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Da bioética de princípios a uma bioética interventiva

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Academic year: 2021

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Unitermos: bioética principialista,

contextualiza-ção, alternativa crítica, justiça, direitos humanos,

questões coletivas, bioética de intervenção

Introdução B io é ti c a 2 0 0 5 V o l. 1 3 , n º 1 Volnei Garrafa

Professor titular e coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), editor da Revista Brasileira de Bioética, presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco – Redbioética e vice-presidente da Sociedade Internacional de Bioética, seção América Latina

Da bioética de princípios a

uma bioética interventiva

Volnei Garrafa

A bioética, de origem estadunidense, tornou-se mundialmente conhecida por estar ancorada em qua-tro princípios básicos pretensamente universais e reconhecida como bioética principialista. A partir dos anos 90, começaram a surgir críticas à universalidade dos princípios e às suas limitações frente aos macroproblemas coletivos, principalmente sanitários e ambientais, especialmente verificados nos países periféricos do Hemisfério Sul. Nesse sentido, surge na América Latina, nos últimos anos, uma nova proposta epistemológica – a bioética de intervenção – de base filosófica utilitarista e conse-qüencialista, tentando suprir essa lacuna. A partir de uma análise histórica do processo de consoli-dação do principialismo e da importação acrítica de teorias éticas forâneas, o presente artigo procu-ra mostprocu-rar a necessidade de construção de bases conceituais diferenciadas paprocu-ra a bioética no senti-do senti-do adequasenti-do enfrentamento senti-dos problemas persistentes rotineiramente detectasenti-dos nas nações em desenvolvimento.

Com apenas 35 anos de vida, a bioética foi o campo da ética aplicada que mais avançou nas últimas décadas. No processo evolutivo de sua construção, três referenciais básicos passaram a sustentar seu estatuto epistemológico: 1) uma estrutura obrigatoriamente multiintertransdisci-plinar, que permite análises ampliadas e “religações” entre variados núcleos de conhecimento e diferentes ângulos das questões observadas, a partir da interpretação da complexidade: a) do conhecimento científico e tec-nológico; b) do conhecimento socialmente acumulado; c) da realidade concreta que nos cerca e da qual fazemos parte; 2) a necessidade de respeito ao pluralismo moral constatado nas democracias secularizadas pós-modernas, que norteia a busca de equilíbrio e observância aos refe-renciais societários específicos que orientam pessoas,

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sociedades e nações no sentido da necessidade de convivência pacífica e sem superposições de padrões morais; 3) a compreensão da impossi-bilidade de existência de paradigmas bioéticos universais, que leva à necessidade de (re)estrutu-ração do discurso bioético a partir da utilização de ferramentas/categorias dinâmicas e factuais como a comunicação, linguagem, coerência, argumentação e outras.

Assim, a partir da análise das situações, proble-mas ou questões éticas em que se levam em consideração diferentes moralidades, a bioética (que considero laica, portanto não deve partir de absolutos morais) possui ferramentas teóri-cas e metodológiteóri-cas adequadas para propor-cionar significativos impactos nas discussões, seja dos temas persistentes (cotidianos, mais antigos – como a exclusão social, a discrimi-nação, a vulnerabilidade, o aborto) ou emer-gentes (de fronteiras, mais recentes – como a genômica, os transplantes ou as tecnologias reprodutivas), nos campos societários locais, nacionais ou internacionais (1).

É inegável a importância do impacto que a bioética tem hoje, e que provavelmente aumen-tará nos próximos anos, com relação à evolução dos referenciais societários existentes no mundo contemporâneo. A partir de uma base de sustentação econômica justa e do respeito ao contexto sociocultural e nível de informação, participação e democratização que as sociedades alcançarem, os países desenvolvidos têm mais possibilidades de encontro do equilíbrio – político, jurídico e moral – necessário e indis-pensável à construção de um futuro melhor para a vida de seus cidadãos. No entanto, não

se pode deixar de olhar a questão sob ótica inversa, lançando a seguinte interrogação: a evolução das sociedades humanas não seria a razão que proporcionou (ou, praticamente, pas-sou a exigir) o surgimento da bioética? Caso a resposta seja afirmativa, posteriormente, com seu desenvolvimento e consolidação, a hipótese mais viável é que a bioética passou a influenciar diretamente na dinâmica e evolução destas mesmas sociedades.

Com um processo particular de evolução, neste início do século XXI a bioética retornou às suas origens epistemológicas, caracterizando-se de forma ampliada no contexto de uma verdadeira “ciência da sobrevivência”, como preconizou inicialmente Potter (2,3). Transformou-se, assim, em um instrumento concreto a mais, para contribuir no complexo processo de dis-cussão, aprimoramento e consolidação das democracias, da cidadania, dos direitos humanos e da justiça social.

Um dos objetos do presente estudo é exata-mente analisar o papel que a bioética já desem-penha e poderá vir a ampliar na evolução das representações/organizações políticas e sociais do mundo atual. O marco referencial de análise, contudo, será a crescente desigualdade verificada – principalmente após a consolidação do chamado “fenômeno de globalização” – entre os países do Norte e Sul do planeta. Assim, como a pauta dos problemas (bio)éticos verificados em uma ou outra região são com-pletamente diferentes, com soluções também diversas, surge a necessidade de que se analise criticamente as verdadeiras possibilidades de uma bioética meramente descritiva, analítica e

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neutral, com forças para interferir concreta e favoravelmente nesse contexto.

Nessa linha de idéias, o presente texto não é exclusivamente prospectivo. Faz um breve histórico da evolução da bioética e sua relação com os agudos problemas sociais constatados na maioria dos países do Hemisfério Sul. Nestes, para que a bioética venha a ter par-ticipação concreta na evolução dos processos societários, terá que haver uma transfor-mação em seus rumos, mudando alguns de seus paradigmas e indo ao encontro de cada realidade. Para isso, é indispensável que se trabalhe na construção de uma visão macro da bioética, ampliada e concretamente com-prometida com o social, mais crítica, politi-zada e interventiva, com o objetivo claro de diminuir as disparidades constatadas.

Algumas críticas ao principialismo em bioética

O pluralismo de valores e a virtude da tolerân-cia frente à diversidade cultural – entre outros indicadores essenciais a uma nova abordagem ética – são necessários, mas não suficientes no sentido de favorecer todos os pontos de vista. Com relação ao conteúdo dos fatos e conflitos, torna-se mister introduzir novos critérios, re-ferenciais e/ou princípios. Nesse sentido, em-bora recebendo críticas de diversas partes do mundo, os bioeticistas estadunidenses, princi-palmente, vêm trabalhando a bioética a partir de uma base conceitual estabelecida sobre princípios preestabelecidos. A teoria principia-lista, universalizada por Beauchamp e Childress (4), tomou como fundamento quatro

princí-pios básicos – autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça –, os quais seriam uma espécie de instrumento simplificado para uma análise prática dos conflitos que ocorrem no campo bioético.

Uma crítica surgida nos últimos anos a partir dos países periféricos da metade Sul do planeta é de que a chamada teoria bioética principialista seria insuficiente e/ou impotente para analisar os macroproblemas éticos persistentes (ou coti-dianos) verificados na realidade concreta. O processo de globalização econômica mundial, ao invés de amenizar, aprofundou ainda mais as desigualdades verificadas entre as nações ricas do Hemisfério Norte e as pobres do Sul, exigin-do, portanto, novas leituras e propostas (5). Nos Estados Unidos da América do Norte (EUA), no início dos anos 70, a bioética foi concebida como uma nova maneira de perceber e encarar o mundo e a vida a partir da ética aplicada. Desde então, a compreensão do que venha a ser bioética varia de um contexto para outro, de uma nação para outra e até mesmo entre os estudiosos da área dentro de um mesmo país.

Sua conotação original se relacionava com uma questão de ética global, ou seja, com a preocu-pação ética da preservação do planeta, a partir da constatação de que algumas novas descober-tas e suas aplicações, ao invés de trazerem bene-fícios para a humanidade futura, originariam preocupações e, até mesmo, destruições, como no caso da biodiversidade, podendo ocasionar danos irreparáveis ao próprio ecossistema. Nesse sentido, incorporaria conceitos mais

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amplos na sua interpretação de “qualidade da vida humana”, incluindo, além das questões biomédicas propriamente ditas, temas como o respeito ao meio ambiente e ao próprio ecossis-tema como um todo (2,3).

Adotada pelo Instituto Kennedy, a bioética sofreu, já em 1971, uma redução da sua con-cepção “potteriana” original, restrita ao âmbito biomédico (6). O tema da autonomia foi maxi-mizado hierarquicamente em relação aos outros três, tornando-se uma espécie de superprincípio. Este fato contribuiu para que, em alguns países, a visão individual dos conflitos passasse a ser aceita como a única vertente verdadeira e decisi-va para a resolução dos mesmos (7).

Em diversas nações indígenas, por exemplo, ou mesmo na cultura oriental de um modo geral, o tema da autonomia é pouco conhecido. O perigo da utilização maximalista da autonomia está em – saindo do referencial sadio do respeito à individualidade e passando pelo indi-vidualismo em suas variadas nuanças – cairmos no extremo oposto, em um egoísmo exacerba-do, capaz de anular qualquer visão inversa, cole-tiva e indispensável ao enfrentamento das tremendas injustiças sociais relacionadas com a exclusão social, hoje mais do que nunca cons-tatada (7).

O contexto internacional

Foi com esta roupagem que a bioética se difundiu pelo mundo partindo dos EUA: uma bioética anglo-saxônica, com forte conotação individualista e cuja base de sustentação repou-sava sobre a autonomia dos sujeitos sociais (7),

categoria que, por sua vez, tinha como uma de suas conseqüências operacionais/práticas a exigência, ou necessidade, de aplicação dos chamados “Termos de Consentimento Informado” (TCI). Esta, basicamente, foi a concepção que acabou divulgando a bioética internacionalmente a partir dos anos 70 e durante os anos 80, tornando-a conhecida e consolidada em todo o mundo nos anos 90. Apesar de que os demais princípios inicial-mente apresentados também tiveram espaço na nova concepção – incluindo as concepções deontológicas da beneficência e da não-maleficência –, a verdade é que, mais uma vez, o campo da justiça, e portanto do coletivo, acabou ficando em grau de importância secundário (7). O hiperdimensionamento da autonomia na bioética estadunidense dos anos 70 e 80 fez emergir uma visão singular e indi-vidualizada dos conflitos, juntamente com uma verdadeira indústria de “consentimentos infor-mados” já incorporada de forma horizontaliza-da e acrítica às pesquisas com seres humanos e aos atendimentos médico-hospitalares, como se todas as pessoas – independentemente de nível socioeconômico e escolaridade – fossem ver-dadeiramente autônomas.

Assim, a abordagem de grande parte das questões do âmbito da bioética foi reduzida à esfera individual, tratando preferencialmente das contradições: autonomia versus autonomia e autonomia versus beneficência. A partir de abusos históricos (como no caso Tuskegee) ou das denúncias apresentadas por Henry Beecher (8), a bioética foi criada, pelo menos inicial-mente, para defender os indivíduos mais frágeis

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nas relações entre profissionais de saúde e seus pacientes ou entre empresas/institutos de pesquisa e os cidadãos. No entanto, em poucos anos, a nova teoria mostrou ser uma faca de dois gumes, pois as universidades, corporações e indústrias também começaram a treinar seus profissionais na construção de TCIs adequados a cada situação. Isso, de certa forma, obstaculi-zou, na prática, os objetivos iniciais e históricos da medida em proteger os mais vulneráveis, pelo menos nos países com grandes índices de excluídos sob os pontos de vista social e econômico.

No início dos anos 90, no entanto, vozes dis-cordantes com relação à universalidade dos princípios de Georgetown começaram a surgir a partir do próprio EUA (9,10), da Europa (11) e da América Latina (1,12,13,14,15). É necessário ressaltar, todavia, que apesar da resistência contrária ao que se pode chamar de “tentativa de universalização de aspectos mera-mente regionais”, existem autores que vivem fora do eixo estadunidense e que continuam defendendo fortemente essa mesma linha prin-cipialista.

Em 1998, no entanto, com o Quarto Congresso Mundial de Bioética, realizado em Tóquio, Japão, a bioética (re)começa a percor-rer outros caminhos, a partir do estabelecimen-to do tema oficial do evenestabelecimen-to: “Bioética global”. Com forte influência de Alastair Campbell, então presidente da Associação Internacional de Bioética (AIB), parte dos seguidores da bioética retornou aos trilhos originais delinea-dos por Van Rensselaer Potter (16); com seus novos escritos de 1988, foi mais uma vez o

referencial das idéias (17). No final do século XX, portanto, a disciplina passa a expandir seu campo de estudo e ação, incluindo nas análises sobre a questão da qualidade da vida humana assuntos que até então apenas tangenciavam sua pauta, como a preservação da biodiversi-dade, a finitude dos recursos naturais pla-netários, o equilíbrio do ecossistema, os ali-mentos transgênicos, o racismo e outras formas de discriminação, bem como a questão da prio-rização na alocação de recursos escassos, o aces-so das pesaces-soas a sistemas públicos de saúde e a medicamentos, etc.

Até 1998, portanto, a bioética trilhou cami-nhos que apontavam muito mais para temas e/ou problemas/conflitos biomédicos do que globais, mais individuais do que coletivos. A maximização e o superdimensionamento do princípio da autonomia tornou o princípio da justiça um mero coadjuvante da teoria princi-pialista, uma espécie de apêndice, embora indis-pensável, mas de menor importância. O indi-vidual sufocou o coletivo; o “eu” empurrou o “nós” para uma posição secundária. A teoria principialista se mostrava incapaz de desvendar, entender e intervir nas gritantes disparidades socioeconômicas e sanitárias coletivas e persis-tentes verificadas na maioria dos países pobres do Hemisfério Sul.

O contexto brasileiro e latino-ameri-cano: a bioética de intervenção A bioética brasileira que, especificamente, teve um desenvolvimento que chamo de tardio, por ter surgido de modo orgânico apenas nos anos 90, recuperou o tempo perdido com um vigor

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inusitado. Sua maioridade foi atingida com a realização do Sexto Congresso Mundial de Bioética promovido pela AIB e que contou com o apoio decisivo da Sociedade Brasileira de Bioética, realizado em Brasília, em novembro de 2002. Se até 1998 a bioética brasileira ainda era uma cópia colonizada dos conceitos vindos dos países anglo-saxônicos do Hemisfério Norte, a partir do surgimento e consolidação de vários grupos de estudo, pesquisa e pós-graduação pelo país sua história começou a mudar.

A teoria dos quatro princípios – de certo modo já revisada em seu “núcleo duro” e pretensa-mente universalista por seus próprios propo-nentes na 5a edição do livro Principles of bio-medical ethics (18) –, apesar de sua reconheci-da praticireconheci-dade e utilireconheci-dade para a análise de situações práticas clínicas e em pesquisa –, é sabidamente insuficiente para: a) a análise con-textualizada de conflitos que exijam flexibili-dade para determinada adequação cultural; b) o enfrentamento de macroproblemas bioéticos persistentes ou cotidianos enfrentados por grande parte da população de países com signi-ficativos índices de exclusão social, como o Brasil e seus vizinhos da América Latina. Apesar de algumas críticas pontuais prove-nientes de setores acomodados com a pratici-dade do check list principialista, sua adequação ao estudo dos conflitos e situações que ocorrem nos países pobres da parte Sul do mundo é indispensável e urgente. Categorias como “responsabilidade”, “cuidado”, “solidariedade”, “comprometimento”, “alteridade” e “tolerân-cia”, dentre outras (19), além do que chamo de quatro “pês” – prevenção (de possíveis danos e

iatrogenias), precaução (frente ao desconheci-do), prudência (com relação aos avanços e “novidades”) e proteção (dos excluídos sociais, dos mais frágeis e desassistidos) – para o exercí-cio de uma prática bioética comprometida com os mais vulneráveis, com a “coisa pública” e com o equilíbrio ambiental e planetário do século XXI, começam a ser incorporadas por bioeticistas latino-americanos críticos em suas reflexões, estudos e pesquisas.

Nesse sentido, surgiu na região da América Latina, entre outras, uma proposta episte-mológica anti-hegemônica ao principialismo, gerada na Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília. Essa nova proposta conceitual e prática, denominada “bioética de intervenção”, propõe uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade,

“(...) incluindo a re-análise de diferentes dile-mas, dentre os quais: autonomia versus justiça/eqüidade, benefícios individuais versus benefícios coletivos, individualismo versus so-lidariedade, omissão versus participação e mudanças superficiais versus transformações concretas e permanentes” (1,5).

Assim, a bioética de intervenção defende como moralmente justificável, entre outros aspectos: a) no campo público e coletivo: a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores conseqüên-cias, mesmo que em prejuízo de certas situações individuais, com exceções pontuais a serem dis-cutidas; b) no campo privado e individual: a busca de soluções viáveis e práticas para

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tos identificados com o próprio contexto onde os mesmos acontecem (1,5).

A caminhada futura da bioética brasileira e dos demais países da América Latina deve ser dire-cionada para a negação da importação acrítica e descontextualizada de “pacotes” éticos forâ-neos. Na realidade, a bioética principialista aplicada stricto sensu é incapaz e/ou insufi-ciente para proporcionar impactos positivos nas sociedades excluídas dos países pobres e, conseqüentemente, nas suas organizações políticas. Além disso, é necessário reforçar que já foi plantada a semente da construção afir-mativa de novas bases de sustentação episte-mológica e prática de uma bioética compro-missada com a realidade concreta do país e da região, defendida pela Unesco (20), com a qual nos defrontamos todos os dias e que, segundo Berlinguer, não deveria mais estar acontecendo nesta altura do desenvolvimento histórico da humanidade (21).

Considerações finais

Apesar de fortes interesses contrários, com o Sexto Congresso Mundial de Bioética a voz regional daqueles que não concordavam com o desequilíbrio verificado na balança tornou-se mais forte a partir da definição da temática do evento: “Bioética, poder e injustiça”. Os embates travados trouxeram à tona a necessi-dade da bioética incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada temas sociopolíticos da atualidade, principalmente as agudas dis-crepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as nações do Norte e do Sul (22).

É conveniente recordar, ainda, que com as transformações e o novo ritmo experimentado nos campos científico e tecnológico no contex-to internacional, a relação dos aspeccontex-tos éticos com os temas acima referidos deixou de ser considerada como de índole supra-estrutural para, ao contrário, passar a exigir participação direta nas discussões, inclusive em saúde públi-ca e na construção de propostas de trabalho com vistas ao bem-estar futuro das pessoas e comunidades. No caso dos países latino-ameri-canos, especificamente, é imprescindível que essa discussão (ética) passe a ser incorporada ao próprio funcionamento dos sistemas públicos de saúde no que diz respeito à responsabilidade social do Estado; à definição de prioridades com relação à alocação e distribuição de recur-sos; ao gerenciamento do sistema; ao envolvi-mento organizado e responsável da população em todo o processo; à preparação mais adequa-da dos recursos humanos; à revisão e atualiza-ção de vetustos códigos de ética das diferentes categorias profissionais envolvidas; às indispen-sáveis e profundas transformações curriculares nas universidades... Enfim, contribuindo dire-tamente para a melhoria do funcionamento do setor como um todo.

A discussão bioética surge, assim, para con-tribuir na procura de respostas equilibradas ante os conflitos atuais e os das próximas décadas. Já tendo sido sepultado o mito da neu-tralidade da ciência, a bioética requer aborda-gens pluralistas baseadas na complexidade dos fatos. Para os países do Hemisfério Sul, no entanto, não é suficiente a aceitação acrítica, tampouco as amarras (ou limitações) concei-tuais sobre bioética, vindas dos países do Primeiro

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Mundo, onde as discussões giram preferencial-mente em torno de avançadas situações-limite decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico. Os estudiosos do assunto têm o compromisso de aproveitar a abrangência e oportunidade que a bioética proporciona, em se tratando de um movimento (ou uma nova dis-ciplina, se os leitores preferirem...) que estuda a ética das mais diferentes situações de vida, ampliando seu campo de influência teórica e prática do exclusivo âmbito biomédico/biotec-nológico até o campo ambiental, passando, inequivocamente, pelo campo da bioética social.

Neste início de século XXI, portanto, a questão ética adquire identidade pública. Não pode

mais ser considerada apenas como questão de consciência a ser resolvida na esfera da autono-mia, privada ou particular, de foro individual e exclusivamente íntimo. Hoje, ela cresce de importância no que diz respeito à análise das responsabilidades sanitárias e ambientais e na interpretação histórico-social mais precisa dos quadros epidemiológicos, sendo essencial na determinação das formas de intervenção a serem programadas, na priorização das ações, na formação de pessoal... Enfim, na respon-sabilidade do Estado frente aos cidadãos, prin-cipalmente aqueles mais frágeis e necessitados, bem como frente à preservação da biodiversi-dade e do próprio ecossistema, patrimônios que devem ser preservados de modo sustentado para as gerações futuras.

RESUMEN

De la bioética de principios a una bioética interventiva

La bioética, de origen estadounidense, se volvió mundialmente conocida por estar apoyada en cua-tro principios básicos pretensamente universales y reconocida como una bioética principalista. A par-tir de los años 90, comenzaron a surgir críticas a la universalidad de los principios y a sus limitaciones frente a los macroproblemas colectivos, principalmente sanitarios y ambientales, especialmente ver-ificados en los países periféricos del Hemisferio Sur. Por ello, surge en Latinoamérica, en los últimos años, una nueva propuesta epistemológica - la bioética de intervención - de base filosófica utilitarista y consecuencialista, intentando suplir esa laguna. A partir de un análisis histórico del proceso de con-solidación del principialismo y de la importación acrítica de teorías éticas foráneas, el presente artícu-lo se propone mostrar la necesidad de construir bases conceptuales diferenciadas para la bioética, para establecer un adecuado enfrentamiento de los problemas persistentes rutinariamente detecta-dos en las naciones en desarrollo.

Unitérminos: bioética principialista, contextualización, alternativa crítica, justicia, derechos humanos, cuestiones colectivas, bioética de intervención

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ABSTRACT

From principle-based bioethics to an intervention bioethics

Bioethics, a discipline of US origin, became globally known for being founded on four basic princi-ples that are supposedly universal and is known as principle-based bioethics. In the beginning of the 90s, critiques started to come out about the universality of such principles and their limitations in face of collective macroproblems, mostly of sanitary and environmental nature, verified especially in peripheral countries in the South Hemisphere. In this sense, a new epistemological proposal has dawned in Latin America in recent years - the intervention bioethics, a proposal based on utilitarian and consequential philosophy that tries to fill this void. From a historical analysis of the principle-based approach consolidation process and of disregardful importation of foreign ethical theories, this article seeks to show the need for building differentiated conceptual bases for bioethics in order to adequately face persistent problems that are routinely detected in developing nations.

Uniterms: principle-based bioethics, contextualization, critical alternative, justice, human rights, col-lective issues, intervention bioethics

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília Caixa Postal 04451

CEP 70904-970 Brasília/DF - Brasil E-mail: bioetica@unb.br

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