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A ANENCEFALIA FETAL E O ABORTO NA EVANGELIUM VITAE DO PAPA JOÃO PAULO II

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Academic year: 2019

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Adriano Corrêa da Silva, sjs

A ANENCEFALIA FETAL E O ABORTO NA

EVANGELIUM VITAE

DO PAPA JOÃO PAULO II

MESTRADO EM TEOLOGIA

São Paulo-SP

(2)

Adriano Corrêa da Silva, sjs

A ANENCEFALIA FETAL E O ABORTO NA

EVANGELIUM VITAE

DO PAPA JOÃO PAULO II

MESTRADO EM TEOLOGIA

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Teologia Moral à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Dr. Pe. Kuniharu Iwashita, CSSp.

São Paulo-SP

(3)

_______________________________________________ Prof. Dr. Pe. Kuniharu Iwashita, CSSp.

Prof. Dr.

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Sim! Pois tu formaste os meus rins, tu me teceste no seio materno. Eu te

celebro por tanto prodígio, e me maravilho com as tuas maravilhas!

Conhecias até o fundo do meu ser. Teus olhos viam o meu embrião

(5)

Dedico esta dissertação ao Instituto Missionário Servos de Jesus Salvador, em forma de gratidão, pela formação recebida para o sacerdócio e pelo incentivo para este Mestrado.

Estendo os meus agradecimentos aos meus amigos e benfeitores que me apoiaram, seja por meio de ajuda financeira, seja por meio de ajuda moral.

(6)

Desejo que esta dissertação seja oferecida em ação de graças ao Deus da Vida, pois nEle se encontra a origem de toda a criação, onde o ser humano se destaca como sua obra mais excelente: Dele viemos, nEle nos movemos e para Ele retornaremos!

E se hoje, conquisto novos horizontes no campo acadêmico, foi porque muitos acreditaram e apostaram em mim, especialmente a família religiosa em que fui formado como sacerdote, a Fraternidade Jesus Salvador, na pessoa dos meus formadores, superiores, de todos os irmãos e irmãs, que fazem parte do Louvor de Deus. Ao Pe. Gilberto Maria Defina, sjs, fundador – homem sábio e santo – deixo registrada a minha admiração e gratidão por tamanho exemplo de amor e dedicação à Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, e, que, neste mesmo amor, soube educar a nós, seus filhos.

Aos meus pais, Antônio Pedro H. da Silva e Maria Aparecida C. da Silva, que souberam dizer “sim” ao dom da vida, não somente me permitindo que viesse à existência, mas me educando nos valores fundamentais da pessoa humana a partir do próprio exemplo de suas vidas. Aos meus irmãos, Andrêa e Alexandre, por terem aprendido o significado do amor, que consiste em se abrir para o outro gerando novas vidas a partir da doação de si mesmos. Às minhas sobrinhas Stephany (Teté) e Emanuele (Manuzinha) e ao mais novo da família, Pedro Henrique (Pedrinho), sejam bem-vindos à vida!

Ao Sr. Bispo diocesano de Santo Amaro, D. Fernando Antônio Figueiredo, pelo apoio nos estudos e oportunidade em lecionar no curso seminarístico de Teologia da própria diocese.

Os meus agradecimentos se estendem aos amigos e benfeitores que investiram financeiramente para que este curso de pós-graduação pudesse chegar à sua conclusão.

À Adveniat, pelas bolsas de estudo ao longo do curso.

(7)

Em meio às diversas ameaças em que a vida humana se encontra, a Igreja Católica arrefece ainda mais a sua missão herdada por Cristo de anunciar o Evangelho da Vida à universalidade dos povos, pois ela crê firmemente, que a vida humana, mesmo quando marcada por fragilidades, e até mesmo por deficiências físicas ou mentais, pré e pós-natal, é sempre um dom esplêndido de Deus a ser protegido. É neste horizonte de defesa da vida humana, e mais precisamente, dos casos de anencefalia fetal, que esta respectiva dissertação se converge para evidenciar sob a luz da Revelação cristã, mas também por meio da interdisciplinaridade, que a vida humana consiste em um princípio fundamental e primário entre todos os valores existentes entre as diversas culturas. Portanto, o primeiro capítulo fala sobre uma expressão muito usada por João Paulo II - “cultura da vida” - que, por sua vez, deve ser cultivada e propagada em todo o mundo como centro da mensagem anunciada por Cristo e delegada à sua Igreja como depositária deste

Evangelium Vitae no tempo e na história da humanidade, pois o homem vivo constitui o primeiro e fundamental caminho eclesial. Para este objetivo, o respectivo capítulo aborda o aspecto bíblico-teológico da concepção da vida humana e do ser humano. No segundo capítulo, em contraposição ao primeiro, faz a explanação da terminologia - “cultura de morte” – uma vez que existem inúmeros sinais que se levantam para ameaçar a vida humana, e a vida humana nascente, recebida de Deus como dom. E uma das ameaças contra a dignidade do homem ainda na sua fase uterina é a cultura de morte do aborto, que tenta ampliar a legislação em todo o mundo, inclusive no atual Congresso Brasileiro, para incluir os casos de anencefalia fetal. Por fim, o terceiro capítulo, já como caráter de conclusão, reafirma a defesa da vida humana como tarefa e responsabilidade, que deve ser assumida, não somente pela Igreja de Cristo, mas por todas as pessoas de boa vontade como caminho a ser percorrido para uma questão de sobrevivência da própria humanidade, que deve se despertar, cada vez mais, para o amadurecimento ético frente ao princípio de defesa da vida humana, principalmente a vida indefesa intra-uterina.

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Amid the various threats that human life is, the Catholic Church cools further its mission inherited by Christ to proclaim the Gospel of Life to the universality of the people, for she firmly believes that human life, even when marked by weaknesses, and even by physical or mental disabilities, pre-and postnatal, is always a splendid gift of God to be protected. This is the horizon of the defense of human life, and more precisely, the cases of fetal anencephaly, that their dissertation converges to evidence in the light of Christian revelation, but also through interdisciplinarity, that human life is a fundamental principle and primary among all values between different cultures. Therefore, the first chapter is about an expression often used by John Paul II - "culture of life" - which, in turn, must be cultivated and propagated throughout the world as the center of the message proclaimed by Christ and his Church as delegated depository of Evangelium Vitae and in time in the history of mankind, for man alive is the first and fundamental way for the Church. For this purpose, the respective chapter discusses the aspect of biblical-theological conception of human life and human being. In the second chapter, in contrast to the first, is the explanation of the terminology - "culture of death" - since there are numerous signs that arise to threaten human life, and nascent human life, God-given as a gift. And one of the threats to human dignity still in its early uterine culture is the death of abortion legislation that attempts to expand worldwide, including in the current Brazilian Congress, to include cases of fetal anencephaly. Finally, the third chapter, such as character conclusion reaffirms the defense of human life as a task and responsibility that must be taken not only by the Church of Christ, but for all people of good will as a way to go before a question of survival of humanity itself, which must be awakened, increasingly, develop an ethical principle against the defense of human life, especially the helpless intra-uterine life.

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CaIC Catecismo da Igreja Católica

CELAM Conferência Episcopal Latino Americana

CF Campanha da Fraternidade

CIC Codex Iuris Canonici

DAp Documento de Aparecida

DH Denzinger – Hünermann (DH). Compêndio dos Símbolos,

definições e declarações de fé e moral

DP Instrução Dignitas Persone

DsAP Declaração sobre o aborto provocado

DSI Compêndio da Doutrina Social da Igreja

DV Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a

dignidade da procriação. Respostas a algumas questões

atuais

EN Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi

EV Carta Encíclica Evangelium Vitae

FC Exortação Apostólica Familiaris Consortio

GS Constituição Pastoral Gaudium et Spes

HV Carta Encíclica Humanae Vitae

Lexicon Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas

RH Carta Encíclica Redemptor Hominis

RN Carta Encíclica Rerum Novarum

PT Carta Encíclica Pacem in Terris

Didaqué O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de

hoje

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Siglas e abreviações ...10

Introdução geral ...11

Capítulo I A vida humana como um princípio fundamental da missão da Igreja Introdução ao capítulo ...15

1.1 Cultura da vida ...16

1.2 Concepção bíblica de vida humana...29

1.3 Concepção teológica da pessoa humana e sua aplicação ao embrião ...36

1.3.1 Concepção ontológica de pessoa humana...44

1.3.2 Concepção moral de pessoa humana ...45

1.3.3 Concepção hermenêutico-fenomenológica ...48

1.4 A infusão da alma espiritual: origem da pessoa humana ...53

1.5 A origem da vida humana à luz do dado científico ...59

1.6 Defesa da vida humana versus aborto na Tradição e no Magistério eclesial ...63

Conclusão ...68

Capítulo II A mentalidade abortista em oposição ao princípio de defesa da vida humana Introdução ao capítulo ...70

2.1 Cultura de morte ...71

2.1.1 Alguns fatores apontados pela Igreja no Brasil que favorecem o aborto ...76

2.1.2 Aspecto jurídico do aborto no Brasil ...81

2.2 O que é o aborto anencefálico?...85

2.3 Raízes da mentalidade abortista ...92

2.4 Mentalidade em favor do aborto...97

2.5 Manipulação da linguagem: Tentativa de aliviar a consciência em favor do aborto...103

(11)

Introdução ao capítulo ...112

3.1 Visão geral da Evangelium Vitae ...113

3.2 O princípio de defesa da vida em caso de anencefalia fetal...125

3.2.1 A defesa da vida humana e os Direitos Humanos...127

3.2.2 A defesa da vida humana e a Lei Natural ...135

3.2.3 A defesa da vida humana e a jurisdição brasileira...144

3.2.4 A defesa da vida humana e a Igreja no Brasil frente ao aborto...149

3.3 Identidade e Estatuto do Nascituro...155

3.4 O princípio da responsabilidade em defesa da vida humana ...170

Conclusão ...180

Conclusão geral...183

Bibliografia...188

(12)

Introdução

O mandato missionário de Cristo aos seus apóstolos de proclamar o evangelho a toda criatura, comporta num verdadeiro princípio de defesa da própria vida humana, visto que Cristo perdeu a sua própria vida, para que a tivéssemos em abundância, pois nisto consiste a glória de Deus, o homem vivente.

Diante desta dádiva recebida das mãos do Criador, a criatura humana tem uma tarefa a realizar, que, por sua vez, comporta como sua magna responsabilidade: preservar tal dádiva já desde o momento em que ela se inicia na sua fase embrionária e ao longo de todas as outras etapas da existência humana.

Entretanto, no mundo hodierno em que se vive, a tarefa de defesa da vida não tem sido fácil, quando nos deparamos numa cultura de morte, que se levanta numa verdadeira contraposição de valores, para escolher quem pode viver e quem não, considerando a vida, que é uma realidade sagrada, simplesmente uma coisa, que o homem reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e manipular.

No entanto, se verá que, tal reivindicação se torna uma verdadeira contradição diante do patrimônio positivo, que a própria cultura humana já conquistou. E um exemplo salutar são os próprios direitos humanos garantindo aquilo que já estava inscrito no coração humano: o direito à vida, como valor fundamental ou primário no conjunto das diversas culturas.

É neste horizonte, que o primeiro capítulo desta dissertação, trata da construção de uma cultura da vida como parte essencialmente integrante da missão assumida pela Igreja enviada à catolicidade dos povos. Tratando-se de uma promoção da cultura da vida, que se contrapõe às práticas abortivas, faz-se necessário por parte da Igreja, uma evangelização que procure conscientizar os homens e as mulheres sobre a beleza da sexualidade caracterizada por sua abertura para o outro, como também conscientizar sobre a beleza da procriação norteada nos princípios da responsabilidade, do amor e da sinceridade, uma vez que muitos abortos são provocados por causa da falta de responsabilidade diante do ato sexual.

(13)

Outro elemento extremamente fundamental para a promoção da cultura da vida é uma compreensão de quem é o homem assumido na sua totalidade corpórea e espiritual: o ser humano como pessoa ou substância individual de natureza racional. Esta definição permite afirmar que o ser humano é uma pessoa em virtude de sua própria natureza e não que se torna pessoa em virtude do exercício específico de certas funções, como por exemplo, a capacidade de relação, de sensibilidade e de racionalidade. O homem não pode ser reduzido a um feixe de fenômenos, como diz o funcionalismo empirista, porque senão ele seria o seu próprio “fazer” e não seria um “ser”.

Portanto, não se pode definir a pessoa humana pela sua inteligência, pela sua consciência nem mesmo pela sua liberdade, pois, mesmo que estas faculdades faltem, o homem não deixa de ser pessoa humana. Deste modo, verifica-se que é justamente o contrário: a pessoa humana, enquanto ser subsistente, é que está na base dos atos de inteligência, de consciência e de liberdade. Portanto, assumir a responsabilidade pela outra pessoa, e nesse caso pelo anencéfalo fetal, só é possível a partir da compreensão e valorização que se tem do mesmo como pessoa humana.

Ainda neste capítulo, se verá que a Igreja, frente às diversas posições sobre o momento exato da infusão da alma, origem da pessoa humana, sempre se manifestou em defesa da vida, seja qual fosse o estágio que se encontrasse, aplicando, até mesmo, sansões canônicas, a quem tentasse contra este dom divino.

Se no primeiro capítulo afirma-se, que o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado, também o contrário é verdadeiro: perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida.

Portanto, no segundo capítulo em oposição ao princípio de defesa da vida assumido pela Igreja, tratará sobre a mentalidade abortista e suas raízes, que, têm marcado a cultura humana, chegando ao ponto de concebê-la em uma verdadeira cultura de morte ou em crise, quando, até mesmo, o sentido do homem, dos seus direitos e deveres são colocados em dúvidas por causa do assim chamado relativismo.

A expressão “cultura de morte”, usada pelo Papa João Paulo II, servia para caracterizar não a totalidade de uma sociedade, mas a algumas realidades negativas do homem compartilhadas por um grande número de pessoas. Tal termo refere-se a uma visão social que considera a morte de certos seres humanos como sendo um favor para a humanidade.

(14)

linguagem com o intuito de não causar tanto impacto na sociedade com os inúmeros casos de aborto. E mesmo quando tal prática se torna parte da legislação de um país, tal lei não se torna justa quanto à sua moralidade perante a perspectiva natural e sobrenatural do próprio homem, visto que se trata de uma discriminação entre as pessoas: algumas dignas de ser defendidas e outras não.

A cultura da vida defendida e propagada pelos homens de boa vontade, deve oferecer ajuda e apoio às gestantes no sentido de aceitarem o filho, mesmo quando em situação de malformação, sabendo reconhecer nele a dignidade que é comum a todos: a dignidade humana.

Neste sentido, o aborto ocorrido em caso de anencefalia fetal pode ser distinguido em dois casos específicos: o aborto involuntário terapêutico, que, por sua vez, é lícito, quando o tratamento visa intencionalmente a prestação de assistência médico-hospitalar àquela anomalia, mesmo que consequentemente resulte na perda do feto, caso este, conhecido de duplo efeito. Já o aborto voluntário eugênico, ilícito, trata-se de selecionar os fetos sadios menosprezando e impedindo que continue o processo de desenvolvimento fetal que possui tal malformação cerebral.

A prática eticamente aceitável com relação ao feto é aquela que o reconhece, a partir da fecundação, uma pessoa humana, como qualquer outra pessoa, e como tal, dotada de direitos, sendo o primeiro, o direito inviolável de todo ser humano à vida.

No terceiro capítulo, se abordará a estrutura textual do documento base mencionado ao longo de toda a dissertação, a saber, a Carta encíclica de João Paulo II - Evangelium Vitae - que, por sua vez, trata da seguinte temática: o valor e a inviolabilidade da vida humana.

É com grande ênfase, que tal temática abordada neste referido documento pontifício e trabalhado ao longo de todo este estudo, tem seu valor reconhecido como elemento fundamental não só numa perspectiva ad intra ecclesiae, mas também na perspectiva ad

extra, como por exemplo, nos Direitos Humanos assinados em 1948, que exerceu grande

influência na elaboração ou reelaboração das constituições federativas dos diversos países, inclusive a do Brasil, que traz no cerne de sua Constituição Federal as chamadas Cláusulas Pétrias garantindo a inviolabilidade dos direitos básicos a todo cidadão: o direito à alimentação, à moradia, a educação, a saúde... à vida como o primeiro entre os direitos fundamentais.

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como uma justificativa por parte da mãe, que em muitos casos, age como sendo direito seu, decidir sobre a vida do novo ser, que está sendo gerado em seu corpo.

E mesmo quando o aborto é pensado como possibilidade em caso de anencefalia fetal, projeto que está sendo apresentado e estudado atualmente no Congresso Nacional, tal anomalia, seja ela mental, seja de caráter físico, não justifica a prática abortiva, visto que o ser humano não pode ser definido pela sua capacidade intelectiva, pela sua consciência nem mesmo pela sua liberdade, o que seria um reducionismo; pois, mesmo que estas faculdades faltem, o homem não deixa de ser pessoa humana.

E para mostrar, que tal atentado não consiste somente contra a criança, que é vitimada, os pronunciamentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, têm realizado um admirável trabalho de defesa da vida humana, também no que diz respeito em relação à própria figura da mãe, que sofre tanto com os efeitos físicos, quanto psíquicos provocados pelo aborto.

A vida humana, assumida, defendida e promovida por Cristo, deve ser acolhida por todos os homens como um dom de Deus, mas também como uma tarefa, que exige de cada pessoa, uma responsabilidade em defendê-la na sua totalidade, isto é, desde a concepção e durante todo o seu itinerário de desenvolvimento, intra e extra-uterina, visto que se trata de uma lei natural já inerente ao coração humano e que consiste basicamente em fazer o bem e evitar o mal.

(16)

Capítulo I

A vida humana como um princípio fundamental na missão da Igreja

Introdução ao capítulo

Este respectivo capítulo tratará de abordar o tema - “vida humana” - como sendo a principal missão da Igreja Católica presente nas mais diversas culturas, uma vez que já é próprio do termo “cultura” evocar uma ideia carregada de positividade no que diz respeito ao cultivo do conhecimento, das artes, das leis, dos costumes, entre outras coisas, de um povo.

Dentro deste contexto, falar de missão da Igreja como anúncio da mesma mensagem revelada por Cristo, que sempre se colocou a favor da vida humana, significa falar de uma mensagem que consiste em um Evangelho da Vida, que tem a promoção do ser humano como sua prioridade e centralidade. Portanto, anunciar este Evangelho equivale em promover uma “cultura da vida”, termo usado pelo Papa João Paulo II na Carta Encíclica Evangelium Vitae

para contrapor a uma infeliz “cultura de morte” propagada em todo o mundo e que tem se levantado contra a dignidade humana, especialmente contra a indefesa vida intra-uterina.

Diante de tamanha responsabilidade que a Igreja assume em cultivar uma verdadeira cultura da vida à universalidade dos povos, faz-se necessária a compreensão do que é a vida humana e de quem é o ser humano na totalidade de sua unidade corpo-espírito. O ser humano, ao lado das outras criaturas presentes na natureza, possui uma superioridade que consiste na sua vocação sobrenatural enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus para gozar de vida e vida plena.

Como se poderá ver, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento, a vida humana é sempre um presente dado gratuitamente por Deus. Porém, ao mesmo tempo, que se constitui em um dom, a vida humana também exige de todas as pessoas a tarefa de respeitá-la, defendê-la e promovê-defendê-la, já que não se trata de apropriar-se dedefendê-la arbitrariamente como um dono, que faz o que bem deseja, mas de administrá-la responsavelmente.

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Portanto, este capítulo trata de mostrar a posição firme da Igreja Católica, por meio do Sagrado Magistério, frente às ameaças que existem contra a vida humana, sobretudo contra a vida humana nascente. Mesmo apesar da controvérsia vivida internamente na teologia antiga sobre o momento exato da infusão da alma, o aborto sempre foi uma prática condenável pela Igreja.

1.1. Cultura da vida

A promoção e a defesa da vida humana como um princípio da missão da Igreja Católica nada mais é do que um cumprimento do legado deixado por Cristo aos seus discípulos momento antes de sua ascensão: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura (Mc16,15a).” Nesse sentido, pode-se dizer, que, a missão iniciada por Cristo é a missão

continuada pelos seus seguidores. Os membros do corpo eclesial prolongam, no tempo e no espaço da humanidade, o Evangelho revelado por Cristo-Cabeça: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros (I Cor 12,27)”, portanto, cada membro deste corpo eclesial é

chamado a acolher e a transmitir o Evangelho da Vida a exemplo do apóstolo Paulo:

“Anunciar o evangelho não é titulo de glória para mim; é, antes, necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho (I Cor 9,16)!”

O Papa Paulo VI dizia que “existe uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização. Durante este ‘tempo da Igreja’ é ela que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se realiza sem ela e, menos ainda, contra ela.”1

A Igreja crê firmemente que a vida humana, mesmo se débil e com sofrimento, é sempre um esplêndido dom do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo que obscurecem o mundo, a Igreja está do lado da vida: e em cada vida humana sabe descobrir o esplendor daquele ‘Sim’, daquele ‘Amém’ que é o próprio Cristo. Ao ‘não’ que invade e aflige o mundo, contrapõe este ‘Sim’ vivente, defendendo deste modo o homem e o mundo de quantos insidiam e mortificam a vida.2

No tocante à missionaridade da Igreja, a centralidade da mensagem cristã consiste no anúncio do Evangelho da Vida:

      

1 PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Sobre a evangelização do mundo contemporâneo. In: DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos de Paulo VI. São Paulo: Paulus, 1997, n. 16. Daqui em diante segue-se EN.

(18)

O Evangelho da Vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.3 É por este motivo que

o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja.4

O Papa João Paulo II em sua Encíclica Redemptor hominis disse que o Evangelho, como o próprio cristianismo, consiste naquela profunda admiração do valor e dignidade do homem e que tal admiração determina a missão da Igreja no mundo, especialmente no mundo contemporâneo.5

Sendo, portanto, o homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência cotidianas, da sua missão e atividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da ‘situação’ de tal homem. E mais (...) ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem. Ela deve estar cônscia, além disso, de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço para que a vida humana se torne cada vez mais humana e para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem.6

Neste respectivo subtítulo, o intuito é explanar o que se entende pelo termo “cultura da vida”, que, por sua vez, seria uma redundância afirmar os elementos positivos, que tal termo abarca em seu conteúdo, visto que o termo “cultura” já traz em si mesmo uma positividade em favor do ser humano e da vida humana, conforme se pode ver logo abaixo a significação do termo. No entanto, assiste-se atualmente novas situações que colocam em ameaça à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é frágil e indefesa, como por exemplo, a vida intra-uterina:

O século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida (...). A verdade é que estamos perante uma objetiva ‘conjura contra a vida’ que vê também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto.7

      

3 Idem, Carta Encíclica Evangelium Vitae. Sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. 6ª edição, São Paulo: Paulinas, 2009, n. 1. Daqui em diante segue-se EV.

4 Idem, n. 2.

5 Cf. PAULO II, João. Carta Encíclica Redemptor Hominis. 6ª edição, São Paulo: Paulinas, 1990, n. 10. Daqui em diante segue-se RH.

6 Idem, 14; cf. NASCENTES DOS SANTOS, Tarcisio. Introdução ao discurso antropológico do Papa João Paulo II (GS 22 e GS 24 no Programa do seu Pontificado). Coletânea, Rio de Janeiro-RJ, v. 04, n. 08, pp. 149-298, [jul./dez.] 2005, pp. 218-219.

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É neste sentido, que o Papa João Paulo II utilizou o termo “cultura da vida” para contrapor a uma “cultura de morte” disseminada em todo o mundo e que tem violado o valor da dignidade humana, pois “cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja.”8

A Igreja é chamada a manifestar novamente a todos, com uma firme e mais clara convicção, a vontade de promover, com todos os meios, e de defender contra todas as insídias a vida humana, em qualquer condição e estado de desenvolvimento em que se encontre.9

Nos últimos anos o magistério da Igreja colocou uma ênfase toda especial no valor da vida humana. Apostando numa “cultura da vida” se deixou interpelar pelo “Evangelho da vida”. E dentre estes documentos, destacam-se dois: o número 27 da Constituição Pastoral

Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, e a Encíclíca Evangelium Vitae, do papa João Paulo II.

Nota-se que o número 27 da Constituição Pastoral Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, constitui uma corajosa e bem fundamentada formulação do valor da vida humana. “Anúncio” e “denúncia” se articulam perfeitamente neste texto conciliar em que: 1) se fundamenta o valor da vida humana na consideração de todo ser humano, sem exceção, como um “próximo”, isto é, como “outro eu”; 2) se enquadra o valor da vida humana no serviço à totalidade da pessoa e, singularmente, da pessoa em situações de risco; 3) se denunciam as situações contrárias a este valor da vida humana, considerando-as como “opróbrios” que corrompem a civilização humana e como “desonras” ao Criador.

Tudo o que atenta contra a própria vida, como qualquer espécie de homicídios, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário, tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação psicológicas; tudo o que ofende a dignidade humana, como as condições infra-humanas de vida, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o mercado de mulheres e jovens e também as condições degradantes de trabalho, que reduzem os operários a meros instrumentos de lucro, sem respeitar-lhes a personalidade livre e

       8 Idem, 3.

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responsável: todas estas práticas e outras semelhantes são efetivamente dignas de censura.10

Dentro do esforço em querer conceitualizar o termo “cultura”, pode-se dizer que, desde o final do século XIX os antropólogos vêm elaborando vários conceitos numa tentativa de definir o termo cultura. Esta tentativa tem ultrapassado 160 definições e ainda não chegaram a um consenso mais preciso do termo. “Para alguns, cultura é comportamento aprendido; para outros, não é comportamento, mas abstração do comportamento; e para um terceiro grupo, a cultura consiste em idéias.”11

Pode-se ainda dizer, que, entre estes, existem aqueles que concebem como sendo cultura apenas os objetos imateriais, enquanto outros, ao contrário, concebem os objetos materiais, e aqueles que consideram como cultura tanto as coisas materiais quanto as não materiais.12

O termo deriva do verbo latino colere, que significa cultivar ou instruir, e do substantivo cultus, que é igual a cultivo ou instrução. Portanto, cultura, no sentido mais amplo, é o comportamento cultivado, em outras palavras, pode-se dizer que é o conjunto da experiência adquirida e acumulada pelo ser humano e transmitida socialmente, ou ainda, o comportamento adquirido por aprendizado social.13

O primeiro antropólogo a procurar definir um conceito de cultura foi Edward B. Tylor (1871), em sua obra Cultura primitiva, que dizia o seguinte:

Cultura (...) é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade.14

Como pode verificar, o conceito cultura engloba todas as coisas e acontecimentos que estão ligados ao ser humano: conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos.15 Estes, por sua vez, são os elementos constitutivos da cultura evidenciando o aspecto positivo de uma sociedade em favor do ser humano, autor e objeto da própria cultura.

Dentro desta perspectiva, pode-se mencionar a grande quantidade de conhecimentos, que todas as culturas possuem e que são passadas de uma geração para a outra, e como exemplo de tal conhecimento, pode citar aquilo que os indivíduos aprendem do meio

      

10 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spe. Sobre a Igreja no mundo de hoje. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II. 26ª edição, Petrópolis – RJ: Vozes, 1997, n. 27. Daqui em diante segue-se GS.

11 DE ANDRADE MARCONI, Marina e MARIA NEVES PRESOTTO, Zelia. Antropologia. Uma introdução. 6ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2005, p. 22.

12 Cf. ibidem.

13 Cf. KEESING, Feliz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1972, p. 49. 14 Ibidem.

(21)

ambiente para sua sobrevivência como a obtenção de alimentos, construção de moradias e de meio de transportes etc.

Já no que diz respeito aos valores, como sendo outro elemento constitutivo do conceito de cultura, tal termo “é empregado para indicar objetos e situações consideradas boas, desejáveis,

apropriadas, importantes (...). O valor incentiva e orienta o comportamento humano.”16No que diz respeito aos valores, existem aqueles que são chamados de dominantes, tais como a liberdade de expressão, de religião, como o direito à vida; como aqueles secundários como servir café às visitas, por exemplo.

Como pode ver, a vida humana está como valor fundamental ou primário no conjunto das diversas culturas. É dentro deste horizonte de concepção do termo cultura, que visa colocar o próprio ser humano como autor e fim último da cultura, é que o Concílio Vaticano II, afirmou com estas seguintes palavras o termo “cultura”:

Em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família quanto na comunidade civil, pelo progresso dos costumes e das instituições; enfim, exprime, comunica e conserva, em suas obras, no decurso dos tempos as grandes experiências espirituais e as aspirações, para que sirvam ao proveito de muitos e ainda de todo o gênero humano.17

Esta mesma Constituição Pastoral ainda afirmou, que, são os homens e as mulheres dos vários grupos e nações, os criadores e autores da própria cultura. O homem é chamado a assumir responsabilidade diante dos seus irmãos e da história se colocando sempre a favor dos próprios direitos humanos.

A Igreja, enviada por todo o mundo para dar testemunho da Vida transmitida por Cristo - “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância (Jo 10,10b)” - mesmo não estando ligada de maneira exclusiva a nenhuma raça ou nação, assume a missão universal de entrar em comunhão com as diversas formas de cultura, a fim de restaurá-la, combatendo e removendo os erros e os males decorrentes da ameaçadora sedução do pecado. Neste sentido, a Constituição afirma a respeito da missão da Igreja perante as diversas culturas:

Purifica e eleva incessantemente os costumes dos povos. Com as riquezas do alto ele fecunda, como que por dentro, as qualidades do espírito e os

       16 Idem, p. 28.

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dotes de cada povo e de cada idade, fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo.18

Todo cristão, que fez a experiência de acolher o Evangelho da Vida anunciado por Cristo, é chamado a se tornar um apóstolo deste mesmo Evangelho na sociedade em que vive, contribuindo deste modo, em promover uma verdadeira cultura em favor da vida humana e não da morte.

A evangelização da Igreja, compreendida como participação da missão profética, sacerdotal e real de Cristo, assume a incumbência de anunciar o Evangelho da Vida à universalidade de todos os povos: “Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida

incumbe sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente eclesial”19, fazendo próximos cada ser humano, sobretudo os mais pobres e necessitados: “Cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes (Mt 25,40).”

Tratando-se de uma promoção da cultura da vida, que se contrapõe às práticas abortivas, faz-se necessário por parte da Igreja, uma evangelização que procure conscientizar os homens e as mulheres sobre a beleza da sexualidade e da procriação.

Uma sexualidade biológica, que não passa de biologia, tal como estão programados os animais, é má sexualidade, que sequer funcionará como sexualidade. No homem a sexualidade biológica, que nele nasce automaticamente e sem lhe pedir licença, deve tornar-se humana, expressando o amor interpessoal do casal e dando-lhe consistência.20

Neste sentido, necessita-se de uma humanização da sexualidade, evitando, portanto, cair nos extremismos do hedonismo selvagem de um lado, ou no neopuritanismo anti-sexual, de outro. Pois, a história da sexualidade na história da humanidade é marcada por aqueles que a viveram e vivem unicamente movidos pela busca do prazer, e outros a concebiam e concebem como um meio para poder ter filhos. A sexualidade deve ser expressão de amor interpessoal e contribuir eventualmente para a procriação, de modo que, quanto mais amor interpessoal expressar a sexualidade, mais humana e mais satisfatória será, inclusive no plano biológico21: “É uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação.”22

       18 Idem, 58.

19 EV 79.

20 HORTELANO, Antonio. Moral Alternativa. Manual de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 2000, p. 194. 21 Cf. idem, pp. 194-196.

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Para os cristãos, a procriação humana, é um dos fins principais do matrimônio e tem como resultado o nascimento de uma nova pessoa humana. Este ato procriador assume um significado ainda mais alto, uma vez que envolve uma especial intervenção de Deus criador. Nesse sentido, observa-se um duplo movimento no ato fecundativo: um avanço humano para dentro do poder criativo de Deus e um curvar-se de Deus, que põe sua criação na dependência de um processo entregue às mãos da própria criatura. Portanto, faz-se jus o termo “procriação” por parte dos cônjuges, partícipes do amor fecundo e unitivo do próprio Criador.

Quando, pois, pela contracepção, os esposos tiram do exercício de sua sexualidade conjugal a sua potencial capacidade procriadora, eles se atribuem um poder que pertence a Deus: o poder de decidir em última instância a vinda à existência de uma pessoa humana. Atribuem-se a qualificação de serem não cooperadores do poder criativo de Deus, mas os depositários últimos da fonte da vida humana.23

Afirma-se que a sexualidade é sempre caracterizada por sua abertura para o outro, numa posição contrária estão os métodos contraceptivos como fechamento intencional à procriação frustrando uma das finalidades do ato conjugal.24 Desse modo, a promoção da cultura da vida também implica em promover uma ética da procriação que esteja norteada nos princípios da responsabilidade, da verdade, do amor e da sinceridade, visto que muitos abortos são provocados por causa da falta de responsabilidade diante do ato sexual.

Reconhecendo o ensinamento da Igreja, que todo ato matrimonial deve permanecer, por si, aberto à transmissão da vida, nasce, consequentemente, uma responsabilidade em relação a si mesmo, do próprio parceiro, do nascituro e do Criador.

Se o cônjuge crente reconhece o valor de pessoa e de criatura presente no outro, não pode deixar de concordar plenamente que é parceiro do próprio Criador, participante de seu amor fecundo e unitivo. A pessoa reconhece em si o dom de um amor transcendente e de uma responsabilidade procriadora, reconhece que a vida do filho é dom do Criador, antes mesmo de ser fruto do amor conjugal.25

Seguindo esse mesmo raciocínio, se a sexualidade, precisamente o amor conjugal, são constitutivamente marcados pela capacidade de abertura ao outro, definindo, assim, as duas finalidades do matrimônio, a procriação de uma pessoa deve ser o fruto e o termo do amor

      

23 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e Ética Biomédica, vol. I. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 316.

24 Cf. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. 15ª Edição, São Paulo: Loyola, 2002, cân. 1055, 1. Daqui em diante segue-se CIC - Codex Iuris Canonici.

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esponsal, pois “se o sentimento de amor (...) é seu centro, não obstante este sentimento (...) é encarnado e sexuado, tende à plena integração das pessoas por meio da profunda comunhão dos corpos e, sobretudo, dos corações.”26

A partir de uma humanização da sexualidade, homem e mulher, precisam compreender que o matrimônio não é fruto do acaso, mas, instituído por Deus, tem a missão de realizar na humanidade o seu desígnio de amor mediante a doação mútua dos cônjuges entre si e de ambos na geração e educação de novas vidas.27 É neste horizonte de humanização da sexualidade, que as notas características do amor conjugal devem se revestir de uma clareza exata, conforme se pode conferir na encíclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI.

O amor conjugal é, primeiramente, um amor plenamente humano, ou seja, ao mesmo tempo espiritual e sensível. E não deve ser confundido como um simples ímpeto do sentimento, mas, principalmente como um ato da vontade livre, de modo que, na alegria, mas também na dor, este amor seja renovado e os esposos se tornem um só coração. O amor conjugal é também um amor total em que os esposos compartilham todas as coisas não somente por aquilo que possuem, mas por aquilo que são. Ainda, o amor é marcado pela fidelidade e pela exclusividade até que a morte os separe. E por fim, o amor, não se esgotando na comunhão entre os esposos, deve ser fecundo se abrindo para a procriação e educação dos filhos.28

Quando pelo contrário falta o sentido e o significado do dom na sexualidade, acontece uma civilização das ‘coisas’ e não das ‘pessoas’; uma civilização onde as pessoas se usam como se usam as coisas. No contexto da civilização do desfrutamento, a mulher pode tornar-se para o homem um objeto, os filhos um obstáculo para os pais.29

Diante do amor conjugal exige-se dos esposos uma consciência da sua missão de paternidade e maternidade responsáveis considerados sob diversos aspectos: sob o aspecto biológico de transmissão da vida, a inteligência reconhece leis biológicas que fazem parte da pessoa humana; sob o aspecto das paixões, o domínio e a supremacia da razão e da vontade; e

      

26 CAMPANINI, C. “Matrimônio”. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino e PRIVITERA, Salvatore (orgs.). Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 764.

27 PAULO II, João. Ele os criou Homem e Mulher. Reflexões de João Paulo II sobre a corporalidade e a sexualidade humana à luz da Sagrada Escritura. São Paulo, Editora Cidade Nova, 1982, p. 74.

28 Cf. PAULO VI. Carta EncíclicaHumanae Vitae. Sobre a regulação da natalidade. 5ª edição, São

Paulo: Paulinas, 1988, n. 9. Daqui em diante segue-se HV.

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com relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável consiste tanto no fazer crescer uma família numerosa, como na decisão tomada de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento.30 “Tanto se pode faltar à moral não tendo filhos como tendo-os de maneira irresponsável.”31

O exercício responsável da paternidade implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres, para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores.32

Tendo em vista que a procriação é um gesto que compete à decisão livre do casal, pode-se elencar algumas qualidades necessárias, para que o ato procriativo seja verdadeiramente responsável. E estas qualidades são: a unidade, a consciência, a liberdade, a gratuidade e a providência. “O casal procria responsavelmente quando possui em si, de modo analógico, as mesmas qualidades do Deus Criador e redentor.”33

O casal, chamado pela própria natureza do matrimônio, a ser um, mediante a comunhão de amor, também deve refletir tal unidade na vida do filho. Neste sentido, não bastam os elementos biológicos necessários para a procriação e nem mesmo basta o instinto procriativo. Todos estes elementos precisam ser assumidos e amadurecidos no amor, que faz do homem e da mulher uma só carne, mas também os interpela a comunicar esta unidade na vida do filho.

Falar de paternidade responsável significa falar da consciência que o casal é chamado a tomar diante da responsabilidade do que é um filho. Deus mesmo, antes de fazer que exista a realidade no ser, ele a gera em seu conhecimento e em seu amor: “Antes mesmo de te modelar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei (Jr 1,5).”

Da potencial e, em seguida, efetiva paternidade e maternidade, ambos são responsáveis. O homem não pode deixar de reconhecer ou não aceitar o resultado de uma decisão que foi também sua. Não pode se esconder por detrás de expressões como: ‘não sei’, ‘não queria’, ‘foste tu que quiseste’. A união conjugal comporta em todo o caso a responsabilidade do homem e da mulher, responsabilidade potencial que se torna efetiva quando as circunstâncias o impuserem.34

       30 Cf. idem, 10.

31 HORTELANO, Antonio. Op. cit., p. 208. 32 HV 10.

33 MURARO, G. “Procriação responsável”. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino e PRIVITERA, Salvatore (orgs.). Op. cit., p. 1021.

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Outra qualidade para uma paternidade responsável é a capacidade de liberdade diante da procriação. Sabe-se que em toda cultura existem fatores que acabam influenciando o casal na decisão de procriar (como sinal de virilidade, meio de revalorização pessoal, meio para multiplicar a mão de obra etc) ou de não procriar (egoísmo, medo, comodismo, desconfiança do futuro). O casal precisa libertar-se desses persuasivos ocultos, sociais e familiares que influem na decisão procriativa.

Os responsáveis nesse processo são marido e mulher e somente eles. Os demais: médicos, psicólogos, sacerdotes e governantes podem formar e informar a partir de seus respectivos pontos de vista, mas em nenhum caso devem decidir. Somente marido e mulher, e sempre os dois, em clima de diálogo conjugal amadurecido e respeitoso, têm a última palavra quanto aos filhos que devam ter. Todos os demais não devem ultrapassar a fronteira da penúltima palavra. Ultrapassar esse limite constitui grave imoralidade e falta de respeito à liberdade dos interessados.35

Outra característica é a gratuidade do casal em se abrir e respeitar a alteridade do procriado. Esta qualidade resume todas as outras, pois sendo fruto do amor conjugal, é marcada pela doação de vida para geração de outras vidas, eliminando qualquer tipo de subordinação ou instrumentalização no relacionamento pais e filhos.

Por fim, o casal é chamado a ser imitador de Deus também na qualidade de ser providência para os seus filhos. O homem e a mulher se tornam prolongamentos no tempo da obra da criação por meio da procriação e da educação. A educação, nesse sentido, não consiste somente em trazer os filhos à existência, mas também em ajudá-los, através do diálogo e da presença dos pais, a crescerem nas dimensões físicas, psíquicas, morais, espirituais, sociais e religiosas, que a própria vivência em sociedade exige.36

Ninguém pode ignorar que o primeiro exemplo e a maior ajuda que os pais podem dar em relação aos próprios filhos é a sua generosidade em acolher a vida, sem esquecer que assim os ajudam a ter um estilo de vida mais simples e, além disso, que é menor mal negar aos próprios filhos certas comodidades e vantagens materiais do que privá-los da presença de irmãos e irmãs que os poderiam ajudar a desenvolver a sua humanidade e a realizar a beleza da vida em todas as suas fases e em toda a sua variedade.37

       35 HORTELANO, Antonio. Op. cit., p. 207.

36 Cf. MURARO, G. “Procriação responsável”. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino e PRIVITERA, Salvatore (orgs.). Op. cit., pp. 1022-1023.

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Afirmar que a sexualidade deve ser entendida como capacidade de se relacionar e se abrir para os outros, equivale dizer que ela tem como fim intrínseco o amor no sentido de doação e acolhimento. A relação que deve existir entre um homem e uma mulher deve ser uma relação de amor: “A sexualidade deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor, que é o

único a torná-la verdadeiramente humana.”38 É no ambiente da família, quando marcada pelos valores cristãos, sobretudo daquele amor a Deus, que as crianças estarão mais dispostas a viver tais valores morais que veem praticar na vida dos seus pais.

A família é a primeira e fundamental escola de sociabilidade, enquanto comunidade de amor, ela encontra no dom de si a lei que a guia e a faz crescer. O dom de si, que inspira o amor mútuo dos cônjuges, deve pôr-se como modelo e norma daquele que deve ser atuado nas relações entre irmãos e irmãs e entre as diversas gerações que convivem na família. E a comunhão e a participação quotidianamente vividas na casa, nos momentos de alegria e de dificuldade, representam a mais concreta e eficaz pedagogia para a inserção ativa, responsável e fecunda dos filhos no mais amplo horizonte da sociedade.39

Portanto, a educação cristã deve “sublinhar que a educação para a castidade é inseparável do empenho em cultivar todas as outras virtudes e, de modo particular, o amor cristão que se

caracteriza pelo respeito, o altruísmo e o serviço e que, em definitivo, se chama caridade.”40 E tal educação para a castidade deve se passar pelo domínio de si mesmo, o que, por sua vez, exige as virtudes do pudor, da temperança, o respeito de si e dos outros e a abertura ao próximo.41

Com relação ao princípio da sinceridade, este deve ajudar o casal no discernimento dos motivos que impõem a aceitação ou o adiamento de uma fertilidade procriadora, mesmo quando se utilizam dos métodos eticamente corretos lembrando de que, no campo ético, para uma ação ser lícita, é preciso que também os meios e os métodos sejam lícitos.

O aborto em caso de anencefalia fetal pode representar uma concepção reducionista do ser humano como também uma forma de eliminar um “incômodo” por parte dos próprios pais, que não estão dispostos em assumir a responsabilidade diante de tal anomalia. Do ponto de vista da ética, a constatação de uma malformação ou de uma deficiência no nascituro não equivale uma diminuição em nada de sua dimensão ontológica, pelo contrário, requer ainda mais da sociedade proteção e ajuda perante tal fragilidade.

       38 Idem, n. 11.

39 Cf. FC 18, 63-64.

40 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA. Sexualidade Humana: Verdade e Significado. Orientações educativas em família, n. 55.

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...do ponto de vista ético, nestes casos, e num plano geral, impõe-se a obrigação de promover a pesquisa e o amparo para prevenir essas malformações em suas causas, e de sustentar as famílias com meios adequados onde acontecer o nascimento desses indivíduos, que trazem indubitavelmente encargos humanos e econômicos às vezes difíceis. Uma sociedade se qualifica por sua capacidade de ajudar os fracos e os doentes e não por sua arrogância em provocar sua morte precoce.42

Dentro dessa perspectiva em promover uma cultura da vida, caberia ao Governo Federal brasileiro implantar no SUS (Sistema Único de Saúde) o programa de prevenção da anencefalia como também de outras malformações decorrentes do mau fechamento do tubo neural. O sucesso no uso do ácido fólico químico43, ao lado da alimentação natural, tem atingido a porcentagem de 50% ou mais de redução da doença. Tal programa de prevenção aplicado nos sistemas públicos de saúde beneficiaria, principalmente, as mulheres e famílias pobres, que não têm condições financeiras para um tratamento particular.44

É urgente promover não apenas políticas para a família, mas também políticas sociais, que tenham como principal objetivo a própria família, ajudando-a, mediante a atribuição de recursos adequados e de instrumentos eficazes de apoio quer na educação dos filhos quer no cuidado dos anciãos, evitando o seu afastamento do núcleo familiar e reforçando os laços entre as gerações.45

Mais adiante se verá que o ser humano é uma pessoa em virtude de sua natureza e não que se torna uma pessoa em virtude do exercício específico de certas funções, como por

       42 SGRECCIA, Elio. Op. cit., p. 376.

43 “Fórmula química: Ácido pteroil glutâmico. Cristais amarelados. Fontes de ácidos fólicos ou folatos: concentrações elevadas de folatos existem nas folhas verdes (a denominação de ácido fólico vem de folhas), órgãos parenquimatosos como fígado e rins. Os vegetais, as frutas, produtos derivados do leite são as fontes mais importantes dessas substâncias na dieta diária de um adulto. O leite humano ou de vaca são também fontes do ácido fólico mas o leite de cabra é muito pobre nele. O ácido fólico é termo-lábil e de 50 a 95% do conteúdo dos alimentos pode ser destruído pelo calor, especialmente se houver fervura. A mínima quantidade de ácido fólico necessária ao homem é de 50 microgramos, mas a dose média é de 3,6 micogramos por quilograma por dia. Para as mulheres grávidas a dose é de 500 micogramos por dia. O ideal é de que esta dose seja usada previamente às gestações e mantida durante todo o período. Este procedimento em experiências feitas em vários países reduz em até 75% a ocorrência de defeitos de soldadura do tubo neural em fetos como a anencefalia, mielomeningocele e encefalocele. Em vários países, sabedores disso, vários alimentos são enriquecidos com a adição de ácido fólico”. Cf. SILVEIRA MARTINS LEÃO JUNIOR, Paulo. “A dignidade da vida humana e as biotecnologias, questões e perspectivas a partir do Direito.” In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Instituto Nacional de Pastoral (org.). A dignidade da vida humana e as biotecnologias. Brasília: edições CNBB, 2006, p. 65.

44 Idem, “A dignidade da vida humana e as biotecnologias, questões e perspectivas a partir do Direito.” In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Instituto Nacional de Pastoral (org.). A dignidade da vida humana e as biotecnologias, p. 54.

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exemplo, a capacidade relacional, sensibilidade e racionalidade. O homem não pode ser reduzido a um feixe de fenômenos, como diz o funcionalismo empirista, porque senão ele seria o seu próprio “fazer” e não seria um “ser”.46

A criança anencéfala não perde sua dignidade humana em razão da malformação que padece, devendo ser adotadas, conforme disposto na Constituição e na legislação, as cabíveis e possíveis medidas de prevenção (vide art. 196, caput e art. 198, II, ambos da CRFB), de baixo custo, mediante acompanhamento pré-natal adequado e em especial com reforço de ácido fólico, para sua mãe, antes e durante a gravidez, o que é importante não só para evitar, em 50% dos casos ou mais, a anencefalia, como também outras doenças correlatas, especialmente a espinha bífida.47

No entanto, o assumir a responsabilidade pela outra pessoa, e nesse caso pelo anencéfalo fetal, só é possível a partir da compreensão e valorização que se tem do mesmo como pessoa humana. Por isso, que é extremamente relevante a abordagem do embrião ou do feto também como pessoa humana como veremos mais adiante, a fim de que o aborto não seja buscado como alternativa diante de uma deficiência do próprio desenvolvimento do nascituro.

Em busca incessante da promoção de uma cultura da vida, a Igreja, mesmo enfrentando as dificuldades pertinentes nas democracias pluralistas marcadas por um relativismo individualista, ela, movida pela certeza de que a verdade moral não pode deixar de ecoar em cada consciência, encoraja os políticos, começando pelos que são cristãos, a não se deixarem ser vencidos, mas lutarem por uma promoção em favor da vida humana, como por exemplo, a não aprovação da prática livre do aborto. Para esta promoção da vida humana, é imprescindível a compreensão, cada vez mais apropriada do que é a vida humana e de quem é o ser humano na sua dimensão corpo-espírito.

      

46 Cf. CORRÊA DA SILVA, Adriano. “A aplicabilidade de pessoalidade é adequada na embriologia, de modo a considerar o embrião humano uma pessoa?” Revista de Cultura Teológica, São Paulo, ano XIX, n. 73, pp. 11-27, [jan./mar.] 2011, p. 25.

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1.2. Concepção bíblica de vida humana

Um modo de pensar, que por sua vez, é indiscutível, é a consciência que o ser humano, de toda a parte e de todos os tempos, tem de sua incapacidade em dar-se a vida a si mesmo.

“Embora o ser humano seja chamado a ser dono da própria vida, a ser livre, no íntimo experimenta que sua vida é um dom.”48

A vida lhe é sempre outorgada pelo criador. E no que diz respeito ao sentido religioso, a vida é sempre um dom divino, seja em sentido mítico, seja em sentido histórico, concedida ao homem através de um ato criador. No que diz respeito ao sentido filosófico, o mundo e o homem participam na vida divina, presente em todas as coisas: “A vida que Deus oferece ao

homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de si mesmo à sua criatura.”49Porém, a dimensão

de criaturalidade de todos os seres, inclusive o ser humano, não significa apenas uma dependência total de Deus, que sustenta todo o mundo criado, antes ainda, trata-se em destacar o homem na mais alta dignidade e superioridade, porque criado segundo a imagem e semelhança de Deus.

A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado “à imagem de Deus”, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as criaturas terrenas (Cf. 1,26; Sb 2,23), para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus (Cf. Eclo 17,3-10). “Que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, que venhas visitá-lo? E o fizeste pouco menos que um deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos, sob os seus pés tudo colocaste” (Sl 8,5-7).50

O ser humano foi chamado por Deus a uma plenitude de vida que vai além das dimensões da sua existência terrena já que consiste na participação da própria vida de Deus. Neste sentido, a grandeza e a importância do homem diante de Deus e do mundo consistem em sua vocação sobrenatural.51

Seguindo a linha de pensamento de muitos Padres da Igreja, ser ‘imagem’ (selem) de Deus é uma condição inerente à essência do homem (Cf. Gn 1,27; 9,6), isto é, diz respeito à dimensão natural do homem, enquanto a ‘semelhança’ (demut) designa a graça santificante, isto é, de qualidade

      

48 ANTONIO JORGE, José. Dicionário Informativo Bíblico, Teológico e Litúrgico. Campinas- SP: Editora Átomo, 1999, p. 531.

49 EV 34.

50 LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes. Texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011, p.60.

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sobrenatural.52 De modo que, a compreensão da imagem de Deus não pode se dar na

exterioridade, mas na própria essência da criatura humana. Em outras palavras, “no fato de que

o homem é uma pessoa que pode ‘representar’ Deus no mundo criado,”53visto que somente com o ser humano, entre todas as criaturas vivas, é que Deus estabelece uma relação pessoal (Cf. Gn 1,28-30; 2,17).54Em suma, na própria constituição ontológica do ser humano – corpo, alma e espírito – pode-se verificar tal soberania. A semelhança do homem com Deus o coloca em destaque sobre todas as outras criaturas deixando evidente sua centralidade em toda obra da criação (Cf. Sl 8,7-9).

Para o homem da Bíblia, Deus é sempre a origem e a plenitude de toda a vida. E partindo de sua própria fraqueza, que o homem faz a experiência do Deus vivo e eternamente vivente (Cf. Dt 32,40; Jos 3,10; Dan 12,7; Eclo 18,1).

No relato javista sobre a criação, Deus é sempre a origem de toda a vida, porém a respiração do homem vem dele de um modo especial e o seu sopro divino o transforma num ser vivente: “Então o Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em sua narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Aqui, faz-se referência à

constituição essencial do homem por dois elementos – um material ou terreno, que recebe o nome de carne (basar), e um outro elemento sobrenatural, que, por sua vez, é princípio vital, imediatamente originado de Deus chamado alma (nepes), porém mais frequentemente rûah

(espírito). “Em concreto, a semelhança do homem com Deus deveria traduzir-se em sua soberania sobre as outras criaturas (Cf. Gn 1,26.28-30; 2,15) como, ainda é provado pelo fato de lhes dar Adão um nome (Cf. Gn 2,19s).”55

Outro aspecto fundamental para a antropologia do A.T. é o coração (leb).

Ele é a sede das paixões e dos sentimentos como do conhecimento e do esforço espiritual. Sem dúvida, este termo designa, sobretudo, a interioridade do homem em oposição ao seu aspecto exterior e corpóreo (Cf. 1 Sm 16,7). Em particular, refere-se ao comportamento ético (Cf. Gn 20,5) e religioso (Jos 22,5; 1 Sm 12,20.24;Ez 11,19s). Do coração procedem os impulsos que

      

52 I. STADELMANN, Luis. “A vida na bíblia.” Encontros Teológicos, Florianópolis-SC, v. 23, n. 01, pp. 01-189, [jan./abr.], 2008, p. 48.

53 WARNACH, V. “Homem. Estudo bíblico.” In: FRIES, Heinrich (org). Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da Teologia atual, vol. II. 2ª Ed. São Paulo: Loyola,1983, p. 325.

54 Cf. DE GRAMONT, Jérôme. “Antropologia.” In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola; São Paulo: Paulinas, 2004, p. 149.

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determinam a ação e o comportamento (Cf. Gn 6,5;Êx 36,2). (...) Por isso o coração forma um só todo com a consciência (1 Sam 25,31).56

Para Silvia Schroer e Thomas Staubli, autores do livro “Simbolismo do Corpo na Bíblia”, a reflexão racional em vista de uma compreensão para uma tomada de decisão tem supremacia no coração: “Na Bíblia, o coração é, acima de tudo, o lugar da razão e do entendimento, dos planos secretos, da reflexão e da decisão.”57 E tal afirmação pode-se verificar em Dt 29,3:

“Contudo, até o dia de hoje Iahweh não vos tinha dado um coração para compreender, olhos para ver e

ouvidos para ouvir.” O coração, ao lado dos sentidos humanos, tem o poder de reelaborar e reordenar as impressões que vêm de fora.Também no livro de I Rs 3,9, o coração possui esse mesmo sentido, quando Salomão pede a Deus um coração sábio: “Dá, a teu servo um coração cheio de julgamento para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal, pois quem poderia governar teu povo, que é tão numeroso?”

“Em Israel, ausência de coração não significa frieza de sentimentos, mas irreflexão, insensatez

ou simples estultícia”58, conforme pode-se ver no livro do profeta Oséias 7,11, quando dirige

uma acusação a Efraim, o reino do Norte: “Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência, pedem auxílio ao Egito, vão à Assíria.” Israel perdeu o bom-senso e foi insensato.

Nesse sentido, para o A.T. é a figura do coração, como sede das paixões e das decisões determinando as ações e os comportamentos do ser humano, o sujeito do pecado e da concupiscência e não a carne. Todos estes termos – basar, nepes, rûah, leb – designam o homem na sua totalidade.

Deus é o manancial da vida (Cf. 35,10; Jr 2,13; 17,13), de modo que se Deus retira o sopro vital, o homem cai no pó (Cf. Sl 103,29s; Jó 34,14s). Deus é o Senhor sobre a vida e a morte (Cf. Nm 27,16; Dt 32,39; Sl 103,28s; Jo 12,10).À obediência a Deus é prometida a bênção, a felicidade e a vida; à desobediência, a maldição, a desgraça e a morte (Cf. Dt 30,15.19). A vida é tratada com grande estima por um israelita, pois ela significa saúde, salvação e felicidade (Cf. Sl 55,14; Mal 2,5; Ecl 9,9).

Se a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos é garantia de vida longa e feliz (Cf. Lv 18,5; Dt 5,16; Pr 3,1), o pecado significa uma diminuição ou morte a vida! O homem, criado como imortal na sua origem, perde, em consequência do pecado, a vida (Cf. Gn 2,17).

A própria Lei foi dada por Deus como caminho da vida: “Ela é o livro dos preceitos de Deus, a Lei que subsiste para sempre: todos os que a ela se agarram destinam-se à vida; e os que a abandonarem perecerão (Br 4,1).”

       56 Idem, p. 327.

(33)

“Isto explica como é difícil manter-se fiel ao preceito ‘não matarás’, quando não são

observadas as demais palavras de vida, às quais ele está ligado.”59 Neste sentido, pode-se afirmar

que não somente o quinto mandamento deve assegurar a proteção da vida, mas toda a Lei do Senhor em sua extensão está a serviço desta proteção.

Foi, sobretudo, nos acontecimentos do Êxodo, como ponto mais alto da experiência de fé do Antigo Testamento, que o povo de Israel descobriu quão preciosa é aos olhos de Deus a sua vida, apesar da escravidão que o marcava e da sentença de morte que ameaçava todos os seus recém-nascidos do sexo masculino (Cf. Êx 1,15-22).

Sobre a concepção da vida como origem divina também há o testemunho dado pelos escritos de Qumrân:

É de Deus que procede o caminho de toda a vida (1 QH 15, 22). O justo agradece a Deus pelo fato de já agora ter libertado sua vida da fossa e tê-lo feito sair do inferno da condenação para as alturas da divindade (1 QH 3, 19s). Já se operou a passagem da morte para a vida.60

Israel, mesmo passando pela experiência da morte descobre que, do próprio seio da morte Deus continua a chamá-lo para a vida. Do fundo do exílio proclama Ezequiel que “Deus não tem prazer na morte do malvado, mas o chama a converter-se e a viver” (Ez 33,11). Ele sabe que Israel é como um povo de cadáveres, mas anuncia que sobre esses ossos ressequidos Deus fará soprar seu espírito e que eles reviverão (37,11-14).61

Do mesmo modo acontece a compreensão no Novo Testamento sobre a vida humana. Para Jesus a vida assume uma relevância superior que o alimento (Mt 6,25), de modo que salvar uma vida é até mais importante que o cumprimento de observar o dia de sábado (Mc 3,4), pois “ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mc 12,27a.).62

Os evangelhos sinóticos realçam o valor original e decisivo da pessoa humana diante das realidades anti-humanas disfarçadas nas práticas religiosas. No evangelho de Marcos existe uma passagem (2,13-3,6), que também tem paralelos em Mateus (12,1-14) e em Lucas (5,27-6,11) na qual Jesus é apresentado na sua atuação como dono das instituições humanas.

       59 EV 48.

60 HERMANN SCHELKLE, Karl. Teologia do Novo Testamento. Ethos Comportamento Moral do Homem, vol. 4. São Paulo: Loyola, 1978, p. 238.

61 Cf. VIARD, André-Alphonse e GUILLET, Jacques. “Vida.” In: LÉON-DUFOUR, Xavier, DUPLACY, Jean, GEORGE, Augustin, GRELOT, Pierre, GUILLET, Jacques, LACAN, Marc-François (orgs.). Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis-RJ: Vozes, 1972, p. 1070.

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Deste modo, o valor da pessoa está em ligação com o senhorio de Jesus expresso na sua atuação livre perante estas instituições religiosas.63

O N.T., assim como nos mostra o A.T., afirma que o homem é imagem de Deus (Cf. I Cor 11,7; Tg 3,9), e que esta imagem de Deus é sua estrutura essencial. Dentro desta consideração da estrutura essencial do ser humano, aparecem, no N.T., os três fatores fundamentais da constituição humana: o corpo, a alma e o espírito, concebidos não como partes antagônicas ou justapostas, mas são realidades integradas na totalidade do homem.

Na perspectiva do N.T., ainda continua mostrando que o homem não é dono da vida (Cf. Lc 12,20; II Cor 1,9) e que ela é passageira (Cf. Tg 4,14). O dom da vida não é um bem absoluto, mas relativo, pois o poder do homem sobre a própria vida e a dos outros é limitado, tratando-se de um poder ministerial, de administração e tutela.64

O próprio chamado sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade última, mas penúltima; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.65

Numa perspectiva cristã, existe uma relação estreita entre a vida biológica do ser humano e a vida eterna conquistada e herdada por Cristo. Remetidos ao prólogo do evangelho de São João, lê-se: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (Jo 1,1.14).” A verdadeira vida ou vida eterna também o

Verbo de Deus quis assumi-la em nossa condição humana vivida no tempo e no espaço deste mundo terreno. Portanto, a vida biológica é expressão ou desdobramento da verdadeira vida.66

Como bem relativo, a vida pode ser sacrificada por um bem superior (Cf. Mc 8,35), conforme nos ensina a Evangelium Vitae:

Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, ‘quem quiser salvar a sua vida, perde-la-á, e quem perder a sua vida por mim e pelo Evangelho, salva-la-á’ (Mc 8,35).67

E o próprio Jesus Cristo fez de sua vida terrena uma oferta ao Pai (Cf. Jo 10,17) e aos seus amigos (Cf. Jo 10,15). E o critério aqui usado é a fidelidade à palavra do Senhor, ainda

      

63 Cf. VIDAL, Marciano. Dicionário de Moral. Dicionário de Ética Teológica. Aparecida-SP: Santuário, s.d., p.33.

64 Cf. EV 52. 65 Idem, 2.

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que à custa da própria vida, como fizeram João Batista (Cf. Mc 6,17-29) e, depois, Estêvão (Cf. At 7,59-60), abrindo caminho para todo um exército inumerável de mártires venerados pela Igreja desde os princípios, porque, sem dúvida, “é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens (At 5,29).”

Somente “em sua mão está a alma de todo ser vivo e o espírito de todo homem carnal (Jó, 12,10).” Somente Deus é o único vivente e dele procede toda a vida (Cf. Mt 16,16; 26,63; Rm

9,26). Somente ele é Senhor sobre a vida e sobre a morte (Cf. Mt 10,28s).

Ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer; efetivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador, aquele em quem vivemos, nos movemos e existimos (At 17, 28).68

Nos evangelhos, pode-se verificar a valorização da dignidade humana, mas é nos escritos paulinos que se encontram os elementos de uma verdadeira antropologia, que deve ser considerada essencialmente cristológica: “Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi

feito alma vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida (I Cor 15,45).” Assim, “ser a ‘imagem de Deus’ é, portanto, ser também à imagem de Cristo, que é, ele mesmo, a imagem de Deus (Cf. II Cor 4,4; Cl 1,15).”69

A vida eterna tem a sua promessa e garantia pela morte e ressurreição de Cristo. É em Cristo que está escondida a vida (Cf. Rm 8,2); pela sua vida é que todos serão salvos (Cf. Rm 8,2). Cristo como o autor da vida (Cf. At 3,15) fez com que resplandecesse a vida e a imortalidade (Cf. II Tm 1,10). A vida futura penetra na vida presente possibilitando o cristão viver em Cristo (Cf. Rm 6,11).

Deste modo, como pode-se ver, a vida eterna trata-se de “herança”, ou ainda, de dom (Cf. Mc 10,17), e não de algo merecido por pessoa alguma. É dom de um mundo que há de vir (Cf. Mc 10,30). Torna-se real na ressurreição dos mortos (Cf. Mc 12,26s). E a participação nessa vida vindoura depende da obediência à vontade de Deus (Mt 25,46). O evangelista fala de um paradoxo ao afirmar, que, quem agora entrega a sua vida, há de ganhar a eterna (Cf. Mt 16,25; Jo 12,25).

A terminologia bíblica se utiliza de termos próprios para definir a “vida”: em grego –

zoé – de natureza divina, distinguindo-se da vida orgânica em comum com as criaturas do reino vegetal e animal, em grego – bios.70

É o evangelista João, especialmente, que abre esta perspectiva final da vida futura. O texto grego de João não utiliza nunca o termo corrente para indicar vida (bios), como também,

       68 Ibidem.

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