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Cláusula de força maior nos contratos internacionais de compra e venda

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR NOS CONTRATOS

INTERNACIONAIS DE COMPRA E VENDA

Margaryta Rudnieva

Dissertação orientada pela Professora Doutora Elsa Dias Oliveira

Mestrado Profissionalizante Ciências Jurídico-Empresariais

(2)

“A arte de viver é mais parecida com a luta do que com a dança, na medida em que está pronta para enfrentar tanto o inesperado como o imprevisto e não está preparada para cair.”

Marco Aurélio

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RESUMO

Na presente dissertação examinar-se-ão as relações jurídicas no âmbito dos contratos internacionais de compra e venda quando uma das partes fica impossibilitada de cumprir a sua obrigação, em virtude da ocorrência de um evento que constitui a Força Maior, assim como os seus efeitos jurídicos.

Em primeiro lugar, propõe-se fazer uma breve análise comparada do regime jurídico da impossibilidade de cumprimento nos sistemas jurídicos de Direito Civil e de Common Law. A seguir, analisaremos o regime jurídico de exoneração na Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias; a “força maior” nos Princípios do UNIDROIT dos Contratos Comerciais Internacionais; e o regime jurídico de impossibilidade de cumprimento nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos e no “Projeto de Quadro Comum de Referência”.

Também se pretende fazer um estudo do conteúdo da cláusula de Força Maior e analisar o modelo de cláusula de Força Maior 2003 da Câmara do Comércio Internacional, o qual contém uma fórmula geral deste conceito e uma lista com os eventos que podem ser considerados como força maior. Este estudo pretende indagar acerca da relevância da cláusula de Força Maior e a importância da sua inserção num contrato.

Como os institutos jurídicos de Força Maior e de Hardship apresentam algumas semelhanças e por não ser fácil, por vezes, determinar as fronteiras entre ambos, pretende-se, no final do trabalho, analisar o instituto de Hardship para o poder distinguir, na prática, do instituto de Força Maior.

Palavras-chaves: não cumprimento, força maior, impedimento, exoneração, conteúdo e efeitos jurídicos de cláusula de força maior; cláusula de hardship.

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SUMMARY

The current dissertation will examine the legal relations in the context of international trade contracts, when one of the parties is unable to perform its obligation due to the occurrence of an event that constitutes the Force Majeure, as well as its legal effects.

First of all, it is proposed to make a brief comparative analysis of the legal regime of the impossibility of performance in the legal systems of Civil Law and Common Law. Next, we will analyze the legal regime of exemption in the United Nation Convention on Contracts for the International Sale of Goods; the "force majeure" in the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts; and the legal regime of impossibility of performance in the Principles on European Contract Law and in the "Draft Common Frame of Reference".

It is also intended to study the content of the Force Majeure clause and analyze the model of the Force Majeure Clause 2003 from the International Chamber of Commerce, which contains a general formula of this concept and a list of the events that can be considered as Force Majeure. This study intends to investigate the relevance of the Force Majeure clause and the importance of its insertion in a contract.

As the legal institutes of Force Majeure and Hardship present some similarities, and for not being easy, in some cases, to determine the boundaries between them, it´s intended by the end of the essay to analyze the legal institute of Hardship, in order to distinguish it, in the practice, from the institute of Force Majeure.

Keywords: non-performance, force majeure, impediment, exemption, content and legal effects of the force majeure clause; hardship clause.

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Índice

Abreviaturas...7

Introdução...8

1. Origem da “força maior” e do “caso fortuito”...11

1.1 Distinção entre “força maior” e “caso fortuito”. Teoria subjetiva e objetiva...15

2. Impossibilidade de cumprimento da obrigação nos sistemas jurídicos nacionais...20

2.1 Sistemas jurídicos romano-germânicos...21

2.1.1 Direito alemão...21

2.1.2 Direito francês...26

2.1.3 Direito português...30

2.1.4 Direito italiano...35

2.2 Sistemas jurídicos de Common Law...38

2.2.1 Direito inglês...38

2.2.2 Direito norte-americano...43

2.3 Síntese comparativa...44

3. Força Maior nas Fontes Internacionais...50

3.1 Regime de Exoneração na Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias...50

3.1.1 Impossibilidade de execução e os seus pressupostos...52

3.1.2 Não cumprimento de terceiro...56

3.1.3 Impedimento temporário ou parcial...57

3.1.4 Dever de comunicação...58

3.1.5 Outros diretos dos contraentes...59

3.1.6 Facto imputável ao credor...60

3.2 Force Majeure nos Princípios do UNIDROIT dos Contratos Comerciais Internacionais...62

(6)

3.3 Impossibilidade de cumprimento nos Princípios de Direito

Europeu dos Contratos...66

3.4 Impossibilidade de cumprimento no Draft Common Frame of Reference...70

4. Relevância de cláusula de Força Maior...74

4.1 Modelo de cláusula de Força Maior da Câmara do Comércio Internacional...74

4.2 Conteúdo de cláusula de Força Maior...81

4.3 Efeitos jurídicos...89

4.4 Importância de inserção de cláusula de Força Maior no contrato...90

5. Distinção entre a cláusula de Força Maior e a cláusula de Hardship...94

5.1 Características de cláusula de Hardship...94

5.2 Cláusula de Força Maior vs Cláusula de Hardship...101

Conclusão...107

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Abreviaturas

Art./Arts. – Artigo/Artigos

BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão)

C - Codex de Justiniano CC – Código Civil

CCI - Câmara de Comércio Internacional Cfr. – Conforme

CISG – Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias

CNUDCI - Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional

D - Digesta de Justiniano

DCFR – Draft Common Frame of Reference Ed. – edição

Etc. – e outras coisas

I - Institutiones Iustiniani n.º/n.ºs – Número/Números

ONU – Organização das Nações Unidas

op. cit. – Obra citada

pág./págs. – Página/Páginas

PCCI – Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais PDEC – Princípios do Direito Europeu dos Contratos UCC – Uniform Commercial Code

UNIDROIT – Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado

V. g. – Verbi gratia Vide – Veja-se

Vol. – Volume

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Introdução

Um dos mais importantes e fundamentais princípios jurídicos do Direito Civil é, sem dúvida, o princípio “pacta sunt servanda”, segundo o qual os contratos celebrados dentro dos limites de lei devem ser pontualmente cumpridos. Este principio é baseado na boa-fé e é reconhecido pela maioria das ordens jurídicas nacionais (inclusive pelo sistema jurídico português)1.

Considerando que a atividade económica é inviável sem garantias jurídicas, a importância da observação do princípio “pacta sunt servanda” nas relações jurídicas contratuais é imprescindível. Entretanto, a prática demonstrou que nem sempre será possível cumprir este princípio, uma vez que a sua aplicação, por vezes, poderá levar a um resultado negativo, contrário à boa fé, ao sentido de bom senso e ao próprio sistema de Direito. Tratar-se-ão de situações excecionais, quando as partes celebram um determinado contrato e posteriormente ocorre um impedimento imprevisível, irresistível e fora do seu controlo, que tornará a prestação absolutamente impossível de se realizar. São chamados casos de força maior ou casos fortuitos, os quais são capazes de perturbar substancialmente o cumprimento da obrigação contratual de uma das partes. Evidentemente, se as partes pudessem prever esses impedimentos, nunca iriam celebrar o contrato nessas condições ou tê-lo-iam celebrado com um conteúdo diferente.

Provavelmente, a ocorrência de um caso de força maior (ou de um caso fortuito) não é muito relevante nas relações jurídicas de curto prazo e em contratos de conteúdo simples, cujas cláusulas penais contratuais incorporadas não são de valor muito elevado; contudo, no âmbito do comércio internacional, onde na maioria dos casos as relações jurídicas são duradoras e os contratos são

1 “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei” – n.º1 do artigo 406º (Eficácia dos contratos) CC português.

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complexos e detalhados2, o referido conceito terá grande importância para os

contraentes.

Entende-se por um contrato internacional um acordo bilateral ou multilateral que constitui, regula e extingue uma relação jurídica patrimonial entre as partes que estão ligadas a diferentes ordenamentos jurídicos. Pelas palavras do SANTOS JÚNIOR: “os contratos internacionais realizam-se entre operadores económicos – comerciais ou industriais, entre empresas, normalmente enquadradas por sociedades comerciais”3. Destaca o mesmo autor

que “os contratos internacionais são o veículo jurídico fundamental do comércio internacional e polo de atração do Direito do Comercio Internacional”4,5. O

contrato internacional é um instrumento jurídico das transações internacionais que potencia a prosperidade económica do país, o desenvolvimento de tecnologias e até a própria paz social. Sublinha ainda SANTOS JÚNIOR, que “na verdade, se, como já alguém disse, o contrato constitui uma descoberta tão admirável quanto a da roda, pode acrescentar-se que o seu uso é tão universal quanto o uso desta”6.

Assim, os contratos internacionais são celebrados entre entes empresariais, com sedes profissionais em países diferentes e são sensíveis a perturbações que podem ocorrer fora do controlo das partes, durante o cumprimento das suas

2 V. g. o contrato de realização de unidade industrial (“chave na mão”, “produto na mão”); o contrato de transferência de tecnologia (contrato de “know-how”); o contrato de distribuição (contrato de “franchising”); o contrato de compra e venda internacional; o contrato de empreendimento comum (“joint venture”); contrato de empreitada e subempreitada, etc.

3 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade Temática do Direito Comercial Internacional como Disciplina de Mestrado. Uma aplicação: Os Contratos Internacionais de Engenharia Global, Almedina, 2009, pág. 38.

4 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Sobre o conceito de Contrato Internacional, separata: Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I – 2005, Almedina, pág. 162. 5 Contrato internacional é “o instrumento necessário e fundamental de formalização de operações económicas internacionais, com o reconhecimento amplo da autonomia dos contraentes na auto-regulamentação dos seus interesses, que neste âmbito, se estende quer à faculdade de escolha da lei aplicável quer à faculdade de submissão dos litígios decorrentes do contrato internacional a arbitragem comercial internacional”. Cfr. SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, ibidem, pág. 166. 6 Ibidem, pág. 176.

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obrigações contratuais. Quaisquer relações jurídicas comerciais internacionais não são seguras e implicam um elevado grau de incerteza, por estarem dependentes de situações politicas e/ou económicas dos Estados aos quais os contraentes estão ligados. Conforme STRENGER: “a distância que separa os contraentes, a diversidade de sistemas jurídicos, as incertezas jurídicas são fontes de desconfiança tradicionais em matéria internacional”7. De acordo com BRUNO

OPPETIT: “os contratos internacionais envolvem-se em uma atmosfera política e económica, de maneira extremamente sensível às constantes mutações geradoras de conflitos e incertezas”8. Portanto, no âmbito do comércio internacional, tal

como nos negócios jurídicos internos, ocorrem frequentemente casos em que a prestação contratual se torna mais difícil, ou até impossível para uma das partes, devido a fatores objetivos que estão fora do seu controlo.

É importante tomar em consideração que os contratos comerciais internacionais pressupõem a possibilidade de serem regulados por diferentes sistemas jurídicos nacionais, os quais, por vezes, apresentam soluções distintas para os mesmos casos jurídicos, o que certamente não será favorável para uma das partes. Por exemplo, dois ordenamentos jurídicos distintos podem apresentar soluções completamente opostas num mesmo caso de impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual. Portanto, uma vez que nos Direitos nacionais não existe uma regulação clara dos casos de impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual, em virtude da ocorrência de eventos imprevisíveis, irresistíveis e exteriores à vontade das partes, na maioria dos casos, os contraentes consideram necessário inserir no seu contrato uma cláusula de Força Maior, que os poderá exonerar de responsabilidade contratual (perante tais situações) e garantir, posteriormente, uma segurança e certeza jurídica.

7 STRENGER, IRINEU, Direito Internacional Privado (Direito Comercial Internacional), 4ª ed., aumentada e atualizada, São Paulo: LTr, 2000, pág. 789.

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1. Origem da “força maior” e do “caso fortuito”

A noção da “força maior” (vis maior) e do “caso fortuito” (casus fortuitus) foram conhecidos pelo Direito Romano Privado do período clássico. Naquela altura estava em vigor a máxima romana impossibilium nulla obligatio est9 (D. 50,

17, 185). Pelas palavras de VERA-CRUZ PINTO: “quando a realização da prestação se torna impossível por um evento que não pode ser imputável, a nenhum titulo, ao devedor: caso dos factos naturais – como inundações, sismos, derrocadas; factos jurídicos que subtraem a coisa do comércio; atos humanos realizados por terceiros com força e de forma irresistível – o devedor fica livre de toda a responsabilidade ou vinculo”10,11. SANTOS JUSTO afirma que “o

incumprimento duma obligatio pode dever-se à impossibilidade material de execução do seu objeto, determinada por acontecimentos direta ou indiretamente alheios à vontade humana”12. Sublinha ainda o referido autor que “é necessário

verificar se o incumprimento de obrigação é ou não imputável ao devedor, o que implica determinar a natureza do facto determinante do incumprimento; verificar se é anterior ou posterior à formação do vínculo obrigacional; e, se for superveniente, indagar se torna impossível a prestação a qualquer pessoa que se encontre na situação do devedor (impossibilidade objetiva) ou apenas a um determinado devedor (impossibilidade subjetiva)”13.

9 A obrigação impossível é nula.

10 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, O Direito das Obrigações em Roma, I vol., Lisboa: AAFDL, 1997, pág. 120.

11 “El deudor se libera de toda responsabilidad cuando la prestación se hace imposible por um evento que no le es imputable. Hechos naturales – inundación, terremoto, ruina, naufrágio, etc.-, hechos jurídicos que sustraen la cosa al comercio de los hombres y actos humanos realizados por terceros com empelo de fuerza irresistible, libran al deudor de todo vínculo. Com relación a tales acontecimientos se habla de casus o de casus fortuitus. El caso fortuito absoluto es la vis maior o evento que ninguna medida de previsión normal hubiera podido evitar.” Vide in IGLESISAS, JUAN, Derecho Romano: Historia e instituciones, 11ª edición, Ariel Derecho, Barcelona, 1993, pág. 438.

12 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, Direito Privado Romano – II (Direito das Obrigações), 4ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 203.

(12)

Destaca VERA-CRUZ PINTO que nas fontes jurídicas do Direito Romano Privado, no período clássico, não se encontra um conceito geral de casus

fortuitus14, mas que existe “uma terminologia muito variada para designar os

factos que se podem enquadrar na noção de casus fortuitus – vis ou vis maior, cui

resisti non potest15 (D. 13, 6, 18), cui ignosci debet16, cui humana infirmitas resisti non

poteste17 (D. 44, 7, 1, 4), vis divina, fatale damnum, fortuita calamitas – indicando

causas imprevisíveis (fortuiti casus adversus quos caveri non potuit18 – C. 5, 38, 4) e

fatais, já que qualquer comportamento do devedor no sentido de evitar o facto ou as suas consequências seria vão, porque dele não resultaria quaisquer efeitos. O facto verifica-se, naturalmente, com independência da vontade do devedor”19.

Afirma o mesmo autor que “apesar do casuísmo das fontes, podemos dizer que se verifica uma situação de casus fortuitus, em geral, quando ocorre uma causa, não primitiva ou inicial, de incumprimento da prestação, não imputável ao devedor. O evento verifica-se sem culpa ou dolo do obrigado20 (I. 3, 23, 3; D.

3,5, 31; 9, 2, 30, 3; 9, 2, 52, 4; 13, 7, 13, 1)”21.

Conforme SANTOS JUSTO22 e MAX KASER23, as fontes romanas recorrem

com frequência ao critério de custodia na valoração da imputabilidade do incumprimento. Não obstante o referido conceito não ser unívoco, o mesmo era

14 Cfr. o JUAN IGLESIAS: “Caso fortuito es cualquier evento no imputable al deudor.” Op. cit., pág. 435. 15 A que se não pode resistir.

16 Que deveria ser perdoado.

17 Aquela a que a fraqueza humana não pode resistir. 18 Caso fortuito que não pode ser evitado.

19 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 121.

20 Cfr. o EDUARDO VERA-CRUZ PINTO: “O casus é um conceito antitético da culpa.” Op. cit., pág. 120.

21 Ibidem, pág. 121.

22 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, op.cit., pág. 205.

23 “Em certos casos em que o devedor tem em seu poder e para o seu proveito coisas do património do credor, que mais tarde tem de lhe restituir, o devedor responde por custodia. Isto significa que tem de as guardar, e responde pela sua perda e por outros danos que resultem tipicamente da sua insuficiente vigilância. Só se liberta por certas causas de exoneração típicas que, na época clássica tardia, se resumiram no conceito de força maior (vis maior); cfr. G. 3, 205-207; Ulp. D. 13, 6, 5, 5. Vide in KASER, MAX, Direito Privado Romano, 2ª ed., Lisboa: Serviço de Educação - Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pág. 215.”

(13)

aplicado pelos juristas medievais no âmbito da responsabilidade civil. Na

custodia o devedor obrigava-se de guardar a res que lhe foi confiada, com

diligência e cuidado, preservando-a da perda e deterioração. Portanto, se a coisa tivesse sido danificada, roubada ou extraviada, o depositário era responsável por esse facto, independentemente de culpa, exceto se a perda, dano ou subtração tivessem sido causados por factos imprevisíveis e insuscetíveis de serem evitados por uma pessoa diligente e cautelosa. Trata-se de uma responsabilidade objetiva, excluída por vis maior ou casus fortutis. Assim sendo, o devedor sempre responderia por custodia, exceto nos casos de típica ausência de culpa, nomeadamente: incêndio, naufrágio, inundação, ruína de um edifício, terramoto, tumulto, pilhagem por inimigos e bandos de ladrões e morte natural de um escravo ou animal (Gai. D. 44, 7, 1, 4; 13, 6, 18)24,25.

Em regra geral, a impossibilidade da prestação que provém do casus fortutis ou do vis maior liberta o devedor de qualquer responsabilidade, excetuando os casos em que partes tenham acordado algo em contrário, de forma específica. Isto significa que as normas jurídicas relativas à responsabilidade têm carater dispositivo e as próprias partes podem decidir sobre o grau da responsabilidade dos contraentes26,27.

24 Ibidem, pág. 216.

25 “O âmbito das relações em que se responde por custodia, abrange certamente o comodatário, empresários como o lavadeiro (fullo) e o remendão (sacrinator), que recebem coisas para arranjar, o barqueiro, o estalajadeiro, o dono de estábulos, o locador de armazém (Lab.-Iav. D. 19, 2, 60, 9), o inspector, que (por interesse próprio) aceite coisa para examinar (Ulp. D. 13, 6, 10, 1), presumivelmente (segundo alguns juristas) o vendedor antes de entregar a coisa e (no período clássico tardio) o credor possuidor pignoratício, o arrendatário de uma coisa e, finalmente, o socio que deve trabalhar coisas de outros sócios. Incluída na responsabilidade por custodia estava a responsabilidade por danos causados em animais e pela fuga de escravos sujeitos a vigilância (Ulp. D. 13, 6, 5, 6). A equiparação da responsabilidade por danos na coisa, causados por terceiros, foi discutida entre os clássicos (cfr. Ulp. D. 19, 2, 41 com Iul. D. 13, 6, 19). Se o devedor, nos termos do contrato, tem de pôr uma coisa em risco (p. ex., transporte marítimo, cfr. também Gai. D. 19, 2, 25, 7) fica excluída a responsabilidade por custodia.” Idem.

26 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 121.

27 Vide IGLESIAS, JUAN, op. cit., pág. 438. “Las normas que atañen a la responsabilidad son de carácter dispositivo y, consiguintemente, cabe agravarla o aminorarla por convenio de las partes.”

(14)

SANTOS JUSTO observa que “as decisões da jurisprudentia clássica mostram-nos algumas valorações de acontecimentos que determinavam a impossibilidade de uma obligatio ser cumprida e que os juristas medievais e modernos utilizaram na elaboração de figuras abstratas, como a força maior (vis

maior) e o caso fortuito (casus fortuitus). E mostram-nos também que o

comportamento do devedor era valorado com base no dolus e na culpa extracontratual ou contratual”28,29. No período clássico do Direito Romano, o vis maior era considerado pelos juristas um acontecimento natural ou devido a um

facto humano não imputável ao devedor, ao qual não seria possível se opor: “cui

resisti non potest”, v.g., uma inundação, um raio, um terramoto, um naufrágio, etc.

O conceito do casus fortuitus pressupunha apenas um acontecimento natural, independentemente da vontade do devedor, cuja principal característica era a imprevisibilidade30.

Assim, nessa altura, os conceitos de “força maior” e de “caso fortuito” já eram amplamente discutidos pela doutrina. A principal distinção que poderia existir no Direito Romano entre as referidas expressões era a imprevisibilidade do caso fortuito e a irresistibilidade da força maior. Ainda hoje, “a doutrina discute se o termo de casus fortuitus foi utilizado pelos jurisconsultos romanos com o mesmo significado de vis maior e damnum fatale.”31,32. Não obstante a

discussão doutrinal, tanto casus fortutis como vis maior tinham como função a liberação do devedor da responsabilidade de indemnizar o credor pelos danos,

28 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, op.cit., pág. 204.

29 “A culpa é vista como um desvio de um modelo ideal de conduta representado ora pela bona fides ora pela diligentia dum paterfamilias cuidadoso (diligens paterfamilias).” Idem, vide nota de roda pé 8.

30 Idem, vide notas de roda pé 6 e 7.

31 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 122.

32 “Muitos juristas negam a existência de qualquer distinção entre vis maior e casus no direito romano, o que parece correto em face dos textos da compilação justinianeia. Aí na se encontra qualquer definição concreta de uma ou de outro. Os referidos textos apenas apresentam os exemplos hipotéticos.” Vide in FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª ed., Revista Forense, 1958, pág. 30.

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no caso de não realização da prestação em virtude de um acontecimento imprevisível, inevitável e que não lhe fosse imputável.

É importante acrescentar que a doutrina atual também não é pacífica relativamente aos conceitos em causa. Apesar da antiguidade dos conceitos de “força maior” e de “caso fortuito”, ainda existe, atualmente, controvérsia acerca da sua natureza jurídica.

1.1

Distinção entre “força maior” e “caso fortuito”.

Teoria subjetiva e objetiva

Estabelece MEDEIROS DA FONSECA que existe um debate secular em torno da noção de “caso fortuito” ou de “força maior”. “Desde os mais remotos tempos, dois critérios opostos defrontam-se para fixação do conceito do caso fortuito ou de força maior: um objetivo, procurando caracterizá-lo com elementos decorrentes dos próprios acontecimentos, com abstração das condições pessoais e da diligência do obrigado; outro subjetivo, conduzindo à perfeita identificação daquela noção com a ausência de culpa”33. A divergência entre os dois critérios

supracitados foi também estudada pelo jurista russo PIRVITS34. O referido autor

designa que existem duas teorias para determinar o conceito de “força maior”: a objetiva e a subjetiva. Para a teoria subjetiva é importante analisar a questão da culpa da parte faltosa, aplicando-se o princípio do “bom pai de família”. Para a teoria objetiva, a impossibilidade da execução deve ser apreciada independentemente da personalidade do devedor. Interessa a natureza do

33 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 27.

34 PIRVITS E. E., The value of guilt, misadventure and the case of force majeure in civil law, in Legal Jornal "CIVIL LAW REVIEW". 2010. No 6. págs. 186 – 193. Disponível em

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próprio impedimento e não a culpa do agente. Considera PIRVITS35 que a força

maior é um acontecimento imprevisível e irresistível ao qual a parte faltosa nunca poderia se opor, mesmo se tivesse agido com todo o cuidado e diligência. Para o referido autor, a questão da culpa deverá ser sempre analisada – e não omitida. Portanto, a situação psicológica do agente é relevante para os defensores da conceção subjetiva. Na conceção objetiva, a questão de culpa não é analisada. Como afirma MEDEIROS DA FONSECA36 os juristas subdividiram-se,

distinguindo o “caso fortuito” do de “força maior”, atribuindo apenas ao último um caráter objetivo, por ser um evento ao qual não se poderia resistir, mesmo na eventualidade de previsão. Portanto, a principal característica da “força maior” era a sua natureza invencível.

Contudo, interessa-nos saber se existe uma verdadeira distinção entre vis

maior e casus fortutis. Para encontrar uma resposta, iremos recorrer a uma breve

análise histórica de algumas conceções antigas nos sistemas jurídicos estrangeiros.

No antigo Direito francês não se verificava nenhuma diferença entre o “caso fortuito” e a “força maior”. As características principais de ambos os conceitos eram a imprevisibilidade e a irresistibilidade. Os exemplos comuns de tais eventos eram naufrágios, incêndios, inundações, guerras, entre outros.

No Código de Napoleão não se encontrava nenhuma definição a respeito do conceito de “força maior” ou de “caso fortuito”. Unicamente, o artigo 1147º estabelecia que o devedor era responsável pelo incumprimento da obrigação, ou pela mora, excetuando os casos em que se provasse que a falta do cumprimento derivou “d´une cause étrangère qui ne peut lui être imputée, encore qu´il n´y ait aucune

mauvaise foi de sa part”; logo, no artigo seguinte, acrescentava-se que não haveria

lugar a perdas e danos quando “par suite d´une force majeure ou d´un cas fortuit”, o

35 Idem.

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devedor tivesse deixado de executar a obrigação assumida37. Portanto, chega-se

à conclusão lógica que existia uma certa sinonímia entre os dois conceitos em causa38. Contudo, a doutrina e a jurisprudência francesa continuavam a discutir

acerca da distinção dessas expressões. No entanto, a maioria da doutrina estava de acordo que os elementos essenciais do “caso fortuito” e de “força maior” eram a ausência de culpa - o incumprimento provém de causa não imputável à parte faltosa - e a impossibilidade absoluta39,40 de cumprir a obrigação. Podemos

afirmar que o primeiro elemento compreende uma não-intervenção do devedor, quando o segundo pressupõe a irresistibilidade à verificação do facto de outros devedores, quando colocados numa situação idêntica.

Porém, o conceito de “força maior” usava-se sempre à priori quando se tratavam de causas naturais, tais como inundações, terramotos, relâmpagos, etc. Assim, estão em causa fatos objetivos que colocavam o homem numa situação de impossibilidade de oposição. Todavia, segundo MEDEIROS DA FONSECA: “a força maior não é uma qualidade jurídica indissoluvelmente ligada de direito a nenhum acontecimento, devendo-se, assim, em cada espécie, proceder ao exame dos factos, encarados objetivamente, em toda sua generalidade, com abstração das condições pessoais do devedor e dos seus meios de ação particulares”41.

37 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 37.

38 SOLIMAN MORCOS concluiu no seu estudo “em favor da unidade de noção do caso fortuito ou de força maior e de sua apreciação in abstrato, isto é, prescindindo de qualquer investigação subjetiva concernente à pessoa do devedor em causa, mas levando em conta as circunstâncias externas nas quais se encontre.” MORCOS, SOLIMAN, Causes légales d´exonération de la responsabilité civile, 1936, pág. 217, apud, FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág.45. 39 Ocorre independentemente da personalidade do devedor. Ou seja, a obrigação não pode ser cumprida nem por uma outra pessoa, substituindo o obrigado.

40 “Reconhece-se de uma maneira geral, na doutrina francesa, que a impossibilidade de execução, para liberar o obrigado, deve ser absoluta ou objetiva. A dificuldade ou onerosidade maior, mesmo excessiva e imprevista, não bastam.” “A jurisprudência e a doutrina francesas têm pacificamente consagrado essa exigência da impossibilidade absoluta, objetiva, de execução da obrigação, para que se verifique a força maior. Desde que a execução seja possível, embora à custa de sacrifícios excecionais, o devedor não se libera.” FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., págs. 45, 46.

(18)

Na Alemanha do século XIX, a conceção objetiva de “força maior” também foi aceite pela doutrina dominante, mas, posteriormente, muitos começaram a seguir a corrente subjetiva na aplicação do referido conceito, avaliando o critério da culpa do devedor. Como existiam muitas divergências acerca da interpretação da expressão de “força maior”, o 22º Congresso de jurisconsultos alemães emitiu o voto favorável ao abandono dessa expressão do projeto do Código Civil germânico. O Código Civil alemão entrou em vigor em 1 de janeiro de 1900 e relativamente à liberação do dever de responsabilidade civil, estabelecia no seu texto (§275 e §279) que no caso de verificação da impossibilidade superveniente de cumprir, o devedor não responderia, caso o acontecimento não lhe fosse imputável42. A doutrina e jurisprudência alemã não identificaram a “força maior”

com o “caso fortuito”, estabelecendo a primeira como causa liberatória admissível nas situações de responsabilidade ampla, estabelecida em determinadas relações jurídicas, independentemente da existência de culpa; quanto ao segundo, este entendia-se como acontecimento não culposo do devedor.

Em Itália, igualmente aos sistemas jurídicos supracitados, a doutrina dominante seguiu, inicialmente, a conceção objetiva de noção de “força maior” e de “caso fortuito”, identificando-a com as características de imprevisibilidade e de inevitabilidade. Exigiam-se como elementos principais para a verificação da causa excludente de responsabilidade um acontecimento não imputável ao devedor, que fosse imprevisível e inevitável, e que esse acontecimento levasse à impossibilidade do cumprimento da obrigação. O artigo 1225º do antigo Código Civil italiano de 1865 previa que o devedor só não respondia pelos danos decorrentes do incumprimento ou da mora se esses fossem derivados “da una

causa estranea a lui non imputabile, ancorche non sia per sua parte intervenuta mala

(19)

fide”43. Para o afastamento de responsabilidade civil, era necessário que o devedor

não tivesse contribuído para o acontecimento que impossibilitou a execução de obrigação44.

Como afirma MEDEIROS DA FONSECA45, depois do estudo precedido da

doutrina italiana, não se exigia a impossibilidade absoluta ou objetiva do incumprimento da obrigação para exoneração da responsabilidade civil. A impossibilidade subjetiva46 era suficiente, desde que se tratasse da prestação de

uma coisa infungível e que não fosse confundida com uma simples dificuldade ou onerosidade.

No que se refere à noção de “caso fortuito” e de “força maior”, as divergências doutrinárias perduraram naquela altura e continuaram a existir mesmo depois da entrada em vigor do atual Código Civil italiano, em 1942, o qual começou a seguir a corrente subjetiva na aplicação da força maior, avaliando a questão da culpa do devedor. Sobre o regime da liberação na falta do cumprimento no atual Código Civil, falaremos infra.

Depois de recorrer a uma breve análise histórica de algumas conceções antigas, chegamos à conclusão de que os legisladores do séc. XIX optaram pela eliminação das expressões de “caso fortuito” e de “força maior”, a fim de afastar as divergências conceituais em torno dos referidos conceitos. Como as expressões em causa produzem os mesmos efeitos liberatórios, no âmbito de responsabilidade civil, não haverá necessidade de tentar procurar diferenças entre elas.

43 Como o texto citado não alude ao conceito de “força maior” nem ao de “caso fortuito”, admite-se que entre eles não existia qualquer distinção.

44 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 57. 45 Ibidem, págs. 58 e 60.

(20)

2. Impossibilidade de cumprimento da obrigação nos

sistemas jurídicos nacionais

Os ordenamentos jurídicos internos, analisados em seguida, admitem que se verificam certas circunstâncias quando uma das partes do contrato deixa de ser obrigada de cumprir a prestação à qual está adstrita. Está em causa a situação de impossibilidade de cumprimento da obrigação em virtude da ocorrência de um impedimento imprevisível, irresistível e exterior à vontade dos contraentes, que torna absolutamente impossível executar a prestação.

No Direito Civil existem os seguintes tipos de impossibilidade: impossibilidade objetiva (ninguém pode cumprir) e impossibilidade subjetiva (apenas o devedor não pode cumprir); impossibilidade originária (aquela que já existia no momento da celebração do contrato) e impossibilidade superveniente (aquela que se verifica após a data da celebração do contrato); impossibilidade parcial (apenas uma parte da prestação é que se torna impossível) e impossibilidade total (a prestação torna-se impossível na totalidade); impossibilidade definitiva (a prestação jamais poderá ser realizada) e impossibilidade temporária (caso o impedimento seja transitório); impossibilidade física (a coisa devida desaparece ou é destruída) e impossibilidade jurídica (a prestação é impossível de se realizar por motivos legais).

Nas relações jurídicas, o termo mais utilizado para as referidas circunstâncias é a “força maior”. Como no âmbito do comércio internacional este termo é muito relevante, interessa-nos saber de que forma os diferentes sistemas jurídicos nacionais divergem acerca da aplicação do referido instituto jurídico.

(21)

2.1

Sistemas jurídicos romano-germânicos

2.1.1 Direito alemão

A reforma de 2001/2002 do CC alemão47 (BGB) alterou o regime da

“perturbação de prestações”48, adotando uma conceção mais ampla do regime de

impossibilidade de cumprimento que analisaremos infra.

O § 275º (Exclusão do devedor de prestar) do novo BGB dispõe o seguinte: “1). A pretensão à prestação é excluída sempre que esta seja impossível para o devedor ou para todos. 2). O devedor pode recusar a prestação sempre que esta requeira um esforço que esteja em grave desproporção perante o interesse do credor na prestação, sob a consideração do conteúdo da relação obrigacional e da regra de boa fé. Na determinação dos esforços imputáveis ao devedor é também de ter em conta se o impedimento da prestação deve ser imputado a este ultimo.

3). O devedor pode ainda recusar a prestação quando deva realizar pessoalmente a prestação e esta, ponderados os impedimentos do devedor perante o interesse do credor na prestação não possa ser exigível.”

O § 280º (Indemnização por violação de um dever) do novo BGB prevê:

“1). Quando o devedor viole um dever resultante de uma relação obrigacional, pode o credor exigir a indemnização do dano daí resultante. Tal não opera quando a violação do dever não seja imputável ao devedor”49.

47 A reforma consta da denominada Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts, que foi aprovada no Parlamento Federal em 11 de outubro de 2001, publicada no jornal oficial (Bundesgesetzblatt) em 29 de novembro de 2001 (BGB1, I, Nr., 61, 2002, 3138) e entrou em vigor em 1 de janeiro de 2002; vide in, SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Da impossibilidade pessoal de cumprir: breve confronto do novo direito alemão com o direito português, in Centenário do nacimento do Professor Paulo Cunha, Lisboa, 2012, págs.: 313-326.

48 “Em geral, as perturbações das prestações são todas as circunstancias que não permitem a execução ou a execução correta da prestação. Enquadram-se aí, em termos mais restritos, o incumprimento, a impossibilidade de cumprir e a violação positiva do contrato. Mais amplamente, (...), inserem-se também nas perturbações das prestações, a culpa in contrahendo, a base do negocio e o contrato com eficácia de proteção a terceiros.” Ibidem, pág. 313, vide nota de roda pé 3.

49 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Da Modernização do Direito Civil, I vol., Almedina, 2004, págs 107, 108 e 109.

(22)

Contudo, “o novo § 31150 prevê que “a eficácia de um contrato não é

prejudicada pela circunstância de o devedor não ter de realizar a prestação nos termos do § 275 (1) a (3) e de o impedimento à prestação já existir ao tempo da conclusão do contrato”. Neste caso, “o credor pode optar por reclamar uma indemnização em lugar da prestação, ou a compensação das suas despesas na medida prevista no § 284”51. Esta regra não é aplicável no caso de “o devedor não

conhecer o impedimento à realização da prestação aquando da conclusão do contrato e não responder pelo seu desconhecimento””52. Observa MOURA

VICENTE que em vez de “exonerar automaticamente o devedor nos casos de impossibilidade originária da prestação, o Código germânico manda agora atender à repartição do risco operada pelas partes no que toca a essa impossibilidade. Sem deixar de consagrar nesta matéria o princípio da culpa, o legislador alemão reconheceu que, (...) o devedor pode ter assumido esse risco,

garantindo a prestação”53. Assim, conforme a lei alemã, para se liberar da

responsabilidade o devedor é obrigado a provar que o impedimento que impossibilitou a prestação ocorreu sem culpa sua e que ele desconhecia essa impossibilidade no momento da celebração do contrato (cfr. o § 311/2 in fine). Segundo BRUNNER54, o n.º 1 do § 275 é aplicável a todos os tipos de

impossibilidade, ou seja, impossibilidade objetiva, impossibilidade subjetiva; impossibilidade originária, impossibilidade superveniente; impossibilidade

50 “§ 311º (Impedimento da prestação aquando da conclusão do contrato):

(1) Não impede a eficácia de um contrato o facto de o devedor não ter de prestar por força do § 275/1 a 3 e de o impedimento da prestação já existir aquando da conclusão do contrato.

(2) O credor pode exigir, segundo escolha sua, indemnização em vez de prestação ou a indemnização dos seus dispêndios, no âmbito prescrito no § 284. Tal não se aplica quando o devedor não conhecesse o impedimento da prestação aquando da conclusão”. Ibidem, pág. 108. 51 “O § 284 permite a indemnização por dispêndios vãos”. Idem.

52 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado: (Obrigações), vol. II, Almedina, 2017, pág. 308. 53 Ibidem, pág. 309.

54 BRUNNER, CHRISTOPH, Force Majeure and Hardship under General Contract Principles. Exemption for Non-Performance in International Arbitration, International Arbitration Law Library, vol. 18, Kluwer Law International, 2008, pág. 82.

(23)

parcial e impossibilidade total. O que importa é que a impossibilidade não seja imputável ao devedor.

De acordo com LIMA PINHEIRO, no sistema alemão “domina o “princípio da culpa”: uma parte contratual pode evitar a responsabilidade por inexecução do contrato se demonstrar que empregou a diligência que é de esperar de uma pessoa razoável na mesma posição55. Perante o Direito alemão, o devedor

exonera-se não só em caso de impossibilidade física ou legal, mas também no de excessiva desproporção entre o custo da prestação e o interesse do credor”56. Está

em causa a chamada “impossibilidade prática” (“praktische Unmöglichkeit”) que é diferente de “impossibilidade económica”57 (§ 275º/2 BGB). Na impossibilidade

prática a prestação ainda é possível, no entanto, nenhum credor razoável irá exigir o seu cumprimento. Ou seja, o devedor pode deixar de cumprir a obrigação caso essa exija um esforço injustificado que esteja em grande desproporção com o interesse do credor. Não se deve esquecer que neste caso será necessário aplicar o princípio ético-jurídico da boa fé, ponderando o conteúdo de relação obrigacional. O exemplo clássico58 será o caso do anel que o devedor está

obrigado de entregar e que, entretanto, acaba por o deixar cair num lago profundo. Em princípio, seria possível drenar o lago e procurar o bem perdido na areia, mas o próprio trabalho em causa, sem dúvida, iria sair mais caro para o devedor o que, por sua vez, criara um grave desequilíbrio perante o interesse do credor. Conforme GABRIELA SOUSA: “importa sublinhar que a aplicação do referido dispositivo deve ser interpretada de forma restritiva, pois a norma deve ser aplicada apenas aos casos extremos onde haja um nítido desequilíbrio entre

55 Vigora o princípio de bom pai de família no sistema jurídico alemão.

56 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, Direito Comercial Internacional: Contratos Comerciais Internacionais: Convenção de Viena sobre a venda internacional de mercadorias: Arbitragem Transnacional, Lisboa: Almedina, 2005, pág. 231.

57 Impossibilidade económica onera o devedor, mas não o exonera da responsabilidade civil. 58 Vide in HECK, PHILIPP, Grundiss des Schuldrechts, Tubingen, 1929, §28.8, 69, apud CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES op. cit., pág. 110.

(24)

os esforços exigidos do devedor e os interesses do credor na prestação, onde nenhum credor razoável poderia esperar que fosse cumprida”59.

O n.º 3 da mesma norma jurídica alemã prevê as situações de inexigibilidade de obrigações pessoais. Trata-se de uma “impossibilidade pessoal” nas prestações laborais ou nas prestações de serviços. Conforme MOURA VINCENTE, trata-se “de situações em que a prestação devida, v. g. ao abrigo de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços, tem de ser realizada pelo próprio devedor e este se defronta com um impedimento pessoal (doença de um familiar próximo, necessidade de cumprir um dever militar, etc.) que torne inexigível, à luz de uma ponderação dos interesses em jogo, essa prestação. Neste caso, o devedor pode, licitamente, recusar o seu cumprimento”60. O exemplo

clássico61 é o caso da cantora que se desloca ao hospital para apoiar o seu filho

(que tem uma doença grave), recusando participar num espetáculo que estava agendado à mesma hora. Segundo SANTOS JÚNIOR: “(...) outros exemplos poderiam ser considerados, como o do médico que, em razão das suas convicções éticas ou religiosas, se recusa a proceder no Hospital a uma interrupção voluntaria da gravidez, ou o da trabalhadora de uma tipografia que se recusa a colaborar na produção de obras pornográficas, degradantes da condição das mulheres. Tem-se em vista casos em que ocorre uma “impossibilidade moral” ou de consciência”62.

Levanta-se uma questão: caso o devedor seja o causador do impedimento, podemos aplicar a respetiva norma jurídica? Como o n.º 3 do § 275 não prevê no seu texto legal essa condição, a resposta é afirmativa. De acordo com SANTOS

59 SOUSA, GABRIELA MESQUITA, Impossibilidade de cumprimento da obrigação: as alterações do regime alemão e as normas do Código Civil Português, in Estudos sobre incumprimento do contrato. Coordenadora: Maria Olinda Garcia, Coimbra Editora (grupo Wolters Kluwer), 2011, pág. 112. 60 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 311.

61 Vide in HECK, PHILIPP, op. cit., 1929, §28.8, 89, apud SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 315.

(25)

JÚNIOR :“(...) a cantora continuaria a ter o direito de recusar a prestação, mesmo que tivesse sido ela que negligentemente houvesse causado a doença do filho”63.

Pelas palavras da GABRIELA SOUSA: “as consequências que recaem sobre o devedor diante da legítima recusa do cumprimento da prestação sob o abrigo das hipóteses previstas no § 275º (1) a (3) são a perda do direito à contraprestação e a possibilidade de ter o contrato revogado pelo credor (§ 326 (1) a (5))64. A lei

nova resguarda ao devedor o direito de receber a contraprestação nos casos em que seja o credor a causar a impossibilidade da prestação”65.

Assim, a nova lei alemã, no seu texto legal, alargou o conceito de impossibilidade, incluindo a impossibilidade prática e a impossibilidade moral. Concedeu ainda a este conceito um caráter unitário. Entendem SANTOS JÚNIOR66 e MENEZES CORDEIRO67 que o § 275/1 do BGB atual inclui uma

impossibilidade inicial ou superveniente, objetiva ou subjetiva, física ou do Direito. Como foi eliminada a nulidade do negócio jurídico antigamente imposta aos casos de impossibilidade inicial, deixou de existir a distinção entre a impossibilidade inicial e superveniente68,69. A lei alemã, na sua previsão legal,

63 Ibidem, pág. 317.

64 “§ 326/5: o credor pode rescindir o contrato: é uma hipótese sua”. Vide in CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 109.

65 SOUSA, GABRIELA MESQUITA, op. cit., pág. 114. 66 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 314. 67 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 107.

68 “Com a nova previsão legal, a impossibilidade inicial apenas impedirá a prestação atingida, restando válido o contrato em seus demais aspetos, atendendo ao interesse das partes em ver cumpridas as prestações ainda possíveis.” SOUSA, GABRIELA MESQUITA, op. cit., pág. 110. Vide também CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 106.

69 Neste assunto a lei alemã encontra-se em plena harmonia com o Direito Europeu. O art. 3.1.3 (Initial Impossibility) dos Princípios do UNIDROIT estabelece o seguinte: “The mere fact that at the time of the conclusion of the contract the performance of the obligation assumed was impossible does not affect the validity of the contract.” Vide in

http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2010/integralversionprinciples2 010-e.pdf

O ponto II. – 7:102 (Inicial impossibility or lack of right or authority to dispose) do Draft Common Frame of Reference dispõe: “A contract is not invalid, in whole or in part, merely because at the time it is concluded performance of any obligation assumed is impossible, or because a party has no right or authority to dispose of any assets to which the contract relates.”

(26)

simplesmente estabelece que “a pretensão é excluída sempre que esta seja

impossível...”, mencionando claramente “... que esta seja impossível para o devedor ou para todos” – impossibilidade objetiva e subjetiva. Pelas palavras do SANTOS

JÚNIOR: “entende-se por impossibilidade física a situação em que a prestação não pode produzir-se segundo as leis da natureza; a impossibilidade jurídica ocorre quando a execução da prestação está diretamente proibida ou se dá a frustração da prestação por outros impedimentos jurídicos”70.

Por conseguinte, caso o devedor prove que a prestação, sem culpa sua, deixou de ser exigida em virtude da ocorrência de um facto (ou factos) que impossibilitou absolutamente o cumprimento do contrato, este fica exonerado da responsabilidade contratual perante o credor. É importante destacar que nesta situação, tratando-se de contratos bilaterais, o devedor deixa de ter direito à contraprestação e o credor terá direito a pôr fim ao contrato (§ 326/1, 5).

2.1.2 Direito francês

Conforme o artigo 1103º71 do Código Civil francês, os contratos legalmente

celebrados são considerados “lei” para os contraentes. Nos termos do artigo 1193o do mesmo diploma jurídico, os contratos apenas podem ser revogados em

caso de mútuo consentimento entre as partes, ou se a própria lei o autorizar. Assim, o órgão judicial apenas pode rever ou alterar o contrato nos casos expressamente prescritos na lei.

70 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 314, vide nota de roda pé 7.

71 Art. 1103º (antigo artigo 1134º) dispõe: “Les contrats légalement formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits”. O Código Civil francês atual encontra-se disponível em https://www.legifrance.gouv.fr

(27)

Portanto, no ordenamento jurídico francês vigora o princípio da força obrigatória dos contratos e apenas a impossibilidade de realização da obrigação poderá extinguir o contrato, sem aplicação do instituto da responsabilidade civil. No Direito francês, à semelhança do Direito alemão, também vigora o “principe de la culpabilité”. Pelas palavras do MOURA VINCENTE: “o novo art. 1231º-172 do Código francês estabelece que “(o) devedor é condenado, se a tal

houver lugar, ao pagamento de uma indemnização quer em razão da inexecução da obrigação, quer em razão do atraso na execução, se não demonstrar que e execução foi impedida por força maior””73.

Após a reforma de 201674, o artigo 1351º da secção 5 “L'impossibilité d'exécuter” do Código Civil francês estabelece o seguinte:

“Article 1351

L'impossibilité d'exécuter la prestation libère le débiteur à due concurrence lorsqu'elle procède d'un

cas de force majeure et qu'elle est définitive, à moins qu'il n'ait convenu de s'en charger ou qu'il ait été préalablement mis en demeure”.

72 “Article 1231-1:

Le débiteur est condamné, s'il y a lieu, au paiement de dommages et intérêts soit à raison de l'inexécution de l'obligation, soit à raison du retard dans l'exécution, s'il ne justifie pas que l'exécution a été empêchée par la force majeure”.

73 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 283.

74 Pelas palavras de MENEZES CORDEIRO: “No dia 11 de fevereiro de 2016, foi pulicada, no Journal Officiel, a Ordonance n.º 2016/131, du 10 février 2016 portant reforme di droit des contrats, du regime général et de la prevue des obligations. O âmbito da reforma é impressionante: são alterados ou introduzidos, no que se poderá chamar a parte geral das obrigações, os artigos 1100º a 1386º-1, do Código Civil francês de 1804.” No referido diploma jurídico francês “modernizou-se a linguagem, atualizou-se a sistemática e completaram-se rubricas antes apenas bosquejadas. Lacunas significativas foram colmatadas. A jurisprudência foi acolhida, em termos de lei.” Afirma o mesmo autor que “o sentido geral da reforma foi, no essencial, o de acertar o passo da lei pelo da Ciência viva: teórica e pratica, tendo em particular atenção o Direito alemão.” Observa o ilustre jurista que “o sistema francês de Direito Civil deixa o núcleo duro da tradicional família napoleónica, que lhe deve o nome, aproximando-se do romano-germânico.” (...) “Estamos, seguramente, perante a maior mexida no Direito privado francês, desde o Código Napoleão, de 1804.” Vide in CORDEIRO, ANTONIO MENEZES, A reforma francesa do Direito das obrigações (2016), RDC, 2017, págs. 9 e ss.

(28)

Assim sendo, conforme o preceito citado, o devedor fica exonerado da responsabilidade caso a impossibilidade de executar a prestação tenha sido causada por um evento que constitui a força maior. De acordo com o parágrafo 1 do art. 1218º75, no âmbito da matéria contratual entende-se pela força maior o

evento que impossibilita a execução da prestação, que está fora do controlo do devedor, que não podia ser previsto no momento da celebração do contrato e cujos efeitos não podiam ser evitados mediante a adoção de medidas adequadas. Nos termos do artigo 1351º-1, quando a impossibilidade de execução provém de perda da coisa devida, o devedor fica exonerado caso consiga provar que a perda desta coisa ocorreria mesmo no caso do cumprimento da obrigação. Conforme o 2º parágrafo do referido artigo, o devedor é obrigado a ceder ao credor todos os direitos e ações que estão ligados à coisa em causa.

É indispensável que a impossibilidade seja definitiva e não temporária. Se o impedimento for temporário, o cumprimento da obrigação será suspenso, a menos que mora justifique a resolução do contrato, v. g. o credor deixou de ter interesse na prestação. Se a impossibilidade for definitiva, o contrato será automaticamente resolvido e as partes serão libertadas das suas obrigações nos termos dos arts. 1351º e 1351º-1 (art. 1218º).

Assim, “a ocorrência de force majeure suspende as obrigações da parte afetada, o que, por sua vez, suspende as obrigações da outra parte. Se o facto que

75 “Article 1218:

Il y a force majeure en matière contractuelle lorsqu'un événement échappant au contrôle du débiteur, qui ne pouvait être raisonnablement prévu lors de la conclusion du contrat et dont les effets ne peuvent être évités par des mesures appropriées, empêche l'exécution de son obligation par le débiteur.

Si l'empêchement est temporaire, l'exécution de l'obligation est suspendue à moins que le retard qui en résulterait ne justifie la résolution du contrat. Si l'empêchement est définitif, le contrat est résolu de plein droit et les parties sont libérées de leurs obligations dans les conditions prévues aux articles 1351 et 1351-1”.

(29)

dá causa à force majeure não for apenas temporário, resultará a extinção do contrato sem compensação para a parte afetada”76.

Afirma MOURA VINCENTE: “o Código francês manda igualmente atender, nesta matéria, à repartição dos riscos estipulada pelas partes, dispondo o art. 1351º que a impossibilidade da prestação decorrente de força maior, quando definitiva, libera o devedor, salvo este houver assumido o risco daquela”77.

Para o Direito francês, a force majeure sempre foi um acontecimento imprevisível, irresistível e exterior à vontade das partes que torna o cumprimento de obrigação impossível. Observa ALEXANDRA CAIADO que: “Force majeure, a não ser que o contrato preveja uma noção mais especifica, é o facto exterior às partes (incluindo os seus empregados e agentes) e que é imprevisível, irresistível e insuperável. Deve impedir completamente o cumprimento pela parte das suas obrigações, em oposição a torná-las apenas mais onerosas ou difíceis”78.

Assim, no sistema jurídico francês, para que o devedor fique exonerado da responsabilidade contratual exige-se a verificação simultânea dos seguintes pressupostos:

a) o impedimento deve ter um caráter externo. Ou seja, o impedimento deve ocorrer fora do controlo da parte que pretende ser desculpada e não pode ser-lhe imputável;

b) o impedimento deve ser imprevisível. A parte faltosa deve provar que não podia ter previsto a ocorrência de tal impedimento no momento da celebração do contrato;

c) o impedimento deve ser irresistível. Logo, a parte que não cumpriu a obrigação deve demonstrar que o impedimento e os seus efeitos não podiam ser evitados adotando medidas adequadas;

76 CAIADO, ALEXANDRA, Hardship nos Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais (UNIDROIT) e nos Princípios do Direito Europeu dos Contratos, Relatório de Mestrado do Seminário de Direito Comercial Internacional, setembro, 1996, pág. 9.

77 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 309. 78 CAIADO, ALEXANDRA, op.cit., pág. 9.

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d) a impossibilidade deve ser absoluta. Assim, o instituto de “alteração das circunstâncias” – está excluído desse preceito. Caso o cumprimento se torne mais difícil ou oneroso, mas não impossível, o devedor terá que pagar uma indemnização em caso de não cumprimento. Está em causa uma impossibilidade absoluta e não relativa;

e) a impossibilidade deve ser definitiva. Apenas no caso de impossibilidade definitiva o cotrato será automaticamente resolvido e as partes serão liberadas das suas obrigações;

f) o devedor não tivesse garantido o cumprimento da sua prestação mesmo no caso de ocorrência de um impedimento que constitui a força maior. Em regra geral, o Direito francês não aceita facilmente a situação de force

majeure (em sentido lato), mas apenas mediante a sua verificação será possível

proceder à suspensão do contrato ou levar à sua resolução, sem obrigação de pagar a indemnização.

2.1.3

Direito português

Perante o Direito português, nos termos do n.º 1 do art. 406º do CC: “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo conextinguir-sentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”. No sistema jurídico português existem duas modalidades de não cumprimento das obrigações: o incumprimento imputável ao devedor (arts. 798º e ss. e 801º e ss.) e a impossibilidade do cumprimento não imputável ao devedor (arts. 790º e ss.). O CC português atual no seu artigo 790º estabelece o seguinte:

“1. A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.

(31)

2. Quando o negocio do qual a obrigação procede houver sido feito sob condição ou a termo, e a prestação for possível na data da conclusão do negocio, mas se tornar impossível antes da verificação da condição ou do vencimento do termo, é a impossibilidade considerada superveniente e não afeta a validade do negocio.”

Conforme ANTUNES VARELA79 e ALMEIDA COSTA80 a impossibilidade

pode ser imputada ao facto do credor, à força maior ou caso fortuito81, ao facto

do terceiro82 e à própria lei. Portanto, para que a obrigação do devedor se torne

extinta é imprescindível, segundo a letra e o espirito de lei, que a prestação fique impossibilitada por lei, por força da natureza (caso fortuito ou força maior) ou por ação humana.

79 VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª ed., revista e atualizada, Almedina. Coimbra, 1999, págs. 67, 68.

80 COSTA, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., revista e atualizada, Almedina, 2009, pág. 1034.

81 Cfr. ALMEIDA COSTA: “Em matéria de não cumprimento das obrigações, o caso fortuito e o caso de força maior produzem as mesmas consequências exoneratórias do devedor. Parece admissível pensar-se em expressões sinonimas ou complementares. Até, algumas vezes, a lei e os autores aludem apenas o caso fortuito, que abrange nesse sentido lato ambas as figuras. (...) Aquele princípio só será afastado quando excecionalmente haja preceito da lei ou convenção das partes em contrário. Existem vários critérios para a mencionada distinção. (...) Segundo alguns autores, o caso fortuito patenteia o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a ação do homem (inundações, incêndios, tsunamis, a morte, etc.). Ao lado dele, o caso de força maior consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável (a guerra, a prisão, o roubo, uma ordem de autoridade, etc.). De harmonia com a orientação talvez preponderante, o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto.” Ibidem, pág. 1074.

“Se distingue – o no – en ocasiones entre diferentes supuestos exoneradores, como, ad ex., el caso fortuito y la fuerza mayor que, unas veces, se interpretan como expresiones equivalentes y otras, em cambio, se diferencian”. Vide in CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA,“Contratos Internacionales”, Editorial Tecnis, S. A., 1997, Madrid, Espanha, pág. 327.

82 Exceto o facto for praticado pelo sujeito que se encontra numa relação de dependência perante o obrigado (v. g. comissário, auxiliar, filho menor, pupilo, etc.). Cfr. ANTUNES VARELA, op. cit., 81.

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De acordo com MENEZES LEITÃO83 para a ocorrência da extinção da

obrigação a impossibilidade tem que ser superveniente, objetiva84, absoluta e

definitiva.

De facto, o vínculo obrigacional só se extingue caso a impossibilidade for

superveniente, isto é, caso esta se verifique após a data da celebração do contrato.

Caso a impossibilidade seja inicial, o vínculo obrigacional nem se chega a constituir e a consequência jurídica, neste caso, será a nulidade do negócio por impossibilidade do objeto, conforme previsto nos arts. 401º/1 e 280º/1 do CC. A impossibilidade só irá exonerar o devedor da prestação caso seja objetiva. Neste caso, a obrigação deverá torna-se impossível não apenas para o devedor, como também para o terceiro85. A título de exemplo, consideremos um devedor

cuja coisa que tem a vender é destruída, sem a sua culpa. Se a impossibilidade for subjetiva, a obrigação só se extingue caso o devedor não possa fazer-se substituir por um terceiro (art. 791º), ou porque a prestação é infungível86, ou

porque o facto que impossibilitou a realização de prestação também impediu providenciar a sua substituição (v. g. uma grave doença com perda de consciência).

É importante que a impossibilidade seja absoluta, ou seja, inexecutável. A impossibilidade relativa não é suficiente para levar a liberação da parte faltosa. Pelas palavras de MENEZES LEITÃO: “a impossibilidade relativa ou difficultas

praestandi não importa a extinção da obrigação, embora possa desencadear a

aplicação do instituto da alteração das circunstâncias, verificados os respetivos pressupostos”87,88. Conforme MENEZES CORDEIRO: “quando por caso fortuito,

83 LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, Direito das Obrigações, “Transmissão e extinção das obrigações. Não cumprimento e Garantias do Credito”, vol. II, 10ª ed., Almedina, 2016, pág. 111 e segs.

84 Exceto nos contratos com prestações não fungíveis.

85 Impossibilidade subjetiva diz respeito ao devedor. A prestação pode ser realizada por outrem. 86 Na prestação infungível a impossibilidade subjetiva é suficiente para a extinção da obrigação. 87 LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, op. cit., pág. 113.

88 O mesmo considera GALVÃO TELLES. Pelas palavras do referido autor: “da impossibilidade propriamente dita deve distinguir-se a dificuldade da prestação. A primeira supõe que a prestação é irrealizável, física ou legalmente; a segunda, que a prestação é realizável, mas só com

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força maior ou qualquer outra eventualidade – isto é, quando haja alteração de circunstâncias – a prestação se torne inesperadamente mais onerosa, deve aplicar-se o regime do artigo 473º do CC que prevê, em primeira linha, a modificação da prestação e, como última solução, a própria resolução do contrato com a subsequente extinção da obrigação”89.

Por último, para determinar a extinção da obrigação, a impossibilidade tem que ser definitiva. Segundo GALVÃO TELLES: “ocorrendo a impossibilidade sem culpa do devedor, este não se constitui em responsabilidade pelo não cumprimento definitivo ou pelo atraso no cumprimento: nenhuma indemnização lhe é exigível. Se a prestação se impossibilita para sempre, a obrigação extingue-se (art. 790º, n.º 1). Se a prestação se impossibilita transitoriamente90, a obrigação fica paralisada ou suspensa enquanto o

impedimento subsistir: o credor não pode pretender o seu cumprimento até o obstáculo cessar e tão-pouco pode reclamar o ressarcimento dos danos que o atraso lhe tenha causado (art. 792º n.º 1)”91. Conforme o último preceito jurídico

mencionado, no caso de impossibilidade temporária, “o devedor não responde pela mora no cumprimento” e continua a estar obrigado a realizar a prestação devida. O devedor apenas se libera da obrigação no caso do credor perder o interesse na sua realização (art. 792º n.º 2).

Portanto, no caso de verificação dos pressupostos supracitados, o devedor poderá ser exonerado da obrigação a que está adstrito, não incorrendo em responsabilidade perante a outra parte. Em consequência, o credor perderá o

sacrifícios ou esforços excecionais.” Vide in TELLES, INOCÊNCIO GALVÃO, Direito das Obrigações, 7ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 1997, pág. 365.

89 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Direito das Obrigações, vol. II, reimpressão da 1ª ed. 1980, Lisboa: AAFDL, 1994, pág. 175.

90 V. g.: “o impedimento do único porto por onde podem sair as mercadorias cessará dentro de semanas; a greve, que impediu a entrega da mercadoria na data estipulada, findou ao cabo de poucos dias; a ordem de transferência do dinheiro de um país para outro, necessária ao cumprimento da dívida, sabe-se que vai demorar ainda meses, mas que virá”. Vide in VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, op. cit., pág. 79.

Referências

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