experiências no que diz respeito ao constitucionalismo liberal: na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, cada uma com características que as tornavam bastante singulares umas

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em relação às outras. No entanto, não obstante tais diferenças, as experiências práticas do constitucionalismo refletiam um traço universal: a limitação do poder político, que agora encontrava como barreira intransponível as liberdades individuais inerentes à condição humana.

Nesse sentido, então, no Estado de matriz liberal as Constituições surgiram como materialização da limitação do poder estatal frente à afirmação do indivíduo como entidade dotada de direitos.

2.2. DA TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO RECÉM-NASCIDO ESTADO LIBERAL

Além do pensamento iluminista de exaltação das liberdades individuais, as revoluções liberais tinham como pano de fundo os interesses eminentemente econômicos da ascendente classe burguesa na consolidação do modelo capitalista de economia. A esse respeito, um dos vieses da liberdade individual era justamente a liberdade econômica, traduzida na autonomia privada e na liberdade contratual. Esse era o paradigma do Estado mínimo, que não devia interferir em assuntos econômicos, deixando o mercado à sua autorregulação.

No constitucionalismo liberal, portanto, tem-se como marca uma desvinculação entre sociedade e Estado. A esse cabia a proteção da liberdade e a propriedade das pessoas, mas não lhe competia interferir em relações no âmbito social e econômico, nas quais se supunha que os indivíduos, formalmente iguais, perseguiriam seus interesses privados, celebrando contratos em pé de igualdade uns com os outros (SARMENTO; SOUZA CRUZ, 2012, p. 59).

Conforme leciona Paulo Bonavides (2014, p. 233), no liberalismo, a Constituição, ―que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de iniciativas privatistas: era uma sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida toda numa consciência anticoletivista‖.

Ademais, não obstante as revoluções burguesas e o próprio constitucionalismo liberal tivessem como valor precípuo a igualdade, ela era vista em seu viés meramente formal. A igualdade se prestou a combater os privilégios da elite social do antigo regime, mas acabou por ignorar a opressão que se manifestava nas relações sociais e econômicas no ainda incipiente Estado liberal, o que dava azo

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para a exploração do mais fraco pelo mais forte. Assim, o constitucionalismo moderno não desenvolveu a igualdade em seu sentido material (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012).

Outrossim, apontam Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto que havia uma nítida contradição entre o discurso e a prática nessa fase do constitucionalismo em relação à igualdade, que era evidenciada, por exemplo, pelo emprego de voto censitário e pela restrição do voto aos homens. Nesse sentido, completam os autores, o ideal de liberdade do constitucionalismo liberal-burguês era muito mais identificado à autonomia privada, compreendida como ação livre de interferências estatais, do que à autonomia pública do cidadão, associada à soberania popular e à democracia (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012, p. 60).

Nessa mesma linha de raciocínio, Paulo Bonavides (2013, p. 42-43) escreve que a classe burguesa, transformada agora em classe dominante, construiu os princípios filosóficos que orientaram as revoluções do século XVIII, mas,

Tanto antes como depois, nada mais fez do que generalizá-los doutrinariamente como ideais comuns a todos os componentes do corpo social. Mas, no momento em que se apodera do controle político da sociedade, a burguesia já se não interessa em manter na prática a universalidade daqueles princípios como apanágio de todos os homens. Só de maneira formal os sustenta, uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato princípios construtivos de uma ideologia de classe.

Dessa maneira, não obstante o moderno Estado liberal-burguês se fundasse na ideia de igualdade, esta, conforme dito, era meramente formal, porquanto o poder político, antes concentrado nas mãos do monarca, passa, agora, no novo arranjo institucional, para as mãos de uma aristocracia econômica representada pela classe burguesa. De modo que não havia uma preocupação na igualdade de distribuição do poder entre toda a sociedade, para formação de uma vontade estatal fundada na participação de todo o povo.

Para se ter uma ideia, a Revolução Francesa, nas palavras de Bonavides (2013, p. 43), ―por seu caráter preciso de revolução da burguesia, levara à consumação de uma ordem social, onde pontificava, nos textos constitucionais, o triunfo total do liberalismo. Do liberalismo apenas, e não da democracia, nem sequer da democracia política‖.

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Nesse momento se pode observar que o constitucionalismo moderno enquanto desdobramento do processo de consolidação do Estado liberal nem sempre teve uma correlação óbvia com a ideia de democracia. A prática mostra, muitas vezes, exatamente o contrário.

Corroborando tal afirmação é que Paulo Bonavides (2013, p. 50) astuciosamente lembra da existência de monarquias constitucionais no chamado despotismo esclarecido, para trazer à evidência o fato de que ―a ideia essencial do liberalismo não é a presença do elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente esse direito‖.

Se no campo prático parece claro que o constitucionalismo moderno e a democracia nem sempre tinham uma relação harmoniosa – por vezes até se contradizendo –, no campo teórico tal contradição se mostrava ainda mais presente.

O constitucionalismo, conforme dito, nasceu com o escopo de limitação do poder estatal, de modo a atuar inclusive se o poder estatal fosse proveniente da soberania popular, ideia combatida por um dos grandes precursores do ideário democrático no pensamento liberal: Jean Jacques Rousseau, que tinha uma visão radical de soberania popular.

A esse respeito, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2015, p. 44) ensinam que ―Rousseau (1712-1778) extrai desdobramentos revolucionários da ideia de que a soberania nasce da decisão dos indivíduos. (...) No ―Contrato Social‖, que publicou em 1762, Rousseau sustenta que o poder soberano pertence diretamente ao povo‖. Os autores completam o raciocínio dizendo que, para Rousseau, não existe nem pode existir nenhum tipo de lei fundamental obrigatória que limitasse o poder do povo; para ele, a Constituição não tem função de limite ou de garantia, apenas cuida dos poderes instituídos, não podendo restringir a expressão da vontade do povo soberano.

Paulo Bonavides (2013, p. 168), a seu turno, aborda a contradição doutrinária presente na ideia de um Estado liberal-democrático a partir de um contraponto entre as teses de Montesquieu, Locke e Rousseau: o primeiro punha limites ao exercício da autoridade com a separação de poderes; o segundo com a conservação de direitos naturais, frente à organização estatal. Rousseau, por sua vez, não estava preocupado em repreender o poder, de modo que ele, sob esse aspecto, está mais próximo de Hobbes.

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Para Rousseau, então, o poder não é desprezível. Necessário se faz entregá-lo ao seu titular legítimo. Este não há de ser o monarca, como em Hobbes, não há de ser também o indivíduo, nem uma parte da sociedade, senão o povo inteiro (BONAVIDES, 2013, p. 168).

Constata-se, portanto, que a tensão entre constitucionalismo e democracia existe desde o nascimento deste primeiro, no seio do processo de consolidação do Estado liberal, este, por si só, fruto de uma contradição doutrinária evidenciada pelo seu DNA composto por linhas de pensamento abstratamente antagônicas como as de Montesquieu, Locke e Rousseau, por exemplo.

2.3. DAS TENTATIVAS CONCILIATÓRIAS

Se havia um paradoxo doutrinário entre recém-nascido constitucionalismo e a ideia de democracia (soberania popular), vê-se que hoje, após todas as vicissitudes pelas quais passou o movimento constitucionalista nestes mais de duzentos anos, esses dois conceitos passaram a ser indissociáveis, sendo um condição de possibilidade do outro, principalmente após as diversas atrocidades cometidas em nome de regimes ditatoriais ao redor do mundo ao longo do século XX.

Nesse sentido, então, cumpre agora, na última parte deste capítulo, discorrer sobre as posições de alguns autores que engenhosamente construíram teorias nas quais é possível a existência de uma interface entre constitucionalismo e democracia, divididos eles nos subtópicos que ora se seguem.

2.3.1. A proposta habermasiana de coesão interna entre Estado de direito e democracia

Considerando a importância que a democracia à luz do procedimentalismo discursivo de Habermas tem para o presente trabalho, não se poderia deixar de pontuar acerca de sua proposta conciliatória entre de Estado de direito e democracia.

A esse respeito, Habermas constrói sua tese partindo inicialmente de um choque doutrinário entre republicanismo e liberalismo. Esse primeiro, que remonta

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ao pensamento aristotélico e ao humanismo político da renascença, sempre deu primazia à autonomia pública dos cidadãos do Estado, em comparação com as liberdades individuais que antecedem a política; este segundo, que remonta Locke e o pensamento iluminista, problematizou o perigo de um absolutismo das maiorias e defendeu uma primazia dos direitos fundamentais (HABERMAS, 2002, p. 291).

Nesse mesmo diapasão, Habermas escreve que, ao passo que os liberais, temendo uma ―tirania da maioria‖, defendem o primado de direitos fundamentais (os quais Habermas chama de direitos humanos), que garantem as liberdades pré-políticas do indivíduo e impõem freios à vontade soberana do legislador político,

Os representantes do humanismo republicano dão destaque ao valor próprio, não-instrumentalizável, da auto-organização dos cidadãos, de tal modo que, aos olhos de uma comunidade naturalmente política, os direitos humanos só se tornam obrigatórios enquanto elementos de sua própria tradição, assumida conscientemente (HABERMAS, 1997, p. 134).

É a partir dessas duas posições abstratamente antagônicas que Habermas lança seu conceito de autonomia, cuja expressão poderá se referir tanto às liberdades individuais inerentes ao modelo de Estado liberal, quanto à autonomia de uma comunidade que se autogoverna e que se autolimita, no sentido de erigir direitos titularizados por todos (GÓES, 2013, p. 92-93). É aqui onde a noção de autonomia se bifurca na em autonomia pública e privada: esta alinhada à ideia central do liberalismo, conforme exposto anteriormente, aquela, por sua vez, encontra no republicanismo sua maior expressividade.

Acerca das duas modalidades de autonomia Habermas expõe que a autonomia pública toma corpo na auto-organização de uma determinada comunidade que atribui a si suas leis por meio da soberania popular; enquanto a autonomia privada se encontra lastreada nos direitos fundamentais que garantem o domínio anônimo das leis (HABERMAS, 2002, p. 291).

Nesse particular, uma das grandes contribuições da tese de Habermas fora o reconhecimento de que as duas autonomias, se levadas às últimas consequências, levariam a autoritarismos: no campo da autonomia privada, levar-se-ia a um paternalismo das leis, enquanto com a autonomlevar-se-ia pública se levarlevar-se-ia a uma espécie de ditadura da maioria. A proposta de Habermas consiste, então, não em uma exclusão mútua, mas em uma compatibilização entre as duas autonomias através do discurso (GÓES, 2013, p. 94-95).

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E é precisamente aqui onde Habermas começa a dar forma à sua proposta de democracia deliberativa, pois, conforme lição de Ricardo Tinoco de Góes, as duas autonomias exercidas juntas garantem uma aproximação dos cidadãos de seus iguais, através do único meio de interação compatível com a democracia: a linguagem (GÓES, 2013, p. 50). A partir de uma atuação discursiva através da linguagem, com o exercício simultâneo das duas autonomias, é que os cidadãos poderão verdadeiramente gerar influência na esfera pública e na formação da vontade estatal.

É justamente o procedimento discursivo que viabiliza o exercício das duas autonomias, pois somente com ―o uso de uma autonomia que crie condições para um consenso discursivo, no âmbito privado, que essa mesma cidadania poderá influenciar, no âmbito público, àquilo que Habermas nominou de formação da opinião e da vontade pública compartilhadas‖ (GÓES, 2013, p. 51).

Nesse caminho, Habermas defende que a democracia se funda na criação de um ambiente propício a redes de comunicação formadas pelos cidadãos em sua atuação discursiva. A democracia deliberativa em Habermas está representada, então,

Em um sistema de participação cidadã, que assegura a formação do poder político e por consequência do Direito, a partir de um poder comunicativo gerado discursivamente entre todos os cidadãos que, somente assim, passam a ser considerados autores e destinatários das normas jurídicas democraticamente produzidas‖ (GÓES, 2013, p. 52).

Esse sistema, conforme já dito, só é possível a partir do regular exercício tanto da autonomia privada, quanto da pública.

O Direito se insere nessa discussão a partir do choque entre o princípio da soberania popular e domínio das leis. A soberania popular teria expressão nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cidadãos no Estado; e o domínio das leis, a seu turno, basear-se-ia nos direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade (HABERMAS, 2002, p. 290-291). O Direito se manifesta em Habermas, então, como um substrato necessário ao exercício convergente e simultâneo da autonomia pública e privada.

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Se são discursos e negociações – cuja justeza e honestidade encontram fundamento em procedimentos discursivamente embasados – o que constitui o espaço em que se pode formar uma vontade política racional, então a suposição de racionalidade que deve embasar o processo democrático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunicativo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação necessárias para a criação legítima do direito. A almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos (HABERMAS, 2002, p. 292).

Logo, Habermas cria um link entre democracia e Direito a partir do momento em que este serve como instrumento para institucionalização de um procedimento discursivo calcado na junção entre autonomia pública e privada, que, por sua vez, é a espinha dorsal da sua concepção de democracia deliberativa, porquanto baseada na formação do poder político com lastro no agir comunicativo dos cidadãos na esfera pública. O Direito em Habermas, então, é uma condição de possibilidade para o seu modelo de democracia.

Pois, conclui o autor,

sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um médium para institucionalização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado‖ (HABERMAS, 2002, p. 292).

Portanto, a ação comunicativa dos cidadãos, marca da democracia deliberativa de Habermas, só é possível com a garantia, pelo Direito, do regular exercício das duas autonomias.

Considerando o recorte temático do presente trabalho, que tem um foco precípuo no Direito Constitucional, por mais que Habermas faça referência ao Direito de maneira ampla, não se referindo ao Direito Constitucional especificamente, é inegável que os direitos aos quais o célebre autor faz referência, isto é, os direitos que garantem a criação de seu procedimento discursivo (direitos relativos à participação e à comunicação cidadãs, bem como as liberdades individuais clássicas que garantem a autonomia privada dos cidadãos), são de indiscutível cariz constitucional, sendo, na prática, positivados em Constituições ao redor do mundo.

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Por isso é que a proposta de coesão interna entre Estado de direito e democracia de Habermas serve perfeitamente ao escopo do presente trabalho, e, em específico, à proposta deste capítulo introdutório.

2.3.2. A interdependência entre constitucionalismo e democracia na concepção comunitária substantiva de Ronald Dworkin

Sobre o tema aqui proposto não se poderia deixar de pontuar também acerca de Ronald Dworkin, que escreveu um texto específico para apresentar sua posição sobre a tensão entre constitucionalismo e democracia. Curiosamente, o texto sobre o qual o autor lança seus ensinamentos tem justamente esse nome (constitucionalismo e democracia).

O jurista estadunidense inicia a discussão a partir de seu conceito de constitucionalismo, que, para ele, quer dizer um sistema que estabelece direitos individuais que o legislador não pode anular ou comprometer, isto é, estão fora o poder de deliberação do legislativo (DWORKIN, 1995, p. 1).

A esse respeito os mais incautos poderiam dizer que o constitucionalismo, ao limitar os poderes do legislador, acabaria por comprometer o regime democrático, ―porque se uma Constituição proíbe o Poder Legislativo de aprovar uma lei limitando a liberdade de expressão, por exemplo, isto limita o direito democrático da maioria ter a lei que quer‖ (DWORKIN, 1995, p. 2).

A partir disso, o autor questiona ao leitor como seria possível compatibilizar, então, o constitucionalismo e a democracia e logo em seguida já apresenta o ponto central da sua proposta conciliatória ao dizer que

O conflito há pouco descrito é ilusório, por que é baseado numa compreensão incorreta do que a democracia é. Devemos começar anotando uma distinção entre democracia e regra de maioria. Democracia quer dizer regra da maioria legítima, o que significa que o mero fator majoritário não constitui democracia a menos que condições posteriores sejam satisfeitas. É controverso o que essas condições exatamente são. Mas algum tipo de estrutura constitucional que uma maioria não pode mudar é certamente um pré-requisito para a democracia. Devem ser estabelecidas normas constitucionais estipulando que uma maioria não pode abolir futuras eleições, por exemplo, ou privar uma minoria dos direitos de voto. (DWORKIN, 1995, p. 2)

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Logo, para o jusfilósofo, por mais que se faça uma associação natural, democracia não se confunde meramente com regra da maioria, nem com absolutismo da maioria. O autor ressalta, conforme acima dito, que a democracia depende, para sua existência, de uma prévia estrutura constitucional que garanta a efetividade das ―regras do jogo‖, estrutura essa intangível ao poder deliberativo das maiorias.

Seguindo o desenvolvimento de seu raciocínio, Dworkin traça duas classificações para as normas constitucionais, às quais ele dá o nome de possibilitadoras e limitadoras. Essas primeiras seriam as responsáveis por construir um governo da maioria ―estipulando quem deve votar, quando as eleições devem se realizar, como os representantes são designados para os distritos eleitorais, que poderes cada grupo de representantes tem, e assim por diante‖; já a segunda categoria de normas constitucionais estariam encarregadas de justamente limitar os poderes definidos nas normas possibilitadoras (DWORKIN, 1995, p. 2-3).

Sobre as normas constitucionais possibilitadoras serem condição indispensável ao bom funcionamento da democracia não restam dúvidas, até pelo que se falou anteriormente da necessidade da existência de uma estrutura constitucional prévia para garantia das ―regras do jogo‖. No entanto, Dworkin afirma que a democracia não se pode basear tão somente nas normas constitucionais possibilitadoras, porquanto uma maioria poderia destruir a democracia caso, por exemplo, retirasse a liberdade de expressão e/ou o direito ao voto de uma minoria (DWORKIN, 1995, p. 3). É necessário, portanto, reconhecer que as normas constitucionais limitadoras são, também, essenciais à democracia.

Em seguida, a tese de Dworkin ganha particular sofisticação ao passo que o autor lança a controvérsia acerca de quais normas constitucionais limitadoras são essenciais ao bom funcionamento da democracia, de modo a não a comprometer. Nesse sentido ele faz os seguintes questionamentos:

É essencial para a democracia que às minorias seja garantida sua liberdade contra a discriminação privada em escolas e empregos, por exemplo? É essencial que às mulheres seja garantido o direito de aborto caso elas desejem, ou que aos homossexuais seja garantida a liberdade sexual? É essencial que seja garantido às pessoas um nível decente de serviços de saúde, habitação ou educação? (DWORKIN, 1995, p. 3).

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Para responder a esses questionamentos Dworkin abre um pequeno parêntese a fim de explicar seu conceito de ação coletiva, sendo essa uma marca da democracia em quase todas as formas de governo: as pessoas fazem as coisas coletivamente na democracia. Todavia, Dworkin distingue ação coletiva em estatística e comunitária. Tal distinção se torna importante ao se considerar que a opção por cada uma delas oferece duas concepções diferentes de democracia, as quais, por sua vez, apontam para duas posições totalmente diversas quanto à composição da estrutura constitucional prévia essencial à democracia.

Pois bem, ação coletiva estatística é aquela na qual as pessoas agem individualmente, em nome próprio, mas, por um fator meramente estatístico, acabam exercendo uma ação coletiva, embora cada indivíduo não esteja conectado enquanto grupo, nem aja enquanto grupo. Pode-se dizer, por exemplo, que o povo alemão quer uma política internacional mais agressiva. Todavia, a referência ao povo alemão, nesse caso, representa apenas uma figura de linguagem, pois essa afirmativa se refere tão somente a um pensamento que muitos (ou uma expressiva maioria) alemães têm individualmente, e, por um fator meramente estatístico, acabam refletindo em uma ação coletiva. Nesses casos, aponta Dworkin, a referência a uma entidade coletiva (no exemplo, o povo alemão) não aponta para nenhuma entidade de fato.

A ação coletiva passa a ser comunitária ―quando ela não pode ser reduzida a somente alguma função estatística da ação individual, já que é coletiva no sentido mais profundo que requer dos indivíduos que assumam a existência do grupo como uma entidade separada ou fenômeno‖ (DWORKIN, 1995, p. 4). Como exemplo Dworkin fala de uma orquestra, na qual é essencial não que cada músico toque uma partitura individualmente, mas que todos os músicos toquem como uma orquestra.

Seguidamente, Dworkin apresenta as características de modelos democráticos fundados em cada espécie de ação coletiva: na democracia fundada na ação coletiva estatística as decisões políticas são tomadas com base nos votos, desejos e decisões de cidadãos individualizados, amontoados em uma ação coletiva por mero fator estatístico; já na concepção comunitária de ação coletiva, as decisões políticas na democracia ―são tomadas por uma entidade distinta – o povo como tal – ao invés de qualquer arranjo de indivíduos um a um‖ (DWORKIN, 1995, p. 4-5).

Conforme dito parágrafos atrás, cada espécie de democracia dessa dará uma resposta acerca de quais direitos fundamentais devem compor a estrutura

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constitucional mínima à democracia. E abordar aqui cada uma dessas posições se mostra imprescindível tanto para entender o pensamento de Dworkin, como para o desenvolvimento dos próximos capítulos do presente trabalho.

Nesse sentido, então, como se pode pensar, a concepção estatística de democracia naturalmente demandará uma estrutura constitucional prévia bastante modesta, podendo se limitar à garantia da participação política formalmente igualitária entre os cidadãos. Acerca das decisões políticas decorrentes desse modelo, Dworkin afirma que a existência de uma maioria ou pluralidade estatística, não confere, por si só, legitimidade moral a tais decisões. A partir daí o autor chama atenção para a necessidade de se considerar quais outros fatores confeririam legitimidade moral a tais decisões, isto é, ―quais outros direitos ou condições devem ser garantidos?‖ (DWORKIN, 1995, p. 5).

Quais são, portanto, os pressupostos prévios necessários à concepção comunitária de democracia, isto é, ―quais são as pressupostos para que um coletivo de pessoas seja considerado uma comunidade genuína, de maneira que, com isso, seja moralmente relevante o que a comunidade faz?‖ (DWORKIN, 1995, p. 12).

Dworkin sugere três condições para tanto:

Primeiro, numa democracia entendida como um governo comunitário de iguais, a cada pessoa deve ser oferecida a chance de desempenhar um papel que possa fazer uma diferença no caráter das decisões políticas e a força de seu papel [...] não deve ser fixada estruturalmente ou limitada por suposições acerca de sua dignidade, talento ou habilidade, ou a solidez de suas convicções ou gostos. Segundo, decisões coletivas devem refletir igual consideração pelos interesses de todos os membros. A qualidade de membro de uma unidade coletiva de responsabilidade envolve reciprocidade: uma pessoa não é membro de uma unidade coletiva compartilhando sucesso e fracasso a menos que seja tratado como um membro por outros, e tratá-lo como membro significa aceitar que o impacto da ação coletiva na sua vida e em seus interesses é tão importante para o sucesso como um todo da ação quanto o impacto na vida e interesses de qualquer outro membro. [...] Então, a concepção comunitária de democracia explica uma intuição que muitos de nós compartilhamos: a de que uma sociedade na qual a maioria deliberadamente distribui recursos de maneira não equânime seja tão antidemocrático quanto injusto. Terceiro, se uma comunidade deve ter um significado moral, de modo que suas decisões ofereçam legitimidade para a coerção de dissidentes, então esta deve ser uma comunidade de agentes morais. Os cidadãos devem ser encorajados a ver julgamentos morais e éticos como suas próprias responsabilidades, ao invés da responsabilidade da unidade coletiva. (DWORKIN, 1995, p. 12-13)

Logo, para Dworkin, a estrutura constitucional prévia essencial à democracia comunitária – modalidade que ele alegou, pessoalmente, ter preferência – deve se

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fundar nessas condições acima descritas, além da mera garantia formalmente igualitária de participação política dos cidadãos. Em outras palavras, tal estrutura constitucional prévia deve atuar na criação de uma comunidade democrática, uma entidade comunitária de fato. E esse processo, a rigor, tem a ver com promoção de igualdade material e inclusão das minorias.

É precisamente aqui onde está o link entre constitucionalismo e democracia em Dworkin: para que seja criada uma comunidade democrática nos moldes de sua democracia substantiva, necessário se faz que haja um substrato constitucional prévio a subsidiando.

É interessante destacar, então, que, para Dworkin, além das garantias constitucionais atinentes ao ―majoritarismo‖, é imprescindível à sua concepção de democracia que haja, na Constituição, a presença de gatilhos contramajoritários para criação dessa comunidade democrática, a qual teria um grau muito mais acentuado de legitimidade moral de suas decisões políticas.

2.4. UMA SÍNTESE DAS POSIÇÕES CONCILIATÓRIAS ABORDADAS

Por fim, sem nos delongarmos mais nessa temática, apresentamos aqui apenas duas (dentre muitas) visões acerca da tensão entre constitucionalismo e democracia para apresentar uma conclusão muito simples, que repisa o que fora dito na introdução ao item 2.3: nos dias atuais, a ideia de que o constitucionalismo e a democracia são virtualmente antagônicas decorre de um grande reducionismo, que ignora o fato que democracia não se confunde com regra da maioria. A existência de uma Constituição dotada de força normativa é, portanto, condição de possibilidade da democracia.

Tem-se, então, que a Constituição é um documento de grande importância ao regime democrático, concepção que é compartilhada por autores vinculados a linhas de pensamento completamente diferentes, como o caso de Habermas e Dworkin, o primeiro afeto ao procedimentalismo e o segundo ao substancialismo.

E é precisamente aqui onde surge o primeiro aspecto da problemática que se visa aqui discutir: sob o ponto de vista democrático, é legítimo que os juízes (que não foram legitimados pelo voto popular) tenham, no exercício de sua competência de jurisdição constitucional, tamanho poder sobre um documento politicamente importantíssimo, com profundas repercussão no regime democrático?

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Mais à frente se discutirá alguns outros aspectos dessa problemática para, então, chegar-se à discussão central, a respeito de em que se funda a legitimidade democrática do exercício da jurisdição constitucional.

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3. CONSTITUCIONALISMO E O JUDICIÁRIO NA TEORIA DA DIVISÃO DE PODERES

Além do que fora anteriormente exposto, necessário se faz apresentarmos um outro aspecto de como a problemática da legitimidade democrática da jurisdição constitucional se tornou tão forte, sendo constantemente questionada no Brasil e no mundo.

Assim, neste segundo capítulo falaremos sobre como o Poder Judiciário passou de ―boca da lei‖ para, hoje, ser uma das instituições com maior relevância no nosso arranjo institucional, relacionando tal processo de ascensão à evolução do constitucionalismo e da teoria do Estado ao longo dos últimos duzentos anos.

Além disso, abordar-se-á também o processo de consolidação da metodologia da jurisdição constitucional nos modelos americano e europeu, com uma breve incursão em como esse processo aconteceu no Brasil sob influência dos dois modelos.

A partir dos processos acima relatados (aumento da relevância do Poder Judiciário na tripartição de poderes a partir do constitucionalismo contemporâneo e a difusão da jurisdição constitucional como guardião da supremacia constitucional), começou-se a questionar a legitimidade democrática do Poder Judiciário por sua atuação em determinadas searas, especialmente no exercício da jurisdição constitucional, diante das novas funções outorgadas pelo constitucionalismo contemporâneo.

3.1. O ESTADO LIBERAL E O PODER JUDICIÁRIO NA CLÁSSICA TEORIA DA DIVISÃO DE PODERES

Ao falar das condicionantes históricas da teoria da separação de poderes, Paulo Bonavides (2015, p. 144) afirma que no século XVIII se observava na Europa Continental, sobretudo na França, uma fadiga decorrente da configuração do Estado no absolutismo, que conferia poder excessivo ao monarca e isso acabava refletindo em opressão deste em relação às classes sociais a ele inferiores.

O autor relata que

O poder soberano do monarca se extraviara dos fins requeridos pelas necessidades sociais, políticas e econômicas correntes, com os quais perdera toda a identificação legitimativa. Mudaram aqueles fins por

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imperativo de necessidades novas e todavia a monarquia permanecera em seu caráter habitual de poder cerrado, poder pessoal, poder absoluto da coroa governante. Como tal, vai esse poder pesar sobre os súditos (BONAVIDES, 2015, p. 145-146).

Além desse esgotamento no modo de exercício do poder estatal no Estado absoluto, o absolutismo acabou se tornando um entrave ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nesse sentido, conforme inclusive ressaltado no capítulo anterior, a partir da influência da ascendente classe burguesa a humanidade assistiu à derrocada do monarquismo absolutista com as revoluções liberais no século XVIII.

Com efeito, os interesses revolucionários confluíram para o abandono da ideia por trás do monarca que ―se confundia com o estado no exercício do poder absoluto, para postulação de um ordenamento político impessoal, concebido segundo as doutrinas de limitação do Poder, mediante as formas liberais de contenção da autoridade‖ (BONAVIDES, 2015, p. 146).

A intenção era, portanto, de limitar o poder estatal frente aos direitos individuais relativos às liberdades clássicas. Uma das formas engenhosas de limitação do poder era justamente a técnica da divisão de poderes, que teve seu maior expoente na teoria de Montesquieu.

Como é de conhecimento geral, o notável filósofo dividiu o poder estatal em três: Executivo, Legislativo e Judiciário. Desde logo resta bastante claro que Montesquieu deu primazia ao Poder Executivo e Legislativo em detrimento do Poder Judiciário e isso era perfeitamente justificável, pois, conforme escreve Mauro Cappelletti (2001, p. 268), voltando um pouco na história, observar-se-á um ―sentimento de repulsa popular contra o abuso da função jurisdicional exercido pelas altas cortes de justiça no tempo do ancien régime”.

Relata Cappelletti que

Esses tribunais, ironicamente denominados de Parlaments, tinham competência para rever atos do soberano, recusando-se a aplicar os considerados incompatíveis com "as leis fundamentais do reino". (...) Os juízes estavam de tal maneira identificados com o regime feudal que consideravam inaceitável qualquer inovação liberal. Os cargos eram hereditários, podendo ser comprados e vendidos. O trabalho dos juízes devia ser pago pelos litigantes como se a administração da justiça fosse um privilégio dos magistrados e não uma obrigação. Status, educação, família e interesses pessoais de classe se combinavam para motivar comportamentos extremamente conservadores, fato que, eventualmente,

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contribuiu para a deflagração da explosão revolucionária. O ressentimento popular contra os Parlements era justificado (CAPPELLETTI, 2001, p. 268).

O autor completa dizendo que tal sentimento acabou refletindo também nos escritos de Montesquieu, o qual, oriundo de uma família ocupante de cargos judiciários, pregou em sua teoria que os juízes não deveriam ser investidos de poder político nenhum. O jurista italiano aduz também, citando diretamente Montesquieu, que aos juízes incumbia o dever de aplicar a lei cegamente, porquanto os juízes eram nada além do que a boca que pronuncia as palavras da lei; eram seres inanimados que não podiam exercer nenhuma influência na força e no rigor da lei (CAPPELLETTI, 2001, p. 269-270). Trata-se de excerto do famoso ‗o espírito das leis‘, de onde se cunhou a expressão ―juiz boca da lei‖.

Do mesmo modo, à teoria clássica da separação de poderes Tercio Sampaio Ferraz Junior (1994, p. 14-15) atribui um esforço de neutralização política não só do Judiciário, que, frente aos outros dois poderes, exercia poder político praticamente nulo, mas também da própria aplicação do direito:

A neutralização foi acompanhada de modelos de vinculação progressiva queria sofrer o direito de suas bases sociais. Inicialmente, ela significaria neutralização política, para depois exigir distanciamento ético. (...) Ao sublinhar-se a subsunção como método de aplicação do direito, neutraliza-se para o juiz o jogo dos interesneutraliza-ses concretos na formação Legislativa do direito (se esses interesses serão atendidos ou decepcionados não é problema do juiz, que apenas aplica a lei). Por conseguinte, sua atividade jurisdicional guiada superiormente pela lei e pela constituição não se vincula a nenhum direito sagrado ou natural nem exige um conteúdo ético ainda que é teleologicamente fundado. Acima de tudo, o importante é que a lei seja cumprida.

Portanto, ao se admitir a subsunção como o método de aplicação das normas jurídicas houve uma progressiva desvinculação do direito de suas bases sociais e um distanciamento de valores éticos na aplicação da lei.

Além do próprio ideário que orientou a aplicação prática da teoria da divisão de poderes, que atribuída ao Judiciário poder quase nulo, de maneira semelhante se observou uma neutralização do constitucionalismo, que, desde seu nascimento, não deu o prestígio devido às Constituições nas primeiras décadas que sucederam as revoluções burguesas. As Constituições eram relegadas a meras cartas de recomendações políticas, sem particular vinculatividade.

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Hodiernamente parece óbvio que as Constituições representam sim um complexo de normas com caráter jurídico e também político, mas nem sempre foi assim, conforme ensina Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2012, p. 15):

A ideia que prevalecia no mundo constitucional até meados do século XX era de que as constituições não eram normas jurídicas, mas proclamações políticas, que se destinavam a inspirar a atuação do legislador. Elas não incidiam diretamente sobre as relações sociais, não geravam direitos subjetivos para os cidadãos, nem podiam ser aplicadas pelos juízes na resolução de casos concretos. Só as leis editadas pelo parlamento obrigavam e vinculavam; não as solenes e abstratas provisões contidas nos textos constitucionais. O paradigma jurídico vigente era o legalista.

Além desse caráter estritamente político, que impedia a Constituição de ser sindicalizável judicialmente, as próprias Constituições eram documentos bastante sintéticos, com disposições bastante tímidas e isso, em grande parte, dava-se em razão das próprias características do Estado liberal, que fora pensado para ser um Estado mínimo; com uma minimização do Estado, natural é que haja Constituições igualmente minimizadas.

Em linha com esse pensamento, Paulo Bonavides (2014, p. 233) leciona que as Constituições liberais eram completamente indiferentes ao conteúdo e substância das relações sociais:

À Constituição cabia tão somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos da liberdade. Em suma, no estado liberal do século XIX a Constituição disciplinava somente o poder estatal e os direitos individuais (direitos civis e direitos políticos).

Assim, diante da neutralização política do Poder Judiciário já na teoria de Montesquieu, que teve grande influência na aplicação prática da divisão de poderes, bem como da natural desconfiança popular em relação ao Judiciário, além do desprestígio com que os textos constitucionais eram vistos sob a égide do Estado liberal, desenhou-se um cenário de grande protagonismo dos Poderes Legislativo e Executivo, sendo relegada ao Judiciário a aplicação mecânica da lei através de subsunções; o Judiciário era, como já dito, tão somente ―a boca que pronunciava a lei‖.

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Esse último aspecto, qual seja, a baixa influência que exerciam as Constituições, é particularmente importante, porquanto, como se verá no item a seguir, com um incremento gradual dessa influência, houve semelhante incremento na importância conferida ao Poder Judiciário no arranjo institucional da contemporânea divisão de poderes, com ênfase clara no exercício da jurisdição constitucional.

3.2. ASCENSÃO DO PODER JUDICIÁRIO COM O ADVENTO DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO

Se no constitucionalismo liberal havia, pelos motivos anteriormente expostos, um esforço para neutralizar politicamente a influência exercida pelo Poder Judiciário na clássica tripartição de poderes, tal concepção se mostrou dramaticamente insuficiente, principalmente a partir das mudanças pelas quais passou a teoria do Estado, com o sepultamento histórico do Estado de matriz liberal e com as vicissitudes enfrentadas pelo constitucionalismo principalmente a partir de meados do século XX.

Primeiramente, a minimização do Estado propugnada pelo liberalismo, que se importava apenas com a garantia da propriedade privada, da liberdade econômica e da segurança jurídica acabou por trazer à tona as profundas contradições existentes no seio da sociedade capitalista, com a visível desigualdade social ocasionada pelo absenteísmo estatal.

A igualdade, valor que compunha o lema da Revolução Francesa, mostrou-se, na prática, um princípio desprovido de significado, limitando-se à tão somente à igualdade perante a lei, que abarcava um universo de desigualdades de fato. Sobre a liberdade nessa época, Paulo Bonavides (2013, p. 61), citando diretamente o sociólogo alemão Alfred Vierkandt, aduz que ―a apregoada liberdade, como Bismarck já o notara, numa real liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de contas, tão somente a liberdade de morrer de fome‖.

Essas contradições na sociedade capitalista foram percebidas ainda no século XIX, havendo respostas mais efetivas especialmente por parte dos teóricos socialistas, que tiveram como grandes representantes Karl Marx e Friedrich Engels, os quais conclamaram os trabalhadores a se insurgirem contra a realidade de extrema e cruel exploração por que passavam nas fábricas ao redor de toda a

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Europa Continental. A humanidade passava a assistir, então, ao começo da crise do liberalismo.

A partir de inúmeros questionamentos ao capitalismo e ao Estado absenteísta, a burguesia passou a ter fundado temor de uma ruptura institucional ocasionada por algum movimento revolucionário. Nesse sentido, então, observou-se profundas mudanças na concepção de estado: a partir da crise do Estado liberal, a dialética da história respondeu com o surgimento do Estado social para atender às pressões do povo, que sofria amargamente com exploração, crises econômicas e desemprego.

Sobre o Estado social, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2012, p. 61-62) ensinam que

De mero garantidor das regras que deveriam disciplinar as disputas travadas no mercado, o Estado foi se convertendo num ator significativamente mais importante — algumas vezes até no protagonista — dentro da arena econômica, exercendo diretamente muitas atividades de produção de bens e serviços. (...) No novo cenário, o Estado incorpora funções ligadas à prestação de serviços públicos. No plano teórico, a sua atuação passa a ser justificada também pela necessidade de promoção da igualdade material, por meio de políticas públicas redistributivas e do fornecimento de prestações materiais para as camadas mais pobres da sociedade, em áreas como saúde, educação e previdência social. Naquele contexto, foi flexibilizada a proteção da propriedade privada, que passou a ser condicionada ao cumprimento da sua função social, e relativizada a garantia da autonomia negocial, diante da necessidade de intervenção estatal em favor das partes mais débeis das relações sociais.

Assim como os princípios do Estado liberal influenciaram o constitucionalismo moderno a ser minimalista, o novel Estado social inspirou, no início do século XX, uma roupagem totalmente diferente nas Constituições: sem abandonar os postulados clássicos do liberalismo, com garantias institucionais acerca da separação de poderes e de organização do Estado, bem como a garantia das liberdades clássicas, as Constituições buscaram suprir os déficits abordados parágrafos atrás com uma preocupação na promoção de igualdade material e bem-estar social.

Os ordenamentos jurídicos do Estado social se voltavam para suas finalidades públicas, com uma forte carga valorativa. O sistema legal de garantias liberais era altamente seletivo e impermeável a conteúdos materiais, o modelo jurídico do Estado social, a seu turno, é compensatório dos déficits e desvantagens

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que ele mesmo cria. Os direitos sociais lidam com uma seletividade inclusiva (CAMPILONGO, p. 124)

Esse processo de aprofundamento das bases sociais no constitucionalismo e no Estado culminou, principalmente logo em seguida ao segundo pós-guerra, no que muitos autores chamam de Estado constitucional de direito. A esse processo histórico Luís Roberto Barroso (2015) atribui três condicionantes principais: a primeira delas é histórica e diz respeito à redemocratização e reconstitucionalização da Europa no segundo pós-guerra, com a reaproximação do constitucionalismo à democracia e à redefinição do papel das Constituições; a segunda condicionante é filosófica, relativa ao pós-positivismo, que, como o nome denuncia, vislumbrou a superação do paradigma juspositivista, que propugnava a esterilização do Direito em nome da legalidade estrita. O pós-positivismo intentou uma aproximação do Direito e da moral, principalmente após o cometimento de inúmeras barbaridades sob o manto da legalidade nos regimes ditatoriais ao longo do início do século XX; a terceira condicionante é uma profunda mudança na teoria da constituição, ponto que, considerando o recorte temático deste trabalho, merece um pouco mais de atenção e cuidado.

A aludida mudança na teoria da constituição fora orientada principalmente sob dois vieses: no emprego de status jurídico às normas constitucionais e na constitucionalização do direito.

Como ressaltado no item anterior, as Constituições no âmbito do Estado liberal eram tidas tão somente como recomendações estritamente políticas, sem muita aplicabilidade prática. Todavia, no constitucionalismo contemporâneo, além da dimensão política, os textos constitucionais adquiriram viés também jurídico, podendo ser objeto de demandas judiciais.

É aqui onde se insere a tese de Konrad Hesse (1991) sobre a força normativa da constituição. O Célebre autor, ao debater a tese dos fatores reais de poder de Ferdinand Lassalle e sua visão sociológica (política) da Constituição, propõe uma junção entre esse aspecto sociológico – representativo da realidade histórica de uma sociedade – com o aspecto normativo (jurídico) das Constituições, que condiciona e direciona a realidade fática a um dever ser. Ressaltar esse aspecto jurídico, em condicionamento recíproco com o aspecto político, nada mais é do que enxergar a normas constitucionais como dotadas de juridicidade e merecedoras de força normativa.

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