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A produção e programação audiovisual pelo exército português no contexto das guerras coloniais (1965-1973). A imagem como elemento difusor e construtor de um regime politico-colonial

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Tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação

Julho de 2019

Ed u ar d o A n n io C T M ar ga ri d o A p rod u ção e p rogr am ação au d iovi su al p el o Exér ci to Por tu gu ês (19 65 -19 73 ) 20 19 - encad erna çã o t ér m ica -

A PRODUÇÃO E PROGRAMAÇÃO AUDIOVISUAL PELO

EXÉRCITO PORTUGUÊS NO CONTEXTO DAS GUERRAS

COLONIAIS

(1965-1973)

A IMAGEM COMO ELEMENTO DIFUSOR E

CONSTRUTOR DE UM REGIME POLÍTICO-COLONIAL

Eduardo António da Costa Teixeira Margarido

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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Comunicação, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor Jorge Martins Rosa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e sob a coorientação científica do Professor Doutor Luís Antunes Grosso Correia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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A PRODUÇÃO E PROGRAMAÇÃO AUDIOVISUAL PELO EXÉRCITO PORTUGUÊS NO CONTEXTO DAS GUERRAS COLONIAIS – (1965 – 1973) – A IMAGEM COMO ELEMENTO

CONSTRUTOR E DIFUSOR DE UM REGIME POLITICO-COLONIAL

THE AUDIOVISUAL PRODUCTION AND EXHIBITION BY THE PORTUGUESE ARMY DURING THE COLONIAL WARS (1965-1973) – THE IMAGE AS MECHANISM FOR THE

CONSTRUCTION AND DIFFUSION OF A POLITICAL-COLONIAL REGIME

Eduardo António da Costa Teixeira Margarido Aluno 49018

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RESUMO

Partindo da análise e compreensão do que foram os fundamentos ideológicos e políticos do Estado Novo Português pesquisou-se como é que o cinema, especialmente o programado e produzido pelos militares, contribuiu para a construção de uma imagem colonial. Analisando o que foi programado, produzido e exibido em campanha pelo Exército, procedeu-se a uma busca sobre a ideia, ou a sua ausência, do que se pretendia construir através dessa programação e produção no âmbito da motivação para a guerra e de divulgação dos pontos cardeais da propaganda colonial. Posteriormente caracterizamos o que foram as ações psicossociais levadas a cabo pelo exército no contexto das guerras coloniais e as imagens, nomeadamente cinematográficas, produzidas e/ou usadas neste contexto, procurando-se aferir do seu contributo para a criação de uma comunidade imaginada segundo os cânones da ideologia colonial. Tendo como metodologia olhar para além do ponto de vista e enquadramento da cinematografia oficial, procurando outros eixos do olhar, revendo em “slow motion”, analisando a materialidade do próprio produto fílmico, as suas formas e circuitos de distribuição, buscamos os sintomas ocultos que denunciam a construção ideológica, os preconceitos raciais e as estruturas de poder que se encontram dissimuladas.

Propomos ainda uma leitura para perceber a ligação entre a retórica (fílmica) de massas fascista, a estética nazi, a “política do espirito” e o luso-tropicalismo (nomeadamente nos seus elementos icónicos, simbólicos e consequente discurso semiótico) com as referências ideológicas do Estado Novo e como isso se traduziu na construção do imaginário colonial.

Concluiu-se que havia a consciência, por parte dos militares, da importância do cinema na propaganda e consequente construção da imagem colonial imaginada pelo regime, nomeadamente através do luso-tropicalismo cujos elementos icónicos foram amplamente usados, mas concretizado por uma estratégia muitas vezes inconsequente.

PALAVRAS-CHAVE: política do espirito, lusotropicalismo, cinema e propaganda,

máquina analítica, filmes pessoais, ação psicológica, cinema ambulante, atualidades filmadas, documentários, imagem colonial, comunidades imaginadas.

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ABSTRACT

Starting from the analysis and understanding of what were the ideological and political foundations of the Portuguese “Estado Novo”, we investigate how cinema, especially the one programmed and produced by the military, contributed to the construction of a colonial image. By analyzing the cinema that was programmed and produced in a colonial context, we search for the idea, or its absence, that was intended to be built through its exhibition as part of the general purpose of motivating for the war and spreading the cardinal items of colonial propaganda. Characterizing what were the psychosocial actions carried out by the army in the context of colonial wars and the images, particularly cinematographic, that were produced and / or used in this context, we thrive to understand their contribution to the creation of a community imagined according to the canons of colonial ideology. Having as methodology looking beyond the point of view of official cinematography, searching for other framings, reviewing in slow motion, analyzing the materiality of the film product itself, its forms and distribution circuits, etc., we look for hidden symptoms that betray the ideological and racial construction and its hidden structures of power.

In proposing a way of reading in order to perceive the connection between Fascist mass rhetoric, Nazi aesthetics, "politics of the spirit" and Lusotropicalism (especially in its iconic, symbolic elements and consequent semiotic discourse) we suggest how this was translated to the colonial imaginary.

As final conclusions emerge the fact that the military where full aware of the importance of cinema in the propaganda process, and, as so, in the construction of the colonial image imagined by the regime, mainly widely using the iconic elements of Lusotropicalism, but with a strategy that has been mostly inconsequent.

KEYWORDS: Politics of the Spirit, Lusotropicalism, cinema and propaganda, analytic

machine, personal films, psychological action, touring cinema, newsreels, documentaries, colonial image, imagined communities.

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AGRADECIMENTOS

Aos Professores Jorge Rosa e Luís Correia pelo acompanhamento atento, esclarecido e empenhado.

Aos entrevistados pela disponibilidade de tempo e memórias.

Ao Teatro Universitário do Porto pela gentil cedência de instalações onde foram realizadas entrevistas.

À Diana Tavares pela paciência e apoio no processamento de texto. Ao Sr. Manuel Tavares Tomás por me ter guiado nos arquivos do CAVE Ao Mendes Lopes pela minuciosa revisão

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Índice

ÍNDICE... 8

INTRODUÇÃO ... 1

O CAMINHO ... 8

A - ENQUADRAMENTO TEÓRICO-CONCEPTUAL DA TEMÁTICA ... 11

A. 1. Noções Prévias... 11 A. 1. 1. Totalitarismo ... 11 A. 1. 2. Comunidades Imaginadas ... 20 A. 2. Quadro teórico ... 23 A. 2. 1. Semiótica ... 24 A. 2. 1. 1. O plano ... 26 A. 2. 1. 2. Relação plano-objeto ... 28 A. 2. 2. A programação cinematográfica ... 30 A. 3. Revisão de literatura ... 35 A. 3. 1. Cinema e propaganda ... 35

A. 3. 2. A receção das imagens em movimento ... 47

A. 3. 3. O cinema ambulante ou itinerante. ... 50

A. 3. 4. O cinema soviético ... 55

A. 3. 5. O nazismo e o fascismo ... 60

A. 3. 5. 1. Goebbels e Leni Riefenstahl ... 61

A. 3. 5. 2. O fascismo Italiano ... 68

A. 3. 6. Estado da arte da pesquisa em Portugal ... 72

B. PORTUGAL E O ESTADO NOVO ... 77

B. 1. A “política do espírito” de António Ferro ... 78

B. 2. O Lusotropicalismo ... 88

B. 2. 1. A crítica ao lusotropicalismo ... 92

B. 3. A guerra colonial (ou de libertação) ... 95

B. 4. Imagem colonial, memória e cinema ... 106

C – CAMINHO METODOLÓGICO ... 110

C. 1. As fontes ... 111

C. 2. Os métodos ... 114

C. 3. Um palimpsesto ... 115

(9)

C. 5. O caminho de Motrescu-Mayes ... 126

C. 6. As técnicas de recolha e análise de dados ... 128

D – A PESQUISA. RESULTADOS ... 132

D. 1. Os Arquivos do Cave (Centro de Audiovisuais do Exército) ... 138

D. 1. 1. - Os arquivos em papel do Cave ... 138

D. 1. 1. 1. O “livro de carga” ... 139

D. 1. 1. 2. Catálogo de registo dos filmes e vídeo do CAVE ... 148

D. 1. 1. 3. As fichas de circulação de filmes ... 152

D. 1. 1. 4. Elementos dos processos individuais dos filmes ... 154

D. 1. 1. 5. Livro de registo de reportagens do Cave ... 156

D. 1. 2. Os arquivos de filmes/filmoteca ... 165

D .1. 2. 1. Conteúdo e critérios de seleção ... 166

D. 1. 2. 2. Análise fílmica ... 168

D. 1. 2. 2. 1. “Acão Psicossocial em Carmona” ... 171

D. 1. 2. 2. 2. “O EXÉRCITO NO ULTRAMAR Nº 4” ... 185

D. 1. 2. 2. 3. “ATUALIDADES MILITARES Nº 3/1967” ... 195

D. 2. Dos outros arquivos em papel ... 200

D. 2. 1. O Instituto de Altos Estudos e a Academia Militar ... 200

D. 3. Documentos orais ... 203

D. 3. 1. Critério e seriação dos entrevistados ... 203

D. 3. 2. Síntese de conteúdos e relevâncias... 206

E. ENQUADRAMENTO E INTERPRETAÇÃO DE RESULTADOS ... 212

E. 1. A DOUTRINA E A HIERARQUIA... 212

E. 2. A PROGRAMAÇÃO E A PRODUÇÃO ... 215

E. 3. OS CONTEÚDOS E O DISCURSO SIMBÓLICO ... 225

CONCLUSÕES ... 231

FONTES ... 242

Fontes Primárias Escritas ... 242

Fontes Primárias Audiovisuais ... 242

Fontes Orais ... 243

Fontes Secundárias Escritas ... 244

Fontes Secundárias Audiovisuais ... 244

BIBLIOGRAFIA ... 247

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ÍNDICE DE FIGURAS ... 266

APÊNDICE A ... I

QUESTIONÁRIO E RESUMO DE ENTREVISTAS ... I

APÊNDICE B ... XXV

FILMES ANALISADOS EM VÍDEO E ÁUDIO ... XXV

APÊNDICE C... XXVI

RESPOSTAS DOS ARQUIVOS ... XXVI

APÊNDICE D ... XXX

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1

INTRODUÇÃO

“The media so fully saturate our everyday lives that we are often unconscious of their presence, not to mention their influence (…) media do none of this alone. They do it with us as well as to us through mass communication, and they do it as a central (…) cultural force in our society.” (Baran, 2010: 4)

O tema escolhido para esta pesquisa doutoral resulta do percurso de investigação e produção do seu autor na área do cinema, quer enquanto estudante de mestrado quer enquanto documentarista, particularmente interessado no cinema e no seu papel enquanto registo de memória, de construção de realidade cultural e, em última análise, de instrumento de propaganda. Dada a sua qualidade de meio de comunicação de massas o cinema, como os outros mass media, tem um papel fundamental na definição/conformação de uma dada cultura (Baran, 2010; Barsamian

et al., 2015), sendo crucial na forma como essa cultura se vê e projeta através da imagem

e, consequentemente, na memória visual que vai construindo.

Este conceito de memória (cfr. o que dizemos sobre cinema e memória no capítulo sobre o enquadramento concetual) deve ser entendido com a devida cautela sabendo-se as questões que, v.g., os filmes documentais colocam quanto à transparência da imagem e o estatuto de verdade nela imerso (Rabinowitz, 1993). É este estatuto da verdade que importa pesquisar no tema que nos propomos, não só através das imagens mas também dos seus “fazedores e feitores"1 como, a propósito do documentário (?) Shoah de Lanzmann, diz Rabinowitz:

“…the weight of evidence lies in the spoken word and its ability to evoke visual memory as the foundations of historical justice” (1993: 129).

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2 Não devemos igualmente esquecer, como diz Manuel Loff, que a “a memória tornou-se, cultural e politicamente, um intenso campo de batalha nos últimos 40 anos” (Loff, 2015: 9)

Uma das primeiras tarefas que realizamos para a consideração do tema de investigação que alinhavamos foi a concretização da sua limitação do ponto de vista histórico. Com efeito, os conflitos coloniais portugueses arrastaram-se desde os primórdios da expansão ultramarina e até à segunda metade do século XX (Medina, 1985), um período histórico demasiado longo e diferenciado nas suas etapas, que obviamente não nos interessa aqui abordar na sua totalidade.

A primeira delimitação surgiu, desde logo, pelas consequências da correlação que fizemos entre guerras coloniais ou de libertação e cinema (imagem), o que o mesmo é dizer que apenas nos interessou o período histórico em que o cinema desempenhou um papel na disputa dos “hearts and minds”.

Tendo em conta a história do cinema, logo concluímos que a nossa pesquisa sobre o objeto assim definido se poderia apenas iniciar no dealbar do século XX. Mas, mesmo dentro do século XX, apenas nos interessaram as guerras coloniais “modernas”, isto é, as que ocorreram dentro do contexto das libertações nacionais e no seguimento dos movimentos políticos anticoloniais que ocorreram posteriormente à II Guerra Mundial. Aliás, será nestas guerras que o cinema, pelo menos do ponto de vista de perceção empírica, desempenhou um papel importante no contexto da propaganda e da legitimação ideológica, política e moral do colonialismo e das suas antíteses.

No que ao caso português diz respeito, esta delimitação situa-nos nas guerras africanas que tiveram o seu início em 1961 em Angola, em pleno regime ditatorial do Estado Novo, em que a propaganda, a exclusão das liberdades públicas e a forte censura eram pilares do regime. Como nos interessou uma visão global sobre todos os cenários de guerra, e nos interessa que essa visão seja de uma situação madura da guerra, ou seja, em que as suas estratégias e doutrinas já estejam bem estabelecidas, delimitamos o período histórico que vai de 1965 a 1973 como o nosso objeto de estudo, e que também correspondeu ao período generalizado e mais intenso das guerras em África (Medina, 1985).

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3 Ainda quanto ao âmbito do domínio de investigação houve que limitar o conjunto de atividades, factos e comportamentos que foram estudados. Não nos interessou tudo o que foi produzido em matéria audiovisual como veículo de legitimação do colonialismo e respetiva contrarresposta, mas apenas o que foi produzido no âmbito das ações militares de condicionamento das populações e da preservação da “moral” nas próprias fileiras. Para isso houve que identificar os sujeitos (em sentido lato, macro agregações de estrutura sem consideração ainda dos protagonistas individuais) dessas atividades, factos e comportamentos que, prima facie, foram o exército colonial e as populações locais. Dentro desses sujeitos, houve ainda que considerar as particulares instituições ou mecanismos que produziam e usavam as plataformas audiovisuais no contexto da guerra, o que o mesmo é dizer quem e como era responsável pela programação, produção e exibição dos produtos fílmicos dentro da estrutura do exército colonial e das organizações civis públicas e privadas que o apoiavam.

Não se desconhece o caminho paralelo que, nesta matéria, mas de matriz contrária, também foi desempenhado pelos movimentos de libertação, mas entendeu-se entendeu-ser este tema para investigação autónoma, como adiante explicaremos.

Mas qual é o verdadeiro problema que queremos ver esclarecido?

Para responder a esta questão teremos em primeiro lugar que definir em que consistia a chamada “ação psicológica”. Para o efeito recorreremos a uma explicação extraída do portal eletrónico “Guerra Colonial”, consistindo numa página coletiva sem autores individualmente identificáveis, mas que transcreve o que sobre a matéria é dito no manual da “Guerra Subversiva” do Exército, como à frente veremos:

“A Acão Psicológica destina-se a influenciar as atitudes e os comportamentos dos indivíduos. É utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e capturar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspetos diferentes, embora intimamente relacionados: ação psicológica; ação social psicossocial; ação de presença (…) A ação psicológica sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com a finalidade de cada uma destas áreas: a

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4 primeira pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda tendo como finalidade neutralizar propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.

Quanto às populações, procurou-se criar este ambiente propício com a ação social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, «conquistando-lhes os corações» e originando condições mais recetíveis à ação psicológica. Esta ação foi desenvolvida sob a forma de assistência

sanitária, religiosa, educativa e económica”

(http://www.guerracolonial.org).

Esta ação levada a cabo, entre outras instituições, pelos militares desempenhou um papel essencial na construção do regime politico-colonial a partir dos anos 60 do século XX. E no desenvolvimento dessa ação o audiovisual, principalmente o cinema, foi utilizado como uma das suas principais ferramentas2. Neste quadro, uma das questões orientadoras da presente tese poderá ser formulada da seguinte forma: por que razão, de que forma e com que doutrina é que o cinema foi utilizado no contexto das ações psicológicas. Este será um dos problemas que pretendemos ver esclarecido e, neste processo, contribuir para a construção de uma genealogia da imagem colonial. Dito de outro modo, pretendemos questionar o papel da produção e programação audiovisual pelo exército na elaboração da imagem como elemento construtor e difusor de um regime politico-colonial.

De acordo com os critérios a considerar na avaliação da pergunta ou tema de investigação (MacMillan & Schumacher, 1997), esta deve ser exequível, ser relevante, suficientemente clara e deve dar pistas para o tipo de investigação, isto é, para o seu

caminho metodológico.

2 Guerra Colonial 1961-1974: Manobra das Populações-Psico - Planos de Acção Psicológica».

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5 A pergunta de investigação demarca o topos do caminho (itus) que nos propusemos fazer. Nela deverá estar tudo e ao mesmo tempo ainda nada, deverá ser suficiente ampla para permitir o debate, mas não tão ampla que implique a dispersão num objeto impossível (David, 1995: 92-93). A pergunta de investigação essencial e que, de forma sucinta, melhor define o objeto da investigação que se empreendeu é aquela que já se encontra explicita no título da própria tese e que tem a seguinte formulação:

Qual o papel da programação e produção audiovisual pelo exército no contexto da Guerra Colonial, entre 1965 e 1973, na elaboração da imagem como elemento construtor e difusor de um regime politico-colonial?

Do ponto de vista metodológico podemos afirmar que os métodos ou técnicas de recolha de dados e sua respetiva análise dependem, em primeira linha, de questões mais específicas que “refinaram” a questão de investigação inicial e que irão sendo colocadas ao longo do texto desta tese e que, na medida do que foi possível, serão respondidas nas conclusões.

Mas, diga-se desde logo, que as perguntas mais específicas elaboradas bem como a análise dos dados obtidos dependeram “fundamentalmente das capacidades integradoras e interpretativas do investigador” (Coutinho, 2013: 231).

Para responder às questões que foram sendo formuladas fizemos uma pesquisa histórica e documental nos arquivos das entidades diretamente relacionadas com a temática e que foram identificadas enquanto depositárias de fontes primárias.

Em concreto no arquivo dos Serviços Cinematográficos do Exército (para responder às perguntas sobre o que foi programado e produzido), no Arquivo Geral do Exército e no Arquivo Histórico-Militar, aí recolhendo documentos escritos (ordens de serviço, memorandos, listas, relatórios, etc.) relativos ao período histórico que nos interessa e em ordem a avaliar e responder às questões sobre organização e doutrina, bem como “peças cinematográficas” relevantes que, devidamente analisadas, nos permitiram perceber o modo de organização dos produtos fílmicos e ensaiar uma resposta à pergunta sobre a génese e natureza da imagem colonial militar.

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6 Refira-se que a alusão à expressão “peças cinematográficas”3 pretende fixar um conceito analítico o mais abrangente possível, sem descurar a sua delimitação operativa, já que se pretende abranger não só “peças” de ficção (comerciais ou de produção própria) mas também documentários, filmes didáticos e formativos, bem como “atualidades” e notícias.

O estudo destas “peças cinematográficas”, para além daquilo que mediatamente nos propõem enquanto mensagem, discurso ou significado simbólico, conduziu à descoberta de elementos escondidos e de outros que se encontravam adormecidos. Ou, dito de outro modo, do visível somos conduzidos ao visual, a abertura do frame ao local, ao desejo e aos “sintomas” do que está oculto (Didi-Huberman, 1990: 64). Esta noção de sintoma, que Didi-Huberman vai buscar a Freud, é uma maneira nova e decisiva de

ver, uma forma de nos ser imposta uma reflexão sobre o não-saber enquanto momento

de rotura do visual (Didi-Huberman, 1990: 176). O sintoma vai assim consistir, no âmbito da visibilidade, num momento, na imprevisível e imediata “passagem de um corpo à aberração de uma crise” (Didi-Huberman, 1990: 306), mas uma crise “paradigmática” e significativa que revela uma estrutura e um fantasma que se encontra dissimulado. A busca deste fantasma traduz o esforço de perceber a ideologia que impregna a imagem produzida no contexto colonial, por mais inócua que ela possa parecer e por mais dissimulada que seja em documentários didáticos, formativos, em notícias, etc.

Por outro lado, esta tese gravita à volta da ideia de repositório de memória

histórica, ideia esta que se insere num movimento cinematográfico que conheceu um

ressurgimento nos últimos anos acompanhando uma nova equação do documentário enquanto género cinematográfico (cfr. o que adiante diremos sobre Margarida Cardoso e Susana Sousa Dias). Que “discurso direto” (Piçarra, 2015) poderemos então fixar sobre o passado no âmbito da ação psicossocial do exército? Que memórias poderemos preservar desta construção da imagem colonial e qual foi, efetivamente, essa imagem

imaginada que se buscou sedimentar no imaginário das populações?

3 É ainda esta expressão que fomos encontrar amiúde entre os documentos dos diversos organismos

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7 Foi no caminho aberto por estas interrogações que buscamos uma resposta e nesse itinerário cognitivo fomos construindo um método, como melhor explicaremos no item especificamente dedicado a esta questão da metodologia.

Como é que o cinema, com a sua particular maquinação, desempenhou o seu papel neste contexto? Ou como é que o cinema, posta a questão de forma mais crua, pode ser usado como propaganda?

Não cometemos a ingenuidade de pensar que este putativo instrumento dos aparelhos de dominação ideológica foi apenas utilizado nos regimes totalitários já que, mesmo em sociedades democráticas, ele também se revelou e revela fundamental para aquilo que Chomsky designa pela “fabricação do consentimento”. Com efeito, refere Chomsky:

“Because in a democracy you have to control people minds. You can`t control them by force. There´s a limited capacity to control them by force, and since they have to be controlled and marginalized, be «spectators of action», not «participants» (…) you have to resort to propaganda.” (Barsamian et al., 2015:165)

Esta fabricação de consentimento opera em diversos domínios das sociedades contemporâneas através da marginalização (do seu afastamento do processo de escolhas) de determinados grupos e indivíduos. Uma das formas de prover esse afastamento é através da alienação, na qual o cinema, e a construção imagética em geral, desempenham um papel crucial devido à sua particular maquinação.

Mas em que é que consiste essa maquinação? Relembramos o efeito Kulechov que demonstra que a continuidade e/ou contiguidade de dois planos tem o poder de sugestionar. Essa sugestão é o que está na base da construção do sentido cinematográfico e, neste contexto, a montagem dos planos acrescenta perceção que se organiza numa narrativa e num tipo discursivo que elabora uma ideia de realidade. Entendido assim o cinema, nomeadamente através da montagem, como uma técnica ao serviço de uma ideia de verdade (realidade), logo se percebe o seu papel na construção de realidade cultural. Importa, assim, perceber a sua contribuição para a construção de

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8 um continuum, um todo, um sentido, a sua linguagem semiótica, em suma, o discurso que carrega.

O Caminho

Para encontrarmos a resposta para a pergunta de investigação que colocámos construímos um itinerário cognitivo que se encontra plasmado na seriação capitular desta tese, caminho este que importa explicitar através de uma descrição sucinta do conteúdo de cada capitulo e da forma como estes se interligam.

Explicados os objetivos e a questão (questões) de investigação na introdução, houve que estabelecer o quadro teórico e conceptual em que nos movemos e que elencamos no capitulo A. Dentro deste capitulo definimos, desde logo, dois conceitos fundamentais para ancorar a reflexão que realizamos, que são os conceitos de

totalitarismo e de comunidade imaginada.

O primeiro serviu-nos para caracterizar o regime político vigente na época histórica a que se reporta esta tese e, para o delimitar, convocamos uma discussão entre Hannah Arendt, Georgio Agamben e Zlavoj Žižek. O segundo é fundamental para se compreender a ideia de nação e, como tal, toda a conceção do Estado Novo sobre a idealização da nação portuguesa e da sua projeção colonial. Para o efeito foi glosado o conceito pelos meandros seminais do seu criador, Benedict Anderson.

Continuando na construção das fundações argumentativas da tese, e ainda dentro do quadro concetual e teórico, fizemos uma recensão do trabalho de Lucia Santaella para compreender a linguagem cinematográfica enquanto um discurso simbolicamente articulado. Enquadramos a linguagem cinematográfica no âmbito mais amplo da semiótica, discutindo os seus particulares signos e a forma como estes se articulam.

Fixado o significado simbólico do discurso, importante para perceber a construção imagética do Estado Novo (e de outros totalitarismos), ensaiou-se uma explicitação teórica para fundamentar o que deve ser entendido por programação. Foi visitado o que sobre a matéria foi dito por Bragança de Miranda e Mário Grilo e que,

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9 apesar de ser escassa a literatura e autores que sobre o tema discorreram, permitiu, pelo menos, fixar um ponto de partida para se perceber porque é que a noção de programação (sublinhada enquanto modo de influenciar e inocular um pré-conceito da realidade) é importante para se entender a intenção da programação cinematográfica feita pelos militares.

Fixados os conceitos e o quadro teórico procedeu-se à indagação do “estado da arte” no que à temática da tese diz respeito, nomeadamente no que se refere ao cinema enquanto mecanismo de comunicação de massas e suporte de propaganda. Visitamos a literatura produzida sobre o tema e sobre os momentos históricos e os regimes políticos que elegeram o cinema enquanto arma de doutrinação política, nomeadamente os regimes soviéticos, fascista e nazi. Pretendeu-se aqui criar um quadro das raízes que originaram os procedimentos, organização, doutrina e discurso no uso do cinema para fins de propaganda, cotejando-os com os mesmos parâmetros no regime colonial português para identificação de pontos de contacto ou de afastamento, assim concluindo a parte A desta tese.

Na parte B, na sequência da caracterização histórica e doutrinária dos totalitarismos do século XX, descrevemos o Estado Novo português quanto aos seus fundamentos ideológicos, culturais e políticos, através dos textos produzidos pelo seu principal ideólogo, António Ferro, e das teorias lusotropicalistas, de Gilberto Freyre, que justificavam o colonialismo português. Enquadramos ainda, quanto às suas causas, origem e desenvolvimento, a guerra colonial (ou de libertação) por ser o quadro histórico mais amplo em que o tema da tese se coloca, relacionando posteriormente a imagem colonial com o repositório de memória e com o papel que o cinema desempenha na forma como questiona essas memórias.

Na parte C, e previamente à apresentação dos resultados da pesquisa que realizamos, explicitamos a metodologia que seguimos e as técnicas de recolha de dados que utilizamos. No âmbito da metodologia, explicamos que nos concentramos na compreensão das várias camadas de que os acontecimentos da história e da vida são constituídos, usando a metáfora do palimpsesto, chamando para a compreensão dos acontecimentos e documentos analisados nesta tese o contexto histórico e social, as

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10 palavras dos protagonistas, e todos os outros documentos contemporâneos que ajudassem a compreendê-los, ou que iluminassem outros pontos de vista sobre eles. Não hesitamos em recorrer a métodos artísticos de pesquisa e questionamento, como no caso do trabalho desenvolvido por Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi sobre documentos e arquivos históricos, e da forma como essas metodologias artísticas se podem relacionar com a ciência e contribuir para a compreensão dos acontecimentos que analisamos e descrevemos.

Fixada a metodologia apresentamos na parte D a pesquisa realizada, identificando as respetivas fontes e os resultados alcançados, descrevendo-os, sempre que possível, através de quadros e tabelas por forma a ter-se uma visão sintética e quantitativa dos dados. Como fontes primárias analisámos filmes produzidos pela Divisão de Fotografia e Cinema dos Serviços Cartográficos do Exército enquanto arquétipos da imagem colonial e do respetivo discurso estético, simbólico e ideológico, descobrindo esses diversos significantes na análise dos contextos plurais que estiveram presentes na sua produção e questionando, mimetizando a metodologia artística de Gianikian e Lucchi, o que poderia ser visto para além do que era mostrado.

Por fim, na parte E da tese, interpretamos os resultados à luz das diversas perguntas que fomos tecendo ao longo deste percurso, para concluirmos, a final, por responder à pergunta de investigação e por inventariar os diversos campos e linhas de investigação que ficam em aberto e que poderão, eventualmente pela mão de outros investigadores, ajudar a caracterizar e a responder às questões que foram colocadas, e ainda não respondidas, sobre o importante período histórico sobre o qual esta tese se debruçou.

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A - ENQUADRAMENTO TEÓRICO-CONCEPTUAL DA TEMÁTICA A. 1. Noções Prévias

Por serem importantes no contexto desta tese, nomeadamente quanto ao seu quadro teórico, importa previamente fixar o que entendemos por “totalitarismo” (assim caraterizando o regime politico vigente em Portugal no nosso período de pesquisa) e “comunidades imaginadas” (a concetualização que permitiu a emergência da noção de nação, fundamental para o entendimento da idealização do colonialismo no Estado Novo) bem como, do vastíssimo campo da semiótica, recolher uma formulação teórica coerente com a consideração da imagem (e do cinema) como uma linguagem e consequente discurso. De caminho convocaremos algumas reflexões de Giorgio Agamben sobre soberania e poder, que serão úteis para a compreensão da forma como o regime colonial absorvia no seu seio a sua “vida nua”.

A. 1. 1. Totalitarismo

Comecemos pelo mais difícil, por ser notoriamente escorregadio, que é o conceito de totalitarismo. Do ponto de vista histórico o conceito surgiu como crítica ao regime fascista de Mussolini (Adamson, 1995: 555) e foi, posteriormente, por este regime aproveitado para uma formulação positiva do próprio projeto fascista, assumindo-se o conceito como significando a primazia do politico sobre todas as outras esferas sociais e a integração no estado, e respetivo controlo por este, de todos os aspetos da vida social (Faye, 1972: 57- 62).

O conceito vem a ser novamente recuperado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, (bem como foi suficientemente glosado por Hannah Arendt, como veremos e com significado radicalmente diferente) para significar a violência perpetrada pelas potências ocidentais, não só contra os povos coloniais, mas também contra os pobres nas metrópoles capitalistas (Adorno et al., 2002: 67- 68).

Uma outra definição de totalitarismo ancora-se no que Zlavoj Žižek refere como sendo a noção comummente usada para comparar os regimes fascista da Alemanha e

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12 Itália com o regime estalinista da União Soviética. Esta comparação e justaposição teve sempre uma função estratégica de garantir a hegemonia liberal-democrática ao desvalorizar as criticas de esquerda às democracias liberais, identificando estas criticas com as ditaduras fascistas (Žižek, 2001).

Esta noção de totalitarismo decorre do clássico livro de Hannah Arendt, As

Origens do Totalitarismo, em que o regime nazi e o regime estalinista são caracterizados

pelo domínio absoluto de um partido-estado, liderado por um líder carismático, que institui um sistema sem lei e usa o terror para controlar a população (Arendt, 1978: 72- 87).De notar que esta noção de Arendt, segundo Losurdo, só se consolida enquanto constituinte de um movimento de revisionismo histórico que pretendia deduzir o fenómeno totalitário como consequência necessária do projeto revolucionário (Losurdo, 2004: 26).

O livro de Arendt, como demonstra Losurdo, é composto por duas partes muito distintas, sendo que na primeira Arendt escreve sobre antissemitismo e imperialismo analisando a administração criminosa de Lord Cromer no Egipto (em consequência da ocupação do canal do Suez em 1822) e a ascensão do pangermanismo (Alldeutsche Bewegung – movimento politico do século XIX que defendia a união dos povos Germânicos da Europa Central). Na tentativa de explicar a origem da violência nazi, Arendt passa em revista os massacres administrativos (originados em sentenças de tribunais especiais, como foi o caso do incidente de Denshawai 4) cometidos no Egipto pelo administrador colonial que, segundo ela, foram as condições para a existência/possibilidade do regime de Hitler. Este regime procurava criar um império colonial na Europa central e de leste baseado na dominação de uma raça branca, pura, ariana, assim que o germe da corrupção e subversão judaica, que estaria por trás das revoltas dos Untermenschen e das classes inferiores, fosse exterminado de uma vez por todas (Losurdo, 2004: 30). Nessa primeira parte do livro – escrita enquanto Arendt estava em França – o imperialismo racial era o que fundava a conceção totalitária.

4 Incidente ocorrido entre soldados ingleses e a população local, alegadamente originado numa caçada

aos pombos que eram criados pelos populares, e que terminou em condenações à morte de lideres locais e prisões indiscriminadas (Fahmy, 2011:138)

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13 Na segunda parte do livro Arendt foca-se exclusivamente na Alemanha de Hitler e na União Soviética, analisando o estado total criado nos dois regimes. Aqui, no entanto, ela desvaloriza o papel fundamental que o colonialismo teve na origem da violência nazi e apresenta o totalitarismo comunista como a consequência lógica da filosofia marxista. Na passagem da primeira parte do livro para a segunda – que foi escrita nas EUA – o conceito de colonialismo é substituído pelo de totalitarismo. O objeto de estudo já não era a Inglaterra, a França ou o terceiro Reich, mas a União Soviética de Estaline e a Alemanha nazi, exclusivamente. Estes dois regimes aparecem subitamente como gémeos totalitários, ambos caraterizados como ideologias perigosas que inevitavelmente levarão aos campos da morte. Esta teorização foi usada como uma ilustração da necessidade de combater o comunismo soviético enquanto continuação da luta na II Guerra Mundial contra o nazismo.

A definição de totalitarismo assim teorizada por Arendt foi dominante nos anos 50 e 60, e ainda o é nos dias de hoje, apesar da crítica de Agamben e outros, possibilitando ao mundo ocidental apresentar-se como a encarnação da liberdade em luta contra a ditadura comunista e todos aqueles que se reclamavam como simpatizantes da ideologia comunista.

Esta circunstância gerou enormes dificuldades para os autores da esquerda dos anos do pós-guerra, dado o facto de terem sido apanhados entre as teorias liberais, que identificavam comunismo e nazismo, e a glorificação dos seus feitos e realizações por parte da União Soviética, tornando-se, assim, extremamente difícil criar uma terceira posição num mundo que tendia a ser bipolar na sequência da Guerra Fria. Como consequência, esta noção de totalitarismo serviu a agenda da direita política na Europa Ocidental, levando a esquerda a desvalorizá-la, catalogando-a como um lamentável produto da Guerra Fria.

No entanto, esta última asserção, como o demonstra Losurdo, é simplista e politicamente conveniente. De facto, uma análise do contexto histórico dos anos 20 e 30 do século XX revela uma relevante critica às ditaduras por parte de autores de esquerda, como Karl Korsch (em Kellner, 2013: 236-237; 237-244; 244-253; 252-269) Amadeo Bordiga (1970) e Otto Rühle (1971).

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14 Para estes autores, o conceito de totalitarismo permite uma critica antifascista que também se aplica ao estalinismo, podendo igualmente ser usado como uma ferramenta de análise na critica às democracias liberais, nomeadamente apresentando o totalitarismo como um perigo imanente ao próprio sistema democrático, reflexão pioneira sobre os logros da afirmação soberana, como também veremos com Agamben. Com a atual hegemonia duma globalização pós queda do muro de Berlim e liderada pelos EUA será de não perder de vista que o totalitarismo não é só referido a regimes que vigoram ou vigoraram no centro e leste da Europa, ou nalguma distante e exótica paisagem tropical, mas, se atentamente escutarmos Agamben, como demonstramos em seguida, ele impregna as próprias sociedades democráticas.

Na radicalização da critica de Adorno, e no contexto da análise da soberania, do poder e da lei, Agamben afirma haver uma solidariedade concêntrica entre democracia e totalitarismo dado o facto de os dois sistemas criarem uma zona onde a lei e a violência não se distinguem (Agamben, 1998). Quer a democracia, quer o totalitarismo, veem o poder do Estado como central e todo-poderoso. Assim, para Agamben, os dois sistemas partilham a mesma ideia sobre a forma da soberania, equipando-a com uma ferramenta especial para uso em casos extremos: o estado de emergência (Agamben, 1998:12).

Agamben argumenta que a declaração do estado de emergência ameaça liquidar a democracia porque é criada uma zona de não distinção entre a lei e a exceção. A declaração do estado de emergência cria assim um paradoxo jurídico: quando é declarado torna possível à soberania atuar fora da lei. Como a exceção não pode ser codificada na ordem estabelecida, é preciso quem decida o que é uma exceção e quais as regras que se lhe aplicam. Essa decisão competirá, então, ao soberano, que assim determinará o que constitui a ordem pública e quando a mesma é violada.

Para Agamben este processo de declarar a exceção não se traduz na anulação de um excesso, mas na criação e na definição de um espaço na qual a ordem jurídico-política adquire validade (Agamben,1998: 19). Esta noção, de validação da ordem jurídica no espaço da exceção, é fundamental para se compreender a forma como a soberania organiza um espaço político-jurídico colonial, nomeadamente através de

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15 estatutos legais consagradores de uma capitis diminutio dos povos indígenas, como foi o caso do regime colonial português.

Mas qual a razão pela qual as democracias necessitam de um poder que pode eliminar a sua anima democrática?

Segundo Agamben o Estado-Nação e todos as soberanias dependem da exclusão: a soberania exclui sujeitos para se constituir a si própria. Na antiguidade Grega a vida já se encontrava dividida em duas esferas: a vida nua (zoe) e a vida politica (bios). A soberania produzia a esfera política excluindo alguém da “vida nua” e incluindo-os na

bios. Os que restavam na “vida nua” permaneciam como um bando biológico que, no

entanto, não eram colocados fora da lei, mas apenas não lhes eram reconhecidos os direitos de participação na esfera política, criando-se uma massa biopolítica sem rosto. Historicamente à massa biopolítica foram sendo reconhecidos direitos de participação na esfera política, mas em que, em cada momento, segmentos eram excluídos se não se conformassem com as exigências da soberania.

Esta oposição entre poder soberano e a “vida nua” reaparece nas sociedades formalmente democráticas.

“Behind the long, strife-ridden process that leads to the recognition of rights and formal liberties stands once again the body of the sacred man with his double sovereign, his life that cannot be sacrificed yet may, nevertheless, be killed.” (Agamben,1998: 10)

O refugiado é a prova de que este processo, no qual as pessoas são privadas do seu estatuto jurídico e político e transformadas em “vida nua”, está ativo no mundo contemporâneo. Como o sociólogo Belga Jean-Claude Paye demonstrou, a “guerra ao terror” (e, dizemos nós, a crise de refugiados na Europa) gerou uma transformação em que o estado constitucional foi substituído por um permanente estado de exceção (Paye, 2004: 10). O campo de prisioneiros de Guantanamo transformou-se num símbolo destas “zonas sem lei”, um local para onde a soberania pode mandar sujeitos que são apresentados como um perigo para a nação – homines sacer.

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16 Estamos, assim, perante um plano inclinado, segundo Agamben, em que o totalitarismo se instala na exceção do estado de emergência, funcionando como uma ferramenta das democracias em consequência da génese da sua soberania exclusiva. Este processo de afastamento/reconhecimento operou em larga escala na administração colonial portuguesa, com a sua massa biopolítica constituída pelos povos indígenas, em “fuga” ou subtraídos à influência dos movimentos de libertação por processos de concentração populacional coerciva.

Vale a pena ainda, neste passo, e até por contraponto à forma como a biopolítica entra nas formulações de Agamben, elaborar umas breves notas sobre como o idealizador da “biopolítica”, Michael Foucault, delimitava o conceito.

Este conceito surge pela primeira vez no pensamento de Foucault numa comunicação realizada a uma conferência no Rio de Janeiro, comunicação essa intitulada O Nascimento da Medicina Social5.

Para Foucault (1988: 128) é o século XVIII que marca a entrada da vida na história, ou seja, a entrada dos processos próprios da vida humana no âmbito do saber e dos cálculos do poder. Assim, a vida humana tende a ser controlada e modificada pelo saber e pelo poder, como diz Foucault (1988: 134):

“O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder”

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17

A biopolítica vai, assim, ocupar-se com os processos biológicos relacionados ao homem-espécie, estabelecendo sobre o mesmo uma espécie de regulamentação. Para compreender e conhecer melhor esse corpo é preciso não apenas descrevê-lo e quantificá-lo – por exemplo, em termos de nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade, de longevidade, de migração, de criminalidade, etc. –, mas também elaborar com tais descrições e quantidades, combinando-as, comparando-as e, sempre que possível, prevendo o seu futuro por meio do passado. Com este labor assistimos à produção de múltiplos saberes, como a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária. Uma das consequências práticas desse poder encarregado de promover a vida é a instauração da norma, isto é, um poder como esse, que tem como tarefa principal a garantia da vida, terá sempre a necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. E esse mecanismo é a norma. É por isso que, como afirma Foucault, “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (1988:135). Em resumo, a biopolítica caracteriza-se por ser uma forma de racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de vivos que constituem uma população (Bonnafous-Boucher, 2001: 36-41).

Uma consequência interessante do exercício do poder sobre a biologia, e com algumas ilações para a nossa tese, é o que Foucault chama de “disciplinas”.

As disciplinas são uma técnica, um mecanismo, um dispositivo de poder, são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante das suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1975:30) Elas são uma

“anatomia política’, [...] uma ‘mecânica do poder’; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (Idem:129).

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18 Esta tecnologia disciplinar, segundo Foucault, tem por arquétipo o dispositivo panóptico, idealizado por Jeremy Bentham no século XIX, e que tem por característica principal um principio de visibilidade (vigilância) permanente.

Segundo Foucault:

“[...] induzir no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detidos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia; muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente” (Ibidem:166-167).

Para Foucault o individuo é, assim, produto da disciplina, uma realidade fabricada por ela.

“O indivíduo é, sem dúvida, o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama ‘disciplina’” (Ibidem: 161).

O poder não é uma coisa, para Foucault. Não é algo que alguém possui e que representa uma espécie de intencionalidade transcendental em relação aos dispositivos utilizados. No máximo, como dirá Faucault (ibidem: 170) o poder, como tal, não existe. Ele é o sistema – mais ou menos organizado, mais ou menos hierárquico, mais ou menos coordenado e, de qualquer maneira, sempre reversível – das relações que tece e que mantém sob tensão.

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19 A formulação totalitária surge aqui na sujeição do corpo biológico a uma tecnologia que, mais do que punir, visa industriar o biológico numa relação de poder que é condição de subsistência das sociedades capitalistas que emergem a partir do século XVIII. Se a conceção do poder em Foucault é diferente da de Agamben, este último tendo dele uma formulação jurídica através da afirmação da soberania e aquele uma conceção do poder enquanto relações disseminadas pelo tecido social, ambos convergem na visão de que o poder (aqui visto como imposição totalitária de interesses) se exerce sobre os viventes, ora excluindo-os da soberania, ora disciplinando-os e industriando-os através da atomização e da vigilância permanente.

Se para Foucault a biopolítica funciona como a abertura de um campo de ação para o Estado que inclui a população, entendida como massa demográfica e como a soma de interesses individuais e coletivos, como o objeto de um regulamento para além da definição formal e jurídica de povo, para Agamben a passagem do segundo ao primeiro comporta uma redução progressiva do sujeito à sua vida natural e a prisão, através dos dispositivos técnicos de poder, de qualquer resíduo que ainda permaneça subtraído à sua ação (Agamben, 2006: 101)

Ambas as formas de imposição totalitária do poder poderão ser encontradas na forma como o regime colonial do Estado Novo se implementou, por um lado excluindo ou incluindo na soberania as populações indígenas de acordo com o seu grau de submissão, por outro impondo disciplinas através da concentração coerciva das populações em aldeamentos modelo (vigiados, com a simbologia icónica do poder colonial), ou da forçada adoção de artefactos e modos de vida do colonizador, como veremos.

Vistas sumariamente as diferentes definições de totalitarismo temos que, para aquilo que aqui nos interessa, de recorrer a uma formulação pragmática do conceito e teremos em mente, quando a ele nos referirmos, a formulação teorizada por Faye como tendo sido elaborada pelo fascismo Italiano e adotada por Mussolini, a que define totalitarismo como a “primazia do politico sobre todas as esferas sociais bem como o controlo por parte do estado de todos os aspetos da vida social” (Faye, 1972: 57 – 62).

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20 Esta noção é a que melhor se articula com a definição e construção (o seu processo) de comunidade imaginada por parte do regime colonial português, nomeadamente através da consideração da maneira como o político interveio na esfera cultural para a dominar, sendo ainda interessante de aferir como o mesmo regime tratou, através da imagem, a inclusão e exclusão dos seus homines sacer da sociedade colonial, consoante as contingências e conveniências politicas.

A. 1. 2. Comunidades Imaginadas

O segundo conceito que aqui importa determinar é o de comunidades

imaginadas, por ser particularmente importante no processo de construção da

autoimagem colonial portuguesa, nomeadamente, como veremos mais adiante, através da doutrina do luso-tropicalismo.

O conceito de comunidades imaginadas foi definido por Benedict Anderson na sua obra publicada em 1983 Imagined Communities – Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism (aqui apenas referida, já que a edição utilizada é a versão em

língua portuguesa de 2012). Neste livro Anderson reflete sobre os conceitos de nação, nacionalidade e nacionalismo, conceitos que emergem no século XVIII na Europa e que rapidamente se foram espalhando pelo resto do mundo (Anderson, 2012: 8).

Anderson define nação como uma comunidade politica imaginada que é ao mesmo tempo limitada e soberana. Imaginada porque os membros dessa comunidade não se podiam conhecer todos uns aos outros, limitada porque não aspirava a ser toda a humanidade, soberana porque nasceu no século das luzes e aspira à liberdade e comunidade porque a nação foi concebida como uma camaradagem horizontal de iguais (Anderson, 2012:18-32). As suas raízes culturais emergem do facto de os predominantes modos religiosos de olhar e conceber o mundo estarem em declínio e as luzes e o racionalismo secular começarem a prevalecer, da ideia de nação dar um novo senso de continuidade ao ciclo do renascimento e morte, bem como à circunstância de as nações se imaginarem a si próprias como a expressão de um glorioso passado em direção a um futuro ainda mais promissor (Anderson, 2012: 37- 43).

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21 Por outro lado, uma linguagem comum (“a minha pátria é a minha língua”6) é um meio poderoso para enraizar uma nação no seu passado, porque ela emerge do passado e sugere uma continuidade entre uma comunidade contemporânea e os seus antepassados permitindo assim poesias e canções como símbolos nacionais, criando uma coesão de vozes altruístas e generosas (Anderson, 2012: 74). A criação de censos, mapas e museus ilustram a maneira como os estados imaginam o seu domínio, a natureza dos seres humanos que governam, a geografia do seu território e a legitimidade da sua herança (Anderson, 2012:91).

Como podemos empiricamente constatar, esta noção de nação enquanto “comunidade imaginada” é fundamental para a compreensão da estratégia de comunicação na construção de uma imagem colonial 7(que em si transporta a conceção de nação que lhe está subjacente) e por isso central na economia argumentativa desta tese. Aliás, a noção de império não existe sem a consideração da ideia de nação, e ambas justificam a dominação europeia, ou do capitalismo europeu, de vastos territórios extracontinentais. Segundo Michael Hardt e António Negri (2000), na análise do imperialismo que decorreu da modernidade, no coração do império está a ideia de nação (2000: 6). Se contemporaneamente os mesmos autores conceptualizam a noção de império precisamente através da crise dos estados-nação e a emergência de uma nova ordem mundial (Empire) dominada por uma monarquia (EUA, G8, FMI, Banco Mundial, Nato), e uma oligarquia (as multinacionais e alguns remanescentes estados-nação), a que se opõe uma democracia (as organizações não-governamentais e as Nações Unidas) constituindo os indivíduos aquilo que chamam de “multidão” (2000: 130) que só podem aceder a uma forma de resistência “que se traduz numa vontade de ser contra” (Michaels, 2004: 173), não é menos verdade que foi a desagregação das comunidades imaginadas interiorizadas pelos europeus e abundantemente exportadas, ou pelo menos das suas fronteiras económicas, que permitiu a emergência deste novo conceito de império. Todas as identidades neste “Empire” são obliteradas por uma entidade universal construída pela monarquia e pela oligarquia, e como tal também as

6 Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

7 Refira-se que a teorização e proposta de Benedict Anderson teve como objetivo demonstrar a

emergência dos movimentos nacionalistas anti-coloniais (baseando-se na realidade do sudoeste asiático) enquanto nações distintas do poder colonial

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22 identidades dos clássicos estados-nação que eram a base dos impérios tradicionais de génese europeia, com as suas comunidades imaginadas que delimitavam e fundamentavam as pretensões coloniais.

O imaginado constitui, assim, uma técnica usada para delinear e definir as fronteiras de um grupo, constituindo um espaço de contestação no qual indivíduos e grupos procuram incluir o global nas suas próprias práticas (Powers, 2011: 17). As pessoas comuns podem, por esta construção, ter acesso aos fluxos globais de informação. A nação é por este meio imaginada de uma forma similar à etnicidade, como uma natural constelação de pessoas existindo num grupo soberano e limitado, com uma história e trajetória comum e que pode imaginar novas formas de organização social e pertença, incorporando locais distantes nas suas construções sociais (Powers, 2011: 19)

Muitas vezes não é o contexto cultural encerrado na fronteira que define as comunidades, mas a fronteira em si mesma e as representações simbólicas que enuncia (a linguagem, a comida, etc.) que perpetuam a comunidade. O simbólico é crucial para a definição de qualquer fronteira. (idem, 2011: 25)

Os locais ou territórios são usados, por aqueles interessados em mudar ou contrariar narrativas hegemónicas, para redesenhar e resignificar as definições de pertença. O que conta como conhecimento e quem define o conhecimento e as narrativas históricas são fundamentais na criação e manutenção das fronteiras das comunidades, sejam estas efetivas ou imaginadas. O uso de sentimentos primordiais semelhantes à etnicidade demonstra como novas comunidades, ou comunidades em transformação, baseiam a sua existência ontológica através de discursos de pertença primordial ou natural. Esses grupos autojustificam-se através de tipos ideais de subjetividade, constituindo o imaginário um processo orientado para o futuro, um processo de pertença usando o passado histórico e multi-territórios (ibidem, 2011: 23). Esta construção foi bastante ensaiada pelo Estado Novo na sua visão de nação pluricontinental, plurirracial e multiétnica, e foi parte integrante da sua estratégia discursiva.

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23 Já Anderson (2012) argumentava que a penetração do discurso capitalista através da imprensa constituiu uma pré-condição para o desenvolvimento das “comunidades imaginadas” que eram as nações, e que a imprensa, particularmente a do fim do século XVIII, desempenhou um papel central na sustentação das “consciências nacionais”. Para Anderson os jornais, conjuntamente com as novelas, providenciaram os “meios técnicos” para representarem o tipo de comunidade imaginada que constitui as nações. Através dos jornais são criadas “ligações imaginárias” entre eventos (locais ou internacionais) que, de outro modo, não estariam conectados, proporcionando aos leitores uma construção customizada do mundo que, através do diarismo dos jornais, nos é apresentado de uma forma cronograficamente coerente.

Anderson via o modo de apreensão do mundo que esta construção envolvia como análogo à experiencia de participação na “comunidade imaginada” que constituía a nação. Propunha mesmo a ideia de que a leitura dos jornais diários era uma cerimónia de massas sincronizada que constituía uma “comunidade a imaginar”. Se esta cerimónia era executada pelos indivíduos no seu “silêncio privado”, estes estariam conscientes que a cerimónia era replicada ao mesmo tempo por milhares de outras pessoas que não conheciam pessoalmente, mas com quem compartilhavam esta experiência comunitária (Anderson, 2012:22-36).

Para Anderson a moderna tecnologia de comunicação de massas era essencial para a sustentabilidade das “comunidades imaginadas”. Dentro dessas tecnologias assumirá um papel relevante o cinema, como veremos, para a sustentação e justificação dos “sentimentos primordiais” com que alguns dos nacionalismos, entre eles o Estado Novo, justificaram a sua ascensão na Europa do Século XX.

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A. 2. Quadro teórico

Importa agora, e por último, estabelecer o quadro teórico que, no domínio simbólico, permite ao cinema ser uma ferramenta discursiva (e persuasiva) na construção de um regime politico-colonial.

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A. 2. 1. Semiótica

O cinema é uma arte intersemiótica, já que mistura diversos signos e linguagens, que reflete as diferentes maneiras de o homem se expressar tendo captado, registado e reproduzido os muitos signos pelos quais o ser humano se tem travestido nas mais variadas épocas. Em visão retrospetiva, torna-se real ter-se o cinema constituído não apenas numa tela de reprodução do pensamento e emoções humanas, mas, essencialmente, numa grande e dinâmica janela em que os signos se entrelaçam e se articulam, refletindo as imagens existenciais, sociais e psicológicas da humanidade.

No sentido de enquadrar algumas das reflexões que faremos neste trabalho alinharemos aqui uma breve (e seguramente lacunar) síntese de alguns conceitos da semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), segundo a interpretação e estudo de Lucia Santaella (2000) para tentar compreender como o signo cinematográfico é construído, nomeadamente através do entendimento da linguagem hibrida que lhe está na génese.

Para melhor compreendermos o que é a semiótica, nomeadamente a semiótica da imagem, impõe-se uma breve introdução ao conceito.

A semiótica é a ciência que procura relações entre código e mensagem e entre signo e discurso. “Não se pode fazer semiótica do signo se não se fizer semiótica do discurso” (Eco, 1990: 19). O signo permite transmitir informação e está inserido num processo de comunicação. Ele está presente em todos os processos comunicacionais. De facto, uma mensagem pode ser (e quase sempre é) a organização complexa de muitos signos.

Segundo Joly (2004) um signo só é considerado signo se o mesmo expressar uma ideia e, consequentemente, provocar na mente do recetor uma atitude interpretativa. Joly refere ainda que os grandes precursores do estudo dos signos foram o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), na Europa, e o cientista Charles Sanders Peirce, nos Estados Unidos.

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25 O estudo e investigação da semiótica consiste em tentar descortinar se existem categorias de signos diferentes, se esses diferentes tipos de signos têm uma especificidade e leis próprias de se organizarem, ou processos de significação particulares (Joly, 2004). A semiótica é uma ciência e, de acordo com Santaella (1990: 13),

“tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenómeno como fenómeno de produção de significação e de sentido”.

Segundo Lotman (1978), no cinema quanto maior for a analogia entre a arte e a vida, portanto, a sua semelhança, melhor e mais imediata será a receção por parte do espetador. No início do cinema, na década de 1890 do século XIX, o espetador não entendia o cinema como arte, confundindo-o com a realidade, como ficou demonstrado no célebre exemplo do filme Chegada do Comboio à Estação (1895), dos irmãos Lumiére, que causou o pânico nos espectadores porque lhes parecia que a locomotiva se dirigia para cima deles.

De acordo com Eco (1990:19), “a semiótica ocupa-se indubitavelmente dos signos como sua matéria-prima, mas vê-os em relações a códigos e inseridos em unidades mais vastas como o enunciado, a figura retórica, a função narrativa, etc.”.

O estudo da semiótica apoia-se, assim, num triângulo: significante, significado e referente (Jakobson, 1963: 21). A imagem em movimento é, por natureza, um discurso, uma narração. “Tanto uma carta como uma imagem constituem um texto, uma mensagem. Ambas são de ordem semiótica, na medida em que abrangem não propriamente coisas, mas os seus substitutos” (Lotman, 1978: 68).

Peirce, um dos fundadores da semiótica como vimos supra, foi um matemático e filosofo que dedicou a sua vida à lógica e à semiótica. Para Peirce a semiótica está na génese e na base de todas as ciências, pois qualquer termo, conceito ou argumento tem que passar pelo crivo da lógica, o que o mesmo é dizer que qualquer abstração ou teoria tem que ter a sua constatação e verificação observável na realidade, sendo isso

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26 mensurado pelos efeitos práticos que essas conceções provocam nas condutas, nas crenças, nos hábitos e no pensamento (Santaella, 2000: 8).

Nesta conceção a semiótica é uma ciência que observa, analisa e reflete sobre o fluxo contínuo dos signos, sobre os seus intercâmbios, interfaces e inter-relações, visando compreender a sua ação enquanto signo, isto é, o seu papel para gerar interpretação.

No campo artístico, a noção de imagem vincula-se essencialmente às representações visuais: pinturas, ilustrações, desenhos, filmes, vídeos, fotografias etc. A imagem, nesta conceção ampla e enquanto forma de representação, já é objeto de reflexão filosófica desde a Antiguidade. Desde cedo se compreendeu que a imagem pode educar, mas também pode enganar. Com efeito, ela intervém na atividade psíquica do ser humano, gerando as representações mentais, os sonhos, as linguagens por imagens, etc.

A imagem mental é formulada quando se lê ou se ouve algo ou se é objeto de um estímulo sensorial, e essa formulação permite que o ser humano consiga processar a imagem como se estivesse lá. Essa representação mental é elaborada de maneira quase alucinatória, e se a imagem for percebida como representação isso significa que a imagem é percebida como signo.

Santaella (1990) refere uma distinção necessária sobre o nascimento e crescimento de duas ciências da linguagem que nasceram no século XX. Uma delas é a ciência da linguagem verbal (Linguística) e a outra é a Semiótica, que na verdade é uma ciência de toda e qualquer linguagem.

A. 2. 1. 1. O plano

Como é que este fluxo contínuo de signos se estrutura no cinema? Como é que se define um signo no cinema? De que forma é que os seus intercâmbios, interfaces e Inter-relações se organizam num processo de comunicação?

A especificidade do gesto e códigos cinematográficos, atuando ao nível emocional e da perceção, colocam questões diferentes para a compreensão da sua

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27 linguagem. Desde logo, e por isso referimos o gesto, por ser um processo comunicacional que não se baseia apenas na palavra (dita ou escrita) mas em todo o corpo humano e na aparente realidade visual enquanto codificador da mensagem, como melhor veremos adiante.

Umberto Eco (1991) fez um estudo sobre o signo ausente e afirma que perceber alguma coisa ausente requer que uma outra seja postulada como presente. Sem a presença de uma, não emerge a ausência da outra. Essa ausência poderá estar presente nos diálogos das personagens de um filme, e assim tornar-se uma componente essencial na construção do significado de uma sequência de planos, da organização sígnica que permite ao cinema tornar a ausência presente.

Mas qual será o elemento operativo, a decomposição do processo que nos permite chegar ao seu elemento significativo de base?

Na linguagem cinematográfica o plano é crescentemente reconhecido como a sua unidade fundante, e surge da necessidade de delimitar o mundo físico no meio de uma miríade de objetos, constituindo um olhar (fragmento da realidade) “recortado” dos objetos (Santaella, 2000: 14). Assim, do ponto de vista da semiótica, o plano tem o caracter de signo, é algo que tem por função estar em lugar do objeto, é determinado pelo objeto enquanto filmado, mas não o substitui, é apenas um fragmento do objeto, na realidade apenas o objeto imediato.

O signo (plano) vai funcionar como mediador entre o objeto e o efeito (significado) que ele está apto a produzir numa mente porque, de alguma maneira, representa o objeto.

O plano em si mesmo vai gozar de três características fundamentais: o plano como mera possibilidade, o plano como existência e o plano como lei (Santaella, 2000).

Um plano como mera possibilidade é um quali-signo, qualidades funcionando

como signos. São planos ainda não definidos, não corporificados, são imagens que gozam de liberdade, que se formam na mente como um jogo de planos possíveis para uma cena ou para um filme.

Imagem

Figura 1 - Fotografia atual de palco e ecrã no antigo quartel em Bula. Guiné-Bissau
Figura 2- Inauguração de Cineccità10 de Novembro de 1937 (Fonte Senato della Repubblica Italiana, Archivio Istituto  Luce) 17
Figura 3- Fotograma de “48”
Figura 4- Fotograma de Inventario Balcanico  retirado do filme disponível em https://filmaster.com/film/inventario-balcanico/
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Referências

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