Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Filosofia -‐ Estética, realizada sob a orientação científica do Doutor Nuno Venturinha, Investigador Auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais da
UNL.
AGRADECIMENTOS
No decorrer deste trabalho foram várias as pessoas que, directa ou indirectamente, o marcaram e às quais não poderia deixar de agradecer. Não poderia deixar de o fazer, antes de mais, ao Professor Nuno Venturinha. Primeiro, por ter aceitado orientar a minha tese e, depois, pelo entusiasmo que sempre encarou a escolha do meu tema encorajando-‐me sempre a continuar. Agradeço-‐lhe ainda a exigência e o rigor que me incutiu, assim como as repetidas leituras que fez e as inúmeras sugestões que me facultou. Este trabalho deve-‐se, sem dúvida, às suas aulas e à inspiração com que sempre falou de Wittgenstein.
Um agradecimento com carinho para a Professora Isabel Santiago, por me ter apresentado à filosofia e ao Tiago Vieira por me ter apresentado ao Artaud.
Outro agradecimento especial para os meus amigos, em particular para o Manel, a Anita e a Joana que tanta paciência tiveram para a minha constante falta de tempo e para os meus desabafos. A eles o meu obrigado pela força e confiança que me transmitiram.
Por fim, um grande obrigado à minha família, em especial aos meus pais e à minha irmã por acreditarem sempre em mim e nas minhas escolhas, pela exigência e o amor com que sempre me educaram. Agradeço ainda por compreenderem todas as vezes que não consegui estar presente. A eles lhes dedico este trabalho pois é também deles. Dedico-‐o ainda à Maria, amiga das artes, e que este ano partiu cedo demais. Que este trabalho seja a memória de que o único caminho possível é Viver.
Linguagem e Crueldade: Artaud e Wittgenstein Language and Cruelty: Artaud and Wittgenstein
Adriana Fernandes
[RESUMO]
PALAVRAS-‐CHAVE: Artaud, acção, corpo, fragmentação, linguagem, teatro, Wittgenstein.
Com esta dissertação parte-‐se de uma evolução cronológica do pensamento de Artaud salientando a inequívoca relação entre o autor e a sua obra como uma e a mesma coisa. Artaud procurou sempre uma nova linguagem para o seu teatro, uma linguagem que não tivesse aparência de ficção, que fosse viva. Neste sentido, Wittgenstein emerge nesta relação através das suas considerações acerca da linguagem, espraiando-‐se num sentido mais amplo, a própria vida. Partimos da análise do próprio pensar para a origem e finalidade da criação artística. Na apologia da apresentação em detrimento da representação as palavras parecem ser insuficientes e parte-‐se na busca de uma linguagem sólida, física, que culmina no corpo-‐sem-‐órgãos, conceito desenvolvido por Deleuze. Do corpo liberto, em acção, surge-‐nos agora a palavra-‐sem-‐órgãos, pautada por uma revolução da sintaxe e da gramática; é a linguagem mutável e viva que renasce. Através de Wittgenstein procura-‐se o sentido desta linguagem e a sua receptividade. É nesta íntima relação entre a ética e a estética, na lucidez, na determinação e no rigor com que ambos os autores abordam a linguagem enquanto vida, que vemos espelhada a crueldade, essa força inelutável de viver sempre mais.
[ABSTRACT]
KEYWORDS: Artaud, action, body, fragmentation, language, Wittgenstein, theatre.
With this dissertation we start from a chronological evolution of Artaud’s thought highlighting the unique relationship between the author and his work as one and the same. Artaud always sought a new language for his theatre; a language that has no semblance of fiction, it is instead alive. In this sense, Wittgenstein emerges in this relationship through his considerations about language scattering, in a broader sense, in life itself. We start from the analysis of thinking itself to the origin and purpose of the artistic creation. From the apology of presentation in detriment of representation the words seem to be inadequate and we search for a solid language, a physical one, culminating in the body-‐without-‐organs, a concept developed by Deleuze. From the freed body, in action, it comes now the word-‐without-‐organs, marked by a revolution of syntax and grammar; it is the mutable and living language that is reborn. Through Wittgenstein we look for the meaning of this language and its receptivity. It is in this close relationship between ethics and aesthetics, in the clarity, assertiveness and the rigor with which both authors address the language while life itself that we see mirrored cruelty, this inescapable force to live forever more.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ...1
Capítulo I: Pensamento e Expressão...4
I.1. Artaud e a incerteza do pensamento...7
I.2. Wittgenstein e a procura da expressão... 11
Capítulo II: Crueldade e Exteriorização... 18
II.1. Artaud e o corpo... 21
II.2. Wittgenstein e o inexprimível ... 28
CAPÍTULO III: Linguagem e Fragmentação... 34
III.1. Artaud e a linguagem primitiva ... 36
III.2. Wittgenstein e o som inarticulado ... 41
CONCLUSÃO ... 45
BIBLIOGRAFIA... 49
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INTRODUÇÃO
O tema central deste estudo prende-‐se com um principio fundamental necessário à filosofia e ao teatro, confrontando para tal um filósofo, Wittgenstein, e um escritor-‐poeta-‐actor, Artaud. Este principio fundamental está relacionado com o “estar vivo” e a forma como esse existir, esse estar vivo, é transversal ao pensamento dos dois autores. Wittgenstein dedica-‐se exaustivamente à linguagem e tal pode ser visto como uma forma de crueldade pois, mesmo sabendo que a linguagem nunca poderá ser analisada ou mesmo descoberta, é inevitável tentar descrever ou esclarecer os seus contornos. Esta determinação de avançar, de elucidar, de viver e de procurar ver o mundo da perspectiva correcta constitui a crueldade.
Este trabalho encontra-‐se dividido em três partes. A primeira parte explora a dimensão poética não só de Artaud mas também de Wittgenstein e a luta de ambos pela passagem do pensamento à linguagem. Com efeito, perante a dificuldade em encontrar a expressão adequada, Artaud põe mesmo em causa os seus pensamentos. Esta inquietação encontra-‐se presente nas cartas trocadas com Jacques Rivière, director da Nouvelle Revue Française e que ocuparam toda esta primeira parte. Foi, com efeito, Jacques Rivière quem, após ter recusado a publicação dos poemas escritos por Artaud, decide publicar as cartas que os dois trocaram. Este simples acto coloca questões ao nível da finalidade da arte e o porquê de colocar a própria vida no plano literário. Esta questão é também colocada por Wittgenstein ao acreditar que fazer algo com uma finalidade é retirar-‐lhe vida. Ainda nesta primeira parte está patente a importância da transformação do olhar. O mundo mantêm-‐se e a nossa perspectiva muda; a arte obriga-‐nos a ver o mundo da perspectiva correcta. Terminamos esta parte inicial com uma alusão à apresentação da realidade em detrimento da representação desta.
A segunda parte leva-‐nos ao teatro, um teatro como apresentação. Na relação do teatro com a peste percebemos como o teatro nasce directamente da vida, nessa mudança de olhar, e como a vida surge no teatro sem ser por imitação ou representação. O teatro emerge como uma epidemia, revelando a crueldade latente na vida. A noção de revelação transporta-‐nos até Wittgenstein através da relação
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entre a ética e a estética constituindo algo que não pode ser exprimido. Os dois autores aqui em estudo encontram-‐se nos pensamentos que têm acerca daquilo que não consegue ser dito. A insuficiência das palavras começa, a partir deste momento, a ter cada vez maior preponderância nos objectivos de Artaud para um teatro vivo. A obra O Teatro e o seu Duplo encontra-‐se já pejada de referências a outros usos em palco para além da palavra, lembrando-‐nos da música, da dança, do cenário... mas a sua ferramenta predilecta será, sem dúvida, o corpo. O corpo passa também a ser encarado como uma linguagem autónoma e, para que esta seja inteiramente livre, terá que estar isento dos seus órgãos. É o corpo-‐sem-‐órgãos que está já no pensamento de Artaud em O Teatro e o seu Duplo mas que este amplia na sua última obra Para acabar de vez com o juízo de Deus. Para desenvolver a noção de corpo sem órgãos importa trazer para esta reflexão alguns dos pensamentos de Deleuze.
O corpo-‐sem-‐órgãos é encarado, numa primeira fase, do ponto de vista da desconstrução do corpo físico, separando-‐o do seu organismo, e numa segunda fase, do ponto de vista da palavra em que esta se torna fisicalidade e acção. Para Artaud, tudo é vivo, o actor chega a ser um atleta do coração, fazendo nascer, através do seu corpo, do esforço e da respiração, um sentimento que ele não tinha e só assim a vida pode acontecer no teatro. Este momento traz-‐nos até Wittgenstein e ao corpo como a melhor imagem da alma introduzindo desta forma o inexprimível. Wittgenstein reconhece os limites da linguagem e que as palavras também mascaram o pensamento. Wittgenstein, tal como Artaud, considera que no principio está a acção e não o verbo. A linguagem é uma aprendizagem e no teatro é importante não esquecer os impulsos primitivos pois só assim cada criação é única como cada vida é única. No entanto, como poderemos comunicar pensamentos ou sentimentos sem recorrer a palavras? Como é que eu poderei expressar a minha dor? Será a minha dor igual à de outrem?
Estas questões levam-‐nos invariavelmente a um limite, ao ponto em que apenas sai “um som inarticulado”. Esta dificuldade conduz-‐nos então à terceira e última parte desta dissertação, relacionada com a fragmentação da linguagem. Com efeito, tanto Artaud como Wittgenstein começam a reconhecer a inevitabilidade da palavra plástica, fragmentada, agramatical, que surge como um grito ou um sopro pois
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a palavra como a conhecemos só serve para entravar o pensamento. Esta linguagem fragmentada encontra-‐se nas cartas que Artaud escreve durante o seu internamento em Rodez e que culminam na criação da sua última obra. Nesta última parte coloca-‐se a questão da eficácia deste tipo de linguagem fragmentada e qual o seu sentido ou ausência do mesmo. Se conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida, como entende Wittgenstein, esta não poderá ser concebida sem crueldade.
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CAPÍTULO I: PENSAMENTO E EXPRESSÃO
“Acredita que possamos reconhecer menos autenticidade literária e de poder de acção num poema defeituoso mas semeado de belezas fortes do que num poema perfeito mas sem grande eco interior?”1
A 1 de Maio de 1923 Jacques Rivière envia uma carta a Antonin Artaud dizendo-‐ lhe que não poderia publicar os seus poemas na Nouvelle Revue Française mas que ficara interessado em conhecê-‐lo. Artaud tinha então 27 anos. Depois de se terem encontrado pessoalmente a 5 de Junho, Artaud e Rivière iniciam uma correspondência que terminaria um ano depois, a 8 de Junho de 1924.
Estes poemas são, na verdade, as primeiras produções literárias de Artaud e a receptividade dos mesmos junto do leitor parece ser importante para ele, que fala mesmo da sua “receptividade absoluta”, da sua “existência literária”.2 Por este motivo, perante a recusa da sua publicação por parte de Rivière, confirmando assim a sua inexistência literária, Artaud inicia toda uma exposição que vai para além do próprio pensar poético. Artaud diz sofrer de uma terrível doença do espírito em que o seu pensamento o abandona: “É todo o problema do [s]eu pensamento que está em jogo” e é urgente saber se “te[m] ou não direito a continuar a pensar”.3 Logo na primeira carta ficam então patentes algumas das inquietações que acabarão por ser transversais a toda a criação literária de Artaud e que viriam a terminar em 1948 com a sua morte.
Rivière, em resposta a esta carta de Artaud e reconhecendo o seu talento, tenta tranquilizá-‐lo dizendo-‐lhe que as “imprudências e sobretudo estranhamentos desconcertantes” que se encontram nos seus poemas correspondem mais a uma procura que a uma falta de controlo do pensamento. Diz-‐lhe ainda que se proceder à
1 Cf. ARTAUD Antonin, L’ombilic des Limbes, Gallimard, Paris, 2007, p. 21. Doravante OL. Primeira carta
de Artaud a Rivière de 5 de Junho de 1923.
2 Cf. OL, p. 20. 3 Cf. OL, p. 21.
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“eliminação das imagens e dos traços divergentes, conseguirá escrever poemas perfeitamente coerentes e harmoniosos”.4 Rivière não parece conseguir perceber que
o que preocupa Artaud não é a harmonia dos seus poemas, já que “a literatura propriamente dita interessa-‐[lhe] pouco”;5 é o próprio que o escreve numa carta
propositadamente bem redigida a Rivière como que a provar-‐lhe que ele sabe efectivamente escrever segundo os cânones da sua época.6 A questão está em saber se, pela substância do pensamento, ele terá ou não direito a continuar a pensar.7 Se
os seus poemas não têm direito a existir é porque Artuad não pensa, porque o pensamento o abandonou. Só a sua publicação justificaria a sua existência e a do seu pensamento. É toda a questão do pensamento e da sua expressão, da sua existência, que aqui parece estar em jogo. Artaud persegue constantemente o seu “ser intelectual”,8 digladia-‐se com a passagem do simples pensamento à sua materialização em palavras.
Um ano antes da publicação desta correspondência, Wittgenstein publica o seu Tratado Lógico-‐Filosófico (1922). Contudo, Wittgenstein é raramente colocado ao lado de Artaud. Afinal, que relação podemos encontrar entre ambos? Se, por um lado, o primeiro escreve sem cessar sobre o que o atormenta,9 o segundo, parece procurar incessantemente a clareza necessária e a melhor maneira de exprimir tudo aquilo que pode ser dito, acabando por encontrar o silêncio no demais.10 Porque é que parece
então enriquecedor cruzar este filósofo e este escritor-‐poeta-‐actor? Falamos, antes de mais, de dois autores que recusaram a identificação com o seu tempo, tempo este onde ambos foram mal compreendidos. Wittgenstein parece sugerir que devemos ultrapassar os confins do dizível e até da nossa própria compreensão lógica do mundo
4 OL, p. 23. 5 OL, p. 37.
6 Cf. OL, p. 36. Carta de 7 Maio de 1924: “[...] vous adresser ce mince billet qui est clair à défaut d’être
bien écrit”.
7 Cf. OL, pp. 21-‐22. 8 OL, p. 20.
9 Cf. OL, pp. 27-‐28: “Eh bien! C’est ma faiblesse à moi et mon absurdité de vouloir écrire à tout prix, et
m’exprimer.”
10 WITTGENSTEIN, Ludwig, Tratado Lógico–Filosófico e Investigações Filosóficas, trad. M. S. Lourenço,
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e, neste sentido, não poderia estar mais de acordo com Artaud.11
Artaud, quando escreve sobre os seus pensamentos parece-‐nos muitas vezes filósofo e Wittgenstein, ao fazer o mesmo, parece-‐nos muitas vezes poeta. Apesar de se assumir como filósofo é inequívoca a disposição poética de Wittgenstein,12 basta mesmo ler a forma como escreve, com as suas proposições que poderiam bem ser versos. Contudo, o que este escreve é filosofia, ainda que acredite que “[a] apresentação da filosofia pode apenas ser poetizada”.13 Poderíamos agora relacionar
Wittgenstein com inúmeros poetas, porquê então Artaud? Se é verdade que a poiesis diz respeito a uma actividade que pressupõe este trabalho na e sobre a linguagem, esta necessita também de uma metodologia e disciplina de observação, condição essencial à filosofia.14 Wittgenstein dedica-‐se exaustivamente à linguagem que, numa primeira aproximação, parece apenas dar atenção à lógica ou à gramática mas acabando por envolver o Mundo, o Homem, Deus ou a Arte. E ambos estão envolvidos nesta luta constante com a linguagem, pontuada por um rigor, uma disciplina de observação.
Neste capítulo pretende-‐se, assim, averiguar de que forma o pensamento e a expressão e, por sua vez, a poesia e a filosofia se parecem cruzar em ambos os autores. Afinal, diz-‐nos Wittgenstein que “[a] arte é uma expressão” e “[a] boa obra de arte é a expressão consumada.”15
11 Cf. FOX-‐MURATON, 2006, pp. 49-‐60.
12 Cf. CRESPO, 2011, p. 356. Fala-‐se de uma disposição poética do pensamento de Wittgenstein por
oposição a uma realização poética.
13 Observação do MS 115, p. 30, cit. apud VENTURINHA, 2011, p. 13. 14 Cf. CRESPO, 2011, p. 354-‐355.
15 WITTGENSTEIN, Ludwig, Cadernos 1914-‐1916, trad. João Tiago Proença, Edições 70, Lisboa, 2004. p.
7 I.1. Artaud e a incerteza do pensamento
Na perseguição constante pelo seu “ser intelectual”, Artaud diz-‐nos que os desvios que encontramos nos seus poemas provêm de uma incerteza profunda do seu pensamento, ficando mesmo feliz quando “esta incerteza não é substituída pela inexistência absoluta”.16 Temendo desde logo o equívoco, Artaud salienta que tal nada tem a ver com essa existência a que se poderia chamar de inspiração mas de uma ausência total, de uma verdadeira perda. É Maurice Blanchot quem, num capitulo dedicado a Artaud no Livro por Vir, nos lembra deste perigo e em como “seria tentador aproximar aquilo que nos diz Artaud do que nos dizem Hölderlin ou Mallarmé: que a inspiração é primeiramente o ponto em que ela falta”.17 Tal afirmação detém,
contudo, um carácter demasiado geral e Artaud, como nos lembra Blanchot, é único, como cada poeta é único.
O que é afinal esta ausência? A dispersão e os defeitos de forma dos seus poemas deverão ser entendidos, diz-‐nos Artaud, como o resultado de um “colapso central da alma, uma espécie de erosão, ao mesmo tempo essencial e fugaz, do pensamento”.18 Ausência, perda e erosão definem, com efeito, o seu pensamento. Deleuze, no seu livro Lógica do Sentido (Logique du Sens), refere esta mesma passagem de Artaud, alegando que quando este nos fala desta erosão do pensamento é já do “fundo da esquizofrenia”.19 Acrescenta ainda que um pouco de loucura é necessário mas apenas o suficiente para alargar a fenda, não demasiado para não a aprofundar irremediavelmente. Faço então minhas as interrogações de Deleuze: “Na verdade, como é que podemos ficar à superfície sem permanecer na margem? Como se salvar salvando a superfície, e toda a organização de superfície, onde se inclui a linguagem e a vida?”20
No entender de Deleuze, parece não haver salvação possível para Artaud,
16 OL, p. 20. 17 BLANCHOT, 2005, p. 55. 18 Cf. OL, p. 25. 19 Cf. DELEUZE, 1969, p. 184. 20 Ibid.
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levando a sua linguagem e a sua vida para uma profundidade que começava já a ser visível nas cartas a Rivière e de onde é impossível regressar.21 Mas Artaud sabe-‐o bem,
é ele quem diz “estou abaixo de mim mesmo, sei-‐o, sofro”, sente este desvio e aceita-‐o como uma incerteza do seu pensamento.22 Com efeito, logo de seguida, Artaud diz ainda haver qualquer coisa que destrói o seu pensamento, que não o impede se ser, mas que o deixa em suspenso.
Mais tarde, no prefácio ao livro O Umbigo dos Limbos (L’Ombilic des Limbes), é Artaud quem o diz: “Este livro coloco-‐o em suspensão na vida”, que seja o reflexo “do meu eu a vir”.23 Não se poderia esperar outra coisa de alguém cuja vida e obra são uma e a mesma coisa, de alguém que nos diz que “onde os outros propõem obras eu não pretendo outra coisa se não mostrar o meu espírito” e, como tal, não consegue conceber uma obra separada da vida.24 Assim, se a sua obra é ele a vir, a existência da mesma pressupõe a existência do seu autor.
Artaud tenta esclarecer os mal-‐entendidos que chegam a Rivière dizendo-‐lhe que, apesar da coesão necessária à verdadeira criação, “este homem [Artaud], no entanto, existe. Queremos nós condená-‐lo ao nada sob o pretexto de que ele não pode dar mais do que fragmentos dele mesmo?”25 A criação, os poemas de Artaud, surgem apesar do nada e não devido ao nada. Artaud chama-‐lhe “impoder”,26 este “ponto em que pensar já é sempre não poder ainda pensar”, como nos diz Blanchot, pois Artaud sabe que pensar não é ter pensamentos e que os pensamentos que tem fazem-‐no somente sentir que ainda não começou a pensar.27
Já Derrida, num capítulo dedicado a Artaud, “La parole soufflée” (A palavra soprada), diz-‐nos que este “impoder” não é a simples impotência, a esterilidade do
21 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig, Cultura e Valor, trad. Jorge Mendes, Edições 70, Lisboa, 1996, p. 67.
Doravante CV. Veja-‐se a referência ao pensar de profundidade e de superfície: “Tal como há uma diferença entre o sono profundo e o sono pouco profundo, há pensamentos que ocorrem a uma grande profundidade e pensamentos que se agitam perto da superfície.”
22 Cf. OL, p. 20: “Ces tournures, ces expressions mal venues que vous me reprochez, je les ai senties et
acceptées. (...) Elles proviennent de l’incertitude profonde de ma pensée.”
23 Cf. OL, p. 51. 24 Cf. Ibid. 25 Cf. OL, p. 39.
26 Cf. OL, p. 97: “Un impouvoir à cristalliser inconsciemment, le point rompu de l’automatisme à quelque
degré que ce soit.”
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nada dizer, ou falta de inspiração; pelo contrário, é a própria inspiração, essa força de um vazio. A generosidade da inspiração, acrescenta, é a “erupção positiva de uma palavra que não sei de onde vem”. O “impoder” não é, por conseguinte, “a ausência mas a irresponsabilidade radical da palavra, irresponsabilidade como potência e origem da palavra”.28
A palavra irrompe sem aviso desse vazio e a força desse irromper é uma perda total. O que está aqui subjacente neste “impoder” é um movimento constante, uma suspensão que desencadeia um movimento. Por isso é talvez tentador assumirmos a tese de Mallarmé (como nos adverte desde logo Blanchot) pois a inspiração não surge no momento em que o poder falta; é antes um vazio que origina um movimento, não é estanque. Artaud refere-‐se a uma doença que é como um “veneno do Ser”, uma paralisia, algo que lhe retira a palavra, que lhe “desenraíza o pensamento”.29 Na palavra desenraizar está patente este movimento de arrancar, de lhe roubar a palavra, perpetuando um combate que é o grito da vida. Não será também isto o que José Gil tão claramente reconhece no corpo do bailarino?
“O bailarino retoma o seu corpo nesse momento preciso em que perde o seu equilíbrio e se arrisca a cair no vazio. Luta, jogando tudo por tudo: está em jogo a sua vida, a sua liberdade de bailarino, a sua luz. Faz apelo ao movimento, que proporcionará claridade e estabilidade à sua extrema agitação interior. Por meio de movimento domará o movimento: com um gesto libertará a velocidade que arrebatará o seu corpo traçando uma forma de espaço. Uma forma de espaço-‐corpo efémero, por cima do abismo.”30
Rivière responde a Artaud que o homem que pensa gasta-‐se até ao limite pois “não há nenhum outro resultado para o puro pensamento que a morte”.31 Mas em
toda a sua poesia, Artaud não fala de um puro pensamento; ele desejaria antes
28 Cf. DERRIDA, 1967, p. 263. 29 OL, p. 40.
30 GIL, 2001, p. 14. 31 OL, p. 32.
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ausentar-‐se do seu pensamento para assim poder pensar. Rivière encara esta ausência de pensamento como uma destruição do mesmo provocada pela demasiada liberdade conferida ao espírito. Alega ainda que o espírito precisa de um caminho, o da experiência, naturalmente, e teme pela sanidade de Artaud dizendo-‐lhe que “o único remédio para a loucura é a inocência dos feitos”.32
Artaud não conseguiria conceber uma poesia desligada da vida, harmoniosa mas que nada diga ao espírito. Esta ausência de pensamento a que se refere Artaud não é desligada da vida ou resultado de um estado psicológico, como Rivière parece invocar; é, antes, um combate, uma ausência activa. Trata-‐se de um pensar articulado com o espírito e com a vida e não apenas centrado no próprio pensamento. Por isso Artaud deseja ausentar-‐se do pensamento para poder então sentir e finalmente escrever. Blanchot diz-‐nos que tal se deve ao facto de que “o que há a pensar é no pensamento o que se desvia dele” e, na tentativa de procurar este pensamento, incorremos necessariamente num sofrimento, numa dor do pensamento. Neste sentido, Blanchot pergunta-‐se se pensar não é precisamente sofrer33 – “o pobre Sr. Artaud” que Derrida anuncia talvez até com uma certa ironia.34
Rivière, na sua última carta, fica-‐se por reflexões psicológicas acerca de “uma alma psicologicamente violada”, citando Artaud. Diz ele que deveríamos não nos poder mexer, nem esperar, nem acreditar, para constatar, acrescentando que esta deverá ser a consolação daqueles que experienciam por breves momentos a morte, os únicos a saber um pouco como é que a vida é feita. Rivière parece querer dizer que a única maneira possível de pensar a ausência do pensamento será, precisamente, ficando privado do mesmo. Por isso, acrescenta que o “estado normal” pode ser precário e a plenitude só é negada àqueles que tomam o gosto por morrer.35
Rivière parece sentir que está na presença de algo que ele próprio não consegue entender e sugere, em lugar de publicar os poemas de Artaud, publicar antes as cartas que têm vindo a trocar.36 Estas deveriam ser publicadas juntamente com um
32 OL, p. 33.
33 Cf. BLANCHOT, 2005, p. 56. 34 Cf. DERRIDA, 1967, p. 255. 35 Cf. OL, pp. 45-‐47.
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excerto dos poemas de Artaud e os autores teriam nomes fictícios, como se de um romance se tratasse. Perante esta proposta Artaud pergunta a Rivière: “Porquê colocar no plano literário uma coisa que é o próprio grito da vida?”.37 Se os poemas de Artaud
pareciam até agora insuficientes, acompanhados da “narrativa da experiência da sua insuficiência” tornam-‐se subitamente valiosos.38 Rivière não parece perceber que a poesia, como arte, deve ser esta aventura da desapropriação, de um apagamento, pois é isenta de um discurso. Tentar procurar a sua origem e os seus contornos só lhe poderá destituir valor. Artaud parece ficar, no entanto, bastante agradado com esta ideia, mas não dá nem por isso tréguas a Rivière insistindo que não pretende falsear a realidade: “Porquê dar uma aparência de ficção àquilo que é feito da substância inerradicável da alma, que é como a reivindicação da realidade?”39
I.2. Wittgenstein e a procura da expressão
Wittgenstein, assim como Artaud, mostra-‐nos, de uma forma muito humana, a sua dificuldade em organizar os pensamentos, a incerteza do valor dos mesmos e o esforço constante na construção de um pensamento, feito de avanços e recuos. Tal é notório no passo seguinte: “Penso de facto com a minha caneta, pois é frequente que a minha cabeça nada saiba sobre o que a minha mão está a escrever”.40 Aqui Wittgenstein lembra-‐nos a erosão do pensamento de que escreve Artaud e de onde apenas consegue recuperar fragmentos dele mesmo. Tal como para Artaud, também para Wittgenstein “forçar os [seus] pensamentos a uma sequência ordenada é para [ele] um tormento”.41 Artaud diz-‐nos, na sua correspondência, estar abaixo dele mesmo e também Wittgenstein nos diz que nunca conseguiu expressar
vous m’avez écrites? Je viens de lire encore celle du 29 janvier, elle est tout à fait remarquable.” 37 OL, p. 38.
38 Cf. BLANCHOT, 2005, p. 47.
39 Cf. OL, p. 38. Carta de 25 de Maio de 1924. É interessante salientar que, aquando da publicação destas
mesmas cartas na Nouvelle Revue Francaise, com o título Une correspondance, o nome Antonin Artaud aparece no final de cada carta. O mesmo não acontece com Jacques Rivière onde apenas aparecem as suas iniciais, JR.
40 CV, p. 34. 41 Cf. CV, p. 49.
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completamente o que gostaria, acrescentando que, muitas vezes, “a [sua] escrita não é mais do que uma gaguez”.42
Wittgenstein tropeça constantemente neste limite da linguagem, soluça na tentativa de ver tudo, de esclarecer tudo. Vai avançando devagar e recusa-‐se a substituir apressadamente uma expressão incorrecta por uma aparentemente exacta pois sabe que “ao fazê-‐lo mata a sua ideia original que, pelo menos, era ainda um rebento vivo.”43 Por este motivo, Wittgenstein hesita constantemente na publicação
do seu segundo livro, tendo-‐se ficado apenas pela publicação do Tratado, deixando claro que, mesmo este, é apenas para alguns. Diz-‐nos Wittgenstein, no prólogo às Investigações, que se ficou somente por observações porque os seus pensamentos bloqueavam sempre que os compelia a seguir um certo rumo.44 Isto lembra-‐nos de Artaud e do “impoder” que lhe cristaliza os pensamentos. No entanto, para Artaud a questão da publicação dos seus poemas torna-‐se vital já que o seu interesse nem é tanto literário.
Artaud não escreve os seus poemas com o objectivo de serem harmoniosos, de despertarem determinados sentimentos, mas sim visando mostrar quem ele é, com toda a sua incerteza de pensamento. O facto de estes poemas serem publicados juntamente com o testemunho da criação dos mesmos acaba por lhes retirar o seu valor. Hoje, é mais fácil admirarmos as cartas que Artaud nos deixou do que os próprios poemas. Wittgenstein, despertando para uma ideia de desinteresse, diz-‐nos que a “obra de arte não tem como finalidade comunicar outra coisa excepto ela própria”, acrescentando ainda que seria despropositado pensar que o artista tem a pretensão de que os outros sintam o mesmo que ele sentiu ao criar determinada obra até porque para aquele que leu o poema não lhe interessa saber o que é que o artista sentiu ao escrevê-‐lo mas sim o que é que ele sente.45 Noutra passagem, escrita pela
mesma altura e a propósito da finalidade das suas Investigações, diz-‐nos ele que estas não foram feitas tendo em vista um fim, levando-‐o a perguntar-‐se se tal seria um caso
42 Cf. CV, p. 36. 43 Cf. CV, p. 116. 44 Cf. IF, Prólogo. 45 CV, p. 90.
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de “l’art pour l’art”.46 Para Artaud esta questão resume-‐se da seguinte maneira:
“Shakespeare, inclusivamente, é responsável por esta aberração e decadência, esta noção desinteressada de teatro, que pretende que uma realização teatral deixe o público intacto [...] Se Shakespeare e os imitadores que o seguiram nos insinuaram, a pouco e pouco, a ideia de arte pela arte, em que a arte fica dum lado e a vida do outro, apenas nos poderemos apoiar nesta ideia tão débil quanto inactiva, enquanto a vida exterior o permitir.”47
Parece evidente que tanto Wittgenstein como Artaud acreditam que apenas quando as coisas nos surgem a partir da vida poderemos encontrar a filosofia e a arte. Fazer algo com um propósito é perpetuar uma actividade neutra ao espírito que nada cria e nada produz; é permitir que se continue agarrado à veneração do que já foi feito e que nos petrifica, impedindo-‐nos de estabelecer contacto com esse poder subjacente, essa força vital. Afinal, “sob a poesia dos textos há a poesia simplesmente, sem forma e sem texto”.48 Oscar Wilde, no Declínio da Mentira, também não poupa
criticas a Shakespeare dizendo que, “já em Shakespeare se pode ver o começo do fim” pois tem a presunção de se dirigir objectivamente à vida, utilizando, para tal, uma linguagem forçada.49 Wittgenstein, em Cultura e Valor, tem também inúmeras
passagens onde hesita na sua opinião relativamente a Shakespeare.50 Contudo, não se
poderá pensar que Artaud renega completamente os escritos de Shakespeare, acabando por tê-‐lo sempre presente. No “Manifesto da Crueldadade”, onde Artaud expõe o seu ideal de teatro, ele confessa que pretende adaptar uma peça contemporânea de Shakespeare ou mesmo uma peça apócrifa sua como Arden of
46 Observação do MS 134 pp. 154-‐155, cit. apud. VENTURINHA, 2011, p. 12.
47 ARTAUD, Antonin, O teatro e o seu Duplo, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, Fenda, Lisboa, 2006, p. 84.
Doravante TSD.
48 Ibid., p. 85.
49 Cf. WILDE, 2006, p. 30.
50 Cf. CV, p. 76: “Quando, por exemplo, ouço a expressão da admiração por Shakespeare de homens
distintos ao longo de vários séculos, nunca consigo libertar-‐me da suspeita de que enaltecê-‐lo tem sido algo de convencional”; p. 77: “As comparações de Shakespeare são, no sentido vulgar, más. [...] Talvez a sua sonoridade, por exemplo, lhes confira plausibilidade e verdade”; p. 123: “Não acredito que Shakespeare se possa pôr a par de qualquer outro poeta. Não será ele, mais do que poeta, um criador
de linguagem?”; “Não é como se Shakespeare retratasse bem tipos humanos e fosse, no que a tal
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Feversham, deixando todavia a ressalva que tal deverá ser feito “sem termos o texto em conta”.51
Ainda a este respeito encontramos uma passagem de uma conversa entre Wittgenstein e Engelmann em que o segundo lhe fala de uns manuscritos seus que reencontrou e que, por lhe parecerem tão bons, acredita que seria interessante dar a conhecê-‐los. No entanto, assim que considera publicá-‐los, estes perdem subitamente o interesse. Wittgenstein responde-‐lhe que tal seria como ver um actor em palco antes de a peça começar a fazer as coisas mais banais tais como caminhar ou fumar. Isso colocar-‐nos-‐ia perante um ser humano de uma forma que nunca nos podemos ver; mais interessante que o teatro seria a própria vida a acontecer “mas só o artista é capaz de apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos apareça como uma obra de arte” pois “a obra de arte obriga-‐nos – por assim dizer – a vê-‐la da perspectiva correcta; mas na ausência da arte, o objecto é apenas um fragmento da natureza”.52 É o nosso olhar que se transforma perante a vida de todos os dias, retirando-‐a da indiferença habitual para então começarmos a ver. Desta forma, a coisa mais vulgar pode possuir um aspecto estético. Não está aqui em questão a transformação do mundo mas sim a transformação do olhar.53 “Nenhum grande artista alguma vez vê as coisas como elas são. Se o fizesse deixaria de ser artista”.54
Wittgenstein faz, em Cultura e Valor, referência a um véu numa passagem escrita em 1930 e onde diz o seguinte: “As coisas estão mesmo à frente dos nossos olhos, nenhum véu as cobre. Aqui se separam a religião e a arte.”55 A religião como o
que não se vê, como aquilo em que se pode apenas acreditar. Pelo contrário, a arte está mesmo à nossa frente, é apenas o nosso olhar perante o quotidiano que tem que mudar; não há nada oculto. Esta forma de ver o mundo, deixando-‐o intacto, tal como ele é, é o mundo visto sub specie aeterni, como nos diz Wittgenstein,56 embora ele nos 51 Cf. TSD, p. 110. 52 Cf. CV, pp. 17-‐18. 53 Cf. CRESPO, 2011, p. 257. 54 WILDE, 2006, p. 45. 55 CV, p. 19.
56 Cf. Cadernos, p. 123. A visão do mundo do ponto de vista da eternidade aparece pela primeira vez nos
cadernos de guerra a 7 de Outubro de 1916 onde se pode ler o seguinte: “A obra de arte é o objecto visto sub specie aeternitatis; e a vida boa é o mundo visto sub specie aeternitatis. Tal é a conexão entre arte e ética.”
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diga também que há outra forma de apreender o mundo sub specie aeterni: “É o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo e o deixa tal como é – observando-‐o de cima, em voo”.57 Diz-‐nos Nuno Venturinha que Wittgenstein
procura “uma apresentação da realidade, por contraposição a uma qualquer representação desta [...] [fazendo] com que o nosso pensamento deixe ver aquilo que directamente não conseguimos ver, pensando como pensamos, em pedaços da experiência que envolvem tudo.” Não é, portanto, “uma visão sobre as coisas, ela é a visão entrelaçada que importa ter das coisas, reconhecendo como somos, uma verdadeira ‘visão sinóptica’”.58
É Herberto Helder quem, no seu poema “A paisagem é um ponto de vista”, nos diz que a melhor forma de contemplar a natureza é de cima e, por conseguinte, “talvez a forma eleitamente apocalíptica e luminosa de escrutar a poesia seja de helicóptero.”59 Esta procura por um ponto de vista que permita ver claramente e até pela sua relação panorâmica lembra-‐nos a apresentação sinóptica de Wittgenstein: “A representação panorâmica facilita a compreensão, a qual de facto consiste em ‘vermos as conexões’”; diz-‐nos ainda que “uma das fontes principais de incompreensão reside no facto de não termos uma visão panorâmica do uso das nossas palavras”.60 Tal é, no entanto, uma demanda impossível pois não conseguiríamos nunca abarcar todas as conexões, da mesma forma que nunca conseguiríamos abarcar todo o mundo. Por esse motivo, Wittgenstein começa a reconhecer que esta visão cimeira não lhe interessa tanto pois está em causa um olhar afastado do mundo, o qual pretere a favor da visão daquele que faz parte do mundo, de uma “visão entrelaçada” do mundo. Trata-‐se de “uma visão abrangente do mundo que não seja estática, externalista, mas sim dinâmica, inclusa.”61 Tal é notório na reformulação da conhecida metáfora tractariana da escada:
57 CV, p. 18.
58 Cf. VENTURINHA, 2010, p. 340.
59 Cf. HELDER, 2006, p. 58. Este poema, hoje inserido no livro Photomaton & Vox, foi editado pela
primeira vez em 1976, sem título e sem indicação do nome do autor, como introdução a uma antologia literária: Nova. Magazine de poesia e desenho, Inverno de 1975/1976.
60 Cf. IF, 122.
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“Poderia dizer: se o lugar a que pretendo chegar só se pudesse alcançar por meio de uma escada, desistiria de tentar lá chegar. Pois o lugar a que de facto tenho de chegar é o lugar em que me devo encontrar. Tudo aquilo que se pode alcançar com uma escada não me interessa.”62
Num outro poema de Herberto Helder, “Galinholas”, encontramos igualmente uma alusão singular às escadas:
“Há mesmo uma suspeita de tratar-‐se de uma escada esquisita, uma escada apenas para subir.
Mas dantes havia a moral, dizem eles. Havia a moral de subir para ir ao terraço. Depois via-‐se a paisagem.
E era bonito?
Sim, havia metafísica, política e filosofia para ver.”63
Pensamos que a escada nos leva sempre a algum lado mas no cimo desta escada já não há nada. Onde antes existiam matérias elevadas há agora o vazio; as escadas já não significam o que antes significavam, existe apenas o “transe do silêncio”.64
Para Helder, a poesia, representada pelo helicóptero, é um exercício da verticalidade que se opõe à horizontalidade de quem anda, por exemplo, de bicicleta, dos que se limitam a observar a natureza. A poesia procura ir sempre mais além, explorando todos os limites, por isso “a natureza começou a desavir-‐se dentro da arte; e então a arte obrigou-‐se à expulsão da natureza”.65 É Oscar Wilde que Herberto
Helder menciona quando este se opõe à definição aristotélica de que a “arte imita a natureza” anunciando que, afinal, a “natureza pôs-‐se então a imitar a arte”.66 Aqui
está em jogo uma oposição entre a ciência e a arte numa época de degeneração 62 CV, p. 21. 63 HELDER, 2006, p. 116 64 Ibid., p. 117. 65 HELDER, 2006, p. 58. 66 Ibid.
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cultural em que a arte perdeu o seu poder criativo e imaginativo para se entregar à imitação. “O homem – e talvez os povos – para admirar, têm de despertar. A ciência é uma maneira de o voltar a fazer adormecer.”67 Helder e Wilde foram criadores que
encontraram obstáculos na sua época, escolas ou correntes que amarraram a sua poesia. Também Wittgenstein não se identifica com o filosofar do seu tempo e aspira à poesia. Artaud, não se identifica com o teatro seu contemporâneo e reclama um teatro da crueldade, um teatro que diga respeito à ou que seja vida:
“A energia da vida, como lhe chamaria Aristóteles – é simplesmente o desejo de expressão, e a Arte está continuamente a apresentar várias formas através das quais uma tal expressão pode ser conseguida. A vida apossa-‐se delas e usa-‐as”.68
A natureza já é ela arte e o “despertar” de que nos fala Wittgenstein é também para o quotidiano, para as coisas que, por estarem sempre à nossa frente se tornam imperceptíveis. “Este despertar do espírito dos homens é assinalado pelo facto de as coisas se tornarem misteriosas.”69 A obra de arte, mesmo não sendo a representação do mundo, pode ser uma “expressão completa”, e a “boa obra de arte”, mesmo continuando sem sentido, por não poder ser escrutinada plenamente, ilustra algo sobre o Homem.70
67 CV, p. 19.
68 WILDE, 2006, p. 41. 69 Cf. CRESPO, 2011, p. 351. 70 Ibid., p. 232.