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Entre a permissão e a proibição: conflitos entre africanos, capuchinhos italianos e a administração secular na Capitania de Pernambuco (1778-1797)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO EM HISTÓRIA

LINHA DE PESQUISA: NORTE-NORDESTE MUNDO ATLÂNTICO

JOSINALDO SOUSA DE QUEIROZ

ENTRE A PERMISSÃO E A PROIBIÇÃO: CONFLITOS ENTRE AFRICANOS, CAPUCHINHOS ITALIANOS E A ADMINISTRAÇÃO SECULAR NA CAPITANIA

DE PERNAMBUCO (1778-1797) Recife 2018

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JOSINALDO SOUSA DE QUEIROZ

ENTRE A PERMISSÃO E A PROIBIÇÃO: CONFLITOS ENTRE AFRICANOS, CAPUCHINHOS ITALIANOS E A ADMINISTRAÇÃO SECULAR NA CAPITANIA

DE PERNAMBUCO (1778-1797)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Linha de pesquisa: Mundo Atlântico

Orientador: Prof. Dr. Rômulo Luiz Xavier Nascimento Recife 2018

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Catalogação na fonte

Bibliotecária: Maria Janeide Pereira da Silva, CRB4-1262

Q3e Queiroz, Josinaldo Sousa de.

Entre a permissão e a proibição : conflitos entre africanos, capuchinhos italianos e a administração secular na Capitania de Pernambuco (1778-1797) / José Roberto de Lemos Júnior. – 2018.

128 f. ; 30 cm.

Orientador : Prof. Dr. Rômulo Luiz Xavier do Nascimento.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2018.

Inclui Referências e apêndices.

1. História. 2. Escravos. 3. Cultos afro-brasileiros. 4. Inquisição. 5. Liberdade religiosa. 6. Liberdades. 7. Batuque (Culto). I. Nascimento, Rômulo Luiz Xavier do (Orientador). II. Título.

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JOSINALDO SOUSA DE QUEIROZ

ENTRE A PERMISSÃO E A PROIBIÇÃO: CONFLITOS ENTRE AFRICANOS, CAPUCHINHOS ITALIANOS E A ADMINISTRAÇÃO SECULAR NA CAPITANIA

DE PERNAMBUCO (1778-1797)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Aprovada em: 19/02/2018.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Profº. Dr. Rômulo Luiz Xavier do Nascimento (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________

Profº. Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (Examinador Interno) Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________ Profº. Dr. Edson Hely Silva (Examinador Externo)

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AGRADECIMENTOS

Incialmente, agradeço a Deus em todas as suas formas e representações.

A minha falecida madrinha, Clara Damião, que sempre me apoiou e foi fundamental na minha vida, me falta palavras para descrever o quanto sou grato a ela.

Aos meus pais, Maria e Geraldo, por todo o carinho e apoio durante todo o percurso do mestrado.

Ao meu irmão, Mateus, que sempre esteve do meu lado quando precisei.

A Sandra e Patrícia, secretarias do PPGH – UFPE, que, sempre com bom humor, tornaram todo o processo burocrático o mais simples possível.

A Zenis e Tatianne, por toda a ajuda durante o processo de seleção, ainda em 2015, onde gentilmente me abrigaram em Recife durante todas as etapas, me deram apoio, leram meus escritos atentamente e sempre contribuíram para a melhoria dos mesmos. Além disso, são excelentes amigas que nunca me deixaram só nos momentos conturbados que passei nos últimos dois anos.

A Elson, Nita e Bruna, por estarem sempre presentes desde a graduação.

A Akali, a cachorra mais bagunceira que já conheci, por tornar menos solitário o processo de escrita da dissertação, o qual acompanhou do início até a finalização deste trabalho. Aos professores José Bento, George Cabral, Cristiano Luís, Marcus Carvalho, Rômulo Xavier e Suely Almeida pelo aprendizado ao longo das disciplinas cursadas no mestrado.

A Marcus Carvalho e Juciene Ricarte, pela competente contribuição no exame de qualificação.

A Edson Silva, pelas conversas descontraídas e indicações bibliográficas.

A Rômulo Xavier, além de um excelente orientador, tornou-se um amigo, que me deixou a vontade para trabalhar como eu julgasse melhor. Mesmo discordando de algumas concepções teóricas e metodológicas, respeitou minhas escolhas neste trabalho.

Aos bons amigos que fiz durante as cadeiras do mestrado: Jéssica, Nielson e Suzana. A Sandra Noberto, pela competente ajuda de sempre e pela excelente amizade que partilhamos.

A Bruna Teixeira, pelas incontáveis tardes alcoólicas que partilhamos ao longo do mestrado.

A Wilkens, Guilherme e Oziela, amigos queridos que estão comigo desde sempre. Ao CNPQ, sem o auxílio financeiro esta pesquisa não seria possível.

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RESUMO

Apresentamos uma discussão sobre as práticas culturais africanas realizadas na Capitania de Pernambuco vistas pela documentação produzida na administração colonial e a Igreja Católica Romana sobre as mesmas. Procuramos entender, através da análise da documentação oficial produzida nos últimos vinte anos do século XVIII, no âmbito do Conselho Ultramarino e do Tribunal da Inquisição de Lisboa, como essas práticas (danças, festas, batuques, feitiços, mandingas) influenciavam não só o cotidiano dos seus protagonistas, os africanos e seus descendentes, mas, também, dos colonos, pessoas ligadas a administração religiosa e agentes ligados à administração colonial. Para tanto, norteamos nossa análise a partir de autores como Reis (1988), Slenes (1994), Sweet (2007, 2011) entre outros que se dentiveram aos estudos da diáspora africana e as suas consequências no Novo mundo. Priorizamos discutir, neste trabalho, como essas práticas empregadas pelos sujeitos escravizados criavam relações constantes de barganhas, onde reivindicavam de forma simbólica seus espaços de liberdades através de suas práticas culturais indo de encontro aos discursos empregados sobre estas práticas.

Palavras-chave: Liberdade. Escravos. Batuques.

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ABSTRACT

We present a discussion about the African cultural practices carried out in the captaincy of Pernambuco seen by the documentation produced in the colonial administration and the Church about them. Through the analysis of the official documentation produced in the last twenty years of the eighteenth century, in the scope of the Overseas Council and the Lisbon Inquisition Tribunal, we tried to understand how these practices (dances, festivities, batuques, spells, witchcraft) influenced not only the daily life of its protagonists, Africans and their descendants, but also of the colonists, people linked to religious administration and agents linked to the colonial administration. To do so, we will guide our analysis from authors such as Reis (1988), Slenes (1994), Sweet (2007, 2011) among others who study African diaspora studies and their consequences in the New World. We prioritize the discussion, in this work, of how these practices, employed by enslaved subjects, created constant relations of bargaining, symbolically claiming their spaces of liberties through their cultural practices going against the discourses used on them.

Keywords: Freedom. Slaves. Batuques.

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Mapa da Região de Angola no século XVIII ... 61 Mapa 2 - Mapa da Costa da Mina no século XVII... 63 Mapa 3 - Mapa das áreas falantes de língua gbe. ... 74

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

1.1 Escravidão e liberdade na historiografia ... 12

1.2 A atuação da Inquisição ... 18

1.3 A Inquisição em Pernambuco ... 20

2 “INFINITOS PECADOS E GRAVÍSSIMAS OFENSAS A DEUS”? A TENTATIVA DE PROIBIÇÃO DOS RITOS AFRICANOS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (SÉCULO XVIII) ... 28

2.1 Desenhando o Recife ... 29

2.2 Cultura africana denunciada à Inquisição: o caso dos batuques no Recife ... 35

2.3 “Desordens contrárias à fé e à religião”: os batuques e a permissividade do governo de Pernambuco ... 46

2.4 Caminhando para um desfecho? D. Maria I e o seu veredito ... 53

3 GRUPOS ÉTNICOS E RELIGIÃO NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO SÉCULO XVIII ... 57

3.1 Angolas e Minas na historiografia ... 57

3.2 O Calundu da negra Izabel em Pernambuco e a Dança de Tunda do pardo João e sua esposa Vitória ... 68

3.3 O fetiche em Pernambuco ... 80

4 AS CONTENDAS ENTRE GOVERNADORES E RELIGIOSOS EM PERNAMBUCO NO SÉCULO XVIII ... 90

4.1 Capuchinhos italianos em Pernambuco e a disputa com os poderes locais ... 90

4.2 Os conflitos entre o Governador de Pernambuco e o Prefeito da Missão dos Capuchinhos italianos ... 98

4.3 A possível amizade entre D. Tomás e José César de Menezes ... 103

4.4 Governantes na mira da Inquisição ... 107

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 114

REFERÊNCIAS ... 117

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1 INTRODUÇÃO

“Onde houve escravidão, houve resistência”1. Com estas palavras, Flávio Gomes e João José Reis definiram uma condição constante na vida dos sujeitos que foram escravizados na África e que, posteriormente, foram deslocados para várias partes do mundo. Dos 15 milhões de homens, mulheres e crianças reduzidos à escravidão, 40% foram destinados para o Brasil2. Para Pernambuco, local de análise de nossa pesquisa, o número de africanos embarcados dos séculos XVI ao XIX é de 960.475, e o número de desembarcados chega a 853.8333. Eram, em sua maioria, oriundos da África Centro Ocidental (Angola) e da África Ocidental (Costa da Mina). Com esses sujeitos, vieram não só a força de trabalho tão importante para a produção açucareira, mas também crenças diversas e sistemas políticos e culturais divergentes do modelo europeu, e é, a partir desses modelos culturais diversos, que realizamos nossas análises sobre a presença de africanos e de seus descendentes na Capitania de Pernambuco, durante o século XVIII.

A grande leva de escravos para esta Capitania, do século XVI ao XVIII, possibilitou a formação de um quadro considerável das práticas culturais africanas. Assim sendo, debruçamo-nos sobre alguns aspectos dessas culturas, destacando os rituais religiosos e as supostas “feitiçarias” vindas da África, que foram aqui assimiladas e reinterpretadas por diversos grupos. A constante importação de escravos “fazia com que a África reinjetasse permanentemente a sua gente e, com ela, os seus valores no Brasil”4. Não obstante, essa constante leva de pessoas para Pernambuco e outras regiões introduziu valores e crenças variados, como foi o caso de dois rituais que analisamos mais à frente: o Calundu (Angola) e o Acotundá (Costa da Mina).

Apesar dessa introdução de ritos religiosos oriundos da África, estes foram realizados com o que estava ao alcance dos escravizados daquela época, chegando, muitas vezes, a utilizar conhecimentos religiosos de outras regiões. Como exemplo: no ano de 1761, na Freguesia de São Bento em Pernambuco, o pardo João de Moura e sua esposa Vitória “dançavam o Caçûtû

1 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, p. 9.

2 REIS; GOMES, Op. Cit., p. 9.; de 1501 a 1875, estima-se que Portugal e Brasil tenham recebido cerca de 848.266 africanos. As estimativas apresentadas no “The Trans-Atlantic Slave Trade Data Base Voyages” diferem-se da citada por Reis e Gomes. Segundo o site, estima-se um total de 12.521.337 de africanos transportados para as várias partes do globo terrestre dos séculos XVI ao XIX. ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo. Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database (Voyages). Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces> Acesso em: 02/02/2017.

3 Idem.

4 SILVA, Alberto da Costa. Um rio chamado atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. 5. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2011, p. 110.

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a que chamamos dança de Tundá”5. Caçûtû ou Caçuto6 era o nome dado ao deus do panteão angolano, responsável pela proteção de doenças diversas7, enquanto que dança de Tunda ou Acotundá era um ritual religioso ao deus da nação courana, situada em Lagos, Nigéria8.

Esse tipo de situação, no Brasil, não foi raro. Aqui, formou-se um complexo quadro de práticas diversas que se completavam. Diferente dos europeus, que se estabeleceram nos domínios ultramarinos de Portugal, os africanos que aqui chegaram provinham de sociedades diversas com línguas, deuses e costumes diferentes. Para entender esses casos, seguimos o estudo clássico de Sidney Mintz e Richard Price9.

Era incomum que escravizados fizessem a travessia do atlântico em grupos étnicos homogêneos. O que implica dizer que não transportaram uma cultura coletiva em massa. Sendo assim, não houve condições de estabelecer um modelo padrão de práticas e costumes destes povos no Brasil. Isso explicaria, de maneira superficial, casos como o de João e Vitória, descrito acima, que traziam uma composição mista de práticas religiosas.

Para a realização de nossa análise optamos por utilizar o conceito de crioulização10. Este conceito tem suscitado debates desde a sua publicação11, gerando embates discursivos no campo das ciências humanas. Mintz e Price elaboraram a teoria de que a cultura (africana ou não) está ligada às relações sociais e instituições em determinado lugar12. Logo, grupos populacionais deslocados de seu local de origens estariam impossibilitados de recriar sua cultura tal qual existia anteriormente.

É possível afirmar que as instituições existentes na África, anterior à diáspora atlântica, mesmo quando recriadas no contexto da escravidão no Brasil, não seguiam as formas originais, o que implica dizer, seguindo o “modelo M & P”13, que não ocorreu uma transposição da cultura e da sociedade africana para o Brasil, mas sim uma reelaboração de diferentes sociedades.

5 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 124, fls. 430.

6 SWEET, James H. Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 248.

7 BYRD, Steven. Calunga and the Legacy of an African Language in Brazil. New Mexico University, 2012, p. 126.

8 MOTT, Luiz. Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro". In: Anais do Museu Paulista, nova série, volume XXXI, São Paulo, 1986.

9 MINTZ, Sidney.; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro; Pallas; Universidade Candido Mendes, 2003.

10 Idem.

11 O ensaio foi escrito por Richard Price e Sidney Mintz em 1972, mas só foi apresentado à comunidade acadêmica em 1973. A versão traduzida para português é de 2003.

12 MINTZ e PRICE, Op. Cit., pp. 25-42.

13 PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Ed. UCAM, ano 25, n. 3, p. 383-419, Dez. 1999.

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Esses autores também destacaram a rapidez com que os africanos e seus descendentes começaram a pensar e a atuar como membros de novas comunidades. “O princípio do que viriam a ser as culturas afroamericanas deve datar das primeiras interações entre homens e mulheres escravizados, ainda na própria África”. Isto é, para eles, a gênese da cultura “crioula” se deu de forma quase automática a partir do encontro interétnico africano ocorrido já nos entrepostos das rotas do tráfico. Porém foi apenas com a criação de novas instituições sociais, nas colônias, que as culturas afro-americanas se constituíram como tal, gerando novas práticas e identidades coletivas. Cabe notar, no entanto, que a formação de instituições não é um processo necessariamente rápido14.

Essa visão foi amplamente refutada pelos chamados “afrocentristas”15. Em suma, eles acusaram que a ideia de crioulização estaria negando uma herança cultural africana no chamado novo mundo, e que esta visão é “eurocêntrica”, já que ela, supostamente, nega a sobrevivência cultural africana em face da suplantação cultural europeia.

From an "Africanist" perspective, however, the assumpstions about Africa history and the people who lived that history need to be reconsidered and any concepet that is intended to apply only to the Amercias is suspect. In my view, a review of the "creolization" argument reveals assumptions that exclude the possibility that the assumptions are wrong16.

Autores como Paul Lovejoy, James H. Sweet e John Thornton defenderam a recriação da cultura africana baseados na superioridade demográfica de um determinado grupo étnico deslocado para as várias partes do mundo17. Nesse caso, a demografia sustentaria a ideia de

14 PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador: UFBA, n. 33, p. 87-132, 2005, p. 89.

15 Idem.

16 Tradução nossa: De uma perspectiva "Africanista", no entanto, as ideias sobre a história da África e as pessoas que viveram essa história precisam ser reconsiderados e qualquer concepção que se destine a tratar apenas às Américas é suspeita. Na minha visão, uma revisão do argumento de "criolização" revela suposições que excluem a possibilidade das ideias estarem erradas. LOVEJOY, Paul E. "Identifying enslaved Africans: methodological and conceptual considerations in studying the African diaspora". Trabalho preparado para o UNESCO/SSHRCC Summer Institute. York University, 1997, p. 17.

17Para essa visão, ver: LOVEJOY, Paul E. "Identifying enslaved Africans: methodological and conceptual considerations in studying the African diaspora". Trabalho preparado para o UNESCO/SSHRCC Summer Institute. York University, 1997.; SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afroportuguês (1441-1770)/James H. Sweet; trad. João Reis Nunes; Luís Abel Ferreira. - Lisboa: Edições 70, 2007.; THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.; ver também a resposta de Richard Price às críticas feitas por alguns autores “afrocêntricos”: PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Ed. UCAM, ano 25, n. 3, p. 383-419, dez. 1999.; ver também o balanço historiográfico feito por Alexandre Almeida Marcussi: MARCUSSI, Alexandre Almeida. Ambiguidades do conceito de crioulização entre a teoria e a empiria. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de História –História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. CD-ROM.; e as considerações feitas

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homogeneidade nos grupos africanos, acarretando formas eficazes de recriações culturais no novo mundo.

A exemplo, Sweet defende que o Calundu teria sido transportado para o Brasil e seria mantido, tal qual era na África, até meados de 177018; para Thornton, o conceito de crioulização se aplica ao período anterior à diáspora afro-atlântica, uma vez que, em finais do século XV, portugueses e negros do Congo partilhavam experiências religiosas. Nesse sentido, Sweet desconsiderou a ideia de trocas culturais e argumenta que houve uma reinterpretação do catolicismo europeu. No caso, não houve uma religião crioula, mas sim o uso de crenças exteriores as quais tinham como base a religião nativa.

Levando em consideração que para Pernambuco (século XVIII) a composição étnica era, em sua maioria, formada por africanos da parte centro-ocidental e ocidental, teríamos, então, uma recriação destas sociedades naquela Capitania, ou a ausência de instituições africanas específicas teria alterado a dinâmica destes grupos a ponto de criar uma cultura crioula?

1.1 Escravidão e liberdade na historiografia

Durante a década de 1980, a escravidão negra foi repensada graças a uma renovação dos estudos sobre o chamado escravismo moderno, resultado de ampla influência da vasta produção bibliográfica desenvolvida nos Estados Unidos. Sob a influência de novas possibilidades e perspectivas teóricas e metodológicas, o escravismo brasileiro ganhou novas abordagens. Estas perspectivas não traziam mais o escravo como sujeito “coisificado”, sem vontade própria devido ao tempo em cativeiro que tornava-o submisso ao senhor, como afirmou Fernando Henrique Cardoso, ao dizer que “no geral era possível obter a coisificação subjetiva do escravo [...] Os escravos foram testemunhos mudos de uma história para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passível”18.

Considerável grupo de historiadores e sociólogos da década de 1960 viam no sistema escravista uma instituição excludente, alicerçada na violência que transformava o escravizado em objeto, ou seja, este perdia sua condição de autonomia e passava a ser objeto de seu senhor. A teoria da “coisificação” proposta pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso fora bastante

sobre o tema por Nicolau Parés: PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador: UFBA, n. 33, p. 87-132, 2005.

18 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão negra no Tocantins Colonial. Vivências escravistas em Arraias (1739-1800). 2. Ed. Goiânia: Kelps, 2007, p. 34.

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criticada por intelectuais nas décadas seguintes. Clóvis Moura foi um dos que discordava da teoria sobre a coisificação dos sujeitos inseridos no sistema escravista.

Até mesmo esses intelectuais que refutavam teorias como a da “coisificação” acabavam reproduzindo-a, ao afirmarem que, para eles, o escravizado, quando se rebelava não possuía meios cognitivos capazes de conceder-lhe autonomia. Esses homens, mulheres e crianças negras, inicialmente deslocadas do continente africano, bem como de seus descendentes nascidos no novo mundo, reduzidos a peças comerciais, tiveram por muito tempo sua existência simplificada, relegadas a um sistema rígido que os colocavam sempre como vítimas.

A partir dos anos de 1970, surgiram novas contribuições historiográficas para o tema da escravidão, pois pensar o escravo e suas relações com o senhor e com a administração colonial não era mais possível apenas pelo viés das violências enquanto instrumentos punitivos e de manutenção do sistema compulsório de trabalho. Posteriormente, na década de 1980, perguntas frequentes, a exemplo de “O que o escravo pensava?”, “Quais suas intenções?” e “Como sobrevivia fora da relação do paternalismo?”, fomentaram e deram impulso aos novos estudos, privilegiando não só os aspectos sociais das conturbadas relações senhor/escravo, mas também os aspectos da diversidade de organização sociocultural. “Aos poucos se percebia que os escravos possuíam certa autonomia com relação ao ciclo de vida e mobilidade em detrimento do julgo senhorial”19.

Esses sujeitos passaram a ser vistos como pessoas atuantes do seu tempo, participando dinamicamente da história. Segundo Stuart B. Schwartz20, em seu artigo intitulado “A historiografia dos primeiros tempos do Brasil moderno. Tendências e desafios das duas últimas décadas”, afirmam que o centenário da abolição, em 1988, foi o auge do interesse dos pesquisadores da História Colonial e Imperial do Brasil pela cultura africana e afro-brasileira. Durante as décadas de setenta e oitenta do século XX, trabalhos pioneiros, marcados pela História Social e de grande importância para a compreensão dos escravizados e do sistema escravista foram publicados, tendo como destaques Robert W. Slenes, com sua tese de doutoramento sobre a demografia da escravidão no Brasil, no período de 1850 – 1888; Kátia de Queirós de Mattoso, com o livro “Ser escravo no Brasil”; Mary Karasch, com “A vida dos

19 COSTA, Iraci Del Nero da & SLENES, R.W & SCHWARTZ, Stuart B. A Família escrava em Lorena (1808). Estudos Econômicos. 17(2), maio/ago. 1987. P. 257.

20 SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia dos primeiros tempos do brasil moderno. Tendências e desafios das duas últimas décadas. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 175-216, jan./jun. 2009. Editora UFPR.

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escravos no Rio de janeiro (1808-1850)”; e Leila Mezan Algranti, sobre a escravidão no Rio de Janeiro21.

No artigo supracitado, Stuart B. Schwartz listou uma série de trabalhos sobre a escravidão em Minas Gerais22, contendo subtemas durante a expansão da História da escravidão e privilegiando análises, como manumissão, alforrias, testamentos e outras formas de agências conduzidas pelos escravizados para contornarem o sistema escravocrata em voga durante três séculos no Brasil. Na década de 1990, momento significativo para a produção historiográfica sobre a escravidão negra, Manolo Florentino e José Luís Fragoso publicaram o artigo intitulado “Marcelinho, filho de Inocência crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre as famílias escravas em Paraíba do Sul”, provocando inúmeros debates dentro e fora do universo acadêmico por trazer “à tona metodologia e informações para o estudo geracional entre os escravos”23.

Durante muito tempo, a historiografia brasileira considerou a escravidão negra homogênea, seja no período colonial, seja no período imperial. Os homens e mulheres marcados pelo crivo doloroso da diáspora eram vistos sobre a ótica antagônica: “de um lado Zumbi de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; do outro, Pai João, a submissão conformada”24. Para muitos historiadores, o escravizado não se situava em uma posição intermediária, ou seja, de negociação. Sempre estava a serviço do seu senhor, sendo subserviente e conformado com a situação imposta, ou estava resistindo, arquitetando fugas, formando quilombos, destruindo plantações etc. Esse tipo de visão relegou ao sujeito escravizado, por muito tempo, a ideia de que era um bem semovente desprovido de autonomia. Logo, atribuía-se ao senhor a tutela destes escravizados.

Esse tipo de ideia, há muito superada, também não deveria existir no período do sistema escravista. Senhores de escravizados sabiam muito bem que haviam de negociar com seus negros, afim de que estes não se indispusessem com o trabalho ou atentassem contra suas vidas

21 SLENES, Robert W. The demography and economics of Brazilian Slavery: 1850-1888, Ano de obtenção: 1976; LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.

22 HIGGINS, Kathleen. Licentious Liberty in a Brazilian Gold-Mining Region. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1999; PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. São Paulo: Annablume, 1996; LIBBY, Douglas Cole; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. “Reconstruindo a liberdade – alforria e forros na freguesia de São José do Rio das Mortes, 1750-1850”. In: Varia História, v. 30

23 SCHLEUMER, Fabiana. Cenários da Escravidão Colonial. In: Revista Ultramares. Dossiê Nº 1, Vol.1, janjul/2012. pp. 97-120.

24 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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ou de seus donos. Aliás, não só os donos de engenho sabiam disso, como também os próprios escravizados tinham consciência dessa constante negociação simbólica na qual estavam inseridos, e, muitas vezes, souberam utilizá-las em benefício próprio.

Ainda é difícil aceitar que o grupo social escravizado, em uma sociedade escravista, cujo principal instrumento de manutenção era a violência, tiveram relações negociáveis com a classe senhorial. Embora, “não se quer afirmar que havia relações idílicas entre escravos e senhores, mas sim padrões de negociações que poderiam partir dos próprios escravos”25. As temáticas culturais sobre a escravidão negra passaram a ter um importante processo de valorização. Sujeitos que antes foram silenciados pela história tradicional, dita política e econômica, que definia homens e mulheres negras como passivos no antigo sistema escravista, passaram a ser vistos de novas formas, contribuindo para uma nova historiografia no que se refere à “história dos excluídos”.

Diante disse, novas perspectivas, abordagens teóricas e metodológicas gradualmente construíram outra visão do sujeito escravizado, dando novo sentido às vivências, ao cotidiano e às variadas maneiras de sobrevivência que esses sujeitos colocavam em prática no seu dia a dia, nas possessões ultramarinas empreendidas pelo reino de Portugal.

Segundo Reis e Silva, na obra historiográfica “Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista”, os escravizados eram parte ativa da sociedade. Escravos e senhores estabeleciam regras no sentido de obterem colaboração um do outro, cada qual dispondo de táticas e estratégias que estavam ao seu alcance.

Apolinário afirmam que “os homens e mulheres negras souberam, nas malhas do sistema, criar, dissimuladamente, espaços de negociação e, ao mesmo tempo, de autonomia diante dos senhores escravistas”. Silvia Hunold Lara chamou a atenção para as relações entre senhores e escravos, não sendo estas alicerçadas apenas pela violência. Para além do castigo (e outras formas de violência), existiam relações de afeto e negociações. As formas de negociações, que se davam de várias formas entre senhores e escravizados desde a economia própria do escravo, como a brecha camponesa, até a “liberdade” que as quituteiras tinham em vender seus produtos durante o dia pelas ruas, o que se mostrava estrategicamente eficaz para a compra de alforrias graças ao pecúlio que podia juntar e às alforrias por mérito e/ou compra. As Irmandades religiosas foram outras instituições que amenizavam o martírio do cativeiro, possibilitando a manutenção de complexas redes de arrecadação financeira para a

25 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão negra no Tocantins Colonial. Vivências escravistas em Arraias (1739-1800). 2. Ed. Goiânia: Kelps, 2007, p. 15.

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compra de alforrias de outros escravizados. Favorecendo, também, a execução de festas, no sentido lúdico ou religioso, assim como garantiam a passagem de suas almas para o outro mundo através das missas que as filiações a Irmandades lhes garantiam.

O primeiro objetivo de uma irmandade era congregar certo número de fiéis em torno da devoção a um santo escolhido como padroeiro. Frequentemente seus membros viviam na vizinhança da mesma paróquia, mas havia irmandades que associavam pessoas por devoção, oficio, cor da pele ou estatuto social. A base de tudo era o ‘compromisso’, conjunto de regras que determinavam os objetivos da associação, as modalidades de admissão de seus membros, seus deveres e obrigações26.

Todas essas formas de negociações amenizavam o cotidiano escravista, evidenciando que para além da violência, existiam também espaços intermediários, onde sujeitos historicamente relegados à margem da sociedade criavam constantemente espaços inventando e reinventando a sua sobrevivência e a sua cultura. Essa abordagem ganhou dimensões atlânticas fundamentais para a nova História Cultural, intimamente ligada ao estudo da diáspora e cultura afro, afro-brasileira e afro-americana. A História Cultural possibilitou estudos recentes que privilegiam as relações das irmandades, ajudando na compreensão da cultura africana e afro-brasileira, assim como na sua permanência e influência na América Portuguesa27.

Nessa vertente, as reflexões de Marina de Mello e Souza possibilitam visualizarmos que a eleição de Reis Congos, realizada por africanos e seus descendentes, foi costume amplamente

26 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia no século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 1992, p. 397.

27 No que diz respeito aos estudos culturais sobre a diáspora, um dos assuntos com bastante visibilidade refere-se à identidade dos grupos étnicos e sua cultura. Para Paul Gilroy, o “Atlântico negro” representou o fluxo de troca cultural em várias regiões do globo. Fluxo este que só foi possível graças aos deslocamentos forçados de africanos para as várias partes do mundo. Este autor reinterpreta o período moderno de acordo com as mudanças proporcionadas pelo tráfico de seres humanos e os impactos causados pelo deslocamento destes sujeitos. GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001; Stuart Hall também produziu um estudo importante sobre identidade e diáspora. Para este autor, a identidade cultural reflete a experiência histórica de um sujeito ou grupo. Apesar de a identidade atribuir características especificas, estas não são estáticas. Hall argumentou que nestas mudanças constantes de acordo com o ambiente em que um indivíduo ou seu grupo se insere. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. (Org.). Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003; Frederik Barth também trouxe importante contribuição para os estudos culturais. A partir das suas concepções sobre grupos étnicos, este autor possibilitou entendermos como funcionam as relações culturais entre diferentes grupos. Através da fronteira interétnica percebemos as relações de uma fronteira cultural a outra em um processo de interação das etnicidades dos grupos e suas alteridades, mas sempre em uma perspectiva de cultura e identidade que se movimentam nas relações entre grupos étnicos diferenciados. Cabe ressaltar que a partir dos seus estudos houve uma renovação nos estudos sobre a África e sua diáspora. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras, In; POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FNART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998.

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disseminado na América portuguesa28. A metodologia e o trato com a fonte pela autora, deixando em segundo plano o lado folclórico, mas com maior importância ao teor político em que se constituíam essas eleições, evidenciou um complexo mundo feito entre sujeitos escravizados, autoridades religiosas e seculares em torno do ato simbólico de coroação, que centralizava o poder da administração, carregado de valores históricos, políticos, culturais e religiosos.

Por fim, vale ressaltarmos os estudos29 mais recentes dos historiadores como Marcus Carvalho, Flávio Gomes e José Reis, privilegiando as microanálises de personagens históricos anônimos que em muito contribuíam para a compreensão das relações no mundo escravista. Em 2008, João José Reis publicou um livro intitulado “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e Candomblé na Bahia do Século XIX”, sobre a trajetória de um africano liberto na Bahia oitocentista. Domingos não foi o tipo de personagem histórico que se destacou em seu tempo por grandes feitos em levantes ou por fugas engenhosas, muito pelo contrário, era apenas mais um dentre tantos outros tentando sobreviver com as condições que lhes eram possíveis.

O destaque na citada obra são as redes que Domingos construiu ao longo de sua vida e como uma liderança religiosa se articulava em duas sociedades: a do negro e a do branco. Em 2010, os historiadores citados publiaram em conjunto a obra “O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro”, que evidencia a vida de Rufino, preso por suspeita de conspiração em um levante na Bahia, no século XIX. Ao longo da obra, foi apresentada uma complexa trama envolvendo Rufino, chefes de polícia, juízes e grandes traficantes de pessoas oriundos de Pernambuco e de outras partes do Brasil. Ela se destaca por expressar o complexo mundo do tráfico transatlântico interligado não apenas à África, mas também a outras regiões do Brasil, com destaque para Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia.

Estes estudos de microanálises a partir de sujeitos desconhecidos possibilita-nos a compreensão de determinados mecanismos sociais e culturais imersos em uma sociedade tão

28 SOUZA, Marina de Mello. Histórias, mitos e identidade nas festas de reis negros no Brasil – séculos XVIII e XIX. In: JANECSON, István e KANTOR, Iris. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa (Volume 1). São Paulo: Imprensa Oficial. Hucitec; Edusp; FAPESP, 2001, p. 249.

29 O estudo sobre a vida de Rufino José Maria possibilita compreendermos o que foi o tráfico atlântico de africanos na segunda metade do século XIX. Os três autores apresentam uma interpretação de um personagem complexo, que esteve nos dois lados do comércio ilegal de escravos. A história pormenorizada de Rufino (descrita nos documentos policiais) revelou as engrenagens do funcionamento da prática do tráfico. Sendo possível visualizar desde a viagem da África até os portos brasileiros. Além disso, as relações de redes estabelecidas entre comerciantes nos dois lados do Atlântico ficam em evidência nesta obra, demonstrando um complexo mundo de sujeitos que enriqueceram através do comércio ilegal de seres humanos. CARVALHO, Marcus; GOMES, Flávio.; REIS, João José. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro. Companhia das Letras, 2010.

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plural quanto a estabelecida no Brasil. Favorecendo a compreensão de aspectos sociais e culturais que seriam desapercebidos. Desse modo, estabelecemos novos olhares e novas formas metodológicas para lidar com as interpretações que surgem ao longo da produção historiográfica sobre a escravidão negra na América Portuguesa.

1.2 A atuação da Inquisição

Tema consolidado de várias pesquisas no meio acadêmico, a instituição inquisitorial tem sido evidenciado, ao longo dos séculos XX e XXI, como um importante campo de pesquisa para se compreender a dimensão social, política e cultural da América Portuguesa. O fundo documental que compõe os antigos arquivos do Santo Ofício tem servido de base para os mais variados temas, transitando pela chamada “cultura popular” até os estudos econômicos sobre Portugal e sobre o Brasil.

Para Francisco Bethencourt, “os modelos de ação inquisitorial” talvez constituam o campo de pesquisa mais estudado acerca dessa instituição da época moderna, sobretudo, no que diz respeito aos tipos de delitos que combatia, a forma e os procedimentos adotados para a resolução dos casos em questão30. Desse modo, através dos sujeitos perseguidos e da atuação inquisitorial, é possível compreendermos a sociedade em que estes se inseriam e as suas especificidades.

Durante o reinado de D. João III, em 1536, foi criado o Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, com a missão de perseguir e processar indivíduos que não estivessem de acordo com as leis católicas. Apesar da ampla maioria dos processados terem sido os cristãos-novos, outros “criminosos” também eram levados às salas de julgamento da Inquisição, tais como: heréticos, apóstatas, bígamos, sodomitas, feiticeiros, idólatras, mouros, Padres solicitantes entre outros.

Segundo Daniela Buono Calainho, em meados do século XVI, a Europa Meridional passou a receber forte influência da Contrarreforma Católica. Ainda segundo a autora, o movimento da Contrarreforma encontrou amplo apoio na Inquisição Moderna. Dessa forma, a Igreja Romana empreendeu uma forte ofensiva contra a expansão do protestantismo na Europa.

Ao lado dos ideais nascidos da Contra-Reforma, a Inquisição ibérica tratou de debelar hereges perturbadores da cristandade e perpetuadores da presença

30 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13.

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impertinente do Diabo no Velho mundo, num primeiro momento, e mais tarde na América, à medida que avançava o processo de colonização no ultramar31.

Todos aqueles que fossem considerados contrários aos princípios católicos estavam sujeitos a enfrentarem a justiça da Inquisição. Muitos dos vassalos da Coroa portuguesa sofreram nas malhas inquisitoriais independentes de serem brancos, negros, mestiços, mouros, nativos ou judeus. O Santo Ofício era implacável em julgá-los, e as penas, apesar de variadas, sempre traziam ao culpado implicações diversas.

Gian Carlo de Melo Silva afirmou que que as reformulações propostas pelo Concílio de Trento provocaram mudanças no imaginário social, que tinha, por finalidade, “desterrar os erros que desviavam os fiéis e os próprios clérigos dos sacramentos. O Concílio reafirmou dogmas e formulou novas diretrizes para serem seguidas pelos católicos”32.

Apesar de não ter ocorrido a instalação do Tribunal no Brasil33, existiram inúmeras pessoas ligadas ao Santo Ofício que atuavam nas antigas Capitanias da colônia portuguesa. “Esses agentes eram funcionários da grande empresa inquisitorial, com sede em Lisboa, e tinham como função principal auxiliar os inquisidores na sua missão "santa" de manter a ortodoxia em todo o império português”34.

Dentre esses agentes, o papel fundamental para o funcionamento da Inquisição no Brasil era por parte dos comissários, que tinham, em suas obrigações, ouvirem informações, denúncias e acusações. Recebida a informação, o comissário solicitava ao acusado a sua presença em sua

31 CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandigas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo regime. Garamond, 2008, p. 72.

32 SILVA, Gian Carlo de Melo. Inquisição e Igreja católica no Pernambuco Colonial: Os desvios morais contra o

Sagrado Matrimônio. Disponível em:

<http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wpcontent/uploads/2012/01/Gian-Carlo.pdf>. Acesso em: 05/07/2016, p. 2.

33 A fundação e instalação de um Tribunal inquisitorial ocorria por razões específicas. Por exemplo, em 1478, na Espanha, o Papa Sisto IV fundou uma nova Inquisição na Espanha em resposta aos pedidos dos reis Católicos da Espanha. A reinvindicação real se dava pelo suposto aumento da heresia (ritos mosaicos entre os judeus) e a tolerância por parte dos bispos frente a estes atos. BETHENCOURT, Op. Cit., p. 17; Em Portugal, a Inquisição moderna foi fundada em 1536. Similar ao caso da Espanha, a Inquisição Portuguesa também surgiu da vontade de impedir o avanço dos heréticos em Portugal. Vale ressaltar que, diferente do caso espanhol, a Inquisição em Portugal teve amplo apoio das instituições civis. Francisco Bethencourt argumentou que este apoio era fruto de um pensamento mais maduro da época, o qual tinha como exemplo o caso da Inquisição Espanhola, surgido 50 anos antes da de Portugal. BETHENCOURT, Op. Cit., p. 24-27. Para o caso do Brasil, um Tribunal não teria efeitos positivos para a economia. Considerando que a colônia era composta por vários grupos diferentes, notadamente, de concepções religiosas diversas. Dentre esses grupos, os de maior composição demográfica eram índios e negros. Para o início da colonização, a força dos engenhos era oriunda do trabalho indígena. A partir do século XVII, o trabalho foi composto, em sua maioria, pelos negros. Um Tribunal inquisitorial na colônia provavelmente iria desregular as forças produtivas dos engenhos, uma vez que estes dois grupos seriam alvos de denúncias e processos. Sendo assim, a possível prisão e degredo destes sujeitos trariam resultados negativos à economia da época.

34 NOVINSKY, Anita. A igreja no Brasil colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu Paulista, São Paulo, tomo 33, p. 17-34, 1984, p. 18.

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causa de audiência, ouvia testemunhas e, caso fosse preciso, poderia dar ordem de prisão ao suspeito e remetê-lo ao Tribunal de Lisboa. Segundo Novinsky, o comissário, em conjunto com o Bispo, possuía permissão para torturar, a fim de obter confissão, mas não se encontrou casos dessa natureza35.

O comissário também possuía a autoridade e quase todos os poderes de um inquisidor, sendo-lhe negado, apenas, a função de sentenciar o acusado. Ainda assim, poderia exercer esse tipo de autoridade caso um inquisidor delegasse seus poderes ao mesmo, a única exceção seria a sentença de pena de morte, pois esta ficava restrita apenas aos inquisidores. Ocorreu casos em que a presença de um comissário não era possível. Então, outros sujeitos poderiam desempenhar o papel de contribuir com o Santo Ofício. Foi esse o caso dos Jesuítas, que, em 1646, a responsabilidade da “Grande Inquisição” ficou sob os cuidados do Jesuíta Padre Manuel Fernandes, e auxiliado pelo escrivão, também Jesuíta, Padre Sebastião Teixeira36.

Além da investidura de cargos, a Inquisição contava com o apoio da população. Laura de Mello e Souza, em seu livro O Diabo e a terra de Santa Cruz, expôs que o imaginário social do período colonial era tão afetado pela atuação inquisitorial que as pessoas, ao menor sinal de um suposto crime contra a fé católica, denunciavam seus propositores. Isso evidencia duas faces dessa sociedade: a primeira seria a denunciação por medo de omissão perante os agentes da fé, e a segunda teria o caráter de “salvar o próximo”, denunciando-o com a finalidade de que sua alma fosse corrigida37.

1.3 A Inquisição em Pernambuco

Com o início da colonização, houve não somente chegada de pessoas prontas a povoarem as novas terras da América portuguesa, mas também religiosos que carregaram a responsabilidade de cuidar das almas “desviadas” dos dogmas católicos e a manutenção dos ritos religiosos tão caros à Igreja Católica. Não obstante, os missionários enviados por D. João III tinham também a missão de não apenas proteger a manutenção do catolicismo, mas também de angariar novos fiéis para o rebanho da Igreja Romana. Os métodos, já amplamente difundidos e estudados pela historiografia e áreas afins, desde a pregação das escrituras da

35 NOVINSKY, Op. cit., p. 72. 36 NOVINSKY, Op. cit., p. 72.

37 SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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Bíblia até a coerção verbal, punição e, em alguns casos, o uso da violência física para o fim em questão.

Mais à frente, teremos a oportunidade de observar um caso ocorrido durante a segunda metade do século XVIII, na Capitania de Pernambuco, em que Capuchinhos italianos utilizavam de sua autoridade e violência contra os povos indígenas aldeados. Em uma tentativa de demonstrar quem detinha o poder, um Padre missionário chegou a arrancar a orelha de um nativo para mostrar que “quem mandava ali era ele”38. Em finais do século XVI, chegava ao Nordeste colonial o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, tendo como destino a Bahia, Pernambuco, Paraíba e Itamaracá. Por onde Mendonça passou, provocou medo nos colonos, mostrando, assim, a força coercitiva e o imaginário popular da época em relação ao Tribunal do Santo Ofício.

Segundo Francisco Bethencourt, “para os membros dos tribunais da Inquisição, seu papel seria fundamental, pois, sem eles, a cristandade teria sido “infectada” e o mundo dominado pelo demônio. A heresia perverteria os costumes e a sociedade como um todo”39. Na obra citada de Laura de Mello, a heresia foi posta como uma constante na vida dos colonos ultramarinos. Dessa forma, era mais do que necessário a presença não só do clero regular, mas também dos agentes inquisitoriais.

Cabe pensarmos: como seria a colônia, caso tivesse havido a instalação de um Tribunal na América portuguesa? A Inquisição e D. João III deviam ter a noção que a presença dos tribunais religiosos no Brasil traria sérios riscos ao funcionamento das novas conquistas. Sabendo que ali habitava variados grupos, inseridos nos mais variados contextos e experimentando todos os tipos de crenças, a presença deste Tribunal seria danosa ao projeto colonizador que iniciara ainda no século XVI.

Por meio de visitações, o Tribunal de Lisboa conseguia impor aos domínios ultramarinos a visão inquisitorial sobre o que julgavam “desvios” de conduta religiosa. Apesar da preocupação deste Tribunal se relacionar diretamente com os cristãos-novos, observamos a preocupação com outras práticas, como os ritos africanos, ameríndios, sodomitas e outros.

Com o visível crescimento de Pernambuco, Capitania cedida a Duarte Coelho em 1534, a região possuía um aumento anual em sua população bastante significativo. Fora a chegada maciça de colonos que almejavam a obtenção de lucros com a atividade açucareira, a presença

38 Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 96, D. 7564.

39 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 356-357.

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africana aumentava consideravelmente, ao passo que a Capitania crescia em termos econômicos. Roberta Cristina da Silva Cruz afirma que

O número de cativos cresce assustadoramente, segundo alguns autores, no final do século XVI com a importação de 3000 negros da Guiné para servirem nas lavouras da Bahia e de Pernambuco. No apogeu da produção do produto, no século XVII, a importação de escravos chega a cerca de 50000 negros40.

Desta forma, podemos observar a prosperidade pernambucana no primeiro século da colonização portuguesa. A autora, baseada em Gonsalves de Mello, atesta que a Capitania era uma alternativa para os grupos perseguidos pela Inquisição. Para tanto, o Santo Ofício deveria se fazer presente na região com o intuito de perseguir e de corrigir “feiticeiros, bruxos, bígamos, os que liam livros reprovados pela igreja e os demais desviantes”41. Não encontramos estudos que fizessem comparativos entre o aumento populacional de escravos com o número de processos e denúncias atribuídos aos mesmos. Porém, como afirmamos, o principal alvo do Santo Ofício eram os cristãos-novos. Há uma quantidade considerável de processos e denúncias realizadas contra estes sujeitos, mesmo não sendo maioria numérica na colônia. Óbvio que isto se dava em função dos interesses da época.

O que questionamos diante isso são os motivos que levaram a Inquisição Portuguesa “afrouxar” sua perseguição contra outros “crimes”. Para Pernambuco, observamos o crescimento da população negra, significa, também, a expressão de sua cultura (considerada herética) neste local. Por quais motivos, então, os negros, que tinham superioridade numérica na colônia, tiveram poucos registros da perseguição contra suas crenças?

Em um levantamento de processos e denúncias em Pernambuco durante o século XVIII, encontramos cerca de 19 processos envolvendo africanos e crioulos e pouco mais de 100 denúncias42. Número particularmente pequeno em razão do volume demográfico desses sujeitos naquela Capitania. Todavia, podemos considerar que, mesmo compondo a maioria étnica na colônia, as práticas e ritos africanos eram de menor importância para a Inquisição. Falamos isso para afirmar o fato da sonegação por parte do Tribunal lisboeta frente aos casos envolvendo a religiosidade africana e afro-brasileira. Uma exceção seria o caso dos batuques envolvendo o Governador e a ordem dos missionários Capuchinhos, que abordaremos mais adiante.

40 CRUZ, Roberta. Inquisição no Pernambuco quinhentista: o caso de Felícia Tourinho. Nova Revista Amazônica, v. 1 n. 2. Jul. /Dez. 2013, p. 60-74. p. 63.

41 CRUZ, Op. Cit., p. 64.

42 Foram consultados os fundos arquivísticos da Torre do Tombo: Coleção de Processos e Cadernos do Promotor (números 58 à 130).

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De antemão, consideramos que grupos mais ortodoxos tinham maiores preocupações com esse tipo de prática considerada herética. Do mesmo modo, devemos levar em consideração que a força produtiva, quase que em sua totalidade, encontrava-se no trabalho escravo. Os processos e penas envolvendo degredos e prisões a estes sujeitos refletiriam negativamente na economia pela possibilidade da redução de mão de obra. Também é possível considerar que, por parte de alguns senhores, havia a anuência para com os seus escravos, permitindo-lhes que brincassem em dias de folgas, cultuassem seus deuses e colocassem em prática sua concepção de mundo alicerçado em sua experiência anterior à escravização. Antonil atestava essa prática ao aconselhar que

Negar-lhes totalmente seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores ao criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente43.

Antonil apenas indicava algo que era praticado por alguns senhores escravistas. Não havia a possibilidade de impedir que africanos e descendentes utilizassem aspectos de uma cultura exterior a que se tentara impor na colônia. Seus senhores sabiam que esse tipo de atitude poderia levar a situações delicadas, desde revoltas nas senzalas até conflitos maiores, como levantes e desordens variadas.

Com isso, buscamos problematizar as relações estabelecidas em Pernambuco no século XVIII. Analisaremos como africanos, crioulos, pardos e outros conseguiram criar conflitos entre autoridades civis e religiosas e a atuação inquisitorial nesses episódios que têm início no ano de 1778 e se seguem até finais de 1797. Podemos propor algumas questões que relativizem o “afrouxamento” em se permitir as expressões culturais dos africanos e seus descendentes. Notaremos, a partir de José César de Meneses, Governador de Pernambuco, D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, Bispo da mesma Capitania, e o Juiz de Fora, João da Silveira Pinto Nogueira, como ocorriam as relações entre autoridades e as práticas africanas.

Esta pesquisa iniciou a partir de um documento disponível no Arquivo Histórico Ultramarino44. Trata-se de uma resposta do Governador de Pernambuco, José César de Menezes, a uma carta do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa no ano de 1780. O conteúdo era

43 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982, p. 161. 44 CARDOSO, Juciene Ricarte.; QUEIROZ, Josinaldo Sousa.; LUIZ, Janailson Mâcedo; MELO, Tiago. Catálogo geral dos manuscritos avulsos e em códices referentes à escravidão negra no brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. Campina Grande: EDUEPB, 2016

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referente aos “ritos gentílicos” empregados por africanos de Angola e de Costa da Mina, realizados nas praças daquela Capitania. A carta que originou a esta resposta acusava o Governador de perseguir missionários e de proteger os negros e seus rituais, considerados danosos à vida católica.

A partir deste documento, cruzamos as informações com ofícios redigidos pelo Bispo de Pernambuco D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, com o Prefeito da Missão dos Capuchinhos italianos Constantino de Parma, entre outros personagens importantes como D. Maria I, Rainha de Portugal, e José da Cunha Grã Ataíde e Melo, ex-Governador de Pernambuco e Conde de Povolide. O caso em questão, que mobilizou várias pessoas da administração secular e religiosa, estava relacionado aos batuques (em sentido religioso ou festivo) que os negros escravizados, livres e libertos praticavam, supostamente, em praça pública, com anuência do Governador José César. O caso passou-se entre os anos de 1779 e 1780, e durante o curto processo, foi produzida relativa documentação sobre o episódio, o que nos possibilitou uma série de questionamentos sobre as práticas culturais de africanos e de descendentes em Pernambuco.

Apesar de boa parte do trabalho se centrar nos batuques (ritos gentílicos para a Inquisição), ampliamos nossas pesquisas, possibilitando uma leitura mais aprofundada sobre a sociedade criada por esses sujeitos. Toda a pesquisa ocorreu em torno dos conflitos entre escravos, a ordem religiosa dos Capuchinhos italianos (e outros agentes religiosos) e a administração secular (Rainha, Governadores etc.). Durante o processo da pesquisa documental, alargarmos nosso estudo com o auxílio das fontes inquisitoriais. Estas fontes, para além dos perigos em se confiar totalmente no seu texto45, nos revelaram com mais detalhes as experiências de escravos e livres numa sociedade escravocrata como a de Pernambuco.

O primeiro capítulo do nosso estudo, intitulado de “Infinitos pecados e gravíssimas ofensas a Deus”? A tentativa de proibição dos ritos africanos em Pernambuco (século XVIII)”, está dividido em quatro tópicos. No primeiro, fizemos uma breve descrição do Recife, durante o século XVIII, por meio de uma confissão realizada ao Tribunal do Santo Ofício. A partir da confissão de Manoel de Sousa Pereira, foi possível observarmos como a cultura de matriz afro

45 Apesar das fontes inquisitoriais serem de grande riqueza, por detalharem práticas (ainda que de forma Generalizada no que diz respeito às práticas mágicas vindas da África), costume e o cotidiano do réu, é necessário levar em consideração que as mesmas requerem certos cuidados metodológicos de análise. Ginzburg nos chama a atenção para “o impulso dos inquisidores no sentido de buscar a verdade”, a influência direta ou indireta que estes documentos sofriam por parte de quem os produziam. GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 284.

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e afro-brasileira influenciava vida de diversos sujeitos, inclusive não-negros que utilizavam de objetos e práticas mágicas e religiosas para diversos fins.

No segundo tópico, passamos a analisar o caso dos batuques descritos nesta introdução. Problematizamos as denúncias contra o Governador José César de Meneses, em que pesavam-lhe acusações de proteger e permitir que Angolanos e Minas praticassem batuques e “ritos gentílicos” em praça pública assistidos pela população local.

A partir destas denúncias, analisamos: 1) Como ocorreu estas denúncias e quais motivos levaram o Governador a ser notificado pela Inquisição de Lisboa; 2) Como eram realizados os batuques e se eram rituais religiosos ou não; e 3) O uso do batuque e do teatro como prática simbólica de resistência por parte dos africanos e seus descendentes.

No terceiro tópico, tratamos de forma mais especifica sobre o embate entre a administração secular e a Ordem dos Capuchinhos italianos. Este embate resultou da suposta permissividade de José César de Meneses para com os escravos e suas práticas culturais. Os citados religiosos acusavam o Governador de impedir o trabalho em prol da causa católica e que ali, em Pernambuco, os africanos gozavam de liberdade (uma licença escrita pelo Governador) para empreenderem seus batuques e ritos religiosos.

No quarto tópico, discutimos a participação de D. Maria I, Rainha de Portugal, no referido caso dos batuques. Até então, o problema estava circunscrito ao Governador de Pernambuco, ao Tribunal inquisitorial de Lisboa e aos Capuchinhos do Hospício de Nossa Senhora da Penha, localizado em Boa Vista, Recife. Por não haver consenso entre as partes, a soberana solicita um parecer sobre os batuques a um antigo Governador daquela Capitania.

José da Cunha Grã Ataíde e Melo é o responsável em descrever as “castas de danças” que viu em Pernambuco no período em que foi Governador. A partir do seu parecer, a Rainha emitiu sua visão acerca do caso dos batuques e instrui as autoridades religiosas e seculares de acordo com o que foi escrito por José da Cunha, também conhecido como Conde de Povolide.

O segundo capítulo, intitulado de “Conflitos, grupos étnicos e religião na Capitania de Pernambuco no século XVIII”, está dividido em seis tópicos. Nesta parte da pesquisa nos dedicamos de forma mais enfática aos chamados africanos “Angola” e “Minas”. Analisamos desde o seu local de origens até o desembarque em Pernambuco. Posteriormente, discutimos sobre suas práticas culturais e como elas contribuíram para a sociedade do século XVIII.

No primeiro tópico, analisamos as rotas de comércio destinadas ao tráfico entres os séculos XVII e XVIII. Discutimos sobre as supostas preferências de comerciantes de escravos do Brasil e de Portugal, e sobre a política de valorização das rotas da Costa da Mina e de Angola.

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Em seguida, discutimos os conceitos utilizados atualmente para designar os grupos étnicos a partir de autores que trataram o tema, como Luís Nicolau Parés e Mariza de Carvalho Soares.

Expostas estas questões, retomamos as discussões sobre a denúncia dos batuques46. Analisamos os rituais realizados por centro-africanos e o que era realizado por negros vindos do Ocidente africano. Visualizamos, assim, que o batuque estava ligado a uma prática banto, mas que, em determinado contexto, havia a participação de negros Mina. Cabe lembrar que, embora esses sujeitos vindos da Costa da Mina fossem minoria étnica em Pernambuco, conseguiram utilizar suas características em uma cultura que não era a sua.

Prosseguimos, no segundo tópico, com a análise de alguns casos em que pardos e africanos foram denunciados a Inquisição devido a supostas práticas “diabólicas”. Nos referimos ao Calundu e à Dança de Tunda (ou Tundá), descritos anteriormente. Para esses rituais, fizemos o seguinte questionamento: o que explica a influência de outra cultura (ainda que esta não seja a dominante) em um ritual exterior a sua crença religiosa?

No terceiro tópico, discutimos, por meio de duas fontes manuscritas, uma sobre a Costa da Mina e a outra sobre cidade do Recife, sobre como os rituais animistas dos africanos da parte ocidental eram enxergados por diversos viajantes e como foram descritos na Capitania de Pernambuco.

O terceiro capítulo, intitulado de “As contendas entre Governadores e religiosos em Pernambuco no século XVIII”, está dividido em quatro tópicos. No primeiro, tratamos da presença dos Capuchinhos italianos entre os anos de 1761 a 1783, na Capitania de Pernambuco. A partir de um extenso ofício enviado pelo então Governador Luís Diogo Lobo da Silva, discutimos como estes sujeitos interviam na jurisdição e na ordem secular não apenas em Pernambuco, mas também na Bahia. Em seguida, analisamos uma disputa entre o Prefeito da Missão dos Capuchinhos Constantino de Parma (“o famoso zelador dos casos dos batuques”)47 e o Governador da Capitania, José César. A partir dessas contendas, observamos como os batuques influenciaram até mesmo as relações entre autoridades na Capitania de Pernambuco. No segundo, analisamos os conflitos entre Constantino de Parma e José César de Meneses. De forma mais precisa, revelamos o que levava a ambos sustentarem opiniões contrárias sobre o mesmo tema: os batuques.

No terceiro tópico, investigamos a possível relação de amizade que havia entre D. Tomás da Encarnação Costa e Lima e o Governador de Pernambuco. Constantino acusava o

46 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo nº 4740.

47 Esta era a designação do Governador para o referido religioso. Ver: Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). Arquivo Histórico Ultramarino, Pernambuco, Cx. 140, D. 10368.

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Bispo constantemente deste ser um dos que permitiam os africanos de empreenderem seus costumes “gentílicos”. Através de suas acusações, investigamos até que ponto essa aproximação entre o Bispo e o Governador tinha relações com a suposta permissividade dos batuques.

Por fim, no último tópico deste capítulo tratamos de alguns Governadores de Pernambuco que foram denunciados à Inquisição. Entre o final da primeira metade do século XVIII e o início do século XIX, encontramos quatro Governadores que tiveram seus nomes relacionados a casos de heresias. Chamamos a atenção para o descaso da Inquisição com estas denúncias. A exceção foi José César de Meneses, que, como verificamos ao longo da pesquisa, teve problemas sérios por conta de ter sido denunciado ao Tribunal religioso de Lisboa.

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2 “INFINITOS PECADOS E GRAVÍSSIMAS OFENSAS A DEUS”? A TENTATIVA DE PROIBIÇÃO DOS RITOS AFRICANOS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (SÉCULO XVIII)

No presente capítulo, apresentamos uma discussão sobre as práticas culturais africanas realizadas na Capitania de Pernambuco vistas pela documentação produzida pela administração colonial (Governador de Pernambuco e D. Maria I, Rainha de Portugal), a Ordem Missionária dos Capuchinhos Italianos e o Tribunal do Santo Ofício. Procuramos entender, através da análise da documentação oficial produzida nos últimos vinte anos do século XVIII, no âmbito do Conselho Ultramarino e do Tribunal da Inquisição de Lisboa, como essas práticas (danças, festas, batuques, feitiços, mandingas) influenciavam não só o cotidiano dos africanos e de seus descendentes, mas também dos colonos, pessoas ligadas à administração religiosa e agentes ligados à administração colonial.

Para os devidos fins de pesquisa, utilizamos documentos gestados pelo Tribunal do Santo Ofício e do Arquivo Histórico Ultramarino48. Também usamos a descrição dos reinos do Congo, Matamba e Angola, deixada pelo missionário Capuchinho Cavazzi. No que se refere aos documentos inquisitoriais49, usamos os processos movidos pelo Tribunal religioso e denúncias feitas aos agentes inquisitoriais.

Quanto aos documentos produzidos no âmbito do Conselho Ultramarino, trata-se de ofícios e cartas escritas pelo Governador de Pernambuco, José César de Meneses. Serão usados,

48 Os documentos referentes ao Conselho Ultramarino foram digitalizados pelo Projeto Resgate Barão do Rico Brando, sob a coordenação de Esther Caldas Bertoletti. O referido projeto reuniu pesquisadores do Brasil e de outros países da Europa. Foram organizados e catalogados, por período e região, milhares de documentos respeitantes ao século XVI ao XIX. Aqui, utilizamos a coleção relativa à capitania de Pernambuco. Para saber mais sobre o projeto, ver: BERTOLETTI, Esther Caldas.; BELLOTO, Heloisa Liberalli.; DIAS, Erika Simone de Almeida. O projeto resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco: acesso às fontes da história do brasil existentes no exterior. Clio – revista de pesquisa histórica, n. 29.1 (2011).

49 Os processos movidos pelo Tribunal inquisitorial de Lisboa são compostos por folha de abertura (onde contém o sumário de culpa ou denúncia e o nome do réu); segue-se com a explicação do caso; perguntas a testemunhas e ao réu; e, por fim, a sentença e os custos do processo. Cabe salientar que nem todos os processos movidos pela Inquisição eram concluídos. Muitos destes estão ausentes de sentenças e de perguntas às testemunhas. O segundo tipo de documento utilizado nesta pesquisa, também de origem inquisitorial, está nos chamados “Cadernos do Promotor”. Nestes cadernos, encontram-se denúncias que poderiam originar os processos descritos acima. Não há uma organização por capitanias nestes cadernos, respeitando apenas a ordem cronológica de produção das denúncias. Estão dispostos em 139 volumes que cobrem o período de 1541 a 1802. Na coleção de “Cadernos do Promotor”, existe uma série intitulada de “Papéis de Fora” ou “Papéis Antigos”, que vão de 1565 a 1587. Estes papéis encontram-se de forma desordenada e com lapsos de numeração. Em geral, todos os volumes contêm denúncias referentes à Lisboa, à África, ao Brasil e à Índia. As denúncias variam seu número de páginas, a depender do denunciante e da gravidade do suposto crime. Por fim: “Existem vários lapsos da numeração original, tratando-se os mais frequentes de repetições e saltos: o caderno 3.º de "Papéis de Fora" ou "Papéis Antigos", aparecem duas vezes; os cadernos 10.º a 13.º dos "Papéis de Fora" ou "Papéis Antigos" não foram ainda encontrados, assim como os cadernos 25.º, 42.º, 43.º, 62.º, 63.º, 65.º, 78.º, 103.º, 123.º, 127.º, 132.º e o 135.º dos séculos XVII a XIX”. Ver: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/DetailsForm.aspx?id=2318017>. Acesso em 06/04/2017.

Referências

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