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Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

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Fabiana Nancy da Silva Araújo

Thiago Duarte de Oliveira

Resumo

O anarquismo, visto com maus olhos pelo senso comum devida sua fama equivocada de desordem e bagunça, é um pensamento político, social e econômico que contribuiu para a formação da sociedade atual, defendendo em seu cerne os interesses dos proletários, das mulheres, do meio ambiente e de todas as vítimas dos processos de industrialização e das relações de poder, a partir do final do século XIX. As obras do brasileiro Lima Barreto, autor à frente de seu tempo, são marcadas, entre outras coisas, pelo pensamento libertário e de inconformidade com o estado moral e social da época, anteriores à consolidação do pensamento anarquista brasileiro (a partir dos anos 30 do século XX). Começaremos esse trabalho pela tessitura e conceituação dos termos anarquia e anarquismo, explorando suas vertentes e difusão pelo Brasil a partir da abolição da escravatura e formação da classe operária. Posteriormente uma abordagem sobre a vida e obra de Lima Barreto e, em seguida, buscando identificar a presença de

insigths anarquistas na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Palavras -Chave

Anarquismo, Lima Barreto, Literatura brasileira.

Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

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Nasce o anarquismo e o movimento anarquista: poder para quê?

Contra toda forma de autoridade, totalitarismo, absolutismos, hierarquizações e sistemas que oprimem a liberdade individual, no sentido mais geral e salvo do conceito popular do senso comum, está presente o anarquismo. Woodcock (2002, p. 7) introduz o livro citando uma frase de Sebastien Faure (famoso ativista libertário): “Todo aquele que contesta a autoridade e luta contra ela é um anarquista”. Podemos, segundo ele, considerar o fio condutor de toda história e surgimento do anarquismo essa questão de luta contra a autoridade e que é a doutrina que propõe uma crítica, de certa forma destrutiva para se tornar construtiva, ao estado da sociedade vigente, de forma que o anarquismo como um sistema de filosofia social, visando promover mudanças básicas na estrutura da sociedade e, principalmente – pois esse é o elemento comum a todas as formas de anarquismo – a substituição do estado autoritário por alguma forma de cooperação não governamental entre indivíduos livres (WOODCOCK, 2002, p. 11).

Segundo Costa (1980, p. 11), “os anarquistas, (…), têm em mira apenas o indivíduo, sem representantes, sem delegações, produtor, naturalmente em sociedade. Positivamente, eles preconizam uma nova sociedade e indicam alguns meios para isto”. O anarquismo, segundo a definição que Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 23) é uma

sociedade, livre de todo domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócio-político em que todos deverão ser livres. Anarquismo significou, portanto, a libertação de todo poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas,

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Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração em uma classe ou num grupo determinado), ou até em ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade [de onde vem o termo libertarismo].

Começamos este trabalho com a intensão primeira de desconstruir o conceito do senso comum do anarquismo como estado de bagunça, de caos instalado, da natureza humana malévola em si, do terrorismo e de ser o promotor da desordem. Este conceito popular tem uma razão histórica de ser, mas o conceito usado nesse trabalho é, conforme citado por Woodcock (2002, p. 8) “[o anarquista] como um homem que acredita ser preciso que o governo morra para que a liberdade possa viver”. É importante ressaltar que essa diferença causa uma confusão semântica e conceitual das teorias anarquistas com o uso popular do termo; mesmo porque, no surgimento dos termos ‘anarquia’ e ‘anarquismo’ que apareceram na Revolução Francesa de 1789 nos escárnios dos girondinos, principalmente Brissot, e posteriormente mais fortemente pelo Diretório, contra os jacobinos, liderados por Robespierre, acusados de serem detentores da desordem, criminosos hediondos, inimigos das leis, engordados de sangue, entre outros escárnios acusatórios.

Posteriormente, pensadores e militantes aguerridos contra o autoritarismo imposto adotaram o nome anarquia, primeiramente o individualista e violento Pierre-Joseph Proudhon, em 1840. Proudhon, inclusive, é o autor da célebre frase “A propriedade é um roubo”, contida em seu livro O que é a propriedade?, (PROUDHON apud

WOODCOCK, 2002, p. 10)

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os grandes nomes anarquistas, como, por exemplo, Godwin, Stiner e Tolstói, este último sendo considerado pela crítica mundial um dos maiores escritores anarquista de acordo com Bezerra (2010), se utilizaram do termo em suas informações ante as relações de poder impostas criando, para isso, sistemas antigovernamentais. Mas, pela conceituação que estamos abordando aqui, esses nomes podem ser considerados como anarquistas por estarem alinhados no sentido de irem de encontro ao sistema social vigente e propondo novas formas de organização social e, também, política.

O que Proudhon deseja construir, conforme descrito por Woodcock (2002), é uma sociedade reunida em grandes federações de comunas e cooperativas operárias, tendo como base econômica onde indivíduos e pequenos grupos disponham de seus próprios meios de produção e ligados por contratos e permuta de créditos mútuos que asseguraria a todos o produto de seu próprio trabalho.

Desse ideal imaginado por Proudhon, surgem correntes de pensamento anarquistas que se diferenciam principalmente pela forma de organização econômica e pelo modo de militância, violenta ou não. Essa vertente de Proudhon, posteriormente adotada por Kropotkin, pode ser chamada de “mutualismo” e “coletivismo” respectivamente, tendo como base a ideia das comunas e cooperativas e a ênfase na ideia da propriedade em mãos de instituições voluntária que assegurariam aos trabalhadores o produto integral de seus trabalhos.

Surgira também o anarco-comunismo e, posteriormente, o anarcossindicalismo, duas correntes, por assim dizer, mais focada na situação da classe proletária da época, tendo como principal diferença a forma de manifestação ou

métodos revolucionários: esta última se utilizava da não violência e das greves como protesto. No anarco-comunismo seriam abolidos toda forma de propriedade privada e Estado e os trabalhadores tomariam o poder e se utilizariam da democracia direta para todas as decisões políticas. Os anarcossindicalistas acreditavam que a via da atuação nos sindicatos seria uma ferramenta para alterar a sociedade, mudando o capitalismo instalado e o Estado e fundando democraticamente uma nova sociedade, esta autogerida pelos próprios trabalhadores.

Há também o anarquismo individualista, onde pensadores e atuantes dessa vertente não acreditam na integridade de nenhuma forma de associação, mesmo cooperativista, exaltando o caráter individual; além dos anarco-pacifistas, representado ilustremente por Tolstói, e que, inclusive, influenciou as ideias de Gandhi, cogitavam a não-resistência. Para eles, sendo contrários a qualquer forma de poder, e acreditando ser a violência também uma forma de poder, eram avessos a tais manifestações.

Podemos constatar um perfil próximo ao positivismo em alguns ideais anarquistas, no sentido, conforme citado por Woodcock (2002), de entenderem que existe um progresso no desenvolvimento das sociedades proporcionado, entre outras coisas, pelos avanços científicos e pela questão das sociedades se firmarem quase que naturalmente, conforme descrito por Proudhon apud Woodcock (2002, p. 23) em que as sociedades se desenvolvem “estimuladas pelo progresso das ciências, por novos inventos e pela evolução ininterrupta das ideias cada vez mais elevadas”, onde tais homens não são governados por outros homens, mas em contínua evolução – tal como notado na Natureza. Porém, é com cuidado que nos arriscamos a considerar o anarquismo como

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uma vertente progressista, pois, não define tão claramente tal progresso e não define com exatidão um devir. Woodcock (2002, p. 25) menciona que:

a maioria dos homens de esquerda do século XIX falavam em progresso. Godwin sonhava com homens que se desenvolveriam indefinidamente, Kropotkin procurava diligentemente estabelecer ligações entre o anarquismo e a evolução e Proudhon chegou a escrever uma Philosophie du Progrés [Filosofia do

Progresso].

Já os que se consideravam marxistas, utilizando um anacronismo neste termo, negavam a existência da evolução nos ideais anarquistas, pois, segundo eles, estes ‘flutuavam no ar’ sem nenhuma definição legítima ou concreta dos ideais anarquistas em relação à história.

Tais correntes anarquistas foram se espalhando por todo mundo, inclusive para o Brasil, onde se firmou mais claramente a partir das décadas de 30 do século XX, embora anteriormente a esse período já se mostrasse claramente presente na literatura e mídias da época, muitas censuradas pela polícia e pelo governo, mas que contribuíram enormemente para a difusão dos ideais anarquistas.

O anarquismo no Brasil: contra as forças produtivas hierarquizadas e a exploração do trabalhador brasileiro

“O anarquismo brasileiro, em sua origem não era força hegemônica no movimento operário, como era uma força política poderosa e que estava presente nas lutas operárias de forma intensiva” (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 23). O pensamento anarquista no Brasil inicia-se junto à formação da classe operária, dada a partir da abolição da escravatura. Surge então o trabalho assalariado que desenvolve lentamente, porém

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Fabiana Nancy da Silva Araújo e Thiago Duarte de Oliveira

ganhando impulso somente com a imigração. Sendo assim, o proletariado brasileiro é formado não somente por artesões e camponeses, como ocorrera na Europa na transição do feudalismo para o capitalismo, mas, sim, por indivíduos predominantemente estrangeiros.

O processo de industrialização no Brasil foi lento e concentrou-se quase que na sua totalidade na região sul do país. Há um aceleramento da industrialização a partir de 1880 provocando assim uma maior demanda por força de trabalho. A partir daí, a imigração cresce ainda mais.

A partir de 1890 em São Paulo e Rio de Janeiro a classe operária no Brasil já era formada em sua maioria por imigrantes. Tal como ocorrido na Europa, a industrialização foi sustentada a partir da exploração da mão de obra, assim “o proletariado nascente é vítima de uma exploração intensiva, com condições de vida e trabalho precárias, jornadas de trabalho extensas e uso da forca de trabalho feminina precoce com salários baixos”. (DEMINICIUS e FILHO, 2006, p. 27)

Os trabalhadores vivam em condições insalubres, tanto dentro como fora das fábricas, as violências praticadas dentro da fabrica contra mulheres e menores eram constantemente relatadas na imprensa operária. Não havia nenhuma representatividade da classe operária na política institucional, sendo esta vigiada e controlada pelo Estado. As associações tornaram-se cada vez mais urgentes, surgindo às ideias sindicalistas, socialistas e principalmente anarquistas brasileiros.

Segundo Deminicis e Filho (2006), grande parte dos imigrantes europeus que vieram pra região de São Paulo e Rio de Janeiro eram italianos, o que explica a hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro, devido ao fato de que o movimento operário italiano era marcado

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fortemente pelo anarquismo.

O anarquismo cumpriu um papel importante na consolidação dos pensamentos sindicalistas no Brasil, tanto a partir da divulgação de suas ideias tanto por passar conhecimento referente às conexões das lutas do passado com as lutas do presente na Europa.

O anarquismo no Brasil não se limitou aos sindicatos, manifestações e ações grevistas. Em meados de 1890 a partir da doação de terras feitas por Dom Pedro II é fundada a Colônia Cecília, tentativa de anarquistas de fundar uma comunidade ‘desierarquizada’ onde os meios de produção fossem de todos para todos, e as ações, debatidas entre todos e realizadas sempre de comum acordo.

Tudo se resolvia em assembleias abertas, gerais, com a participação dos habitantes da comunidade (...). Não havia donos, superioridades culturais e profissionais nem figuras inferiores dentro da colônia (...). Cada membro da comunidade, adaptado a nova forma de trabalho, lutava lado a lado com seus companheiros, durante o dia de enxada na mão, e, à noite, trocavam ideias, debatiam interesses coletivos, sem esquecer o anarquismo, desafiado a viver na prática. Um homem, ali, valia um homem! (RODRIGUES, 1984 apud DEMINICIUS e FILHO,

2006, p. 35)

Os obstáculos encontrados pelos moradores da Colônia Cecília como: as individualidades relacionadas aos valores burgueses e as intempéries naturais que prejudicavam a produção agrícola, não foram suficientes para acabar com a colônia, porém outros fatores externos contribuíram para seu desfecho. Com o fim do império de Dom Pedro II os republicanos passaram a atacar a colônia, cobrando altos impostos e obrigando os colonos a trabalharem cada vez mais, inclusive em fazendas

e comunidades vizinhas. O sonho anarquista e sua magnífica experiência tiveram então seu fim – sob o pretexto de procurar um criminoso refugiado, destruíram a colônia.

No final do século XIX as associações e movimentos anarquistas cresciam cada vez mais, eles se associavam através de centros de estudos, centros culturais, escolas para alfabetização, grupos por afinidades, etc. Muitas associações se ramificaram: surgiram as associações dos sapateiros, vidraceiros, tecelões, assim o anarquismo passou a ser “a ideia mestra da luta de classes”. (RODRIGUES, 1984

apud DEMINICIUS e FILHO, 2006)

Neste período surgem os principais jornais e periódicos anarquistas. O anarcossindicalismo no Brasil desenvolve-se e em 1906 é realizado o primeiro Congresso Operário Brasileiro. Deste congresso resultou na COB (Confederação Operária Brasileira) que colocava como seus objetivos a defesa dos interesses dos trabalhadores, o estudo e a divulgação dos meios de participação, e a produção de um jornal intitulado A voz do trabalhador com o intuito de reunir publicações

e informações acerca das questões operárias e denunciar as condições de trabalho em todo o país, neste jornal sob o pseudônimo de Isaias Caminha, Lima Barreto era um dos colaboradores

(NASCIMENTO, 2010).

Os movimentos grevistas, tendo os anarquistas como os principais idealizadores, foram se desenvolvendo e em 1917 ocorre uma greve geral envolvendo milhares de operários. De longa duração, a greve é marcada por diversos conflitos, confrontos com policiais e mortes. As greves foram difundidas por todo o país, sendo que no Rio de Janeiros cerca de cinquenta mil trabalhadores cruzaram os braços.

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arma poderosa nas mãos do proletariado; ela é ou pode ser um modo e a ocasião de desencadear uma revolução social radical. Entretanto, eu me pergunto se a ideia da greve geral não fez mais mal do que bem à causa da revolução. (MALATESTA, 1989, p. 107)

Os movimentos operários foram cada vez mais se burocratizando, o Estado antes indiferente às causas operárias passou a interferir através de legislações reguladoras. A partir de 1919 os partidos políticos também passam a interferir, burocratizando ainda mais as associações e os sindicatos. O processo capitalista no Brasil e o aprofundamento das instituições estatais, também contribuíram significativamente para o enfraquecimento dos ideais anarquistas.

Lima Barreto: vida e obra

Nasceu em 13 de Maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto, neto de uma negra escrava liberta e de um português que nunca reconheceu seu pai, sua mãe também era mulata. Lima nasceu sobre um “signo ruim”, numa sexta-feira 13 no dia de Nossa Senhora dos Martírios, assim, continua BASTOS (2010) “o martírio de Lima parece advir mais da época e local de nascimento (a retrógada sociedade brasileira de fins do século 19) que da data supostamente agourenta em que por acaso se deu”.

O pai de Lima era tipógrafo e sua mãe professora primaria, seu pai não media esforços para sustentar os filhos trabalhando dia e noite, era muito preocupado com a educação formal, já que não conseguiu realizar seu sonho de ser medico devido à necessidade de trabalhar para custear os gastos com a família, se esforçava para que seus filhos, em especial seu primogênito Affonso, se tornasse doutor e não passasse por todas as humilhações e privações as quais passou.

Dona Amália, mãe de Lima Barreto morreu quando ele tinha apenas sete anos, vitima de tuberculose. “A morte de Amália há de descer como uma sombra no coração do filho mais velho. Sombra que nunca mais se dissipará”. (BARBOSA, 2002, p. 50)

Lima guardou pra sempre a imagem da mãe morta, boa parte de sua revolta, violência e descrença no mundo virá da imensa tristeza que sempre o assombrará a partir desse triste episodio de sua vida. Talvez pela vida dura sem os carinhos de sua mãe e pelo peso de ser o irmão mais velho, Lima Barreto sempre “reagira com extremada violência, antes as injustiças do mundo e as incompreensões das pessoas quo o cercam, com violência às vezes desmedida e inconsequente”. (BARBOSA, 2002, p. 61)

Após a morte de sua mãe vai para escola pública, sendo sempre um aluno aplicado. Em 13 de Maio de 1888, dia do seu aniversario de sete anos ocorreu a abolição da escravatura, fato esse que passou despercebido, pois conforme Barbosa (2002), sendo um morador do Rio de Janeiro onde os escravos já rareavam, Lima Barreto nunca conheceu um escravo e desta forma não imaginava ser a escravidão uma “instituição vexatória” de “aspectos hediondos”. Sempre bom aluno e contando com o incentivo do seu pai, Lima conquistou boas notas na escola unindo seu desejo de estudar e o sonho do pai de vê-lo na Escola Politécnica.

Enfim em março de 1897, Affonso Henriques Lima Barreto era estudante da Escola Politécnica. Porém, era incapaz de se interessar por assuntos que não gostava e cada vez mais, foi mostrando que o fato de estudar na Escola Politécnica dava-se mais pelo desejo de seu pai do que por sua vontade, ele era um amante da filosofia e não conseguia ocupar sua cabeça com teoremas e

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conjugados, desta forma, e além das perseguições sofridas por um dos professores e a loucura de seu pai que o levou a se ver obrigado a assumir a função de arrimo de família, não tardou para que reprovasse em diversas matérias de exatas e fosse obrigado a abandonar a Politécnica. Em 1903 após prestar concurso público foi nomeado a um cargo na Secretaria da Guerra.

Desde a época da Politécnica, Lima Barreto já demonstrava sua inclinação aos pensamentos libertários e progressistas, havia sido colaborador de um periódico chamado A Lanterna que se intitulava de “órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores” (BARBOSA, 2002, p. 106), ali neste jornal já despejava sua revolta contra as instituições, contra os professores e contra seus colegas, dos quais, praticavam comportamentos preconceituosos em relação a ele.

Como já dito anteriormente, por volta de 1900 através dos imigrantes italianos, chega ao país os ideais anarquistas, que contribuíram para o inicio de publicações tanto de romances quanto de contos com conteúdo social (BARBOSA, 2002).

Lima Barreto revelou simpatia pelo anarquismo em vários dos seus artigos, crônicas, romances e ensaios. Em Palavras de um snob anarquista, publicado em 1913, em A Voz do trabalhador, tenta mostrar plausibilidade dessa teoria política, no contexto social brasileiro, contrário aos grandes jornais, que a consideravam um movimento alienígena, sem raízes na ‘cultura brasileira’. Entre os vários títulos encontrados na biblioteca do autor, destacam-se as obras de Hamon, Ethz Bacher, Max Nordou, Malatesta, Elisée Reclus e, principalmente, Kropotkin. Suas fontes documentais dão conta da afinidade de Lima Barreto com o pensamento anarquista, através da utilização marcante das chamadas linguagens negadoras: paródia, ironia, sátira, etc. (DEMINICIS e FILHO, 2006 p. 147)

Lima chega a fundar uma revista Floreal

a qual , permitia liberar ainda mais seus desejos de ser escritor/jornalista, nesta revista chegou a publicar dois capítulos do futuro livro Recordações do escrivão Isaías Caminha. Porém a revista não passa da quarta edição e tomado por sentimento de tristeza e depressão, passa a buscar na bebida alivio para seus tormentos.

Consegue publicar sua primeira obra literária Recordações... em Portugal devido a não ter

localizado no Brasil quem a quisesse publicar, a partir daí, dado o conteúdo pessoal do livro e suas referências a figuras importantes da cena jornalista da época, seu caráter denunciante e desmoralizante acerca dos acontecimentos e pessoas, Lima já discriminado pela sua condição de mulato e pobre, passa a ser também um autor não quisto.

Além de Recordações... Lima escreveu

simultaneamente Morte de M.J. Gonzaga de Sá e logo

adiante sua mais famosa obra O triste fim de Policarpo Quaresma, segundo o documentário da TV Escola Lima Barreto – Vida e obra, só a partir de seus escritos

é que a figura do pobre e do suburbano passa a existir no espaço elegante e nobre da literatura. Nas suas obras ele retrata temas como, preconceito, discriminação das mulheres, ecologia, desfiguração da paisagem, mostrando-se um escritor à frente do seu tempo, de modo que nos dias atuais podemos verificar facilmente a atualidade de suas obras.

Em 1911 seus três principais livros já estão publicados, os problemas com a bebida aumentam e assim pode-se traçar o começo de um declínio na sua produção literária.

A falta de estimulo e a hostilidade do ambiente, aliados ao forte complexo e a uma serie de outros fatores, dos quais não deve ser esquecido o da tragédia doméstica, transformaria o adolescente cheio de sonhos num pobre homem, viciado no álcool, que lhe consome

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não somente a saúde, como em grande parte lhe sacrifica a carreira de escritor. (BARBOSA, 2002, p. 223)

O uso exagerado da bebida matou Lima lentamente, passava dias nas ruas, não se alimentava, não tardou a começar a apresentar sinais físicos de seus abusos. (BARBOSA, 2002). Em 1914 ocorre sua primeira internação num hospício por causa de alucinações derivadas do excesso de bebidas.

Por volta de 1917 passa a contribuir mais ainda com o movimento anarquista, seus pensamentos libertários se expandiam, saiam cada vez mais da obra literária e “embora sem participar da ação direta, dá ao movimento, que cresce a olhos vistos, o melhor do seu esforço de escritor e jornalista” (BARBOSA, 2002, p. 268), o medo de perder seu emprego público não o atormenta mais, seus irmãos já eram adultos e trabalhavam tendo possibilidades de participar do custeio da casa e cuidar também de seu pai, há tempos, entregue a loucura. Assim, seus anseios de participar da luta social cresceram. Passa a denunciar tudo ferozmente, contribui ainda mais para a imprensa anarquista. Através desse sentimento de liberdade que o toma entrega-se cada vez mais a bebida, é internado novamente em 1919, continua contribuindo com a imprensa operária e devido a suas insanidades, é aposentado do serviço público.

Após a aposentadoria, passa a escrever para diversos jornais: Careta, A.B.C., Hoje, Tio-Jornal

entre outros. “Nos últimos anos, como em toda a vida, Lima Barreto permanece fiel à sua vocação de escritor. Ao mesmo tempo em que luta para se libertar do vicio que o degrada, agarra-se à literatura como a um resto de náufrago” (BARBOSA, 2002, p. 320).

Lima Barreto foi vencido pelo alcoolismo e consequentemente pela doença, passou seus últimos momentos em casa, recluso, sem poder

sair, sem poder praticar suas andanças pela cidade nem compartilhar da companhia das pessoas simples as quais tanto gostava. Morreu em 1° de novembro de 1922 no seu quarto em meio aos seus livros e suas últimas palavras foram perguntar se seu pai estava bem, estava sentado abraçado a uma revista francesa. Seu velório foi disputado por “gente desconhecida dos subúrbios. Amigos humildes.” (BARBOSA, 2002 p. 358)

No seu leito de moribundo, João Henriques sentira que qualquer coisa diferente ocorrera na casa. Como que recobrando a razão por um instante, perguntara à filha, no dia seguinte: Que foi que aconteceu? Afonso morreu? Evangelina procurou acalmá-lo, mas em vão. João Henriques tinha os olhos secos e duros. Logo depois, entrava em agonia. Nada mais restava a esperar... Morreu quarenta e oito horas depois do filho. Foi enterrado na mesma campa. E, no túmulo humilde, eles repousam para sempre, novamente unidos, na morte como na vida. (BARBOSA, 2002, p. 360) Ideais anarquistas na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

Tendo em vista que os ideais básicos da anarquia, conforme aqui conceituado, seja a liberdade individual como garantia indispensável para qualquer sociedade, e que muitos pensadores do anarquismo são aguerridos e munidos de críticas contra o status quo, alguns até mesmo

com o pensamento de que se é preciso ‘destruir’ o estado atual da sociedade para se construir um novo estado, e entendendo também Lima Barreto como um artista literário dotado de tais características (BEZERRA, 2010), podem-se notar na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a

presença de algumas passagens que, ao nosso olhar, mesmo que sutilmente, perpassa pelas questões

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

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anarquistas. Em alguns trechos Lima Barreto, na voz da personagem Isaías Caminha, deixa claro

seu pensamento de inconformismo perante as injustiças que ele presencia, algumas vezes justificando suas causas pelas relações exacerbadas de poder, rebeldia às leis e traços de personalidade que demonstram forte senso crítico.

Outra característica importante a ser observada na obra, conforme explorado por Bezerra (2010, p. 90), é a forma literária do autor. Segundo ela,

é necessário mostrar (…) [que] as ideias anarquistas e os problemas sociais da jovem República, foram filtrados pela visão do artista e se configuram na estrutura narrativa de sua obra, tornando-se muito mais relevantes como elementos estéticos do que como simples fatos sociais.

Bezerra (2010, p. 93) também afirma que

essa liberdade, essa rebeldia diante das leis, é um traço recorrente na obra de Lima Barreto, provavelmente consequência de sua simpatia pelas ideias anarquistas. Essa atitude não se limita à estética, como já se observa; trilha praticamente toda a vida do artista e acaba por se refletir em sua obra, principalmente em Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Lima Barreto inicia sua narrativa observando como foi a infância de Isaías Caminha. Ele se

tornou um homem intelectualizando, comparando a simplicidade de sua mãe, sendo que esta não conseguia explicar as grandes coisas do mundo, com o sacerdócio e bom manejo das palavras de seu pai, dando a causa dessa característica como sendo os estudos. Seu pai também lhe contara certa vez sobre as aventuras do grande homem que fora Napoleão, arregalando-se os olhos e admirando-se pela postura desse grande guerreiro.

Com a ideia de se tornar um homem também intelectualizado, e movido também por um senso competitivo contra seu amigo de sala, menos intelectualizado, mas que se deu bem indo estudar no Rio de Janeiro, Isaías pede conselho a algumas pessoas, dentre elas o Tio Valentim. Importante ressaltar que o Tio Valentim era um antigo militante do Partido Liberal, ele sempre contava ao Isaías suas “façanhas, bravatas portentosas, levadas a cabo, pelos tempos que fora, nas eleições, esteio ao Partido Liberal” BARRETO (2010, p. 72). O Partido Liberal foi um partido político brasileiro do Período Imperial, tinha como bandeira a não simpatização do regime absolutista. Eram contrários às ideias do Partido Conservador no modo de lidar com a realidade social. Embora defendendo o monarquismo, foi umas das primeiras instituições contrárias às ideias absolutistas centralizadoras e conservadoras do poder nacional. É interessante notar também que, de acordo com Barbosa (2002), o pai de Lima Barreto era um dos colaboradores do Partido Liberal. Há esta evidência de que o Tio Valentim seria a figura do pai de Lima Barreto, mas que na narrativa se tornou o tio de Isaías.

Resolvendo tentar a vida no Rio, Isaías embarca no trem, onde sofre seu primeiro ato de preconceito. Sem saber exatamente a causa, se indigna com a situação, causando-lhe espanto e iniciando suas críticas posteriores. Lá conhece Laje da Silva, que será importante em sua estadia no Rio. Este o convida para os lazeres que a vida carioca pode proporcionar.

No botequim do teatro, Raul Gusmão pronuncia uma frase que fica marcada na mente de Isaías, uma frase que demonstra certa inquietude ante o rebuscamento efêmero das castas mais altas em prol de uma liberdade que só se encontra na Natureza:

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Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em vinagre. Não eram lá de gosto muito fino e a extravagância nada significativa. Eu bebo a verde esmeralda sadia, emblema da mater Natureza, num copo de xerez.

Em vez de pérola mórbida, doença de um marisco, no acre vinagre, bebo o verde dos prados, a magnífica coma das palmeiras, o perfume das flores, tudo que o verde lembra da grande mãe augusta! (BARRETO, 2010, p. 86)

Após alguns acontecimentos, dentre eles, a ida ao tribunal em busca do doutor Castro e o encontro com o Senador Carvalho no bonde, Isaías demostra apreço pelo que ele idealiza que seja a profissão de legislador, homens enormemente capacitados em julgar e determinar leis que sejam úteis e benéficas para todos. Posteriormente se indigna com a frieza e indiferença desses homens em seus ofícios e ante os problemas sociais que eles lidam todos os dias.

Conhece então o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff, personagem que terá importância na

narrativa. Gregoróvitch na história é um jornalista amigo de Laje da Silva. Em nota de rodapé da edição utilizada neste trabalho (BARRETO, 2010, p. 100, nota 21), este jornalista na vida real corresponderia ao Mario Cattaruzza, jornalista italiano radicado no

Brasil e que fundou, “junto com Vitalino Rotteline,

o jornal anarquista Il Fanfula, fechado pela polícia

no ano seguinte”.

Em determinado momento, após esse encontro e estando sozinho subindo a rua, se sente de todo indiferente ante dois fatos. O primeiro a indiferença diante das vitrinas das lojas, onde criticou em seus pensamentos a petulância e a efemeridade dos artigos à venda:

(…) As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam-me dizer: ‘Veste-me, ó idiota! nós somos a civilização, a

honestidade, a consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio!’ (BARRETO, 2010, p. 103)

A segunda, a passagem do exército pela rua, como demonstrado do seguinte trecho, também se faz como uma característica que demonstra fortemente a presença de um pensamento anarquista do autor no sentido de ser indiferente ante as forças armadas como forma de estabelecer relações de poder:

Era talvez a primeira vez que eu vi a força armada do meu país. Dela, só tinha até então vagas notícias. Uma, quando encontrei, num portal de uma venda, semiembriagado civil e militar, um velho soldado; a outra, quando vi a viúva do general Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto de pensões e vários títulos, que lhe deixara o marido, um plácido general que envelhecera em várias comissões pacíficas e bem retribuídas… O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira que passara me deixou perfeitamente indiferente… (BARRETO, 2010, p. 104)

Conforme vai decorrendo a história, após as tentativas frustradas de encontrar o doutor Castro, e no receio de acabar seu dinheiro, Isaías, ao conversar com Laje da Silva, questiona sobre o que é o jogo do bicho. Laje então, pelo diálogo travado, se posiciona contra a forma da polícia agir, julgando-a como executora de vinganças. A polícia havia lhe pregado uma cilada, colocando notas falsas em seu chapéu. Sua posição fica clara de denúncia contra as autoridades, conforme diálogo a seguir:

Isaías: – Foi preso?

Laje: – Preso, só?! Fui esbordoado, metido numa enxovia, gastei dinheiro… O diabo! E sabe por que tudo isso?

Isaías: – Não.

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

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Laje: – Porque eu apoiava a oposição lá no meu município… É isto a polícia, no Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro… A polícia no Brasil só serve para exercer vinganças, e mais nada. (BARRETO, 2010, p. 115)

Após descobrir em uma notícia que o doutor Castro, que tanto ele procurava, não estaria mais na cidade, começa a despertar em Isaías um enorme sentimento de revolta contra todos os joguetes que os homens poderosos fazem as pessoas humildes passarem. Barreto (2010, p. 122) cita um trecho bastante significativo e que vão ao encontro dos ideais anarquistas, é um momento que sofre um safanão de um sujeito e começa a refletir:

Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reinvindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não

me veio à memória, mas foi isso que eu desejei chegar a ser um dia.

A figura de Robespierre aparece aqui como sendo uma imagem a ser atingida pelos anseios de Isaías, uma figura de liderança em prol das causas populares e que no cerne da Revolução Francesa fora acusado de anarquista por Brissot e pelo Diretório, conforme mencionado por Woodcock (2002). Uma figura de inconformidade contra as causas absolutistas e de luta pelos seus ideais.

Ao final do capítulo IV, em reflexões que não deixa claro quem está falando, Lima Barreto ou Isaías Caminha, deixa evidentes seus desejos atuais

de vingança pelo que estaria prestes a acontecer. Naquele dia, quebrou sua rotina, o que teria provocado posteriormente a intimação por suspeita de roubo. Saiu de casa mais cedo na tentativa frustrada de encontrar o doutor Castro. Na volta, foi almoçar com seu amigo Gregoróvitch. Nesse encontro, passou a conhecer-lhe mais. Gregoróvitch “tinha cinqüenta anos e sentia-se absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias morais e psicológicas que essa nação contém em si” (BARRETO, 2010, p. 124). Essa passagem demonstra a característica anarquista do amigo de Isaías. Em outro trecho, Isaías, comentando sua admiração pelo recente amigo, cita que ele fez-lhe “notar que era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de todos nós” (BARRETO, 2010, p. 125). Podemos notar que, a partir daqui, muitas das ideias libertárias de Isaías foram de todo incitadas pelas conversas com Gregoróvitch.

Na delegacia, sofre um ato discriminatório pela sua cor. Isaías, escrevendo essas memórias, lembra-se com muita dor desse e de outros acontecimentos e discerne os fatos que o levaram a ter pensamentos de tais maneiras. Nessa ocasião, ficou indignado ante o descompasso que um homem, representante das autoridades e do governo, do que tinha de certa forma poder legitimado e que deveria ter consciência jurídica de seus direitos, agirem dessa forma. Após uma pequena discussão, sem motivos para isso, Isaías é preso a mando do delegado, injustamente. Todo seu pensamento de patriotismo, recém-erguido por seu amigo, se desfaz. Pensou ironicamente: “A pátria!”.

Lima Barreto mistura reflexões pessoais com as reflexões da personagem ao longo da obra. Ele, enquanto Lima Barreto, critica os literatos

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dos jornais. Justifica-se escrevendo para denunciar os problemas porque passou e tenta inaugurar uma nova forma de escrita, se desvencilhando das normas padrões de beleza e se utilizando de uma forma acessível para todos. Entre suas obras favoritas, Barreto (2010, p. 137) menciona a obra

A Guerra e a Paz, de Tolstói, uma importante obra

em formato de romance que analisa as estruturas aristocráticas russas.

Após ter saída da delegacia, Isaías, absorto em pensamentos e reflexões, se demonstra injuriado e encalacrado ante os acontecimentos, não consegue se conformar com os acontecimentos recentes, não entende porque ele, uma pessoa tão aplicada aos estudos e com anseios morais tão nobres pudesse sofre tantas injustiças daquela forma. “O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso”, “(...) na delegacia, na atitude do delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu sentia que a gente que me cercava, me tinha numa conta inferior” (BARRETO, 2010, p. 141) e

(...) Aquele meu fervor primeiro tinha sido substituído por uma apatia superior a mim. Tudo me parecia acima de minhas forças, tudo me parecia impossível; e que não era eu propriamente que não podia fazer isso ou aquilo, mas eram todos os outros que não queriam, contra a vontade dos quais a minha era insuficiente e débil. (BARRETO, 2010, p. 149).

Nota-se que a partir desse momento começam a surgir no protagonista esses sentimentos de inconformidade com o que está posto e começa a ter insights de revoltas e pensamentos de

crítica ante o sistema. Posteriormente conhece o Abelardo Leiva, do qual passa a ter muita afinidade e admiração pelos seus pensamentos de poeta e revolucionário. Em nota de rodapé:

A descrição e características físicas e da personalidade de Leiva se aproxima da de Luiz Edmundo que, na juventude, freqüentava a mesma roda da Café Papagaio, no centro do Rio, junto com Lima Barreto. Os amigos de Leiva reúnem características de outros jovens iconoclastas, grupo apelidado de ‘Esplendor dos amanuenses’, que mesclavam ideias anarquistas e positivistas, aos quais se associam também alguns poetas simbolistas. (BARRETO, 2010, p. 150, nota 31)

A passagem a seguir sugere um perfil anarcomunista do amigo de Isaías, munido de ideias revolucionárias e socialistas:

Como revolucionário, dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas prédicas e brochuras do senhor Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre duas refeições afastadas, as suas obras prediletas e enchendo a cidade com os longos passos de homem de grandes pernas. (BARRETO, 2010, p. 151)

Em outras passagens onde Isaías Caminha e seu amigo Leiva conversam, sempre fica claro a presença de ideias revolucionárias e convergentes aos tipos de anarquismo e, algumas vezes, o socialismo. Em um diálogo travado entre Agostinho e Leiva, Agostinho se admira e se questiona sobre essa nova ordem social proposto por Leiva e este com seu argumento demonstra que a realidade é um espaço de exploração do homem da massa pelo homem detentor do poder, alienando àqueles uma falsa felicidade:

Agostinho: – Mas o senhor o que quer é desordem, é anarquia, é extinção da ordem social...

Leiva: – Mas é isso mesmo, não quero

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outra coisa! Pois o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras? O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da religião da pátria... Ah! quando ele entrar! (BARRETO, 2010, p. 156 e 157)

No trecho seguinte, Leiva, aos moldes proposto por Proudhon apud Woodcock (2002), no pensamento anarquista, na questão da não necessidade do Estado para governar a vida social, pois, tal como acontece com os outros seres sociais da Natureza, a raça humana tende a uma vida social tão natural quanto por si só, exclama:

Leiva: – Não há na natureza nada que se pareça com a nossa sociedade governada pelo Estado... Observe o senhor que todas as sociedades animais se governam por leis para as quais elas não colaboraram, são como preexistentes a elas, independentes de sua vontade; e só nós inventamos esse absurdo de fazer leis para nós mesmos – leis que, em última análise, não são mais que a expressão da vontade, dos caprichos, dos interesses de uma minoria insignificante... No nosso corpo há uma multidão de organismos, todos eles se interdependem, mas vivem autonomamente sem serem propriamente governados por nenhum, e o equilíbrio se faz por isso mesmo... O sistema solar... Na natureza, todo o equilíbrio se obtém pela ação livre de cada uma das forças particulares...

(...)

Leiva: – Eu quero a confusão geral, para que a ordem natural surja triunfante e vitoriosa! (BARRETO, 2010, p. 157)

Quando Isaías já se encontra trabalhando

em O Globo, a convite de seu amigo Gregoróvitch,

sempre fica muito claro suas críticas ante a imprensa e as relações de poder que se encontra dentro e fora dela. Esse fato fica claro na passagem a seguir, quando Leiva dialoga com Plínio de Andrade,

suposto pseudônimo do próprio Lima Barreto:

Plínio: – (…) A imprensa! Que quadrilha! (…) Nada há nada tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral de toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chama-los gênios, embora inteiramente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… (…) E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! (…) trabalham para a seleção de mediocridades.

(…)

Plínio: – (…) hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os atrozes lucros burgueses… Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que deve fazer

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num jornal… (…) (BARRETO, 2010, p. 163, 164 e 165)

Em certo momento, Isaías faz uma crítica à imprensa: “era a imprensa, a onipotente imprensa, o quarto poder fora da Constituição!” (BARRETO, 2010, p. 193)

Questionando ainda mais, posteriormente, as relações de poder dentro do jornal e suas relações com os funcionários, adotando uma crítica contrária às formas de subordinação e segregação, Isaías afirma:

No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação a se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não.

(…)

Não há repartição, casa de negócio em que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o repórter; o repórter, o revisor; este, por sua vez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão. A separação é a mais nítida possível e o sentimento de superioridade, de uns para os outros, é palpável, perfeitamente palpável. O diretor é um deus inacessível, caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter Tonante, cujo menor gesto faz todo o jornal tremer. (BARRETO, 2010, p. 244)

No decorrer da história, acontece um fato inusitado, a Guerra do Sapato, apontado pelo comentarista dessa edição como sendo uma paráfrase da Revolta Contra a Vacina Obrigatória de 1904 (BARRETO, 2010, p. 265, nota 99). Em determinada passagem, fica claro o furor da sociedade contra as imposições do governo, ressaltando o perfil anarquista de combate às leis e autoridades. Isso fica claro nas duas passagens:

A irritação do espírito popular que eu tinha observado na minha própria casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a especial àqueles a quem tocava e nunca que aquelas observações ingênuas se tivessem transformado em grito de guerra, em amuleto excitador para multidão toda. (BARRETO, 2010, p. 263)

Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância. (BARRETO, 2010, p. 265)

Então, quase no fim do romance notamos mais dois trechos que nos remetem aos ideais anarquistas, a primeiro parafraseado os escritos de Tolstói (BEZERRA, 2010) ao considerar o impulso de luta pelo amor – e não pelo ódio – e posteriormente no sentimento de Isaías de que realmente apenas a oposição e o emprego da violência, observados pela personagem Leiva anteriormente, é capaz de tirar as pessoas de seus estados alienados de bondade, que deixa cega todo sentido de liberdade:

(…) fiquei animado, como ainda estou, a contradizer tão malignas e infames opiniões, seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino ter força para realizá-la, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor. (BARRETO, 2010, p. 288) Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfação, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo.

Até ali, tinha sido eu a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem que não podia, não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus dias em fora. Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma coisa que ninguém

Ideais anarquistas de Lima Barreto na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha

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ignora. Felizmente não foi tarde… (BARRETO, 2010, p. 289).

Conclusão

Este trabalho teve como objetivo investigar a presença de resquícios literários que se remetam ou refletem o início da construção do pensamento anarquista no Brasil no início do século XX, mais especificamente na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Embora suas obras

posteriores como Triste fim de Policarpo Quaresma, ou

mesmo os folhetins publicados por Lima Barreto em jornais considerados anarquistas da época apresentem elementos figurados do pensamento anarquista mais evidente, tal como citado por BEZERRA (2010), nota-se que na obra analisada há, mesmo timidamente, trechos, ideias e passagens que remetem ao pensamento libertário do autor na obra analisada.

Começamos a conceituar os termos anarquismo e anarquia, explanamos seu surgimento e desenvolvimento na Europa, mostramos brevemente como a anarquia se firmou no Brasil, mostramos resumidamente a vida e obra de Lima Barreto e suas relações com o anarquismo e finalmente investigamos na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha a presença de passagens

que se remete ao pensamento anarquista de Lima Barreto. É necessário, todavia, deixar claro que não se pode afirmar categoricamente que Lima Barreto era um anarquista, mas é evidente que, até mesmo pelas circunstâncias históricas da época e de sua história de vida (fortemente marcada pelo preconceito e pela luta e crítica contra o status quo),

suas obras transparecem o pensamento libertário, muitas vezes pela vertente do anarco-comunismo. A obra analisada ainda é tímida nesse sentido, mas julgamos rico tornar evidente em que momentos da história de Isaías o anarquismo se mostra presente.

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BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio Editora,

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Referências

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