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A Violência Simbólica em Caim e Abel: uma releitura contemporânea

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Academic year: 2020

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A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

EM CAIM E ABEL: UMA RELEITURA

CONTEMPORÂNEA*

PEDRO FERNANDO SAHIUM**, VER A REGIANE BRESCOVICI NUNES***, WASHINGTON MACIEL DA SILVA****

Resumo: propomos uma discussão acerca do imaginário que necessita do simbolismo para se manifestar, expressando-se em formas simbólicas e estruturado de modo imagético, que afere a ação humana. O símbolo é a condição para se conhecer o objeto. A discussão se voltará para a violência de Caim contra Abel e, por conse-quência, o sangue derramado e sua significância simbólica. Apresentará diferentes formas de violência discutidas em textos bíblicos e finalizará, indicando para atos violentos praticados  por diferentes grupos  na atualidade, que se configuram em caráter social e religioso e mostram que o sangue de Abel continua a ser simboli-camente derramado. Isso, a alteridade é renegada em favor do desejo de poder. O sangue derramado é a forma simbólica encontrada para relatar acontecimentos que modificaram a história entre as civilizações, e ao Deus judeu-cristão não apraz o derramamento de sangue. A pesquisa contou com aportes teóricos de autores que discutem a temática em diferentes áreas.

Palavras-chave: Violência. Sangue. Religião. Imaginário.

* Recebido em: 20.01.2016. Aprovado em: 21.11.2016.

** Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Professor Assistente da Universidade Estadual de Goiás. Doutorando em Ciências da Religião na PUC Goiás. E-mail: psahium@ hotmail.com

*** Mestre em História pela PUC Goiás. Professora Assistente na Universidade Federal do Oeste da Bahia. Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC Goiás. E-mail: veraregiane@yahoo.com.br

**** Graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás. Mestre em História pela PUC Goiás. Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade de Goiás com intercâmbio doutoral na Universidade Iberoamericana da cidade do México. E-mail: washingtonmacieldasilva@gmail.com

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e acordo com Fee e Stuart (1984, p.64) a maioria dos textos bíblicos do Velho Testamento são narrativas. Todas "têm um enredo, uma trama, e personagens (seja divinas, humanas, animais, vegetais, etc.)", e, paralelamente a isso, as do Velho Testamento "fazem parte de um enredo especial global, e que tem um elenco espe-cial de personagens, dos quais o mais espeespe-cial é o próprio Deus" (FEE; STUART, 1984, p. 64). Ainda sobre estas é preciso lembrar que não se tratam de alegorias ou "historinhas", ou, "conto provável", mas, de um texto que compõe integralmente o fazer de um povo, a direção a seguir, a devoção a Deus a quem se deve glorificar em palavras e atos. É a religião em ação no mundo humano.

O texto escolhido para este artigo é o primeiro da Bíblia que narra o derramamento de sangue humano: o primeiro homicídio. Em Gênesis 4,1-16, de acordo com os comentá-rios encontrados na Bíblia de Jerusalém temos a história do assassinato de Abel, num con-texto que "supõe uma civilização um pouco evoluída: no domínio religioso, um culto com as ofertas de produtos (talvez as primícias) do solo e dos primogênitos do rebanho" (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1998, p. 39).

A violência praticada está presente com todos os seus desdobramentos, bem como a postura de Deus diante do fato. Nem todas as perguntas podem ser respondidas e se faz necessário refrear a curiosidade em alguns pontos, mas, o "sangue derramado" torna-se um símbolo. Logo após o assassinato, Deus fala para Caim: "Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!". O sangue clama por justiça. O solo não é depositário silente.

Num primeiro nível de comunicação simbólica estão: a linguagem falada, a escrita, os gestos do corpo etc. Num segundo nível estão "os conceitos que evocam uma realidade" e que ao mesmo tempo "são imagens ou representações mentais que substituem coisas, seres, a que se referem" (CROATTO, 2010, p. 162).

Nesse viés faz sentido a seguinte observação:

Esse relato pôde se relacionar de início não ao filho do primeiro homem, mas ao ante-passado epônimo dos quenitas. Reportando às origens da humanidade, ele recebe um aspecto geral: de um lado, Caim e Abel estão na origem de dois modos de vida, o agri-cultor sedentário e o pastor nômade; de outro lado, esses dois irmãos personificam a luta do Homem contra o Homem (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1998, p. 39).

À parte a questão de poderem representar dois povos e atividades distintas, a pes-quisa se orientou pela individualização dos personagens, e a forma pela qual a narrativa se desenrola apontando para fatores que caracterizam a relação do Deus judeu-cristão, no cerne da história do Velho e do Novo Testamento. Usaremos a Bíblia de Jerusalém como referencial para o texto sagrado.

OS DIÁLOGOS DE DEUS COM OS IRMÃOS

No texto não existe nenhuma prescrição de Deus sobre uma "oferenda" que Ele tenha exigido. Num gesto, ou gestos, de comunicação com o Sagrado, cada um dos irmãos assumiu uma atitude, e, depois, ofertou de acordo com a atividade que desempenhavam: produtos do solo, ou, primícias e a gordura do rebanho. Junto com os sacrifícios oferecidos,

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tanto Caim, quanto Abel apresentou um tipo de disposição interna, de atitude, que foi pos-teriormente julgada. Diz o texto (vv. 4-5) que Iahweh "agradou-se de Abel e de sua oferta", e que "não se agradou de Caim e de sua oferta". Parece que algum tipo de comportamento precedeu aquilo que se fez. Uma ênfase naquilo ocorria internamente, uma ética que se inicia n'alma. Mas, não existem elementos para dizermos o que agradou, e/ou, o que desagradou Deus. Champlin (2001, p. 42) sobre o ocorrido salienta que a

maioria dos intérpretes vê nisso um prenúncio dos sacrifícios cruentos, e, naturalmente, do sacrifício de Cristo. De conformidade com isso, a oferta de Caim representa o auto -esforço, o mérito humano, que parece bom a nossos olhos, mas não é aceitável diante de Deus. Isso dá a entender a necessidade da justificação, com base na expiação de Cristo. Não estão em foco apenas as ofertas de Caim e Abel, mas as próprias pessoas deles [...]. O que interessa nesse momento é que subtraída a questão simbólica da oferta de um animal, que precederia/anunciaria a oferta do "cordeiro de Deus", Cristo, que se sacrifi-caria (relato do Novo Testamento e dos cristãos), Caim teve uma atitude incorreta, e, isso se reforça na palavra de Deus proferida a Caim (v. 7): "Se estivesses bem disposto, não levanta-rias a cabeça? Mas, se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?". Deus ficou satisfeito com Abel, mas não ficou com Caim. Este tinha procedido mal. Champlin (2001, p. 43) afirma com base neste episódio que "podemos fazer grandes obras, mas se nossos corações e nossos motivos não forem espirituais, tais obras não agradarão a Deus".

A tradução Bíblica da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos dá uma versão mais comunicativa deste trecho: "Então perguntou o Senhor a Caim: 'Por que andas irritado e com o rosto abatido? Não é verdade que, se fizeres o bem andarás de cabeça erguida? E se fizeres o mal, não estará o pecado espreitando-te à porta? A ti vai seu desejo, mas tu deves dominá-lo'" (vv. 6-7). Caim era o filho mais velho de quem a mãe orgulhosamente disse (v. 1): "Ganhei um homem com a ajuda do Iahweh". É uma posição privilegiada, ele não precisava invejar seu irmão mais novo. Por outro lado, este fato não o colocava numa situação em que au-tomaticamente tudo o que fizesse seria aprovado. Situação de grandeza entre os homens não sig-nifica o mesmo com Deus. Não seria a única ocasião em que Deus escolhe ficar com o humilde. Na primeira comunicação, "Deus sorriu para Abel, mas franziu a testa para Caim". A relação é de transparência, sem jogos de linguagens, sem falsificações. O ato comunicativo de Deus não deixa dúvidas, mas, aponta caminhos de reorganizações. O segundo diálogo é "ao pé da orelha", com Caim. É uma exortação, e por isso, um convite ao diálogo. Se sua atitude fora reprovada, ele não foi rejeitado. Deus é direto em sua exposição, tem interesse em saber qual a causa daquela visível irritação. É uma oportunidade para expor os problemas, para defender-se de uma injustiça, se esse fosse o caso.

Caim não está em trevas, mas está próximo delas. O mal está se alojando no seu íntimo com pensamentos de ira e descontentamento. Ele não quer fazer um caminho dife-rente, um caminho apontado por Deus. "Ele não remediou a situação. [...] E visto que não podia vingar-se diretamente de Deus, não muito depois descarregou sua ira contra o inocente e indefeso Abel" (CHAMPLIN, 2001, p. 45).

Depois da violência praticada, o diálogo de Deus com Caim se inicia com uma pergunta: "Onde está teu irmão Abel?". É a oportunidade de se explicar comunicar as suas

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razões. Caim prefere mentir: (v. 9): "Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?". Seguindo à mentira ele comete o primeiro ato imoral da "humanidade": diz não ser responsável pelo irmão/próximo.

Desmascarado em seu ato de violência, Caim lamenta o destino que lhe aguarda: “Vê! Hoje tu me banes do solo fértil, terei de ocultar-me longe de tua face e serei errante fu-gitivo sobre a terra: mas o primeiro que me encontrar me matará!". Contudo Iahweh ainda o protegerá, pois a narrativa diz que seria colocado um sinal (não um estigma) em Caim para que ninguém o matasse. Isso não o livrou das consequências do seu ato, entretanto, não lhe foi tirada a vida. Não ocorreu aqui uma "justiça retributiva" nem qualquer tipo de vingança, mas, proteção à vida.

O SANGUE DERRAMADO

Iahweh disse (v. 10): "Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!". Mesmo morto, o sangue de Abel clama por Deus. O inocente fora vítima in-defesa de ato praticado pelo próprio irmão e teve como pano de fundo um serviço religioso. Podemos dizer que foram questões ligadas à relação com Deus, com a religião.

O problema da violência está, não em Deus, mas, no próprio homem. A senda de Caim foi de inveja, ressentimento, ódio e por fim, assassinato. A cena desta primeira violência se dá com um Deus que não se deixa manipular pelos desejos do homem, e que aceita uma relação dialogal com o ser humano.

A narrativa do assassinato de Abel também mostra um Caim que permitiu que algo exterior a ele (pecado), um poder que o ameaçava, tomasse conta de suas emoções. Mesmo depois do ocorrido Deus, YHWH, se mostra protetor de Caim, marcando-o para que ele não fosse vítima de violência. Deus não se agrada da violência. Mesmo nos sacrifícios que lhe são oferecidos pelo povo de Israel (relatados no Velho Testamento) como prática de culto, Ele impõe limites, estabelece condições. Bingemer (2002, p. 21-22) apresenta algumas chaves para o estudo da questão sobre a revelação de Deus em meio à problemática da violência, as quais, para o desenvolvimento do assunto são: (1) "Deus não aparece e não pode aparecer ao homem senão através do que o homem é na realidade", a violência que se vê em Deus está no homem; (2) "Deus se revela ao homem naquilo que é em verdade, mesmo quando sua revelação O mostra agindo violentamente; (3) "O Deus da Bíblia não é como o homem”. “Deus não se sente obrigado nem devedor de uma lógica em que se paga o mal com o mal e o bem com o bem"; (4) "Deus utiliza com o homem uma "pedagogia progressiva" de não -violência", na verdade Deus vai retirando ou "educando" o homem na prática de refrear a violência que marca este mesmo homem; (5) A "intenção" de Deus é sempre chegar ao amor e ao perdão sem medidas", ainda que isso tenha passado pela violência; (6) Deus não elimina magicamente a violência para chegar ao amor; (7) "A prática não-violenta de Deus, que abre caminho em meio e através da violência, inspira e ilumina qualquer desejo humano de não-violência" ainda acrescenta que "é através da violência que o amor abre ca-minho, nunca fora dela", e, por fim uma lembrança do caminho de Cristo onde a mansidão se dá em meio a relações de violência.

Quando o sangue de uma pessoa é derramado, sua vida acaba, pois a vida está no san-gue. Assim, se é lícito ao povo de Israel derramar sangue de animais para prestar culto

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a Deus, embora a Lei já coloque o limite de não consumir nem mesmo este sangue, não é dito em nenhum lugar da liceidade de derramar sangue humano. A vida é um dom de Deus, por isso ninguém pode derramar sangue de outra pessoa (BINGEMER, 2002, p. 47).

Nesta vertente corroboram textos do Velho testamento (Gn 9,4; Lev 3,8; 7,26) onde a ingestão de carne com sangue é proibida e o povo de Israel recebe instruções para não usar o sangue como alimento, como o faziam as nações vizinhas. O sangue era considerado sagrado. A vida da carne está no sangue.

Quando o solo foi manchado pelo sangue de Abel ocorre uma visível transformação em sangue simbólico da alma humana, portador da vida doada por Deus, e, consequente-mente, parte da dádiva irrepetível em cada singularidade/individualidade. O solo se "revolta" contra o acontecido.

O solo e o sangue são testemunhas da violência ocorrida, mesmo que Caim tenha tentado esconder o fato, mesmo que não tenha tido uma testemunha ocular do caso. O ho-mem pode perpetrar a violência às escondidas, contudo, a terra clamará, o sangue continuará a falar pelas gerações. Ainda hoje conhecemos a narrativa desta violência e ela está emblema-ticamente no livro sagrado das três grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e is-lamismo. O mal a ser combatido não está no outro, mas, dentro do próprio homem autocen-trado, rancoroso, irascível, não dado ao diálogo. Para esse o sangue está a sujar-lhe as mãos. A propósito, Iahweh não quer sacrifícios de sangue, embora o tenha aceitado, e, estabelecido restrições/condições. Assim se manifesta Iahweh,

quando vindes à minha presença quem vos pediu que pisásseis meus átrios? Basta de trazer-me oferendas vãs: elas são para mim incenso abominável. Lua nova, sábado e assembleia, não posso suportar solenidade e falsidade! Vossas luas novas e vossas fes-tas, minha alma a detesta: elas são para mim um fardo; estou cansado de carregá-lo. Quando estendeis as vossas mãos, desvio de vós meus olhos; ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue: lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! (ISAÍAS 1,12-17).

As mãos cheias de sangue não se referem aos sacrifícios como os de Abel, mas, o san-gue dos inocentes que são mortos, explorados e se misturam, por omissão dos cultuadores de Iahweh, àquilo que deveria ser símbolo de dependência do sagrado, de devoção e vontade do transcendente. Na narrativa de Gênesis, depois da morte do irmão, Caim funda uma cidade e seus moradores ficariam conhecidos pela maldade e violência no agir. Isto chega a tal ponto que Lamec, descendente direto de Caim diz às suas duas mulheres; (v. 23) "Ada e Sela, ouvi minha voz, mulheres de Lamec, escutai minha palavra: eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes!". Este é o testemunho de que o que fora perpetrado pelo primeiro filho dos homens, o primogênito da raça humana, de quem sua mãe, Eva, muito esperava, tornou-se muito pior, e a violência crescente alastrou-se como se fosse honra humana e motivo de orgulho matar e possuir o outro.

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SANGUE DERRAMADO NA MODERNIDADE

Chegamos ao século XX com importantes garantias já estabelecidas, como a Decla-ração Universal dos Direitos Humanos, contudo, este foi um século marcado para barbárie e pela crueldade com que o homem destruiu o Outro. Se discorrermos sobre massacres como a dos armênios pelo Império Otomano, que ceifou aproximadamente 1,5 milhão de pessoas em 1915, e a própria I guerra Mundial (1914-1918), que banhou de sangue a Europa e serviu de linha demarcatória para o século XIX e XX, a II Grande Guerra (1939-1945), e o genocí-dio perpetrado pelos nazistas, são do ponto de vista das perdas humanas, incalculáveis. Como afirma Rémond (1999, p. 128),

[Em relação às perdas humanas] não lhes conhecemos efetivamente o número exato; para certos países, estamos reduzidos a anunciar cifras que apenas representam ordens de grandeza. Não sabemos, por exemplo, com certeza, a quanto montam as perdas da União Soviética: 17,20 milhões? Em certo sentido, isso pouco importa. O que conta e deve estar presente ao espírito é que um décimo, mais ou menos, da população russa pereceu entre 1941 e 1945. Se adicionarmos as perdas civis produzidas pelos bombardeios, pelas execuções, pela deportação, pela fome e pela perseguição racial às baixas militares, a Polônia perdeu, aproximadamente, um quarto da sua população, obra de 6 a 7 milhões de habitantes. Na Iugoslávia, é também por milhões que se enumeram as vítimas de guerra. Ao todo, uns 50 ou 60 milhões de seres vivos desapareceram durante a guerra de 1939-1945.

Somados a esses números da vergonha irascível, temos outros como: a de minorias no Camboja (1975-1979), com uma estimativa de 6 milhões de mortos; de minorias em Kosovo (1997-1999) com uma estimativa de 300 mil mortos; a de tutsis em Ruanda (1994), estimativa de um milhão de mortos.

Queremos registrar um último ocorrido, não cronologicamente, que expõe os hor-rores do sangue irmão derramado que foi o massacre de palestinos ocorrido em Beirute e que foi narrado à época, da seguinte forma pela Revista Veja (1982, p. 5-6),

Durante pelo menos 36 horas de setembro de 1982, um massacre metódico, lento e definitivo varreu os campos palestinos de Sabra e Chatila, no Líbano. O assalto foi tão inesperado que houve mulheres metralhadas com a panela na mão, enquanto cozinhavam, homens abatidos quando tentavam enfiar roupas em malas, sofregamente, e velhos mortos embaixo de mesas e cadeiras, como animais. Em várias casas que pareciam ter sido poupadas pelos matadores, as pilhas de corpos foram encontradas no último cômodo, refúgio inútil de famílias inteiras abraçadas de medo. Ao término da chacina, havia um catálogo completo de selvageria: pescoços cortados, ventres rasgados, costas perfuradas de balas. As vítimas, entre homens, mulheres, crianças e velhos palestinos, estavam desarmadas. Nessa batalha, só um lado atirou. Segundo a Cruz Vermelha Internacional, 317 corpos haviam sido retirados de escombros até a manhã de sábado passado. Segundo o procurador-geral do Líbano, os cadáveres eram 597 e faltava encontrar outras 2.000 pessoas.

A voz que continua a clamar, junto com sabra e Chatila, é a voz do sangue inocente derramado. Pode-se continuar citando até os dias atuais deste século XXI. O que está calado

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não é a voz de Deus, que sempre, através de textos sagrados e através da voz da mãe terra, continua a chamar o homem para um diálogo de harmonia em que o sonho de paz entre todos é repetido aos quatro ventos, como nas palavras/voz do Mahatma Gandhi: “A força de um homem e de um povo está na não-violência. Experimentem” (GANDHI, 2004, p. 22). O QUE FALA O SANGUE NA RELIGIÃO CRISTÃ

Talvez o protótipo de sociedade que se insinua em Abel, seja daquela em que seus membros se preocupam com a transcendência, onde a cultura e a sobrevivência, o dever e a dependência dos outros, o espírito de sacrifícios e a relação com a natureza são evidências que influenciam o fazer cotidiano de cada um e de todos. Por outro lado, em Caim, faz-se uma sociedade individualizada ao extremo, onde cada membro que a compõe busca seu próprio interesse, sem consciência da comunidade/outro, onde o que vale é alcançar a satisfação, e viver experiências subjetivas de autoafirmação.

A sociedade, em Abel, respeita e trabalha a terra, enquanto em Caim o solo é man-chado pelo sangue, abre a sua boca e recebe o sangue inocente, fechando-se para aquele que o derramou, tornando-se infértil e hostil. A natureza ferida... O ambiente se energiza do mal.

Se o Deus que fala com Caim e Abel, é o mesmo que fala por intermédio de Jesus Cristo, torna-se condição sine qua non, para encerrar este artigo, uma breve reflexão sobre o sangue derramado de Cristo na cruz. Derramado por vontade de Deus? O que clama este sangue? Vingança, como o de Abel? Como interpretar a narrativa do evangelho de Mateus que fala na realização de uma “Nova Aliança” no sangue de Jesus?

Na narrativa de Mateus, o próprio Jesus propõe uma nova aliança “no seu sangue”. Ele, Jesus, seria um substituto perfeito para qualquer sacrifício que o homem porventura pu-desse fazer, para ver a face de Deus, e ter comunhão com Ele e com o seu próximo. Deus não requereria a partir daí, e nunca mais, qualquer tipo de sacrifício e derramamento de sangue por erros cometidos e por faltas passadas, presentes ou futuras. Para esclarecer um pouco mais tal questão, Ratzinger (2011, p. 171-2) afirma,

[...] o cristão deve-se lembrar de que o sangue de Jesus fala uma linguagem diferente da do de Abel (Hb 12, 24): não pede vingança nem punição, mas reconciliação. Não foi derramado contra ninguém, mas é sangue derramado por muitos, por todos. “Todos peca-ram e estão privados da glória de Deus. (...) Cristo Jesus: Deus o expôs como instrumento de propiciação (...) por seu sangue”, diz São Paulo (Rm 3, 23-25). Assim como, a partir da fé, é preciso ler de modo totalmente novo a afirmação de Caifás sobre a necessidade da morte de Jesus, assim também se deve fazer com a palavra de Mateus sobre o sangue: esta, lida na perspectiva da fé, significa que todos nós precisamos da força purificadora do amor, e tal força é o seu sangue. Não é maldição, mas redenção, salvação. Só com base na teologia da Última Ceia e da cruz presente na totalidade do Novo Testamento é que a palavra de Mateus sobre o sangue adquire o seu sentido correto.

A questão do sangue derramado aparece, pelo visto, em Jesus Cristo, como elemen-to reconciliador, e mais ainda, como um elemenelemen-to de propriedade divina, o doador da vida e o único na tradição judeu-cristã autorizado a requerê-lo ou a doá-lo como resgate e elemento reconciliador de toda a natureza humana. O sangue de Cristo é um forte símbolo de

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recon-ciliação, de perdão e de prática do amor que devem vigorar para sempre por ordenação do Deus Iahweh.

É importante neste ponto salientar sobre o "símbolo", como é exposto por Ruiz (2003), que ao resgatar a origem histórica da palavra, symbolon – que tem no grego o sentido de junção, reunir duas partes separadas - nos remete à sociologia, pois a palavra se refere a dois povos, duas famílias ou duas pessoas que separados recebiam, cada um, uma parte de um objeto que ao se encaixar perfeitamente mostrava o pacto existente e acordado anteriormente. O objeto separado não tum sentido em si mesmo; o símbolo representa uma junção que tem a capacidade de conferir a uma nova unidade, uma significação que estava distante; o símbolo dá a nova unidade uma potencialidade inexistente e significativa; o símbolo é uma potenciali-dade do imaginário; evoca algo ausente; transita em espaços do consciente e do inconsciente, "liga o sem-fundo humano com o logos da vigília" (RUIZ, 2003, p. 135). Estas são algumas explanações sobre o simbólico, contudo, o simbólico não é apenas a potencialidade criadora do imaginário, mas "também se restringe à significação social definida". Dito de outra forma, o simbólico se limita, se liga aos aspectos socioculturais que o envolvem. "O símbolo é forma cultural definida e abertura indefinida de sentido" (RUIZ, 2003, p. 135-6). Desta maneira o sangue humano é elemento sagrado e quando derramado desequilibra a relação não apenas do homem com o seu semelhante, mas, cria uma indisposição deste com a própria natureza e com as coisas criadas. O planeta sente, se desequilibra e clama com o sangue derramado que o mancha. A natureza perde suas forças e clama ao sagrado, é como se o Cosmo fosse atingido no que tem de belo e harmonioso e perde assim sua qualidade de Cosmo. A agressão humana é abrangente mesmo que praticada apenas contra um único homem.

Ainda sobre a tradição judeu-cristã, sobre a qual este texto se propôs a refletir, o pecado não se encontra como uma emoção, como algo interior ao homem, mas como um poder objetivo que atua fora do homem. Cabe a este dominá-lo. Deus não aprova a violência, e esta nasce na natureza humana e extravasa para o meio social, ampliando-se e contaminando inclusive a terra. O Deus da tradição judaico cristã está aberto ao diálogo e aos reclames humanos, mesmo àqueles que nascem de uma interpretação errada do mundo e das relações, como foi no caso de Caim. Iahweh quer o homem vivendo numa comuni-dade ética onde todos se comprometem e protegem uns aos outros, tendo também uma re-lação profunda com a natureza que se pauta também nos mesmos princípios de harmonia, respeito e hospitalidade.

Precisamos encerrar esta breve reflexão com o que existe de mais potente em uma exigência de prática religiosa, qual seja, a vontade do próprio Deus, Iahweh, revelada na tra-dição judaica,

Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo o jugo? Não consiste em repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes aquele que é tua carne? Se fizeres isso a tua luz romperá como a aurora, a cura das tuas feridas se operará rapidamente, a tua justiça irá a tua frente e a glória de Iahweh irá a tua reta-guarda. Então clamarás e Iahweh responderá, clamarás por socorro e ele dirá: “Eis-me aqui!” Isto, se afastares do meio de ti o jugo, o gesto ameaçador e a linguagem iníqua; (...) (ISAÍAS 58,6-9).

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Assim, a violência nasce da natureza humana e caminha no tempo. Deus não a aprova, mas ela amplia-se e propaga-se a partir da diversidade étnica, racial e cultural presen-tes no desenvolvimento da humanidade. Iahweh acompanha o ser humano em meio à violên-cia impondo-lhe limites, mas, respeitando a autonomia deste. Como foi no tempo primevo, para usar uma classificação de Eliade (2013), assim ocorre hoje, pois o mito continua a nos ensinar não somente as profundas realidades religiosas, mas, nos ensina regras práticas que deverão nos orientar quanto ao trato de uns para com os outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na religião de matriz judeu-cristã o sangue foi derramado como parte de rituais religiosos. Na primeira o sangue de animais e na segunda o sangue de Jesus. Como no cris-tianismo Jesus é o Cristo, isso faz com que o seu sacrifício de sangue seja interpretado como uma sessação de todo e qualquer sangue posteriormente derramado para fins religiosos ou ritualísticos. Deus não quer sangue derramado.

Acreditamos que no desenvolvimento dessa matriz judeu-cristã, desde o sangue der-ramado de Abel chegando até o sangue de Cristo existe uma história onde o primeiro dá início a uma série de violências entre os humanos, e o segundo anuncia que sangue nenhum, por ne-nhuma razão pessoal, religiosa ou filosófica, deverá ser derramado. O Deus encarnado, o Cristo, põe fim ao ciclo iniciado pelos homens. Caim matou Abel e o sangue de Abel clamou/clama pe-los sécupe-los através do sangue de outros homens que continuou e continua a ser derramado. Por sua vez, o sangue de Cristo na composição religiosa judeu-cristã fala que não se pode derramar mais sangue algum. O respeito pelo diferente só pode existir se todas as religiões se considerarem como componentes, em algum ponto, da necessidade de aceitação do “outro”. Ouvir Iahweh significa mudar quando preciso para aceitar a si mesmo. Se não houver uma aceitação de si, não haverá aceitação do “outro”. Só teremos um caminho reto a percorrer quando os frutos colhidos das mãos humanas forem compartilhados por todos os homens num baquete de abertura para o diálogo e para a mudança nos próprios modos de agir para a edificação da humanidade. THE SYMBOLIC VIOLENCE IN CAIN AND ABEL: A CONTEMPORARY RELEITURA

Abstract: this study proposes a discussion about the imaginary, that to manifest need

sym-bolism. It only exists if it is expressed in symbolic and structured forms of imagery mode, which measures human action. In this sense, the symbol is the condition to know the ob-ject. So the discussion will turn to violence of Cain against Abel and consequently spilled blood and its symbolic significance. Will present different forms of violence discussed in biblical texts and ending with the violent acts committed by different groups today, which are by social and religious character and show that Abel's blood continues to be spilled symbolically. In this sense, the otherness is renounced in favor of the lust for power. The bloodshed is the symbolic way found to report events that changed the history of civili-zations and the Judeo-Christian God is not pleased bloodshed. The research included theoretical contributions of authors who discuss the theme in different areas.

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Referências

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Referências

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