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A CONQUISTA DO OUTRO EM UM NOVO MUNDO: ALTERIDADE E DISPUTA DE TERRITÓRIOS NAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO

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REPATS - Revista de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor

REPATS, Brasília, V. 5, nº 2, p 346-377, Jul-Dez, 2018

A CONQUISTA DO OUTRO EM UM NOVO MUNDO:

ALTERIDADE E DISPUTA DE TERRITÓRIOS NAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO

THE CONQUEST OF THE OTHERS IN A NEW WORLD:

ALTERITY AND TERRITORY DISPUTE IN RIO DE JANEIRO’S FAVELA COMMUNITIES

Erica Simone Almeida Resende*

Bianca Freire Ferreira**

RESUMO: Há décadas, a cidade do Rio de Janeiro sofre com um ciclo vicioso de crime organizado, batidas policiais, tiroteios e balas perdidas em uma guerra permanente que produz recordes de vítimas tanto nos moradores das favelas quanto nas tropas policiais. Esse ciclo de violência sem fim é considerado, hoje, o principal desafio de segurança pública no Rio de Janeiro. Em 2008, as autoridades do estado criaram uma nova política de segurança com base nas Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) numa tentativa de retomar áreas consideradas “perdidas” para traficantes de drogas e outros grupos criminosos. Nesse sentido, a noção de pacificação como forma de “law enforcement” traz problemas importantes ao debate, como a desconfiança entre os moradores das comunidades e a polícia, em parte devido ao aumento da ocorrência de autos de resistência em tiroteios durante operações de patrulhamento armado extensivo. O objetivo deste artigo é compreender como as políticas de segurança pública voltadas para essas comunidades carentes ainda seriam influenciadas por práticas de alteridade semelhantes àquelas identificadas por Tzvetan Todorov com relação à conquista europeia do Novo Mundo. Entendemos que os dois casos estariam ligados porquanto reproduzem a mesma lógica estatal de produção de outricidade que legitima uma racionalidade estatal que fundada na disputa e (re)tomada de territórios por meio de uma violência que produz corpos matáveis e vida nua nas comunidades carentes localizadas nas favelas.

Palavras-Chave: Rio de Janeiro, favelas, polícia pacificadora, alteridade, disputa de territórios

ABSTRACT: For decades, the city of Rio de Janeiro has lived a cycle of

organized crime, police raidings, crossfire, and stray bullet kills in an on-going war that kills both favela residents and police officers at record level. This never-ending cycle of violence has been the major security concern in Rio for decades.

Recebido em: 20/08/2018 Aceito em: 19/08/2018

*Bacharel em Direito com Complementação de Estudos em Relações Internacionais, Mestre e

Doutora em Ciência Política.

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347 In 2008, state authorities implemented a public policy based on Police

Pacification Units (UPPs) as means to reclaim areas taken over by drug dealers and other criminal groups. The notion of pacification as a form of law enforcement raises a set of important questions, such as the mistrust between favela residents and the police due to raising numbers of ‘resistance killings’ during shootouts and extensive armed patrols. The purpose of this article is to investigate how security policies in favelas still follow the alterity practices similar to those identified by Tzvetan Todorov in the European conquest of the New World. We argue that both cases are linked insofar they reproduce the same logic of othering that legitimates a state rationality of (re)claiming territories by violence that construct killable bodies and naked life in favela communities.

Keywords: Rio de Janeiro, favela communities, pacification police, alterity,

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INTRODUÇÃO

Em 21 de novembro de 2010, a cidade do Rio de Janeiro acordou com uma onda de violência generalizada com arrastões, ataques sincronizados a edifícios públicos, incêndios de ônibus, colação de barreiras no acesso a favelas e disparos em policiais em serviço. Os ataques prosseguiram por uma semana, culminando em 181 veículos incendiados, 39 mortes, 200 detenções temporárias e 70 prisões (VIANA, 2010). Em reação aos ataques, o então governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, pediu reforços às Polícias Federal e Civil, ao Exército Brasileiro e à Marinha do Brasil, e ordenou a promoção de operações em 20 favelas da cidade (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2010).

Entre as favelas que sofreram intervenção das forças de defesa naqueles dias está o Complexo do Alemão, um conjunto de favelas situado na zona norte do Rio de janeiro, na região da Penha. Com 69.143 de habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1, a localidade possui cerca

de 3 km² e abrange 15 favelas: Itararé, Joaquim de Queiróz, Mourão Filho, Nova Brasília, Morro das Palmeiras, Parque Alvorada, Relicário, Vila Matinha, Morro do Piancó, Morro do Adeus, Morro da Baiana, Estrada do Itararé, Morro do Alemão, Armando Sodré e Vila Cruzeiro2.

Na manhã de 25 de novembro de 2010, a área foi invadida por forças do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Polícia Federal. Polícia Civil, Exército e Marinha (RÖTZSCH, 2010). Ao fim da operação, 350 policias e militares tomaram o controle do complexo, o que teria provocado a fuga em massa de criminosos por trilhas nos morros (G1, 2010). A cena foi transmitida em tempo real em imprensa, ganhando repercussão nacional e internacional. Um dos momentos mais fortes da operação foi o hasteamento da bandeira do Brasil no

1 Segundo dados do IBGE, o complexo possui IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,709, ficando em último lugar no ranking do IDH das 32 Regiões Administrativas do município do Rio de Janeiro.

2 Até a década de 1940, a região pertencia a uma grande fazendo de propriedade de um imigrante de origem polonesa – daí confundido com um "alemão" – que desmembrou a fazenda em 1950 e a vendeu em pequenos lotes para construção de moradias a operários da empresa Cortume Carioca. Diversas crises econômicas levaram ao fechamento da fábrica e à perda de cerca de 20 mil postos de trabalho, dando início ao processo de degradação da área. Ver Oliveira (2011).

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topo da montanha mais alta do conjunto de favelas como símbolo da retomada de um território considerado ‘perdido’ para o crime organizado.

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/bope-

retoma-buscas-no-alemao-com-240-homens-06d6oyevz723t1l8ufdhy76mm

As imagens acima indicam a importância da (re)conquista de territórios pelas forças de segurança do Estado. Nesse sentido, a declaração do então governador do Estado, Sérgio Cabral Filho, é ilustrativa dessa lógica: “[O] momento é de retomada de territórios” (DIAS CARNEIRO, 2010). Na mesma linha que enfatiza a disputa de territórios, o então secretário de segurança pública, João Mariano Beltrame, comemorou o sucesso da operação de ‘retomada’ da região das redes criminosas: "Se tirou dessas pessoas o que nunca foi tirado, que é o seu território.” (O GLOBO, 2010)

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Curiosamente, a imagem da bandeira ficada no alto do morro como símbolo da conquista do território pelo Estado nos remete a imagens que retratam episódios semelhantes em um contexto histórico distinto, porém que guarda certas semelhanças com eventos contemporâneos.

Fonte: http://historiaemcartaz.blogspot.com.br/2015/10/

Assim como nos tempos de Fernando Cortez e a descoberta do Novo Mundo, a lógica de se tomar, conquistar, reclamar, reivindicar e controlar territórios por parte do Estado parecer se sustentar como prática necessária para a imposição da ordem sobre o caos, da civilização sobre a barbárie, do moderno sobre o tradicional. Em áreas dominadas por narcotraficantes, milicianos, grupos de extermínio e crime organizado, o emprego da palavra “guerra” deixa de ser uma mera metáfora, o que justificaria o emprego de uma política de “pacificação” dos territórios sob disputa. Com tal espírito, o governo do Estado do Rio de Janeiro tem investido desde 2008 na implementação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A política de pacificação se apresenta, portanto, como uma estratégia para manter a ordem e retomar os territórios que até então estavam dominados pelo poder paralelo de redes criminosas.

Refletir sobre a política das UPPs é também refletir sobre as construções históricas das relações entre Estado e território, entre disputa e conquista, ordem

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e violência. Sobretudo, significa problematizar que tipo de sujeitos devem ser pacificados, como e porquê. Dessa forma, pode-se dizer que as forças policiais assumem a função de gerir vidas, em sentido foucaultiano, já que recebem como função empregar “seu olhar disciplinado à identificação de corpos ‘estranhos’ que circulavam pelas ruas, diferentes do ‘eu’ branco-europeu” (SOARES, 2001, p.15). Tal julgamento, nas vielas tortuosas e escuras das comunidades pobres em morros e periferias do Rio de Janeiro, significa matar aqueles percebidos como ameaças ou deixá-los viver.

O presente artigo tem como objetivo geral identificar quais são os grupos passíveis de serem esses ‘corpos estranhos’ convertidos em vida nua e como ocorre tal processo. Entendemos que a persistência de práticas de alteridade que constroem o estranho, o novo e o diferente em ameaça existencial continuam a contribuir para um ciclo de encontro, confronto, violência e subjugação. Nesse sentido, vemos como práticas culturais com raízes históricas à chegada dos povos europeus às Américas ainda deixam marcas profundas na vida contemporânea.

O trabalho será dividido em duas partes. Primeiro, abordaremos a relação modernidade/colonialidade, cuja emergência coincide com a descoberta do Novo Mundo, porém transcendendo-a, e como seus efeitos são sentidos ainda hoje no que se refere à produção de sujeitos matáveis em nome da pacificação. A segunda parte abordará a pacificação e a transformação do morador da favela em ameaça: como os discursos de pacificação criam a classe perigosa nas grandes cidades brasileiras.

1. MODERNIDADE/COLONIALIDADE: A PERSISTÊNCIA DO CONFRONTO VIOLENTO COM O OUTRO

Em termos simples, usamos o termo modernidade tanto para fins de designação de um período histórico (a Era Moderna) quanto para dar singularidade ao conjunto de normas, atitudes e práticas que surgiram com a Renascença, o Iluminismo e a Revolução Industrial. Para Berman (2010), modernidade se refere a um sistema complexo de fenômenos culturais e

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processos históricos, assim como a um conjunto de condições materiais, subjetivas e existenciais que possibilitaram a emergência de culturas, instituições, políticas e sistemas de produção que hoje largamente caracterizamos como ‘moderno’, especialmente para dar especificidade aos processos que deram surgimento ao capitalismo, à secularização e à sociedade industrial.

Conforme explica Giddens (1998, p. 94), trata-se do período3 seguinte à

Era Medieval, e que se caracteriza por um conjunto de: (1) atitudes em relação ao mundo, que passa a ser visto como suscetível de transformação pela mão do homem; (2) instituições econômicas, cuja maior inovação seria a emergência do capitalismo como modo dominante de produção, o industrialismo e a economia de mercado; e (3) instituições políticas, sobretudo, o sistema de Estados nacionais e da democracia representativa de massas. Tal divisão se assemelha àquela proposta por Berman (1982, p. 16-17) e Osborn (1992, p. 25), que dividem a modernidade em “pré-moderna” (1453-1789), “clássica” (1789-1900) e “tardia” (1900-1989).

Para Hannah Arendt (1997), o início da modernidade é marcado por três acontecimentos: a reforma protestante, a invenção do telescópio e a descoberta da América. Este último evento, ápice do período das grandes navegações ultramarinas pelas potências europeias (1418-1660), também é identificado pela literatura como tendo um lugar especial na construção da modernidade (BRAUDEL, 1992; TODOROV, 1999; MAZZOTTA, 2009). Tendo como pano de fundo a descoberta do Novo Mundo, a narrativa da modernidade celebra o modelo superior da civilização europeia – branca, cristã, individualista, capitalista e racional – em oposição aos povos não-brancos, selvagens, coletivistas, tradicionais e emotivos encontrados nas Américas.

Para Mignolo (2011), a narrativa eurocêntrica da civilização ocidental como expressão da modernidade somente consegue se sustentar às custas de

3 Para Theodor Adorno, no entanto, a modernidade deveria ser entendida como uma categoria qualitativa, e não cronológica (ADORNO, 2008), porque ela assinala a emergência de novos paradigmas: o racionalismo, o positivismo, o cientificismo, o individualismo, o universalismo entre outros.

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um projeto de colonialidade que atuasse nas quatro dimensões da atividade humana: econômico, político, social e epistêmico.

(a) o econômico, que remete à apropriação da terra, à exploração da mão de obra e ao controle das finanças; (b) o político, o qual se liga ao controle da autoridade; (c) o social, que se refere ao controle do gênero e da sexualidade; (d) e o epistêmico, que se relaciona ao subjetivo e pessoal, incluindo o componente religioso (cristandade), este ligado ao domínio do conhecimento e da subjetividade. (ADAMS, 2009, p.177)

Dito de outra forma, modernidade e colonialidade seriam coconstitutivas no sentido que uma depende dos efeitos da outra para acontecer, como um processo interligado de produção de sentidos e subjetividades resultante de práticas de territorialização, dominação e controle. Nesse sentido, Mignolo destaca que, para a população nativa, a chegada dos conquistadores significou um pachakuti: “invasão violenta, destruição sem piedade, desprezo pela forma de vida existente, um cataclisma sobre todos os níveis de existência, e momento de fundação da ferida do mundo moderno/colonial” (MIGNOLO, 2007, p. 77).

De acordo com Anibal Quijano (2007), a Europa desenvolveu em suas colônias uma espécie de matriz colonial do poder, o patrón colonial de poder. Esse instituto seria quatro domínios interligados e exercidos pelos europeus em suas colônias: inter- controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade. Para Quijano (2007), o

patrón colonial de poder se desdobrou em duas direções paralelas. Uma foi a

luta entre Estados imperiais europeus, e a outra foi entre esses Estados e os seus sujeitos coloniais africanos e indígenas, que foram escravizados e explorados.

A retórica da colonialidade passou por etapas sucessivas que foram apresentadas de maneira positiva na lógica da modernidade:

A etapa inicial dispôs a retórica da modernidade como salvação. A salvação era focada em salvar almas pela conversão ao cristianismo. A segunda etapa envolveu o controle das almas dos não europeus através da missão civilizatória fora da Europa, e da administração de corpos nos Estados-nações emergentes através do conjunto de técnicas que Foucault analisou como a biopolítica. Assim, a colonialidade era (e ainda é) a metade complementária e perdida da biopolítica. Essa transformação da retórica da salvação e da lógica do

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secular. A teopolítica transformou-se em egopolítica. A terceira etapa – a etapa que continua hoje – começou no momento em que as corporações e o mercado se tornaram dominantes, a biotecnologia substituiu a eugênica, e a publicidade (bombardeando a TV, as ruas, os jornais e a internet) deslocou o rádio. Consequentemente, o cidadão europeu saudável e a minoria saudável das colônias, que eram administradas e controladas pela eugênica no século XIX e na primeira metade do século XX, agora foram convertidos em “consumidores-empresários” da sua própria saúde, pelos usos da biotecnologia conivente com a farmacologia. (OLIVEIRA, 2017, p. 8)

A questão da identidade no discurso da modernidade/colonialidade é tratada por diversos autores na literatura. No entanto, Todorov (1999) inova ao trazer o conceito da alteridade para problematizar os padrões de interação entre os europeus e nativos no contexto da Descoberta do Novo Mundo. O autor descreve o processo de descoberta, conquista e colonização da América identificando quatro momentos distintos nesse processo: o descobrimento, a

conquista, o amor e o conhecimento.

Na fase do descobrir, o europeu toma conhecimento da existência de um novo território e, mais especificamente, da existência do Outro4. Trata-se do

primeiro encontro entre o Eu e o não-Eu, marcado por emoções sempre contraditórias e indefinidas, oscilando entre fascínio e repulsa. A segunda etapa, a da conquista, ocorre após a descoberta, e é quando o contato com o Outro se inicia. Já a etapa do amor, caracterizada pela convivência entre colonizador e colonizado, seria a fase da integração. Na última etapa, chamada de conhecer, temos o momento em que, devidamente entrosados, os conviventes passam aceitam uns aos outros, desenvolvendo relações pautadas pelo reconhecimento, empatia e solidariedade.

Com base nas narrativas que permeavam as cartas e informes de Colombo à Europa, Todorov argumenta que o encontro entre os ameríndios e os europeus no Novo Mundo teria sido, na verdade, um desencontro. Não teria

4 Lacan foi o responsável pela grafia diferenciada deste Outro que se escreve com “o” maiúsculo. Segundo ele, o outro seria “uma primeira dimensão de alteridade, o semelhante, como o parceiro de nosso cotidiano cuja relação com cada um de nós, tanto do lado dele como do nosso é determinada por uma ordem radicalmente anterior e exterior a nós mesmos (LACAN, 1985, p.296). Este é o outro com o qual nos relacionamos, identificamo-nos e às vezes nos confundimos, visto que ele não é submetido a práticas de alteridade. Já o Outro é aquele que é percebido como ameaça existencial ao próprio Eu. Trata-se do outro essencializado, simplificado, estereotipado, marginalizado, silenciado e tornado estranho ao Eu.

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ocorrido uma tentativa de se conhecer e aceitar os povos que ali viviam, mas sim analisar as condições para que pudesse ser feita a dominação. Por tal razão, o autor enfatiza que “Colombo descobriu a América, mas não os americanos” (TODOROV, 1999, p. 69). Dito de outra forma, a lógica do confronto já estava colocada desde o primeiro contato.

A tônica do desencontro teria sido uma marca fundamental na forma como as potências europeias implementaram suas políticas coloniais para produzir territorização, dominação e controle no novo continente. Na perspectiva europeia do colonizador, os indígenas representavam o avesso da civilização, da modernidade. Não eram reconhecidos em sua complexidade e individualidade pois não passavam de selvagens a serem conquistados, dominados e submetidos à vontade do europeu civilizador. Nesse sentido, o sucesso em dominar os índios confirmava e fortalecida o sentido de superioridade do cristão branco europeu.

A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) não parou, portanto, de oscilar entre os pólos de um verdadeiro movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: era um monstro, um “animal com figura humana” (Léry), a meio caminho entre a animalidade e a humanidade mas também que os monstros éramos nós, sendo que ele tinha lições de humanidade a nos dar; levava uma existência infeliz e miserável, ou, pelo contrário, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esforços os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da indústria; era trabalhador e corajoso, ou essencialmente preguiçoso; não tinha alma e não acreditava em nenhum deus, ou era profundamente religioso; vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia; era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, até e inclusive suas próprias mulheres; era admiravelmente bonito, ou feio; era movido por uma impulsividade criminalmente congênita quando era legítimo temer, ou devia ser considerado como uma criança precisando de proteção; era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassidão permanente, ou, pelo contrário, um ser preso, obedecendo estritamente aos tabus e às proibições de seu grupo; era atrasado, estúpido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo; era um animal, um “vegetal” (de Pauw) , uma “coisa”, um “objeto sem valor” (Hegel), ou participava, pelo contrário, de uma humanidade da qual tinha tudo como aprender. (LAPLANTINE, 1999, p. 52).

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Para Burjack (2013), para que pudessem ser minimamente reconhecidos como parte da humanidade, os nativos foram obrigados a passar por um processo de conversão civilizatória, por meio do qual deveriam perder sua identidade, sua língua e seus costumes não-europeus. Nesse processo de conversão, o nativo sofria uma desconstrução. “Converter-se ao cristianismo era, a priori, descaracterizar-se totalmente do seu ser. A língua, os costumes e a geografia tudo foi desconsiderado. O padrão era o do colonizador”, argumenta Burjack. Aos nativos, restava-lhes apenas se tornarem “cópias fiéis do modelo estabelecido em terras europeias” (BURJACK, 2013, p. 120).

Para Ana Cristina Pereira (2016), essa lógica de alteridade presente no

desencontro entre europeus e nativos teria contribuído para a perpetuação de

um conjunto de estereótipos e representações sociais e raciais no período colonial que ainda possui forte ecos na atualidade. Por serem fluídas e móveis, as identidades devem ser constantemente (re)afirmadas e contestadas. Assim, o morador de favela, ao ter seu local de moradia ser submetido à uma política de pacificação, é sempre lembrado de sua condição integração parcial no projeto da modernidade. Por viver em um espaço no qual imperam a barbárie, e o caos, e a lei da natureza, ele não está incluído no espaço da civilização, da ordem, da modernidade, o que justificaria, portanto, o emprego de estratégias de confrontação armada em tais espaços à margem da sociedade civilizada.

O ápice da conversão do diferente no Outro, especialmente no que diz respeito à vida que deixa de ter valor em si mesmo, atinge expressão única no fenômeno da produção de sujeitos matáveis. Após décadas de violência produzida por uma estratégia de enfrentamento armado do crime organizado nas comunidades mais pobres do Rio de Janeiro, o resultado é um índice impressionante de perdas dos dois lados, tanto policiais quanto criminosos, além de centenas de pessoas atingidas no fogo cruzado. Nesse contexto, a estratégia da pacificação como política de segurança pública acaba produzindo os sujeitos matáveis na geografia do novo mundo das favelas.

Em seu estudo sobre o luto, Judith Butler (2015) observa que a morte de determinados indivíduos não gera a mesma comoção que a morte de outros, principalmente quando se trata de comoção por parte do Estado. Nesse sentido,

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seria possível afirmar que existem mortes que são publicamente lamentadas, ou seja, são tratadas como inadmissíveis e intoleráveis no espaço público, enquanto outras não despertam os mesmos sentimentos, isto é, não seriam dignas de comoção social e ficariam limitadas ao luto em privado. Assim, existem mortes que são sentidas e lamentadas pela comunidade enquanto outras não. Estas últimas, segundo Butler, seriam as vidas cuja perda não desperta empatia nem solidariedade; são vidas que podem ser perdidas porque são de sujeitos matáveis.

De acordo com a autora, a divisão dos grupos passíveis ou não de luto se dá por meio de uma modelagem ontológica dos sujeitos, chamada por ela de “enquadramentos” (jurídicos, normativos, políticos, sociais e econômicos) e tem estreita ligação com o conceito de biopolítica de Michel Focault5. Essa separação

faz com que os que não se enquadram dentro dos tipos pré-determinados se tornem desprovidos de reconhecimento e proteção. As mortes de policiais em serviço, por exemplo, são contadas e ganham manifestação de pesar por parte do Estado e da sociedade. Já a do morador anônimo da favela, transforma-se em dano colateral e estatística policial.

O conceito de sujeito matável também é explorado por Giorgio Agamben a partir de sua revisitação à figura do Homo Sacer, que cometia um delito contra a uma divindade. Tal prática colocava em risco o relacionamento entre a coletividade e os deuses, que era a garantia de paz e prosperidade da civitas6,

ou seja, tal delito era uma ameaça ao próprio Estado. O sujeito era expulso do grupo social, perdia todos os direitos civis, e se tornava passível de morte por qualquer outra pessoa. Sentenciado a viver à margem da coletividade, sua vida perdia valor, ficando reduzido à condição de vida nua, indigna de proteção e empatia. Nessa condição, em que sua morte deixa de ser crime, ele se torna sujeito matável: uma vida politicamente irrelevante para o Estado e, portanto, passível de ser eliminada.

5 Técnica disciplinar que permite o controle de populações inteiras através da regulação das vidas e dos corpos dos indivíduos. Ver Focault (1978).

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Assim, "vida nua" refere-se à ausência de proteção e ao estado de ilegalidade de quem é submetido a viver em estado de exceção. De forma a ilustrar seu argumento, Agamben cita os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, nos quais judeus foram reduzidos a pura zoé, em que seus corpos foram privados de diferenciação de forma a facilitar o emprego de técnicas de identificação, controle e aniquilação. Para Agamben, tal fenômeno seria característico do Ocidente e seu projeto de modernidade, manifestando-se em situações limite de ausência de reconhecimento do valor da vida do outro, como em campos de concentração, em prisões como Guantánamo, nos banlieus parisienses, no deserto quente da fronteira entre México e Estados Unidos, em campos de refugiados em Lampedusa, e nas periferias e favelas das grandes cidades.

Os espaços de campo se propagam e vai se criando uma sociedade "homosacerizada", na qual todos lutam para não cair no campo ou para sair dele. "[...] o campo como localização deslocante é a matiz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zonnes d´attente de nossos aeroportos, bem como em certas periferias de nossas cidades" (AGAMBEN, 1999, p. 171).

Assim como no Novo Mundo descrito por Todorov, em que a vida dos nativos podia ser ceifada em nome de um projeto de conquista e ocupação da colônia, em que a alteridade distinguia aqueles que podiam morrer para que outros pudessem viver, a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro estaria seguindo a mesma lógica. A proximidade entre favela e asfalto afasta a possibilidade de convivência harmoniosa, segundo o discurso dominante. A vida do morador dos bairros privilegiados deve ser protegida mesmo em detrimento da vida do morador da favela. A opção pela pacificação se traduz em uma política de enfrentamento da criminalidade a qualquer custo, o que, na prática, suspende o estado de direito e justifica o recurso à exceção de forma a eliminar ameaças e executar elementos suspeitos. Eis o pano de fundo dos chamados autos de resistência, cujo número aumentou nas últimas décadas.

Criado durante a ditadura militar no Brasil, os autos de resistência foram inicialmente regulados por uma ordem de serviço de outubro de 1969 da antiga

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Superintendência da Polícia Judiciária do Estado da Guanabara. Em 1974, a ordem de serviço foi alterada por uma portaria da Secretaria de Segurança Pública, onde ficou estabelecido que o policial não poderia ser preso em flagrante nem indiciado por uma morte durante confronto. Sua tipificação legal é feita pelo artigo 292 do Código de Processo Penal brasileiro:

Art.292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

O artigo acima trata de resistência à prisão e não traz explicitamente a nomenclatura autos de resistência e tampouco resistência seguida de morte, o que permite diversas interpretações, uma vez que não prevê quais são as regras para investigação em casos de excessos7. Assim, quando um civil é morto por

um agente do Estado, a ocorrência é normalmente registrada como resistência seguida de morte ou autos de resistência. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que o policial atirou em legítima defesa. Os autos de resistência/resistência seguida de morte não constituem um tipo criminal específico e são, na realidade, crimes de homicídio tipificados no artigo 121 do Código Penal, teoricamente praticados com “exclusão de ilicitude”.

Para Souza, os autos de resistência se transformaram no mais expressivo “entulho” da ditadura militar, criando as condições para abusos sistemáticos por parte dos agentes públicos de segurança. “Houve uma banalização e uma distorção na comunicação para a elaboração do documento, e o auto de resistência passou a simbolizar, em muitos casos, falsas e desvirtuadas notícias com o fito de ocultar situações de uso excessivo e arbitrário de força letal e assassinatos praticados por desonrados agentes das forças policiais.” (SOUZA, 2010, p. 156).

7 Atualmente os autos de resistência são um instrumento jurídico, sem previsão legal no Código Penal brasileiro, tendo em vista que não guardam qualquer relação com o crime de resistência previsto no artigo 329 do mesmo diploma legal.

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O que vemos, hoje, é um cenário em que os autos de resistência estão sendo utilizados para mascarar o aumento da letalidade do Estado para com os civis.

O MP diz que não consegue responsabilizar a polícia porque os inquéritos são mal feitos, só que eles usam nos pedidos de arquivamentos tudo o que é construído no inquérito. Então, se os inquéritos são mal feitos, as promoções de arquivamentos são péssimas e, de fato, são péssimas. (ZACCONE, 2013, p. 85)

Com base em pesquisas sobre os homicídios praticados por policiais militares no período de 2001 a 2011, Michel Misse (2010) aponta que o Ministério Público Estadual propôs o arquivamento de 99,2% dos casos de auto de resistência daquele período. Isso significa que a Justiça quase sempre acredita na versão da polícia, mesmo quando evidências mostram o contrário. Segundo Misse, existiria ainda uma espécie de narrativa padrão nos autos de resistência, em que os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em operação militar em área dominada pela criminalidade quando foram alvejados por tiros. O revide, portanto, seria legítima defesa a uma injusta agressão. Finda troca de tiros, os policiais localizam os criminosos feridos ou já mortos, com armas e/ou drogas, e os levam para o hospital. Na grande maioria dos casos, no entanto, o criminoso chega morto ao hospital.

De acordo com um relatório da Anistia Internacional em agosto de 2015, dos 220 inquéritos abertos para investigar autos de resistência na cidade do Rio em 2011, apenas um resultou em denúncia à Justiça contra policiais. Passados quatro anos, outros 183 continuam em andamento, sem resultado, 12 foram arquivados e em 24 não se confirmou envolvimento com o homicídio.

Verifica-se então, uma espécie de seletividade perversa que torna alguns sujeitos matáveis, sem que haja por parte da sociedade qualquer tipo de comoção, horror ou responsabilização. A implantação de UPPs favoreceu um modelo de ocupação militarizada voltada para o enfrentamento, o que resulta em confrontos diários com perdas de vidas, especialmente em situação de fogo cruzado. E a grande maioria das vítimas não são nem criminosos nem policiais, e sim moradores da localidade.

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Segundo denúncia da Anistia Internacional (2015, p. 4), a Polícia Militar “tem usado a força letal de forma desnecessária e excessiva, provocando milhares de mortes ao longo da última década”. A justificativa oficial para o alto índice de mortes causadas por intervenção policial é de que as vítimas eram suspeitas de envolvimento com grupos criminosos. Dessa forma, as mortes são registradas como legítima defesa e classificadas como resistência.

Ao descrever todas as mortes pela Polícia em serviço como o resultado de um confronto, as autoridades culpam a vítima por sua própria morte. Geralmente, declarações de policiais envolvidos nesses casos descrevem contextos de confronto e de troca de tiros com suspeitos de crimes. Essas versões tornam-se o ponto de partida das investigações. Quando a Polícia registra que a vítima teria ligações com grupos criminosos, a investigação procura corroborar o testemunho do policial de que a morte ocorreu em legítima defesa (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 5).

A justificativa anexada ao projeto de lei para excluir o auto de resistência do ordenamento jurídico brasileiro8 argumenta 60% dos 12 mil autos de

resistência lavrados no Rio de Janeiro na última década apontam para situações de execuções sumárias. Esses crimes são executados durante a “prestação” de “socorro” às vítimas, no trajeto até o hospital, alega o autor do projeto de lei. Na maior parte dos casos, a hipótese de execução reside no fato de a polícia remover o corpo do local do crime sob a justificativa de prestação de socorro. Tal remoção dificulta a realização do exame do local do suposto confronto, que, na prática, raramente se encontra descrito no inquérito policial.

Ao contrário do que acontece nos inquéritos policiais onde o objetivo é apurar a autoria de homicídios por meio de exames de balística e reconstituição, nos autos de resistência, a prioridade é apurar a folha de antecedentes criminais da vítima a fim de justificar a sua morte. Uma realidade que atinge diretamente os jovens de áreas periféricas e provoca a inversão do ônus da prova, pois do auto de resistência, cabe a família provar que o parente é inocente, resta consolidado então a criminalização da pobreza.

8 Projeto-de-Lei nº 4472/2012, apresentado por Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PMDB-MS), Delegado Protógenes (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (PDT-RJ). Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=556267.

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362 A construção da legitima defesa é feita não por conta de como foi

realizada a ação do policial, isso é o que menos importa. O que mais importa é a identificação do morto. Se ele for negro, favelado, tinha uma folha de antecedentes criminais, ou algum familiar relata que ele estava envolvido com o crime, é suficiente para legitimar a morte (ZACCONE, 2013, p. 95)

Os autos de resistência acontecem em diversas partes do estado do Rio de Janeiro, porém de forma mais recorrente nas favelas e baixada fluminense. De acordo com relatório da Anistia Internacional, algumas áreas da cidade concentram um maior índice de violência policial. O 41º Batalhão da PMERJ, situado na região onde estão localizadas as favelas de Acari e dos complexos da Pedreira e Chapadão, é um exemplo. Acari se localiza na zona norte da cidade do Rio e atualmente é a região mais conflagrada. Nas imediações, ficam as favelas dos complexos do Chapadão e da Pedreira que se tornaram o novo quartel general do tráfico de drogas, depois que o Complexo do Alemão foi ocupado pelas UPPs em 2010. Em 2014, 244 morreram em ações da polícia na cidade do Rio. Do total de vítimas, 68 (ou 28%) perderam a vida nessa região do 41º BPM. A Anistia analisou dez homicídios, de pessoas com idade entre 17 e 40 anos, na favela de Acari e concluiu que em nove casos existem fortes indícios de crime de execução.

Em 2012, a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro publicou a Resolução nº 8/20129 aboliu o uso das designações “resistência

seguida de morte” nos registros policiais e sugeriu sua substituição por homicídio decorrente de intervenção policial:

Art. 1º - As autoridades policiais devem deixar de usar em registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crimes designações genéricas como "autos de resistência", "resistência seguida de morte", promovendo o registro, com o nome técnico de "lesão corporal decorrente de intervenção policial" ou "homicídio decorrente de intervenção policial", conforme o caso.

9 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-dez-21/secretaria-direitos-humanos-abolir-autos-resistencia-bos.

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A mudança de nomenclatura foi uma reivindicação de grupos de defesa de direitos humanos, para os quais a expressão ‘resistência” protegia policiais que cometiam abusos e violações de direitos humanos. Para alguns especialistas, a mudança não é suficiente para conter o excesso dos policiais. A Anistia Internacional, por exemplo, afirma que as novas expressões ainda mantêm o pressuposto de que qualquer vítima da polícia estaria atuando em "oposição" e "resistência" às operações policiais.

Apesar da mudança de nomenclatura e de novos procedimentos, a "estrutura de matança", em que policiais, delegados, promotores e juízes agem em conjunto para dar legitimidade às mortes ainda continua igual. (ZACCONE, 2013, p. 115)

Para Julita Lemgruber, as mudanças são puramente cosméticas. Apesar do Estado ser obrigado a investigar essas mortes, nada é feito. Daí surge a necessidade de se justificar tais mortes de alguma forma. “As autoridades de segurança escolheram a política do confronto, optaram por travar uma insana guerra às drogas num limite absolutamente insuportável. Os números exigem que o secretário estadual de Segurança e o comandante da PM se justifiquem.” (apud OUCHANA, 2017, s/p)

2. Pacificação e alteridade: a conversão do Outro em ameaça

O termo pacificação não é novo. Definida no dicionário de língua portuguesa como ação ou efeito de pacificar, tornar pacífico, restabelecer a paz, a palavra pacificação tem dado nome a diferentes ações e modos de regulação social ao longo da História. O termo é empregado desde o período colonial ibérico, principalmente na América Espanhola, como justificativa para a catequização dos povos indígenas. Ele é encontrado, por exemplo, nos textos das Leyes Nuevas10 de 1542, que proibiam a escravização dos índios na

América Espanhola. As pacificaciones também foram citadas na controvérsia

10Conjunto de normas que procuravam melhorar as condições dos índios da América espanhola, especialmente, através da supressão do sistema de encomiendas.

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entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúlveda no contexto da Junta

de Valladolid em 1550, que versava sobre a escravidão dos nativos.

Embora não seja possível dizer exatamente quando o termo pacificação se institucionalizou na América portuguesa, ele passou a ser empregado no Brasil para se referir à conquista de território ocupados por povos indígenas. Pacheco de Oliveira (2014) assinala o uso do termo já nos princípios da colonização portuguesa de caráter militar na América. A justificativa é a conquista de novos territórios, a expropriação das terras ocupadas pelos índios e o controle das populações indígenas por missionários. Segundo o autor, tratava-se de promover uma guerra de conquista contra as nações indígenas, submetendo as populações e as autoridades autóctones ao exclusivo comando de El Rey, transformando terras dos nativos em território português (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014, p. 129-130).

Em 1548, Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil, elaborou um regimento que fazia referência à pacificação para designar o conjunto de estratégias militares de intervenção a ser adotada na colônia. De acordo com o regimento, a recomendação era de atrair os índios, fazer guerra aos que se mostrassem inimigos, destruir aldeias, matar, cativar enquanto se negociasse a paz, conforme os seguintes trechos do texto: “atraí-los à paz para a propagação da fé, aumento da povoação e do comércio”; “que se fizesse guerra aos que se mostrassem inimigos [...] destruindo-lhes as aldeias e povoações matando e cativando [...] e fazendo executar nas próprias aldeias alguns Chefes que pudesse aprisionar enquanto negociasse as pazes” (apud PACHECO DE OLIVEIRA, 2014).

Para Robert Moraes (2005), desde a Independência, o Brasil foi concebido como um espaço, e não como uma sociedade: um espaço para ser conquistado, e as populações como instrumentos desse movimento de conquista. Nesse sentido, Moraes defende que durante a construção do Brasil como Estado moderno, foi assumido um projeto nacional básico no qual o território – e não a nação – era seu principal motor de formação. Para Adriana Barreto de Souza (2008), a forma com que as diversas rebeliões coloniais foram repreendidas e sufocadas no Brasil reforça a ideia de disputa de territórios. “A

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relação de uma sociedade com um espaço determinado e, nesse sentido, é a apropriação que qualifica uma porção de terra: usos, conflitos, negociações, hegemonias e violências sustentadas por ações e projetos políticos específicos” (SOUZA, 2008, p. 234).

Durante o Império, o discurso de pacificação foi retomado, mais precisamente durante o período regencial11 (1831-1840)12. Para enfrentar os

rebeldes, foi criada, em 1831, a Guarda Nacional. Segundo Gomes (2014), ela foi um instrumento para impor a lei e a ordem pública, reprimindo com violência as agitações e revoltas. Na época, não havia exatamente um Exército, nos moldes de um exército moderno, como uma corporação militar específica, com coesão e espírito de corpo. O exército imperial brasileiro de então foi reorganizado e se consolidou ao longo das sucessivas revoltas do Período Regencial, especialmente a partir de 1837-1840, com o objeto de pacificar o território. Surgia então a ideia de pacificação no sentido de repressão por meio da violência organizada.

A pacificação no período regencial teve por objetivo manter a unidade territorial da nação. Embora não muito discutido na literatura, as políticas de repressão das rebeliões na Regência são vistas hoje como a gestação das estratégias e tácticas de polícia e de patrulhamento ostensivo das vias públicas (FORJAZ, 2005), aplicadas ainda hoje nas campanhas pacificadoras empreendidas pelas polícias militares brasileiras.

O significado de pacificação deixa de ser o original, voltado para a figura dos indígenas, e passa se voltar para rebeldes, insurgentes e agitadores. Trata-se da pacificação daqueles que são vistos como ameaça à ordem social, ou Trata-seja, pacificar agora é regular, neutralizar, delimitar e conter grupos tido como perigosos à ordem dominante.

11 Quando o imperador D. Pedro I abdicou do poder em 1831, seu filho e herdeiro do trono D. Pedro de Alcântara tinha apenas 5 anos de idade. A Constituição brasileira do período determinava, neste caso, que o país deveria ser governado por regentes, até o herdeiro atingir a maioridade (18 anos).

12 Dezenove rebeliões eclodiram em todo o Império. Do norte ao sul do país, os principais movimentos ocorridos foram: Sabinada (1837-1838), Farroupilha (1835), Balaiada (1838-1841), Cabanagem (1835-1840), Cabanada (1832), Praieira (1848), Revolta de Carrancas (1833), Revolta de Manuel Congo (1838), Revolta do Reino da Pedra Bonita (1838) e Revolta dos Malês (1835).

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As condições de produção do discurso da-e-sobre a UPP são diferentes das condições de produção discursivas do Brasil Colônia ou do Brasil do século XIX. A pacificação não se refere mais aos índios. Não se trata de pacificar os índios, de pacificação indígena. O processo de pacificação é enunciado atualmente em referência ao Rio de Janeiro, a partir de um espaço específico da cidade, a favela. É a polícia dita pacificadora, a que “restabeleceria” a paz. (GOMES, 2016, p. 190-191)

Dessa forma, existe uma fronteira de significados e sentidos que divide o Rio de Janeiro entre cidade e favelas, divide ainda os moradores entre aqueles que pertencem ou não à cidade, cuja imagem de favela é a de um problema social, dita fratura urbana, “como território de violência e da pobreza, da ilegalidade frente à cidade legal”. (VALLADARES, 2005, p. 20).

No discurso oficial, o objetivo da política de implantação de UPP seria assegurar a “retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do Estado com a população13”. Para tal,

a pacificação teria papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializaria a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades. No entanto, se o propósito da UPP é a retomada de território e a aproximação do Estado com as comunidades, existe o pressuposto tais espaços estariam fora do alcance do Estado: daí a necessidade de reconquistá-los. E o Estado elege a política pacificadora como agente de mediação dessa relação entre Estado e comunidade:

A UPP mantém a paz nos morros do Rio de Janeiro desde 2008; A ação da UPP permite a entrada do Estado nas favelas; Beneficia pessoas; Faz os moradores se sentirem seguros em relação à violência nas favelas; Faz o país sentir orgulho do que a polícia do seu país é capaz de fazer; As forças de segurança do país são capazes de deter o crime; A conquista é a retomada de vários territórios; Promove segurança, cidadania e inclusão social. 14

13 Disponível em: http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp 14 Disponível em: < http://www.upprj.com/index.php/as_upps.>

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Um elemento importante da construção da pacificação como disputa de territórios reside na alteridade que reveste o emprego de dicotomias no discurso da pacificação. No caso do Rio de Janeiro, a geografia da cidade se reflete em distinções como asfalto x morro, em que o asfalto é o espaço da ordem, do Estado, da prosperidade, enquanto o morro é o do caos, da ilegalidade, da marginalidade, e da pobreza. Para Letícia Cantarela Matheus, a inserção ou a da favela de um determinado contexto tem cunho estratégico:

A indefinição dessas fronteiras revela apenas que, na dinâmica da cidade existem lutas por identificação em torno da dicotomia morro/asfalto. Dependendo do sujeito que narra a história, a opção pela inserção ou não das favelas em certo bairro pode ser fator de valor tanto positivo quando negativo. Pode significar tanto um esforço de diferenciação por parte dos moradores do asfalto em relação à identidade da favela, quanto ao contrário, dos moradores da favela em relação ao asfalto de maneira afirmativa. E também pode haver quem entenda de outra forma, como sendo estrategicamente útil não retirar a favela da territorialidade do bairro. (MATHEUS, 2011, p.55)

A representação da violência urbana por meio de contraposições entre asfalto e morro, bairro e favela, periferia e centro, assim como a utilização de personagens que encarnam tipos estereotípicos ou exemplificadores, acabam se prestando à difusão e à perpetuação do medo entre grupos sociais econômica e socialmente privilegiados.

Para Ferreira Júnior:

Em relação à violência urbana no Rio de Janeiro, apresentada ora como problema do presente a ser resolvida, ora como reduto da de uma espécie de “maldade” ou “criminalização” de estratos das populações periféricas e da necessidade de proteção de que a elite (necessita se cercar, pois conforme ela afirma, “pelo menos nesses dois casos, o medo midiático girou em torno de alguns fantasmas específicos do imaginário de determinados grupos sociais” (p. 12). E, na visão da autora, a influência do medo no acionamento e na retroalimentação de uma espécie de “imaginário sobre a violência” (FERREIRA JUNIOR, 2014, p. 274)

A elite tem medo do morador da favela, que deve ficar contido em seu espaço, o que fortalece a representação de uma cidade partida. “As favelas passam então a ser percebidas como a “outra metade da cidade‟, aparecendo, antes de tudo, como o território da violência e da pobreza, da ilegalidade frente

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à cidade “legal” (VALLADARES, 2005, p. 20). Nesse espaço apertado entre a serra e o mar, a metrópole é dividida para fins de controle e regulação por parte do Estado. Para Santiago (2016, p. 54), “a cidade é construída e pensada através de uma chave dicotômica do dentro/fora, do dentro da lei e do fora da lei, do legal e do ilegal. Essa dualidade se faz presente na disposição geográfica da cidade dividida entre “morro” e “asfalto”.

Nesse sentido, a favela é discursivamente construída por meio de dicotomias que privilegiam a tradição do colonizador, porém agora intermediada pelo Estado como ente que decidirá quem gozará de sua proteção e quem será sujeito matável. Conforme destaca Santiago (2016, p. 55), “essa dicotomia entre ‘centro’ e ‘periferia’, ‘morro’ e ‘asfalto’ e, portanto, ‘legal’ e ‘ilegal’ acaba sendo intermediada pelo Estado como o limiar decisório do que está dentro e do que está fora”. Seguindo-se a lógica da modernidade, o Estado se constitui como aquele que define a normalidade e a excepcionalidade. “E ao se constituir no árbitro dessas fronteiras, o Estado acaba por fazer uso de sua prerrogativa de soberania para não somente localizar essas fronteiras como também quem estará do lado de lá de cada uma delas” (SANTIAGO, 2016, p. 55). Assim, a vida perdida do lado de lá não merece o luto por parte do lado de cá, por ser dano colateral na preservação da ordem.

Para a proteção do “asfalto”, vidas do “morro” são passíveis de sacrifício.

Jorge Luiz Barbosa, diretor do Observatório de Favelas15, afirma que a

construção de subjetividades através do discurso de pacificação legitima determinadas atitudes estatais segundo as quais algumas vidas têm mais valor que outras:

Essas palavras trazem a ideia de que vivemos em cidades partidas, metrópoles partidas, e isso acaba ocultando a questão da desigualdade socioeconômica que se expressa territorialmente e que nós chamamos de distinção territorial de direitos. Algumas pessoas na cidade têm mais direitos que as outras. Por isso a vida de algumas pessoas é mais valorizada que a de outras. (BARBOSA, 2014, p. 18)

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Igualmente trágica é a constatação de que as vidas perdidas não possuem apenas endereço – no sentido de estarem nos espaços definidos como ‘favelas’ – mas também cor. Estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de 2016 indica que os homens negros têm 23,5% mais chances de serem assassinados do que os brancos no Rio de Janeiro. Daí a necessidade de se perceber como o discurso da pacificação também contribui para a difusão do negro, pobre e favelado como classe perigosa no contexto urbano brasileiro:

[A] morte, do outro e do negro/pobre seriam, no contexto social e histórico em que essa narrativa sobre a violência se constrói, instâncias objetivas de medos como do desconhecido (total e parcialmente), da incivilidade, da ameaça à fragilidade ou ao exercício de um poder simbólico. Em um grau maior de objetivação, tem-se o outro representado pelo narcotraficante, que encarna a culpa; tem-se a morte como um desvio da vida, representando uma ruptura da ordem. Desse modo, por meio de uma articulação entre medos de perigos subjetivos e perigos objetivos (p. 46), é que a narrativa midiática constrói o medo na esfera urbana. (FERREIRA JÚNIOR, 2014, p. 277)

A centralidade da disputa de territórios na política de pacificação se destaca nos pronunciamentos do então secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame, par quem a UPP funcionaria como a principal estratégia de retomada de territórios “perdidos” parar as organizações criminosas:

Se você entra numa área dominada pelo tráfico ou pela milícia tem de prestar contas de seu ir e vir a alguém armado. Eles cobram para deixar o caminhão de gás entrar, cobram da empresa que instala TV por assinatura. É o que chamam de pedágio. É inadmissível que o cidadão tenha de prestar contas a uma pessoa armada, que não é servidor do Estado (BELTRAME, 2010, s/p).

Assim, a estratégia da UPP estaria atrelada ao local onde ela é instalada, à política do Estado a que ela responde, os profissionais públicos com que opera e as produções históricas das relações entre Estado e territórios populares. Nesse sentido, observa-se que a formação e atuação da polícia brasileira, mais precisamente a carioca, protagonista das experiências das UPPs, possui íntima relação com os territórios populares e sua população. Desde o desembarque do primeiro aparato policial brasileiro, junto à família real em 1808, a corporação, que após décadas iria receber a designação de Polícia Militar do Rio de Janeiro,

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teve seu olhar disciplinado à identificação de corpos "estranhos" e “indesejáveis” que circulavam pelas ruas, diferentes do "eu" branco-europeu (SOARES, 2001). Por serem “indesejáveis”, seriam corpos que ameaçam e, portanto, devem ficar confinados em determinados locais para serem melhor regulados.

Fundada numa alteridade radical, na qual o "Outro" é expulso do espaço intersubjetivo, ou seja, "foge ao campo das formas de sociabilidade" (JODELET, 2002, p. 58), a política de pacificação seria alimentada pelas projeções de periculosidade e impurezas destinadas aos grupos em que deveria exercer sua força. Com sua organização militar produzida e mantida pela elite, a polícia das grandes cidades brasileiras sempre visou o exercício da vigilância e coerção sobre os sujeitos e "grupos não-elite", delineando aos poucos o rosto de seu inimigo: "ora escravos, ora 'bandos de capoeiras', ora 'vagabundos', ora aqueles que 'tinham o atrevimento de ficar nas ruas após o toque de recolher'" (BICALHO, 2005, p. 41).

As três fases da pacificação vislumbrada para o Rio de Janeiro por Beltrame – ocupação das comunidades, criação de polícia comunitária, e oferta de serviços públicos à comunidade – seguiriam as mesmas lógicas identificadas por Todorov (1997) em relação ao Novo Mundo. Em ambos os casos, a primeira fase do encontro possibilitaria o conhecimento entre os dois lados de forma a viabilizar uma convivência pacífica entre diferentes. No entanto, o que ocorreu foi o desencontro, no qual um lado se impôs ao outro, reduzindo o diferente a uma ameaça existencial e, portanto, passível de eliminação pela força.

Neste novo mundo das metrópoles brasileiras, o Estado vê nas favelas o espaço da anormalidade, da marginalidade (SANTIAGO, 2016), o que caracterizaria as favelas como o local de desordem. “Ao se propor retomar o controle armado daqueles territórios e integrá-los à cidade através das políticas de pacificação, o Estado faz uma leitura em que estabelece a favela como o território de anormalidade, de excepcionalidade em relação à ordem estatal e, portanto, permite o uso de políticas de exceção como entrar na favela e agir de modo arbitrário e excessivo com a população que ali reside. Nesse sentido, percebe-se que a favela acaba por se tornar o lugar sobre o qual o Estado manifesta, em toda sua expressão, a soberania.” (SANTIAGO, 2016, p. 55)

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Para Valladares (2005), a concepção da favela como um problema a ser extinto ou pelo menos controlado no âmbito de seu crescimento populacional existe desde o início do século XX. Nesse período, houve o aumento no poder de fogo dos traficantes, que passaram a utilizar armamentos mais pesados, com o objetivo de defender o território contra invasões da polícia e de grupos rivais que disputavam os pontos de venda da droga. Dessa forma, ancorado ao antigo discurso que associa os pobres a uma classe perigosa, intensifica-se a mobilização da sociedade carioca em relação aos problemas urbanos decorrentes da existência desses espaços na cidade.

Para Regina Célia Pedroso (2002), a legislação penal brasileira tem um histórico de construir a ociosidade como crime. “Reconhecida e legitimada abertamente, a prática da repressão aos desempregados e subempregados – os pobres – ficava clara no discurso dos responsáveis pela segurança pública e pela ordem nas cidades”, afirma ela. Por tal razão, não deve ser surpresa como a expressão “classe perigosa” passou a ser usada como sinônimo de “pobre”. “Isso significa dizer que o fato de ser pobre o torna automaticamente perigoso à sociedade”, e a existência do crime, da vagabundagem e da ociosidade justificava o discurso de exclusão e perseguição policial às camadas pobres e despossuídas”, afirma Pedroso (2002, p. 24).

Maria Helena Souza Patto (1999) aponta que a obsessiva preocupação de cientistas e autoridades policiais nos países industriais europeus com a "vagabundagem" repetia-se no Brasil da Primeira República, embora com outra figuração: "Bastava ser pobre, não-branco, desempregado ou insubmisso para estar sob suspeita e cair nas malhas da polícia" (PATTO, 1999, p. 175). Os homens pobres, em sua maioria negros alforriados que se juntaram a outros em condição de miséria nos cortiços, tornaram-se símbolo do mal a ser extirpado (REIS, 2000).

De acordo com Juliana Coeli (2016), o crescimento da atividade de gangues em favelas para suprir demandas nacionais e internacionais de drogas levou a sociedade a fazer uma associação entre favelas, drogas e violência urbana, embora as pesquisas acadêmicas sugiram que menos de 1% dos moradores das favelas estão envolvidos no tráfico de drogas. Entretanto, ao

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invés de problematizar a questão da violência como produto de processos históricos de desigualdade sistêmica, o Estado opta por considerar violência como uma característica natural e inerente às favelas. “Assim, os moradores das favelas ganharam uma reputação de serem violentos e perigosos, ao invés de vítimas da significativa negligência histórica do Estado. A política do governo de guerra às drogas foi moldada por esses preconceitos, que há décadas sustentam uma realidade na qual a principal presença do estado nas favelas foi através da Polícia Militar”, afirma a pesquisadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aumento da violência no Rio de Janeiro e a proximidade dos megaeventos que seriam sediados na cidade (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016) foram aspectos relevantes para a necessidade de se trazer de volta a ideia de Cidade Maravilhosa. Nesse sentido, a política de pacificação, que tinha como objetivo reconquistar territórios perdidos para o tráfico de drogas e criar um novo modelo de polícia comunitária por meio da criação de UPPs, tentou amenizar a sensação de violência.

No entanto, após quase uma década de experimentação, a política de pacificação se mostra um fracasso. Comunidades que receberam UPPs voltaram a experimentar tiroteios e operações policiais de caça a criminosos. O aumento de mortes de moradores das comunidades, especialmente aqueles resultantes de “balas perdidas” e de autos de resistência, reforçou a percepção de “plus ça change, plus c’est la même chose” para os moradores dessas comunidades, historicamente tratados como sujeitos indesejáveis pelos agentes do Estado brasileiro.

Nesse sentido, a polícia do Rio de Janeiro, incumbida de papel eminentemente coercitivo na disputa de territórios para regulação de corpos, reproduz práticas de alteridade que podem ser identificadas aos tempos do Brasil Colonial. Nesse sentido, estratégias de pacificação do negro, pobre e favelado, discursivamente construído como sujeitos estranhos, indesejáveis e, portanto, passível de regulação, revelam a persistência dos efeitos negativos do

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373 desencontro dos europeus com os nativos no Novo Mundo. A política da UPPs,

apesar de bem-intencionada em seus objetivos iniciais, tornou-se agora parte do problema. Não por acaso, a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada em março de 2018, decidiu fechar 12 UPPs na cidade.

No balanço de dez anos de UPPs, o que vemos é a continuidade de práticas que ainda reificam a figura da “classe perigosa”, em que grupos sociais privilegiados são protegidos em detrimento a outros que não são objetos de proteção estatal. O morador da favela deixa de ser visto como igual, passando a ser tratado como um sujeito passível de eliminação, constituindo-se naquilo que Agamben chama de “vida nua”.

A alteridade que perpassa o discurso da pacificação tem como pano de fundo o racismo em relação ao não-branco, apesar de agora interlaçado com questões de classe. A operacionalização da pacificação por meio de (re)tomada de espaços de organizações criminosas a qualquer custo garante o mecanismo atuante da biopolítica de “fazer viver e deixar morrer”, oposto ao "fazer morrer e deixar viver", característico do poder soberano. Há nesse jogo de poder uma separação entre aqueles benéficos à população, à vida do homem enquanto espécie, que farão viver, e aqueles desviantes e fracos, que farão morrer.

Como bem lembra Foucault (2002, p. 305), “a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”. Tal frase nunca foi tão revelador quanto agora para milhares de pessoas que habitam o novo mundo dos morros e periferias da cidade do Rio de Janeiro.

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REFERÊNCIAS

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