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HÁ INSTRUMENTOS JURÍDICOS SOCIALMENTE EFICAZES PARA A NECESSÁRIA REFORMA POLÍTICA BRASILEIRA?

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HÁ INSTRUMENTOS JURÍDICOS SOCIALMENTE EFICAZES PARA A NECESSÁRIA

REFORMA POLÍTICA BRASILEIRA?

ARE THERE SOCIALLY EFFECTIVE LEGAL INSTRUMENTS FOR THE NECESSARY

BRAZILIAN POLITICAL REFORM?

Alexandre Izubara Mainente Barbosa * Luiz Sales do Nascimento **

Resumo: Parte-se do pressuposto segundo o qual

há uma crise política no Brasil. E que há necessidade de reforma do sistema, com o objetivo de torná-lo legítimo novamente. A partir desses pressupostos, põe-se o problema: há instrumentos jurídicos hígidos para a reforma política? Durante a análise científica da validade da tese apresentada foi utilizado o método dialético. Assim, são formuladas as perguntas: O Congresso Nacional a ser eleito para a legislatura de 2019/2022 poderá realizar essa reforma política de forma socialmente eficaz? Caso a resposta para a questão anterior seja negativa, existe algum instrumento, dentro dos parâmetros do ordenamento jurídico vigente, que pode ensejar uma reforma eficaz? Superadas as questões anteriores, por inviáveis, romper

Recebido em 18/10/2018. Aprovado em 17/12/2018.

* Mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É especialista em direito tributário pela Universidade Católica de Santos, em direito e processo do trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus e bacharel em direito pela Universidade Católica de Santos. Jurista e Professor de Direito Constitucional no curso de graduação da Faculdade Praia Grande. Autor de diversas obras jurídicas e artigos de periódicos nacionais e estrangeiros. Foi representante titular da 132ª subsecção da OAB/SP entre os anos de 2011 e 2013 junto ao CONDEMA (Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente) através do Decreto Municipal nº 5.023/11. É assessor na 3ª Câmara Recursal do Conselho Seccional da OAB/SP e na Comissão de Ética e Disciplina em Praia Grande

** É doutor em Direito do Estado, com área de concentração em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). É mestre em Direito do Estado, com área de concentração em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). É pós-graduado em Direito Constitucional - com ênfase em Garantias Eleitorais, pela Universidade Castilla La Mancha - ESPANHA. É professor de Direito no curso de graduação da Universidade Católica de Santos e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISANTOS, vinculado em regime de dedicação de 40 horas semanais, aprovado e selecionado mediante Editais nºs. 94/2014 e 107/2014, atuando no Ensino, na Pesquisa, na orientação a estudantes. Além das atividades acadêmicas, foi Procurador do Estado de São Paulo em 1989, e desde 10/04/1990 é Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo. Integra o Núcleo Docente Estruturante da UNISANTOS. É líder do Grupo de Pesquisa Regimes e Tutelas Constitucionais da UNISANTOS, registrado no CNPQ.

com a ordem jurídica vigente, por meio do exercício do Poder Constituinte Originário, objetivando criar um subsistema político constitucional é hipótese razoável? Sendo a resposta para a questão anterior também negativa, há como criar-se um instrumento jurídico que possibilite uma reforma socialmente eficaz? Das hipóteses estudadas e rechaçadas, foi formulada a seguinte tese: O Direito Constitucional Comparado apresenta institutos que podem ser inseridos em nosso ordenamento jurídico, por meio de emendas constitucionais, capazes de possibilitar uma reforma política socialmente eficaz.

Palavras-chave: Reforma Política. Poder Constituinte. Direito Constitucional Comparado.

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ISSN 1980-8860

RVMD, Brasília, V. 12, nº 2, p. 28-54, jul.-dez. 2018 E-mail: rvmd@bol.com.br

Abstract: This article starts from a factual

assumption that there is currently a crisis in the Brazilian political system, due to the loss of its legitimacy, as expressed repeatedly in popular demonstrations initiated in June 2013, which can be summarized in the motto published since then, and leaked, in colloquial language, in the phrase "do not represent us". Another prerequisite for the development of the analysis is the need to reform the aforementioned political system, with the objective of making it legitimate again, otherwise it will create chaos in this subsystem, with repercussions not yet seen in the adjacent subsystems, such as the economic, the cultural, and the legal. From these assumptions, the problem arises, whether there are sound legal instruments for the necessary Brazilian political reform. During the scientific analysis of the validity of the presented thesis was used the dialectical method, as well as the hypothetico-deductive, with explanatory objective, aiming to identify the factors able to confer the validity of the thesis offered to solve the problem under study. The present study does not offer answers with ideological content for the solution of the problem, because it would lose the necessary axiological neutrality to a scientific work. Thus, to try to answer the central question

of the work, questions are formulated, which are answered at the end of the investigation. The questions are three: 1st. Is the National Congress to be elected for the 2019/2022 legislature able to carry out this political reform in a healthy way, that is, in a socially effective way? 2nd. If the answer to the previous question is negative, is there any instrument, within the parameters of the current legal order, that can lead to effective reform? 3rd. Having overcome the previous questions, as impracticable, breaking with the current legal order, through the exercise of the Original Constituent Power, with a view to creating a new constitutional political subsystem is a reasonable hypothesis? 4th. Since the answer to the previous question is also negative, is it possible to create a legal instrument, within the parameters of the current order, which enables socially effective reform? From the hypotheses studied and rejected, the following thesis was formulated: Comparative Constitutional Law presents institutes that can be inserted in our legal system, through constitutional amendments, capable of enabling a socially effective political reform.

Keywords: Political Reform. Constituent Power.

Comparative Constitutional Law.

SUMÁRIO: Introdução 1. A reforma política realizada pelo Congresso Nacional 2. Poder constituinte 2.1. O poder constituinte originário e a legitimação democrático-representativa no Brasil 2.2. Da necessária legitimação democrático-representativa dentro da ordem vigente 3. A reforma constitucional no direito comparado. Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO

As manifestações populares de junho de 2013 no Brasil, iniciadas por jovens estudantes em razão da majoração da tarifa do transporte urbano na cidade de São Paulo, ganharam proporções numéricas, e de importância, como as grandes manifestações contemporâneas mais recentes ocorridas na história do país se ombrearam, em importância, ao Comício da Central durante o governo João Goulart, aos movimentos pelas Diretas Já dos Caras Pintadas quando do impeachment do Presidente Fernando Collor de Melo.

A ciência da história, que necessita de um distanciamento temporal, deverá asseverar, com certeza científica, quais foram os fatos e fatores deflagradores da adesão multitudinária ao movimento dos jovens estudantes, até então minguado e politicamente insignificante.

É certo também, que um trabalho jurídico científico não pode se arvorar em desvendar tão complexo, rico e recente processo social, não é a sua tarefa. Daí que não são objeto do trabalho os motivos pelos quais as manifestações arrastaram multidões e ganharam grande significado político.

Entretanto, é um truísmo afirmar que a pauta singular do transporte público com tarifa zero multiplicou-se em um átimo, consubstanciou-se uma miríade de reivindicações difusas, desde a exigência de mais investimentos em saúde e educação, até o rechaço da proposta de emenda constitucional nº 37, que conferia exclusivamente à polícia a apuração de investigações criminais, em detrimento do Ministério Público.

O descontentamento popular com o sistema político é observado na frase que ganhou o mundo por meio das faixas fotografadas para jornais, revistas, filmadas por câmeras de televisão e, sobretudo, porque reproduzidas nas redes sociais: “não nos representam”. As bandeiras das agremiações políticas não foram toleradas pela multidão desorganizada, revelando um movimento espontâneo e apartidário, que assim canalizava e atribuía todo o seu descontentamento com o sistema político representativo vigente no país.

E esse mesmo, o sistema reagiu ao inesperado protesto de descontentes das mais variadas classes sociais, gerações e ideologias.

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Assim é que, pontualmente, com instinto de preservação, o Congresso Nacional, à época, tratou de sepultar a proposta de emenda constitucional n. º 37 e, recentemente, fez aprovar emendas constitucionais que denominou de reforma política, a serem estudadas no curso deste trabalho. Já a Presidente da República, propôs cinco medidas, entre as quais, destaca-se, por ser objeto do nosso trabalho, a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, exclusiva para a reforma política.

1. A REFORMA POLÍTICA REALIZADA PELO CONGRESSO NACIONAL

Os movimentos de junho de 2013 provocaram grandes alterações no quadro político do país, tendo redundado na divisão quase fratricida do povo brasileiro, ou talvez de sua classe média, formadora de opinião, no impedimento da Presidente da República em exercício para terminar seu mandato, face sua condenação em processo por crime de responsabilidade.

O mundo político já houvera se abalado, pouco antes das aludidas manifestações, com a condenação de expoentes da República em processo conduzido no Supremo Tribunal Federal, conhecido na mídia como mensalão.

Apelidada de Lava Jato, operações de investigação envolvendo a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, redundaram em inúmeros processos, com prisões preventivas e condenações de políticos e empresários que, em troca de favores recíprocos, teriam oferecido dinheiro para as campanhas políticas, o que acabou por deslegitimar ainda mais o sistema normativo político-constitucional.

Às demandas por melhoria das prestações sociais nas áreas de saúde, educação e transporte, envolvendo sobretudo parcela da classe média brasileira, somou-se o descontentamento com a corrupção política no financiamento de campanhas.

Embora as instituições brasileiras tenham resistido, o sistema representativo se deslegitimou. O parlamento, com instinto de preservação, apressou-se em anunciar uma reforma política colimando a legitimação do sistema representativo e, para tanto, fez aprovou a Emenda Constitucional de n. º 97, de 4 de outubro de 2017, que alterou a Constituição Federal para vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de

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propaganda gratuito no rádio e na televisão acrescentando determinados parágrafos no artigo 17 da Constituição Federal.

Preceituou, ainda, os períodos de vacatio legis, ao dispor, no seu artigo 2º, que a vedação à celebração de coligações nas eleições proporcionais, prevista no § 1º do artigo 17 da Constituição Federal, aplicar-se-á a partir das eleições de 2020; e no artigo 3º, que o disposto no § 3º do artigo 17 da Constituição da República, quanto ao acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão, aplicar-se-á a partir das eleições de 2030.

No que tange ao acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão, por reformas pontuais, introduziu o artigo 3º, acrescentando um parágrafo único, servindo para preservar o sistema atual de representação, mas incapaz de infirmar a ilegitimidade sintetizada na expressão popular, “não me representam”.

Em verdade, o povo assumiu às ruas em junho de 2013, não por um programa partidário, mas para cobrar um programa constitucional a ser, efetivamente, cumprido, porquanto os direitos pactuados neste verdadeiro contrato social não são cumpridos, segundo a ótica popular. Se os representantes eleitos, em trinta anos da Constituição apodada Cidadã, não lograram cumprir o programa constitucional, é forçoso concluir que o povo se expressou no sentido de obter um novo sistema político-constitucional, com novas regras de representação, quiçá de instrumentos de democracia direta.

As reformas pontuais não relegitimaram o sistema, porquanto não trouxeram melhora para a qualidade da representação, tampouco ofereceu novas formas de participação popular nos negócios do Estado, muito menos impediu o financiamento de campanhas eleitorais por parte do empresariado. Com as reformas, foram beneficiados os próprios mandatários, valendo-se do plexo de normas materialmente constitucionais, constantes do Direito Constitucional e do Direito Eleitoral para, novamente, se elegerem e se manterem no poder.

A relegitimação do sistema político representativo brasileiro exige uma reforma que permita a igualdade no ponto de partida dos certames eleitorais e precisa ser pensada, debatida e votada por quem não faz parte do jogo político atual. Por isso, vislumbra-se a

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renovação dos parlamentares nas eleições, possivelmente grande, dada a insatisfação popular atual.

O problema, contudo, persistirá. Os mesmos instrumentos que levam à representação viciada serão utilizados, formatando a conduta dos novos parlamentares nos mesmos moldes dos atuais mandatários o que implica dizer que essa reforma não atende aos anseios da nação, voz dos manifestantes ouvida em junho de 2013, desiludida, mas esperançosa pelas reformas legítimas para o aperfeiçoamento do sistema representativo.

Em um sistema democrático, a reforma da Constituição tem base na vontade popular. No caso brasileiro, a representação do povo se dá pela Câmara dos Deputados a qual desenvolve um papel funcional junto do Senado Federal legitimando ajustes na Constituição para que ela possa acompanhar o desenvolvimento dos processos sociais, políticos, econômicos e sociais.

O próprio povo, reunido em Assembleia Nacional Constituinte, constituiu os Poderes constituídos1 no Estado. Assim procedendo, outorgou às duas casas legislativas brasileiras, constituídas em um poder constituinte derivado reformador, o poder de, por meio de emendas e respeitadas as limitações do poder constituinte originário, atualizar a Constituição. Se, assim realizado, o poder constituinte derivado reformador não é socialmente eficaz para uma profícua reforma política no Brasil, qual seria o instrumento mais eficaz? Publicado em artigo de livro editado nesse momento de galvanização política no Chile2, em que se discute a necessidade ou não de uma Assembleia Constituinte elaborar uma Constituição coesa com o sistema democrático que se instaurou com a queda de Pinochet, bem demonstra o déficit democrático no Brasil3, revela-se mecanismos diversos para a mudança da Constituição no levantamento realizado em diversos países:

Iniciativa Popular Assembleia Constituinte Referendum obrigatório Referendum Condicional Referendum Facultativo

1 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 73-75. 2 SANDROCK C., Jorge. Asambleas Constituyentes: experiencias latinoamericanas. In: GARCÍA. José Francisco García (coordinador). ?Nueva Constituciíon o Reforma? Nuestra propuesta: evolución constitucional. Santiago: Thompson Reuters, 2014, p. 30.

3 Com a expressão déficit democrático, não se quer dizer que no Brasil não haja democracia, mas que há uma pobreza de instrumentos para realização dela.

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ISSN 1980-8860 RVMD, Brasília, V. 12, nº 2, p. 28-54, jul.-dez. 2018 E-mail: rvmd@bol.com.br Argentina X Bolívia X X X Brasil Colômbia X X X Costa Rica X Chile X Equador X X X Guatemala X X X Nicaragua X Panamá X X X X Paraguai X X X Perú X X Uruguay X X X Venezuela X X X

A partir do cotejo entre os países latino americanos, no que tange à existência desses instrumentos de participação popular, o constitucionalista chileno Jorge Sandrock afirma que o Brasil não adota mecanismos de participação cidadã.4

Embora exista, na Constituição Federal, a iniciativa popular, ela não é permitida para reformas constitucionais, da mesma foram que não são autorizados referendos ou plebiscitos.

2. PODER CONSTITUINTE

4 Al respecto, se observan en el contexto regional sistemas de cambio constitucional sin mecanismos de participación ciudadana, de participación excepctional, participativos y muy participativos. Brasil, El Salvador, Honduras, México y República Dominicana corresponden el primer grupo. (SANDROCK in GARCIA, 2014, p. 51).

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No ato das disposições persistiu, durante alguns anos de amadurecimento constitucional, a previsão do poder constituinte derivado revisor (artigo 3º). Assim como o reformador e o decorrente, são poderes já constituídos, por isso, é tecnicamente impróprio denominá-los de poderes constituinte. Aquele, já examinado acima, diz respeito à faculdade de reformar o texto constitucional, através das casas legislativas, enquanto o decorrente é próprio dos Estados estruturados na forma federada, em que as entidades parciais da federação devem, obedecidos os princípios do pacto federativo, editar as suas próprias Constituições, assim como o Distrito Federal a sua Lei Orgânica Distrital.

O constituinte originário pretendeu fazer um balanço após os cinco primeiros anos de vigência da nova Constituição brasileira permitindo que, em sessão unicameral e com um processo legislativo mais facilitado de turno único e por maioria absoluta, o texto fosse reformado. Segundo Luiz Alberto e Vidal Serrano5, a revisão encontrava limitação não apenas material, mas também temporal. É que feita a revisão no prazo fixado, não poderia mais ser revista:

A revisão já ocorreu e já produziu seus efeitos (foram efetuadas 6 emendas). E, como o art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias falava apenas em uma revisão, não se pode mais utilizar a via revisional para mudança da Constituição. Assim, qualquer alteração só poderá ser feita pela via da emenda.6

Nesse caso, embora facilitado, não foi, e não seria ante sua limitação temporal, um instrumento de renovação hígido para a necessária reforma política que permitisse relegitimar o sistema político democrático-representativo, pelo mesmo vício do exercício do reformador. Então, no caso brasileiro, não resta alternativa aparentemente que não seja a convocação o bootstrapping constitucional.

2.1. O PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E A LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICO-REPRESENTATIVA NO BRASIL

5 ARAÚJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2011, p. 44.

6 ARAÚJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2011, p. 45.

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O surgimento de uma nova Constituição pode ocorrer, basicamente por revolução, enquanto direito inerente à soberania popular, para a corrente positivista7. A ideia de poder constituinte é desdobramento da filosofia política influenciada pela ascensão da burguesia e a lenta superação do sistema medieval de produção pelo regime econômico capitalista8, com a consequente e necessária transformação cultural, que fez a sociedade ser vislumbrada não apenas segundo a visão antropocentrista, mas também de acordo com outros valores e instrumentos próprios do mercado, como a livre iniciativa, a livre concorrência, e o contrato.

Partindo de concepções relativas aos atributos de bondade ou maldade como inerentes aos seres humanos, e da existência prévia de um Estado de Natureza, que depois se constituiu em sociedade política, as teorias contratualistas embasaram-se sempre na ideia de uma avença entre homens livres e iguais. A teoria sobre o Poder Constituinte também pressupõe tenha havido um estado de natureza, com um povo, vale dizer: “[...] todas as pessoas do grupo ainda não cindido institucionalmente entre famílias, clãs e tribos. Por isso, esse povo não necessitou de uma Constituição”9.

Em verdade as cisões institucionais já derivam das desigualdades preexistentes, que prosseguem existindo, mas que são juridicizadas pela Constituição, que então harmoniza a convivência social, não erradicando a tensão, mas diminuindo seu impacto, e mantendo-a dentro de limites aceitáveis.

As teorias são produtos de um contexto, em que é preciso dar respostas (racionais no campo da filosofia, da ciência ou da tecnologia) para explicar ou justificar um fenômeno. A teoria do poder constituinte não foi diferente e foi elaborada com o pano de fundo da Revolução Francesa, sob um contexto histórico.

No final do século XVIII, na França, cada ordem possuía seu próprio estatuto jurídico, prevendo, cada um deles, privilégios à nobreza e ao clero, que não eram estendidos ao povo. Ao Terceiro Estado cabiam os trabalhos relativos à agricultura, indústria, comércio, e uma

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010,p. 50. 8 CARVALHO, Clóvis Pereira de. Estado, instituição política superior. Santos: Edição própria, 1962, p. 112. 9 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão Fundamental da Democracia. 3. ed. São Paulo: Editora Max Limonad, 2003, p. 21.

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série de outros serviços, como aqueles próprios de atividades científicas, liberais, até o desvalorizado trabalho doméstico.

Já as funções públicas, aqui designadas, no dizer de Sieyes, como a Espada (funções militares de comando), a Toga (a magistratura), a Igreja e a Administração (os cargos e funções da Administração Real), destinavam-se às duas outras Ordens10.

Os Estados Unidos da América já haviam elaborado sua Constituição escrita, mas na França havia apenas a Declaração das Leis Fundamentais do Reino, elaborada pelo Parlamento de Paris11,sob a influência do modelo inglês12.

Imperava ainda a concepção do Direito Natural, da qual o livreto do abade não se afastava. Um direito natural que se solidificava calcado no cientificismo, como se o Direito decorresse não da natureza das coisas, mas da razão, tendo o homem direitos inatos, independentemente da vontade, e até mesmo da existência de Deus.

Tratava-se de uma concepção forjada por séculos pelos filósofos políticos, que ganhou importância por corresponder aos interesses de classe da burguesia, que já dominara a cena econômica, e agora queria dominar também a cena política. Sua vitória como classe social era inevitável.13E um direito natural com a característica da universalidade atendia bem

aos seus interesses14.

Com efeito, a autonomia da vontade para gerar a ordem social e política, nos escritos de Hobbes, a existência da sociedade política baseada no livre consentimento, como em Locke, e tantos outros novos valores, livres da influência mística da Igreja, e correlacionados aos avanços científicos de Lavoisier, Lamarck e outros, davam o tom do novo Direito Natural.

O opúsculo de Sieyes era original por contestar a ordem estabelecida, e da sua leitura surge claramente um tom panfletário, revolucionário e, portanto, ideológico. Sieyes,

10 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 63. 11 CERQUEIRA, Marcello. A Constituição Na História – Origem e Reforma – da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006, p. 121.

12 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p.46.

13 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 93.

14 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p. 37.

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entretanto, tem que explicar em seu texto o desvio de se colocar ideologicamente ao lado do Terceiro Estado, embora sendo clérigo, pois em muitas passagens critica o fato de fidalgos menores, que não conseguem lugar nos Estados Gerais como mandatários daquela Ordem privilegiada, se candidatem em nome da terceira ordem. E ele o faz, justificando com o hábito do silêncio e o receio do oprimido15.

A sua teoria sobre o Poder Constituinte parte da ideia segundo a qual existem três fases na formação de uma sociedade política.

Na primeira fase um grupo de pessoas isoladas quer se reunir, e só por este fato têm todos os direitos de uma nação. Na segunda época, deliberam sobre as necessidades públicas, e sobre os modos de satisfazê-las, onde surge a Constituição16. Já na terceira fase ou época, os associados consideram o grande número de pessoas integrantes do reino e a enormidade do território, o que inviabilizaria o exercício da vontade nacional, pelo que conferem o poder a delegados, por meio da constituição de um governo exercido por procuração.

Este governo constituído se rege por meio de uma Constituição, tida como uma Lei Fundamental, porque só pode ser modificada pela nação, jamais pelos poderes constituídos17. Assim, na teoria de Sieyes a legalidade decorre da legitimidade, n’uma acepção que hoje poderíamos dizer que confunde política com juridicidade.

Com efeito, a nação, para o abade francês, é a base da sociedade política. A primeira vive em estado de natureza, conforme o Direito Natural, mas a sociedade política se organiza conforme o direito positivo, fora do Estado Natural. Em algumas passagens, verifica-se a sujeição da nação ao direito natural18:

Uma nação não pode decidir que ela não será a nação, ou que apenas o será de uma certa forma, o que seria equivalente a dizer que o não é de qualquer outra forma. Do mesmo modo, uma nação não pode deliberar que a sua vontade comum deixará de ser a sua vontade comum. (...) A vontade comum não pode destruir a si própria. Não pode mudar a natureza das coisas e fazer com que a opinião da minoria seja a opinião da maioria.

15 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 75. 16 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 140. 17 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 139. 18 SIEYES, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, p. 142.

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O excerto acima é a viva expressão do contexto jurídico da época, marcado pela transição para o Direito Natural Moderno19.

Sieyes não conceituou explicitamente o Poder Constituinte, mas é conceito facilmente vislumbrado na parte do seu texto que trata das três fases da formação da sociedade política.

Indivíduos isolados resolvem se reunir em associação, e só por este motivo têm todos os direitos de uma nação. É direito de uma nação, a partir da vontade comum de todos, formar uma sociedade capaz de identificar suas necessidades e os modos de satisfazê-las. Uma sociedade assim, global, que abarca todos os indivíduos, é uma sociedade política. Como os indivíduos são muitos, e estão dispersos pelo território, que é bastante extenso, acabam por instituir a representação, isto é, alguns indivíduos representarão estritamente a vontade comum, sem nenhuma liberdade de ação.

Assim, pode-se concluir que Poder Constituinte é o direito que tem a nação de se associar e consensualmente estruturar um Estado para satisfazer as necessidades comuns. O consenso é expresso na Lei Fundamental, à qual estarão vinculados os representantes. Daí que, na feliz expressão de Clóvis Pereira de Carvalho (1962) o Estado é a nação politicamente organizada20.

O conceito assim elaborado é reflexo do momento histórico vivido, quando Sieyes identifica a nação com o terceiro estado. O bem comum só pode ser consolidado com uma nova sociedade política, em que a lei valha para todos indistintamente, em que a autonomia da vontade e o direito de contratar sejam indistintamente reconhecidos e conferidos a todos os indivíduos.

Por isso, para o abade, o titular do Poder Constituinte é a nação (excluída dela a nobreza e o clero privilegiados). Entretanto, como adverte Paulo Bonavides21, a teoria do poder constituinte é uma teoria da legitimidade do poder da revolução burguesa de 1789, e não se pode confundir o poder constituinte em si com sua teoria, pois poder constituinte sempre existiu.

19 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 74.

20 CARVALHO, Clóvis Pereira de. Estado, instituição política superior. Santos: Edição própria, 1962, p. 119. 21 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 141.

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Portanto, há um descompasso entre a teoria e a realidade, que devem sempre estar unidas dialeticamente. Daí que autores contemporâneos, pretendendo tornar o conceito mais científico, isto é, para ser aplicado em qualquer época da história, identificaram outros titulares do Poder Constituinte, com consequência lógica no conceito de Poder Constituinte.

Assim, na lapidar frase: o titular do poder constituinte é produto das circunstâncias históricas e aparece sempre condicionado por elas22. Assim é que, nas sociedades primitivas, por exemplo, era o rei que reunia na sua mítica figura,23 as qualidades essenciais para a invocação da identidade permissiva da necessária solidariedade para solidez do grupo social.

Em determinados momentos da história da Grécia Antiga e do Império Romano, foi uma aristocracia, com seus costumes, força militar e política para manter a coesão social em torno das Cidades-Estados. Já à época da revolução de 1789, é a nação que detém a titularidade. Mais tarde, com a revolução comunista de 1917, uma classe social, o operariado, unido ao campesinato, passa a ser o farol que cria, guia e mantém a sociedade política.

Na terminologia de Gramsci24, pode-se dizer que o titular do Poder Constituinte é o grupo social hegemônico na formação da nova sociedade política, que assenta um novo bloco histórico.

Diante dessa reflexão acerca da titularidade do Poder Constituinte, modifica-se o seu conceito. Pode-se dizer então, que Poder Constituinte é a faculdade que tem um homem (rei), um grupo (aristocracia), uma classe social (proletariado), a nação ou o povo,25 de, com base em novas ideias, valores e princípios, constituir uma nova sociedade política, um novo Estado, elaborando uma nova Constituição.

Para os adeptos do positivismo puro, metafísico, que separa o ser do dever-ser, o Poder Constituinte ocorre em um momento pré-jurídico, e, portanto, seu conceito é sociológico ou político, mas não jurídico.

22 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 158. 23 Figura mítica porque concentra na sua pessoa a identidade de um povo, a partir de sentimentos e crenças extramundanas.

24 GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas. 1. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1978, p. 30. 25 Sieyes utiliza indistintamente os conceitos de povo e nação.

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Logo não há direito ou dever, mas uma simples faculdade no sentido não jurídico, e sim de ação humana. Já os seguidores do Direito Natural, vislumbrarão nas ideias, princípios e valores do novo Estado, exatamente ideias, princípios e valores inerentes a qualquer sociedade humana, em total desconexão com a realidade histórica.

Haverá, pois, uma obrigação de criar uma sociedade política conforme as ideias, os valores e os princípios de Direito Natural. É preciso, no entanto, que nos afastemos dessas visões metafísicas que falseiam a realidade histórica, a primeira, positivista pura26, por deixar de subsumir o fenômeno político ao Direito, a segunda, própria do Direito Natural27, por vincular o fenômeno político a uma determinada concepção ideológica de mundo.

Em verdade, o Poder Constituinte é um fenômeno social, pois que se refere a uma força social determinada por condicionantes históricas, que tem a faculdade de criar a sociedade política.

Pretendemos demonstrar, todavia, que o fenômeno, como outro qualquer, pode ser analisado pela Ciência do Direito, porque se trata de um poder normativo, e não um poder meramente de fato. É um fenômeno jurídico para quem, como nós, entende que o direito nasce com o fato cultural da conduta, externando-se depois no modelo esquemático-normativo linguístico28.

Em verdade, na atual etapa histórica, por exemplo, contemporânea e ocidental, prevalece o constitucionalismo como um conjunto de princípios e instituições, como a separação entre os Poderes, a existência de um Parlamento, a submissão de todos, inclusive do Estado, ao princípio da legalidade, e um sem número de outros instrumentos normativos que contrapõe o Estado dito constitucional ao absoluto, e também à tirania, embora também haja zonas de tensão com a democracia que o inspira.

Enfim, o constitucionalismo, embasado no racionalismo iluminista, se vale do positivismo jurídico para organizar e controlar a sociedade.

26 ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e Direito. Linguagem, sentido e realidade. 1. ed. São Paulo: Editora Manole, 2010, p. 448.

27 ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e Direito. Linguagem, sentido e realidade. 1. ed. São Paulo: Editora Manole, 2010, p. 449.

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Em parte, a razão parece estar com aqueles que não adotam indistintamente o termo Poder Constituinte Originário para a elaboração de todas as novas constituições. Há, sim, um poder pré-constitucional, e outro interconstitucional, pois que a noção de Poder Constituinte Originário deve ser reservada apenas àquele que cria uma ordem constitucional em um Estado, ou quando se cria um Estado como ordem constitucional (o Brasil em 1824, v.g.)29.

Ao contrário do que frequentemente afirma-se, o Poder Constituinte não é um momento pré-jurídico, mas um fenômeno normativo. Todas as Constituições gestam outra, com normatividade tácita ou explicita. E dissemos que a razão parece estar com esta doutrina apenas em parte, porquanto até mesmo aquela primeira Constituição que cria o Estado, como a brasileira de 1824, por exemplo, está condicionada pelo que a doutrina chama delimitações do ponto de partida.

Aludidas delimitações são jurídicas, pois evidente que, se um movimento verdadeiramente revolucionário rompe com as estruturas econômicas e políticas, o ponto de partida para a elaboração de uma nova Constituição deverá guardar consonância com os valores, ideias e princípios do movimento político vitorioso, que já impõe um novo ideal de direito, isto é, uma ordem jurídica nova ainda não positivada, mas ainda assim uma nova ordem jurídica. É que sob esta forma primária, para Sarotte30:

[...] o direito já existe, mas é um direito que aguarda na antecâmara do Poder que este o chame para o instituir, e que nem sempre pode estar certo de vir a ser admitido na ordem jurídica positiva; e quando é admitido, já sofreu restrições, compressões e mutilações.

Com efeito, a título de exemplo, e para ficarmos apenas no caso brasileiro, “na primeira república, os trabalhos constituintes partiram de três diretrizes prefixadas pelo governo: o federalismo, o republicanismo e o presidencialismo”31. Filiamo-nos à concepção do direito segundo a qual o ser e o dever ser não estão apartados em dois mundos, como pretende o positivismo kelseniano.

Em verdade, convivem em um único ambiente, unitário, em que o dever-ser depende do ser para existir, e é condicionado por ele, embora em uma relação dialética, também

29 SALDANHA, Nelson. O Poder Constituinte. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1986, p. 85.

30 SAROTTE, Georges. O Materialismo Histórico no Estudo do Direito. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1975, p. 66.

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interfira na realidade. Daí que no conceito de validade da norma jurídica, a questão da eficácia tem um papel preponderante.

Por isso, esses valores que serviram de diretrizes para os trabalhos da primeira Constituição republicana brasileira, possuíam natureza jurídica, pois que na antecâmara do poder, foram postos por quem tinha competência para tanto (o grupo hegemônico naquele momento da história do Brasil), de acordo com as normas procedimentais compreendidas como legítimas e racionais, e com inquestionável eficácia, porque decorrentes da realidade social.

O direito é muito mais que aquele posto pelo Legislativo32. Quanto às

interconstituições, vale dizer, aquelas que são promulgadas ou outorgadas para substituir outra, também elas impõem uma delimitação para o ponto de partida. A Constituição Alemã, por exemplo, dispõe:

Art. 146 – Esta Lei Fundamental que, após a consumação da unidade e da liberdade da Alemanha, é válida para todo o povo alemão, deixará de vigorar no dia em que entrar uma Constituição, que tenha sido adotada em livre arbítrio por todo o povo alemão.

A expressão “adotada em livre arbítrio por todo o povo alemão” é um paradigma para a Constituição do porvir, porquanto exige a sua adoção segundo um consenso popular baseado no valor liberdade de escolha. Ora, todas as normas constitucionais produzem efeitos, são eficazes. E aquelas que se referem ao Poder Constituinte encontram-se no mundo jurídico, e não pré-jurídico. Daí se referir em novo conceito, pois não há falar-se, juridicamente, em faculdade, mas em poder-dever.

E este constituir redunda em um pacto entre os diversos grupos componentes da sociedade política, que se submetem ou acordam com a potência33 social politicamente mais poderosa, o tipo de organização político – social em que pretendem viver.

Este pacto é imprescindível para a harmônica convivência social, pois: “o titular do poder constituinte é produto das circunstâncias históricas e aparece sempre condicionado por

32 ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e Direito. Linguagem, sentido e realidade. 1. ed. São Paulo: Editora Manole, 2010, p. 88.

33 Usamos aqui a expressão potência abarcando grupos e classes sociais conscientes de seus interesses, e devidamente organizadas para defendê-los.

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elas”34 não deixa dúvidas que, se a história é, no dizer de Marx, a história da luta de classes, e que mais do que contraditórios, os interesses das classes fundamentais de um regime econômico são antagônicos, o que em filosofia significa serem inconciliáveis, o conceito de Poder Constituinte, para ser científico, deve levar em conta todo o processo histórico, com análise econômica, política, filosófica, e também jurídica.

Assim, entendemos que Poder Constituinte é o poder-dever do grupo hegemônico na sociedade política em formação, de impor, consensualmente ou não, os princípios, ideias e valores determinados pelo bloco histórico.

Com efeito, o rei, por exemplo, pode ter sido mesmo o titular do Poder Constituinte em sociedades primitivas ou durante a Idade Média, quando da divisão do trabalho ainda não redundava uma consciência de classe, viabilizadora de uma organização que permitisse a luta pelos próprios interesses.

O rei seria, aí, o único ente capaz de manter a coesão social em uma sociedade com divisão de trabalho definida, operando a superestrutura social (política, jurídica, religiosa e cultural).

À época da Revolução Francesa de 1789, no entanto, é sabido como a grande burguesia se apoderou do poder político, e afastou o povo do poder. O voto censitário foi um desses instrumentos de insulamento. Na verdade, com o imaginário sobre a expressão nação, a burguesia se apoderou no poder político.

Por isso, em uma sociedade pluralista, democrática e ocidental como a em que vivemos, não há seriamente como se falar que o povo é o titular do Poder Constituinte, a não ser como povo procedimental, ou icônico.

2.2. DA NECESSÁRIA LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICO-REPRESENTATIVA DENTRO DA ORDEM VIGENTE

Desde os trabalhos constituintes que redundaram na promulgação da Constituição Federal de 1988, que os defensores de uma Constituição sintética criticam o texto, depois

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promulgado, que se consubstanciou em Constituição analítica. É preciso perceber quais interesses se escondem por atrás da tese de que nossa Constituição deveria ser sintética como a norte-americana.

É necessário compreender, outrossim, porque nossa Constituição é analítica. O contexto político e social da época dos trabalhos constituintes era o da pós-ditadura, que não respeitava direitos fundamentais, fossem eles de que dimensão fossem. A preocupação dos agentes do titular do Poder Constituinte, nesse caso o povo, tinha todo o interesse em minudenciar os direitos proclamados, com novas fórmulas de garantias que permitissem a concretização desses mesmos direitos.

E conquanto o artigo 1º da Constituição da Federal preceitue que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, a melhor doutrina leciona que a análise sistemática das normas constitucionais nos faz concluir que a interpretação do referido dispositivo constitucional deve levar ao entendimento que o constituinte optou por uma comunidade política baseada no Estado Social Democrático de Direito.

Logo, o nosso Estado, a República Federativa do Brasil, constitui-se em um Estado Social Democrático de Direito. Foi preciso minudenciar os direitos e as garantias fundamentais de todas as dimensões, bem como fortalecer instituições de controle, como um efeito psicológico do medo de quem viveu um regime não democrático, que não respeitava direitos que, quando concretizados, levam à realização da dignidade humana no cotidiano da população.

Nossa Constituição é analítica como um roteiro que o Poder estatal democrático deve fazer respeitar, não se desviando mais dos princípios estruturantes de uma sociedade política baseada no conteúdo da ideia de um Estado Social Democrático de Direito. À evidência que a carga crítica dos juristas e cientistas políticos que defendem uma Constituição sintética, à exemplo da norte-americana, é a tentativa de desconsiderar a derrota nos trabalhos constituintes, aproveitando-se de crises constitucionais circunstanciais, que se resolvem no âmbito da política institucionalizada, para fazer proselitismo de um projeto fracassado na assembleia.

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São os juristas e cientistas políticos com discurso de teor liberal, defensores da propriedade privada tal como entendida em séculos pretéritos, em dissonância como o moderno entendimento de sua função social. Pretendem, como se possível fosse reviver a história dos momentos que precederam aos grandes processos de desenvolvimento social, político, econômico, e cultural, com suas marchas e contramarchas, durante todo o século XX. As relações, individuais e sociais, nesses campos, tornaram-se mais complexas, devido ao aperfeiçoamento de uma sociedade humana organizada de forma também mais complexa, como fruto do extraordinário desenvolvimento das ciências e da tecnologia ocorrido na última centúria.

Daí que nossa Constituição deva ser preservada nas suas grandes linhas de princípios pertinentes a uma Estado Social Democrático de Direito, com regras de igual hierarquia, que sirvam como roteiro aos ocupantes do Poder, que devem estar sempre atentos ao funcionamento eficaz de uma sociedade democrática e pluralista, próprias do mundo contemporâneo e ocidental, nascido da maiêutica pós-industrial.

Assim, também o exercício do Poder Constituinte Originário, que faça nascer uma nova Constituição, não será instrumento capaz de resolver a falta de legitimidade do sistema democrático representativo, a não ser criando novas crises decorrentes de transformações açodadas e não refletidas, circunstanciais mesmo, que desconsiderem todo o acúmulo de experiências obtidas ao longo da história política e institucional brasileira.

Acreditamos ter demonstrado como as hipóteses de solução da crise político representativa consubstanciadas no exercício do Poder Constituinte Reformador, do Poder Constituinte Revisor, e mesmo do Poder Constituinte Originário não resolvem o problema.

3. A REFORMA CONSTITUCIONAL NO DIREITO COMPARADO

O quadro sinótico reproduzido alhures demonstra que há a possibilidade de convocação de Assembleias Constituintes que funcionem simultaneamente ao Parlamento, nos termos das Constituições de diversos países da América Latina, tais como a Argentina, a Bolívia, a Colômbia, a Costa Rica, o Equador, a Guatemala, a Nicarágua, o Panamá, o Paraguai, o Uruguai, e a Venezuela.

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A Constituição Federal em vigor no Brasil não contempla essa hipótese normativa, mas também não a veda, nos termos das suas cláusulas pétreas.

Como visto, o problema da falta de representatividade política na atual quadra da história do Brasil não pode ser resolvido com o exercício do poder constituinte reformador tal qual previsto no artigo 60 da Constituição da República, nem pelo revisor, porquanto exaurido e consumido pelo seu uso, a solução exige que tal atividade política legisladora não seja exercida pelos parlamentares eleitos pelo processo político institucional em vigor, carente de legitimidade.

O vício da ilegitimidade, ou da legitimidade minguada, não pode se transferir para o subsistema normativo político constitucional de representatividade que se quer criar. Da mesma forma, foi visto que a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte poderá solucionar a questão posta neste trabalho, mas com grande perigo de provocar desnecessárias outras tensões e crises de toda ordem, quiçá ainda piores que a atual.

O Poder Constituinte Originário poderá ter papel perturbador, e fazer todos os subsistemas constitucionais sucumbirem em imensa crise, sem retorno ao ponto de partida. Se no quadro normativo constitucional brasileiro, não se vislumbra instrumento jurídico capaz de proceder de forma eficaz à reforma política, o que pode ser feito, sem ofensa a essa mesma ordem jurídica?

Os limites do trabalho nos fazem escolher duas constituições da América do Sul, selecionadas por conta da proximidade e identidade cultural com o Brasil, para procedermos a uma comparação, e dela haurir soluções, que podem ser adaptadas pelo nosso ordenamento jurídico.

As Constituições da Argentina e da Colômbia preveem a possibilidade de convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para determinados temas. Enquanto o parlamento prossegue com suas atividades normais, sem que a Assembleia Constituinte possa se imiscuir em seus trabalhos, a Assembleia convocada exclusivamente para reformar o texto no que tange a um tema, também pode exercer sua atividade demiúrgica sem interferência do parlamento. É o que se vê do artigo 30 da Constituição da Nação Argentina:

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Artículo 30.- La Constitución puede reformarse en el todo o en cualquiera de

sus partes. La necesidad de reforma debe ser declarada por el Congreso con el voto de dos terceras partes, al menos, de sus miembros; pero no se efectuará sino por una Convención convocada al efecto.

Artículo 31.- Esta Constitución, las leyes de la Nación que en su consecuencia

se dicten por el Congreso y los tratados con las potencias extranjeras son la ley suprema de la Nación; y las autoridades de cada provincia están obligadas a conformarse a ella, no obstante cualquiera disposición en contrario que contengan las leyes o constituciones provinciales, salvo para la provincia de Buenos Aires, los tratados ratificados después del Pacto de 11 de noviembre de 1859.

Diferentemente do Brasil, o Congresso argentino, também formado pela Câmara dos Deputados (representantes do povo) e o Senado Federal (representantes das unidades federadas), não exerce o Poder Constituinte Reformador.

Sua função típica, de órgão que inova a ordem jurídica, cinge-se à elaboração de normas infraconstitucionais. Entretanto, como se vê de perfunctória leitura do artigo 30 daquela Constituição, cabe a esse mesmo Congresso declarar a necessidade de reforma do texto, no todo ou em parte, com o voto de maioria qualificada de dois terços de seus integrantes, convocando para tanto uma Convenção, que exercerá o Poder Constituinte Derivado.

Essa declaração, que a doutrina discute se tem natureza jurídica de lei, ou simples ato declaratório do Poder Legislativo, é o exercício de função pré-constituinte, em que se motiva a convocação, se determina quais artigos ou partes do texto podem ser reformadas, eventualmente sugira direção de conteúdo, e se estabelece prazo para encerramento dos trabalhos.

Já o exercício do Poder Constituinte Reformador, fica à cargo da Convenção. O constitucionalista argentino Gregorio Badeni35explica o mecanismo:

Pero la Convención Constituyente (147), al ajercer el poder constituyente derivado, no es soberana ni ilimitada. Su funcionamiento está sujeto a las disposiciones de la Constitución y a los contenidos del acto declarativo de la necesidad de la reforma.

E em outra passagem leciona sobre seus limites:

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No le corresponde a la Convención declarar la necesidad de la reforma ni establecer el temario de las reformas a considerar, sino expedirse sobre el pronunciamiento del Congreso, aceptando o desestimando ese acto. Vencido el plazo, se opera la disolución de la Convención, sin que ella ni el Congreso puedan disponer su prórroga.

Como se vê, no Brasil, o constituinte originário delegou ao Congresso Nacional o poder de reformar a Constituição, ao passo que na Argentina, essa delegação é dual, vale dizer que o Congresso tem o poder de declarar a necessidade de reforma, justificando-a, e convocando um outro órgão, qual seja a Convenção, que será eleita para o fim de reformar a lei fundamental.

E se esses dois Estados possuem, cada um deles, uma única fórmula de exercer o Poder Constituinte Derivado, há exemplo de Constituição que prevê vários mecanismos para a reforma. É o caso da Constituição da Colômbia, que no seu artigo 374 prevê a possibilidade de reforma pelo Congresso, por uma Assembleia Constituinte, e por meio de referendo popular.

A leitura dessas normas se faz importante para a compreensão da distinção entre os instrumentos, e o entendimento segundo o qual é possível um sistema plúrimo de reforma constitucional, como se lê das normas constitucionais:

Articulo 374. La Constitución Política podrá ser reformada por el Congreso, por una Asamblea Constituyente o por el pueblo mediante referendo. Articulo 375. Podrán presentar proyectos de acto legislativo el Gobierno, diez miembros del Congreso, el veinte por ciento de los concejales o de los diputados y los ciudadanos en un número equivalente al menos, al cinco por ciento del censo electoral vigente.

El trámite del proyecto tendrá lugar en dos períodos ordinarios y consecutivos. Aprobado en el primero de ellos por la mayoría de los asistentes, el proyecto será publicado por el Gobierno. En el segundo período la aprobación requerirá el voto de la mayoría de los miembros de cada Cámara.

En este segundo período sólo podrán debatirse iniciativas presentadas en el primero.

Articulo 376. Mediante ley aprobada por mayoría de los miembros de una y otra Cámara, el Congreso podrá disponer que el pueblo en votación popular decida si convoca una Asamblea Constituyente con la competencia, el período y la composición que la misma ley determine.

Se entenderá que el pueblo convoca la Asamblea, si así lo aprueba, cuando menos, una tercera parte de los integrantes del censo electoral. La Asamblea

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deberá ser elegida por el voto directo de los ciudadanos, en acto electoral que no podrá coincidir con otro. A partir de la elección quedará en suspenso la facultad ordinaria del Congreso para reformar la Constitución durante el término señalado para que la Asamblea cumpla sus funciones. La Asamblea adoptará su propio reglamento.

Articulo 377. Deberán someterse a referendo las reformas constitucionales aprobadas por el Congreso, cuando se refieran a los derechos reconocidos en el Capítulo 1 del Título II y a sus garantías, a los procedimientos de participación popular, o al Congreso, si así lo solicita, dentro de los seis meses siguientes a la promulgación del Acto Legislativo, un cinco por ciento de los ciudadanos que integren el censo electoral. La reforma se entenderá derogada por el voto negativo de la mayoría de los sufragantes, siempre que en la votación hubiere participado al menos la cuarta parte del censo electoral.

Articulo 378. Por iniciativa del Gobierno o de los ciudadanos en las condiciones del artículo 155, el Congreso, mediante ley que requiere la aprobación de la mayoría de los miembros de ambas Cámaras, podrá someter a referendo un proyecto de reforma constitucional que el mismo Congreso incorpore a la ley. El referendo será presentado de manera que los electores puedan escoger libremente en el temario o articulado qué votan positivamente y qué votan negativamente.

La aprobación de reformas a la Constitución por vía de referendo requiere el voto afirmativo de más de la mitad de los sufragantes, y que el número de éstos exceda de la cuarta parte del total de ciudadanos que integren el censo electoral.

Articulo 379. Los Actos Legislativos, la convocatoria a referendo, la consulta popular o el acto de convocación de la Asamblea Constituyente, sólo podrán ser declarados inconstitucionales cuando se violen los requisitos establecidos en este título.

A doutrina constitucionalista colombiana36 explica a reforma pela via da Assembleia Constituinte nos seguintes termos:

Por medio de esta, la tarea de reformar la Constitución “se sustrae al Congreso o Parlamento y se le entrega a un cuerpo u órgano especial que, generalmente. se denomina convención o asamblea constituyente. En este sentido, se trataría de un grupo de personas (los asambleístas) que deciden los contenidos del acto reformatorio, En nuestra normativa, la Asamblea Constituyente no está reseñada como mecanismo de participación democrática dispuestos por el articulo 103 de la Carta, pero sí se la prevé como una de las modalidades que puede asumir la consulta popular, regulada en los artículos 58 y 63 de la ley 134 de 1994, estatutaria de los mecanismos de participación ciudadana. Alli se establece qu la convocatoria debe hacerse por medio de una ley que es objeto de control automático por

36 RAMÍREZ, Manuel Fernando Quinche. Derecho Constitucional Colombiano - De La Carta de 1991 y sus reformas. 5. ed. Bogotá: Editorial Temis, 2012, p. 454.

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la Corte Constitucional, de conformidad con el numeral 2 del artículo 241 de la Constitución.

Como se vê, o poder constituinte derivado pode ser exercido pelo Congresso colombiano, por uma Assembleia Constituinte, e também diretamente pelo povo, que se manifesta por referendo.

CONCLUSÃO

Após o advento das manifestações de junho de 2013, o Brasil nunca mais foi o mesmo. Não compete ao hermeneuta analisar se mudou para melhor ou para pior cuja tarefa incumbe aos politólogos, filósofos, historiadores, sociólogos, intelectuais orgânicos e não orgânicos.

O certo é que ideologias foram ressuscitadas, parte do povo foi manipulada e instrumentalizada para variegados fins. O Partido Político no governo sofreu revezes impensáveis, com a perda do cargo de sua representante máxima, a Presidente da República, por meio de impeachment, e com seu desenraizamento territorial, posto que sofreu avassaladora derrota nas últimas eleições municipais.

O fato mais marcante, é que a classe média e parte da classe trabalhadora, se dividiu, formando dois grupos, como se houvesse duas nações com interesses antagônicos dentro de um mesmo Estado. A operação denominada Lava Jato galvanizou a vida política do país, prendendo empresários e políticos por corrupção, lavagem de dinheiro e crimes conexos.

A imagem do Poder Judicial parece ter sido afetada, não apenas por decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal, que se pode dizer, são pouco convencionais, como também pelas invectivas político-partidárias visando a preservação de seus integrantes, em prejuízo da necessária intocabilidade da instituição Poder Judiciário.

A sucessão presidencial que levou à assunção do Chefe do Executivo Federal pelo Vice-Presidente da República Michel Temer, e o trabalho da grande imprensa que convenceu parte do povo sobre a necessidade das reformas anunciadas pelo novo governo, parecem ter arrefecido a divisão popular, que terá tudo para ressuscitar, quiçá com mais intensidade, nas eleições presidenciais de 2018.

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Perdeu-se a oportunidade de apaziguar os ânimos, e trazer a esfera pública para a arena da racionalidade argumentativa democrática, propiciando um salto de qualidade do Estado Constitucional brasileiro. Com efeito, o povo saiu às ruas por reforma política como uma reforma totalizadora, e não por reforma da previdência, trabalhista, nem para fixação do teto com gastos públicos.

A oportunidade para o refazimento da legitimidade política perdeu-se quando a Presidente Dilma Rousseff não encampou com a necessária firmeza política o clamor popular por reforma política sintetizado na expressão “não nos representam”.

Como visto acima, as hipóteses de relegitimação do subsistema político via exercício do Poder Constituinte Reformador, ou do Poder Constituinte Revisor, são falsas, porquanto instrumentos socialmente ineficazes, uma vez que seus agentes, os parlamentares (Deputados Federais e Senadores da República), são exatamente as pessoas que perderam a legitimidade política parcial ou integralmente, mantendo apenas a legitimidade jurídica. A legitimidade política deve subsumir-se à legitimidade jurídica, o que no caso não ocorre.

Com isso se quer dizer, que a reforma se projetaria na alma popular com um efeito psicológico de desconfiança e desaprovação, consubstanciando o prolongamento da ilegitimidade política. Ademais do efeito psicológico se projetando na alma popular, é evidente que os parlamentares não reformariam a Constituição para se prejudicar, seja no que tange à normatividade que lhes garante a certeza de serem eleitos, como a de continuarem no poder.

A hipótese de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, para exercício do Poder Constituinte Originário, ainda que por agentes não parlamentares, também não é verdadeira, pois em um momento de grande crise política e social, esse processo poderia resultar na promulgação de uma nova Constituição com desprestígio dos valores, direitos, e prerrogativas sociais, de sorte que a crise política de representatividade poderia se resolver, mas o risco de transformações irrefletidas e resultantes de ingentes pressões de setores derrotados em todos os confrontos políticos, nos âmbitos econômico, social, e cultural, ensejaria um retrocesso incalculável no processo civilizatório do país.

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Resta, pois, como plausível, a hipótese de criação, por meio de emenda constitucional, do instrumento jurídico de convocação de uma Assembleia Constituinte, ou Convenção, como instrumento socialmente eficaz para a necessária reforma política do país.

Como visto, na Argentina a reforma do texto constitucional, mesmo que parcialmente, se faz pela convocação de uma Assembleia Constituinte ou Convenção, por meio de instrumento parlamentar que fixa prazo e limites para que ela ocorra.

O mesmo acontece na Colômbia, cuja Constituição preceitua que a reforma do texto constitucional se faz, como no Brasil, por meio do processo legislativo adequado, bem como pela convocação de uma Assembleia Constituinte ou Convenção, que funcionará concomitantemente aos trabalhos congressuais.

A experiência desses dois países vizinhos nos faz divisar a criação de instrumentos perenes para a solução de crises de legitimidade parlamentar no Brasil. Essa é uma hipótese que não encontra óbices científicos para sua implementação em nosso ordenamento jurídico.

Por fim, é possível ao destinatário desse artigo questionar: se os atuais ou futuros congressistas têm interesse na manutenção do Poder, e, portanto, nenhum interesse em apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional criando a possibilidade de uma Assembleia Constituinte exclusiva para reforma de algum tema, por que o faria?

E a resposta resume-se a expressão forte em significado: por pressão popular. Nesse ponto, são os doutrinadores de outras ciências e outros saberes, que devem desenvolver suas teorias, dando marcha a um processo político conducente à criação do aqui proposto instrumento jurídico socialmente eficaz para a necessária reforma política brasileira.

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Referências

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