• Nenhum resultado encontrado

CALIBAN E A CIDADE DO RIO: UMA RELAÇÃO DE RECIPROCIDADE

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "CALIBAN E A CIDADE DO RIO: UMA RELAÇÃO DE RECIPROCIDADE"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

126

CALIBAN E A CIDADE DO RIO: UMA RELAÇÃO DE RECIPROCIDADE

CALIBAN AND THE CITY OF THE RIO: A RELATIONSHIP OF RECIPROCITY

Gabriela Cornelli dos Santos1

RESUMO: Este estudo analisa as interseções entre território urbano e a literatura a partir do personagem

Caliban do conto “Brazil”, de Paule Marshall. Será feita uma análise da relação dialética entre o protagonista e o espaço onde circula, já que ambos constroem-se a partir das relações que imbricam entre si. Em “Brazil”, o espaço tem grande relevância, pois está intimamente associado ao personagem, influenciando-o nas atitudes, pensamentos e na formação de sua identidade cultural. Inversamente, Caliban deixa sua marca nos lugares em que passou, mostrando com nitidez a estreita relação entre o espaço e o habitante, ou entre o Rio de Janeiro e Caliban.

PALAVRAS-CHAVE: Território urbano. Caliban. Espaço. Relação dialética.

Introdução

As relações entre a literatura e o urbano tornam-se mais estreitas na modernidade, quando a cidade, transformada pela Revolução Industrial, se apresenta como um fenômeno novo, pois, pela desmedida do espaço que a caracteriza, afeta as relações com o humano. Conforme Renato Gomes (1994) “sob o signo do progresso, alteram-se não só o perfil e a ecologia urbanos, mas também o conjunto de experiências de seus habitantes”. Por conseguinte, a literatura passa a incorporar tal fenômeno em seu âmbito, posto que a arte literária, como sabido, tende a representar as experiências humanas. Este estudo analisa as interseções entre território urbano e a literatura a partir de “Brazil”, de Paule Marshall, em que Caliban, no conto um velho comediante, após anos nos palcos de uma casa de show no Rio de Janeiro introjeta de tal forma seu eu artístico que tem dificuldade em recuperar a sua identidade civil, a do cidadão Heitor Baptista Guimarães.

De acordo com Gomes (1994), “escrever a cidade é também lê-la, mesmo que ela se mostre ilegível à primeira vista”. É exatamente o que faremos neste estudo: ler os elementos da paisagem da “cidade maravilhosa” descritos na obra, e analisar a relação dialética entre o protagonista e o espaço. Ambos são construídos a partir de relações mútuas de que resultam marcas identitárias fortes. Inicialmente, exporemos um quadro teórico-conceitual que vem ao encontro da perspectiva do trabalho: explicaremos as categorias espaciais de lugar, território e paisagem (urbana). Debates nesse sentido são relevantes, já que o próprio título tem presente a noção de espaço/território.

1

(2)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

127 Em “Brazil”, o espaço tem grande relevância, pois está intimamente associado ao personagem, influenciando-o quer em suas atitudes, quer em seus pensamentos, e participando, dessa forma, da criação da sua identidade cultural. Veremos que os lugares são intensamente descritos, chamando a atenção do leitor para que visualize não só o personagem, mas também o que se apresenta ao redor dele.

1 Categorias espaciais

Comumente, costumamos pensar que o espaço é meramente algo físico e material, e não o associamos às relações sociais. Diferentemente das palavras social, político, econômico e cultural, que evocam relações humanas, a expressão espaço geográfico é, por vezes, vista apenas como algo independente do humano. Essa visão fisicalista tende a nos levar por um caminho errôneo, pois a geografia entende a construção do espaço como algo inerente à sociedade, isto é, “o espaço geográfico é [...] um produto histórico” (CARLOS, 1999, p. 32), um produto social.

O espaço é central para a Geografia, posto que é sempre a partir dele que surgem as demais categorias. É flexível e instável, e se transforma conforme as ações sociais se estabelecem. Grande confusão se faz com relação aos termos espaço e lugar, muitas vezes tomados por sinônimos; no entanto, são similares e complementares. O espaço, ao ser dotado de valor, torna-se lugar, que se manifesta por meio de um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas, instituições-cooperação e conflito (SANTOS, 1999).

Maria Isabel da Cunha (2008), ao responder à indagação sobre o que transforma o espaço em lugar, responde que é a dimensão humana. E acrescenta: “o lugar se constitui quando atribuímos sentido aos espaços, ou seja, reconhecemos a sua legitimidade para localizar ações, expectativas, esperanças e possibilidades” (CUNHA, 2008, p. 184).

Outra categoria que subjaz ao espaço é o território, que também tem vinculação ao humano. No entanto, o território diferencia-se por possuir uma dimensão política, que envolve relações de poder. Não estranha, pois, que a ele se associe carga simbólica: “pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2004, p. 79).

A terceira categoria espacial que nos propomos a explicar é a paisagem, especificamente a urbana. Segundo Ana Carlos (1999, p. 36), “enquanto forma de

(3)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

128 manifestação do urbano, a paisagem urbana tende a revelar uma dimensão necessária da produção espacial, o que implica ir além da aparência”. A autora ainda ressalta que esse modo de interpretação introduz os elementos da discussão do urbano como processo e não somente como forma. Tais elementos seriam: os prédios, casas, ruas, bairros, favelas, muros protegendo mansões, supermercados, prédios industriais, etc. Por ser constituída através da ação dos homens, a paisagem urbana tem caráter histórico, isto é, por ser representação das relações sociais que a sociedade cria em cada momento do seu processo de desenvolvimento torna-se um processo, e não algo fixo e imutável.

Percebemos então que a visão tradicionalista de paisagem, que consiste apenas na “possibilidade visual” (SUERTEGARAY, 2000, p. 20), passa por uma repaginação ao longo dos anos ao considerar fatores extra-visuais, e ao tornar o conceito de paisagem operacional, considerando sua funcionalidade.

2 Lugar e identidade

Após entendermos o espaço geográfico e algumas de suas categorias como caracterizadas por sua relação dinâmica com o ser humano, é necessário refletirmos a interrelação desse tema com a formação identitária, pois, segundo Mourão e Cavalcante (2006, p. 144), o espaço, “influi decisivamente sobre a construção da identidade de seus habitantes”.

Existe, de fato, uma associação da identidade com o espaço físico e social. O indivíduo, ao apropriar-se de um entorno, apropria-se dele, assim como o próprio sujeito torna-se pertencente a este meio: “o sujeito age sobre o meio, modifica-o e, neste processo, vai deixando sua marca e sendo igualmente marcado por ele” (MOURÃO; CAVALCANTE, 2006, p. 145). Sendo assim, concluem: “esse processo de pertencimento e apropriação associado a um lugar é formador da identidade dos sujeitos tanto quanto suas relações familiares e sociais” (MOURÃO; CAVALCANTE, 2006, p. 145).

Como veremos nesta análise, os lugares pelos quais o protagonista vive são decisivos na formação da sua identidade; são, todos eles, marcados pelo contato humano. A crise identitária pela qual Caliban passa, no momento da narração, é fruto de sua não-consciência de que a identidade é mutável, assim como o lugar o é, por ser composto por significados, ou por relações sociais.

(4)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

129 A relação entre Caliban e o Rio é dialética: enquanto o cenário físico se transforma, o sujeito que o habita também se modifica. É na medida em que um sujeito passa a projetar ideias, sentimentos, valores, preferências sobre o lugar que escolheu para viver que inicia o processo de identificação com ele.

3 Caliban e o Rio de Janeiro: construção mútua

Como previamente ressaltamos, o conto “Brazil” está repleto de indicações e descrições dos lugares nos quais os personagens executam suas ações. A vivência dos personagens nesses espaços faz com que se acostumem com seu cotidiano e cultura, produzindo posições identitárias. A exemplo disso, citamos a Casa Samba e o seu palco, o Rio de Janeiro, a Rua da Glória, a favela, a casa de Caliban e de sua esposa e o apartamento de sua amante, Miranda, que funcionam como (des)construtores da identidade de Caliban, em crise no momento da narração.

No decorrer dessa análise, mostraremos como os espaços podem ter influenciado Caliban na formação de sua identidade cultural e, inversamente, como os lugares sofreram influências de Caliban, já que a relação entre ambos é dialética. Após isso, conduziremos o leitor aos fatores que conduziram à crise identitária do protagonista em “Brazil”.

A Casa Samba torna-se um lugar – considerando as categorias espaciais -, pois está localizada em um espaço geográfico amplo, que tem significação ou sentido no seu interior. O teatro ou a encenação, por si só, são representações do vivido e seus espectadores concretizam a troca de emoções, que dão sentido ao lugar. A casa de shows, para ter sucesso e vida, necessita de atores e espectadores e, estes precisam de um espaço físico para atuarem, transformando-o em um lugar.

Ao viver intensa e diariamente o seu personagem no palco da Casa Samba, sob as luzes coloridas e sons estridentes, Caliban passa a ser reconhecido apenas pelo que é artisticamente, e nunca pelo que fora antes de ser comediante. A figura do comediante na casa de show, com suas vestes e atitudes exageradas e cômicas, é a que se impõe ao imaginário popular.

A primeira indicação de espaço no conto é o próprio título: o Brasil é o território onde se passam as ações da narrativa. A autora imprime extrema relevância ao espaço, quando o considera ser mais emblemático ao texto que o personagem Caliban. Percebemos que a sua intenção é enfatizar o Brasil como um lugar (pois tem significação) intenso em relação às

(5)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

130 culturas, remetendo o leitor para as construções de posições de identidade no conto, simbólicas das construções identitárias formadas através do desigual “encontro colonial” no Novo Mundo.

A segunda referência ao lugar, no conto, e importante na construção identitária do protagonista do conto, é a Casa Samba, um lugar pleno de significados, e o cenário onde Caliban e Miranda se apresentam todas as noites a fim de levar ao público alegria e descontração. A Casa Samba é composta por cômodos típicos de casa de shows: há dois camarins, corredores, uma sala dividida em palco e plateia. Nos camarins, espelhos e penteadeiras constituem a mobília do pequeno espaço. A vivência diária de Caliban tanto no camarim como no palco ajuda a construir sua identidade artística. Dentro da Casa ele é o Grande Caliban. Absolutamente tudo o que compõe aquele lugar, as luzes, os sons, a maquiagem, as roupas, os espectadores, os instrumentos musicais, a fumaça, os músicos são elementos instigadores para a formação de cultura e identidade.

A Casa Samba, por outro lado, também vê em Caliban suporte para sua constituição e permanência como local famoso por seus shows. A exuberância de sons, luzes e clima de alegria que proporciona à plateia é, em grande parte, advinda da fama de Caliban. A Casa, pelas descrições da narradora, demonstra ser local de sucesso, o point daquela cidade.

O Rio de Janeiro é também referido no conto. Seus principais bairros, pontos turísticos, ruas e favela são amplamente descritos a partir da segunda metade do conto. Quando Caliban resolve se aposentar, em conversa com Henriques, o camareiro, é surpreendido por uma frase que o faz pensar sobre o Rio de Janeiro. Henriques diz: “„Está se aposentando no tempo ideal, senhor, com dignidade. Colocar os cartazes sobre a cidade mostra estilo. Está dando adeus pro Rio de forma apropriada, bem certa, já que foi aqui que ficou famoso. Afinal de contas, foi o Rio que fez o senhor‟” (MARSHALL, 1988, p. 11)2, Caliban responde secamente: “„Claro‟” (p.11).

Ao dizer “foi o Rio que fez você” é possível levantar um debate acerca do lugar como construtor de identidades. O Rio, com seu crescimento espantoso e consequente turbulência na vida social, faz com que seus habitantes passem a agir conforme a velocidade de seu crescimento. Essa reflexão torna-se necessária visto que Caliban também sente a urgência de estar sempre pronto para seu público. Sua intenção é arrancar sorrisos e gargalhadas de seus espectadores, através de suas piadas. Ao dedicar-se quase que exclusivamente a sua vida

2

Todas as citações seguintes desse conto foram tiradas dessa tradução, e somente mencionaremos o número da página, nas próximas citações.

(6)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

131 artística ou ao seu trabalho, incorpora seu personagem com tanta fidelidade que acaba confundindo ficção e realidade: Heitor transforma-se em O Grande Caliban e a sociedade carioca e seus amigos, familiares e colegas também passam a reconhecê-lo como aquele que vive para alegrar as pessoas, o famoso Caliban.

A fim de ressaltar o prestígio do comediante perante o Rio de Janeiro, Henriques declara convictamente: “„o Rio todo vai chorar se lembrando de sua grandeza...” (p. 11). Essa afirmação, novamente, aponta para a ideia, que vimos pautando, de que o lugar também sofre influência de seus habitantes. Percebemos que, na concepção de Henriques, Caliban é tão vital à Casa Samba e ao Rio de Janeiro que a estrutura emocional da cidade será abalada ao perder o astro do humor. Ainda que exagerada, reafirma-se, nessa declaração, a reciprocidade entre identidade e lugar, pois ambos modificam-se mutuamente.

Quanto à paisagem urbana, evidenciamos alguns trechos de descrições sobre ela, especialmente ao falar de pontos turísticos famosos, como o Pão de Açúcar e as calçadas de Copacabana, as favelas e os morros. Em uma noite, quando Caliban sai da casa de shows para ir a sua casa, antes de entrar no carro, para e observa a paisagem ao seu redor, pensando na despedida dos palcos nos próximos dias. Essa pausa torna-se para o leitor uma possibilidade de tomar conhecimento sobre a paisagem do Rio, especificamente do ponto onde está construída a Casa e seus arredores.

A Casa Samba fora construída na ladeira que levava ao Pão de Açúcar e, ao caminhar na direção do carro, Caliban estava consciente, como se fosse a primeira vez, do cone sólido e alto da montanha negra erguida contra o escuro menor do céu, benevolente, protegendo a cidade adormecida. Conseguiu distinguir o cabo do bondinho suspenso por uma linha frágil entre o Pão de Açúcar e o Morro da Urca (p. 15).

O Corcovado também é mencionado no texto como a “montanha do Cristo” (p. 17). É próximo a ele que Caliban constrói a sua moderna casa de vidro. Ao chegar em casa, após a pausa para observar a paisagem que cercava a Casa Samba, ele se dirige ao quarto e vê sua esposa, grávida, dormindo. Prefere, então, deixá-la sozinha e vai até outro quarto, a fim de descansar dos problemas, que neste momento da narrativa são a tentativa de reafirmação de sua identidade como Heitor Guimarães e a aposentadoria, a qual vem tumultuando seus pensamentos. O interior da casa encontra-se revestido de vida e sentido, constituindo-se tanto em refúgio, como lugar de interação com a esposa e, relicário, onde guarda as imagens que provam seu sucesso artístico, reforçando sua identidade como Caliban. Todas as suas ações,

(7)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

132 desde chegar a sua casa, dirigir-se ao isolado quarto, e a sequência até o momento em que acorda no outro dia são minuciosamente descritas. Além disso, a localização dos cômodos da casa pelos quais ele passa também é referida. Por tais motivos, torna-se necessária a transcrição destas passagens:

Foi andando pelo pátio interno, passou pela sala e pegou o corredor na direção dos quartos [...]. Parou em frente à porta aberta do quarto principal. Não podia ouvir a respiração da mulher mas conseguia vê-la, sob a pequena e firme luz da vela que ficava diante da Madona, no oratório perto da cama. [...] Fechou a porta e foi até o pequeno cômodo no final do corredor, que usava como um refúgio, e esticou-se na pequena cama que lá mantinha, sem se despir. Sempre como ocorria quando havia algum problema, dormiu rápido [...]. De repente, a luz jorrou sobre ele vinda de um lado da mina e ele acordou com o sol da tarde que invadira o cômodo. Igual a um boêmio, o sol foi dançando alegre pelas fotos emolduradas nas paredes (eram todas de Caliban, uma com o Presidente do Brasil durante o carnaval de 1946 e outra com Carmem Miranda, um ano antes da morte dela), nas lembranças e prêmios sobre a mesa; a luz saltou sobre o chão e pousou bem nos braços de sua esposa, quando ela abriu a porta (p. 18).

A casa de Caliban e Clara constitui-se em testemunho do convívio de ambos. As paredes ostentam fotos de Caliban enobrecido pela fama. O domicílio é de vidro, e reflete a fragilidade dos sentimentos pela qual ele está passando, bem como a transparência dessa fragilidade aos seus amigos, pois é percebida por todos. O quarto, que o comediante denomina seu refúgio é “pequeno”, no “final do corredor” e possui uma “pequena cama”. Através desses adjetivos, que descrevem o ambiente como sendo privado de conforto e alegria, podemos perceber que também Caliban sente-se angustiado, por encontrar-se em desequilíbrio. Dessa forma, o lar do casal reflete seu estado emocional; como todo reflexo, é uma relação mútua, de trocas.

É na casa de Caliban que podemos analisar também a categoria espacial território. Vimos que o território diferencia-se do lugar por nele apresentarem-se relações de poder. Caliban comporta-se com Clara como um patriarca, chefiando a casa e as decisões familiares. Quando esta sugere-lhe ficarem no Rio até a chegada do bebê, ele responde que não, pois não quer ver seu filho ser chamado de carioca. Sabendo que ele não cederia - pois já conhece seu marido -, ela concorda submissamente: “„Está bem, Caliban‟” (p. 19).

O poder de Caliban, no entanto, às vezes transforma-se em violência, quando é retrucado e não compreendido. Quando ela afirma não saber quem é Heitor Guimarães e procurará a pessoa que atende por esse nome, Caliban desespera-se e a agride:

(8)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

133

Não ficou claro se ele arremessou a xícara nela ou no chão, mas não acertou a mulher. A luz do sol correu da sala quando a xícara se quebrou no chão e o café derramado espalhou uma mancha negra entre eles. „E quem você vai procurar?‟. O grito estridente dele tinha a mesma raiva abstrata da noite anterior. „Quem? Fala!! Um garoto da sua idade, talvez? Um garotão alto, bonitão, hein, algum carioca que vai dançar o Carnaval e sacudir você na minha cama, pelas minhas costas? É ele que você vai procurar?‟ (p. 20).

Clara permanece em silêncio, tentando proteger o filho no ventre. Torna-se evidente que Caliban tem o poder na casa e usufrui dele. No lar da amante também ele age dessa maneira. Ao compor todo o apartamento com móveis de luxo e ter liberdade para entrar à hora em que quiser, torna-se alguém com poderes em relação ao lugar e à Miranda. Chega a impor seu poder até mesmo sobre a empregada da casa, Luiza. Esta fazia as unhas de Miranda para o show daquela noite na Casa Samba, quando Caliban chega, depois da busca infrutífera pela identidade de Heitor, e ordena-lhe que vá para casa. Vejamos, no diálogo a seguir, como Caliban chega a se sobrepor às ordens que Miranda dá à empregada:

„Vai para casa, Luiza‟, ele disse em voz baixa.

Miranda deu um grito que fez balançar e derramar o vidro de esmalte da sua mão, manchando de vermelho a colcha rosa. „Não, Luiza...‟. Esticou o braço tentando segurar a garota. „Espera, Luiza..‟.

„Vai para casa, Luiza‟, ele repetiu.

A garota se levantou então como se tivesse sido jogada em pé e, segurando a bacia de água, olhou dele para Miranda durante um só instante agoniado e correu em direção à porta, a água derramando no tapete. Quando ela passou por ele, Caliban disse gentilmente, „Boa noite, Luiza‟, e fechou a porta.

„Luiza!’ (p. 33).

No início do conto, entretanto, percebemos a inversão de poder entre Miranda e Caliban. Ao perceber que Caliban sentira uma fisgada em um movimento corporal, e pressentindo que não poderiam terminar a apresentação como de costume, ela improvisa e assume a posição de “mais forte” em relação à Caliban. A cena que eles dramatizam tem a comicidade baseada nessa inversão de poder:

Miranda retornou para um finale breve e glamoroso e inverteu os papéis bem na hora de acabar, levantando Caliban com uma das mãos e marchando triunfalmente para fora do palco, com ele chutando e agitando os pequenos braços bem acima da cabeça dela (p. 5).

Caliban também a agride, pois não admite perder a posição de estrela da noite para sua colega que, segundo ele, sempre fora menos talentosa. Ele gosta do poder, da fama e dos

(9)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

134 aplausos. Sentindo-se inferior à Miranda, e respondendo à pergunta de Miranda sobre possíveis erros durante a performance do personagem, percebemos insatisfação e raiva:

„Agora o quê é que eu fiz de errado?‟ [...]

„Tudo‟, ele disse calmamente. „Você fez tudo errado. Você estava horrível‟. „Você também‟.

„É, mas foi só por sua causa‟.

„Safado, sempre que tem algo preocupando ou você se sente mal, joga culpa em mim. Juro que você é que nem mulher querendo mudar de vida. Ninguém mandou você forçar tanto as pernas naquele número. Você está velho demais. Devia se aposentar. Você já era‟.

„Cala a boca!‟ [...]

„Sua vaca‟, disse ele, e abriu a porta do camarim. [...] „Sua cachorra estéril!‟ (p. 5-6).

Retornando às considerações sobre o Rio de Janeiro e Caliban, podemos notar que, apesar de o Rio ter sido o lugar onde construiu seu sucesso, o ator mantém com a cidade uma relação ambivalente. Agora, quando se vê na iminência de perder os vínculos com o lugar que forjou sua identidade como Caliban, culpa a cidade por seu e desencontro e infelicidade. O desprezo pelo Rio é tamanho que propõe a sua esposa, Clara, que seu filho nasça em Minas Gerais, sua terra natal, pois não quer ver o filho “nascer no Rio e ser chamado de carioca” (p. 19). Já Clara sente-se feliz no Rio e não gosta da ideia de retornar a Minas.

Aqui cabe ressaltar que o lugar interfere de forma diferente na construção da identidade das pessoas. O mesmo ambiente tanto pode influenciar positiva como negativamente seus habitantes, pois cada um tem seus desejos e preferências, e se identifica ou não com o lugar onde reside. Para Caliban, o Rio lhe trouxe a fama, mas também um vazio e o não reconhecimento de quem ele é. Seu desassossego torna-se cruel, pois a cada dia que passa se martiriza em perceber que se distanciou imensamente do Heitor Guimarães. O Grande Caliban torna-se a sua realidade e talvez nem Minas Gerais consiga lhe trazer a paz que almeja. Tudo dependeria da afinidade que Caliban empreenderia com aquele lugar e como o próprio lugar o receberia para viver em sociedade. Já para sua esposa, o Rio lhe trazia, acima de tudo, conforto e prestígio, por ser a esposa do famoso artista. Antes de vir para esta cidade tinha uma vida humilde, e a fama do marido lhe trouxera bens materiais que, agora, sente medo de perder. Quando percebe que Caliban lhe garante uma vida tão confortável em Minas como tem no Rio, muda a estratégia, fala do carnaval, que segundo ela faz do Rio de Janeiro um lugar bom de morar, e do filho que nascerá.

(10)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

135 Percebemos, então, que Clara não é tão ingênua como Caliban pensa. Primeiramente tenta convencê-lo com argumentos racionais, que pretendem enfatizar a importância em valorizar o trabalho e a bela casa de Caliban; em seguida, parte para argumentos emocionais, usando o filho que está por nascer para conseguir a sua permanência na cidade do Rio: “„É. Mas tem o nosso filho. Seria bom se nascesse no Rio. Talvez depois do filho a gente podia voltar para Minas‟” (p. 19). No entanto, ele responde categoricamente: “„Não‟” (p. 19).

Na busca incessante em saber como era antes de tornar-se o famoso Caliban resolve procurar seus amigos de outrora. Mas a única referência é a Rua da Glória, também no Rio de Janeiro. Ao descer o morro onde mora a fim de alcançar à Rua, eis mais um relato da paisagem urbana:

À medida que o carro descia as estradas da montanha, o mar foi aparecendo, vasto e benigno, refletindo a lividez do céu e partindo a imagem do sol em fragmentos; depois as enseadas na baía – as curvas firmes e graciosas, formando um arabesco entremeado por morros – e, finalmente, a própria cidade – branca, opulenta, lânguida sob as carícias do sol, tirando agora a sesta da tarde em preparação para a noite (p. 22).

A paisagem, tão positivamente descrita, contrasta com os sentimentos que Caliban experimenta. Sente-se em conflito, triste, agoniado e desencontrado. Enquanto isso, a paisagem continua bela, especialmente à noite, quando se prepara em clima de romantismo, próprio dos amantes, e de festa. Os adjetivos utilizados para qualificar a cidade, como “curvas firmes graciosas”, “branca”, “opulenta”, “lânguida” também nos induzem a pensar em amantes que se preparam para um encontro. Pela descrição acima, fica implícito que é à noite que a cidade do Rio converte-se plenamente em amante, oferecendo-se em sua plenitude aos cariocas.

Quando chega à Rua da Glória, que fica na parte mais antiga do Rio, Caliban encontra a casa em que morava em ruínas, mas segue ao reencontro do restaurante onde trabalhou há anos atrás. Mais ao fim da rua encontra-o, embora bastante modificado:

O piso de cerâmica brilhante na entrada [...] todo quebrado, e a soleira de pedra na porta com os velhos arranhões ainda mais profundos. No lugar onde estivera o toldo, um enorme cartaz dizia BEBA COCA COLA e logo abaixo, na moderna fachada de vidro, estava o nome do restaurante: RESTAURANTE O GRANDE CALIBAN (p. 23).

(11)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

136 O restaurante também é um lugar, considerando as categorias espaciais, pois é formado a partir de marcas pessoais ou intervenções humanas. Pode-se dizer que esse lugar teve importância na fase de transição do trabalho de garçom para a carreira de artista de Caliban. Tem parcela maior de contribuição na formação da entidade d‟O Grande Caliban na sua fase inicial, pois foi por intermédio de seu patrão que foi levado a prestar o concurso no Teatro Municipal que o levou aos palcos. A partir da ida de Caliban para a Casa Samba, é este o lugar que passa a influenciá-lo, e não mais o restaurante. Portanto, O GRANDE CALIBAN - o bar - tem maior influência na vida e na identidade de Heitor Guimarães, pois era chamado por seu nome de batismo quando lá trabalhava. Por esse motivo, Caliban pensa poder recuperar a identidade do cidadão Heitor Guimarães através da visita ao local. A história, porém, já havia interferido tanto em sua história pessoal como na daquele lugar, rendendo a busca infrutífera.

O Restaurante, pelo próprio nome, demonstra ter sofrido influências de Caliban. Não somente o local abalara a identidade de Heitor e Caliban como também o local fora constituído, mantido e nomeado pela passagem de Caliban ali, há anos atrás. O simples bar que se apresentava enquanto Heitor lá trabalhava torna-se, após a fama do comediante, local de reconhecimento nas redondezas da Rua da Glória.

Caliban observa as paredes com fotos suas pregadas por todos os lados e um retrato enorme pintado à mão. O senhor gordo que agora é o proprietário do bar afirma ter sido o velho Nascimento, tio-avô do dono anterior, que colocara as fotos na parede. Após conseguir o endereço do velho, vai até lá. Sua casa localiza-se em uma favela atrás de Copacabana. Caliban esforça-se ao subir a ladeira, entre buracos e olhares curiosos, pois está vestido com roupas de luxo e porta anéis brilhantes. O aspecto visual da favela ou o seu caráter paisagístico estão bem descritos na passagem abaixo, e contrastam com a visão romântica daquela cidade, a de um cartão-postal luxuoso:

Podia ver, logo acima, o começo da favela – um viveiro vasto e imundo para os pobres do Rio se agarrarem ao morro sobre Copacabana, um ninho de barracos construídos com os dejetos da cidade. Caixas de papelão e caixotes descartados, pedaços de zinco e latão, tábuas carcomidas e cascalho – tudo isso empilhado em confusas fileiras ao longo do morro, os pedaços de madeira desbotados pelo sol. A favela era outra cidade sobre o Rio e, atrevida, roubava a eletricidade da cidade de baixo – de forma que, à noite, as montanhas ficavam cobertas de luz – e repelia os esforços do governo em retirá-la dali (p. 26).

(12)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

137 Deparamo-nos, aqui, com algo digno de comparação. No relato acima, o narrador sugere uma sobreposição da favela sobre a cidade; também acontece com a questão identitária uma sobreposição, ou seja, o personagem Caliban se sobrepõe à identidade do Heitor Guimarães ao longo dos anos. Tal como a favela se agarra ao morro sobre Copacabana, Caliban apega-se ao corpo de Heitor, sufocando-o e confundindo-o.

Com a ajuda de alguns meninos, Caliban consegue chegar ao velho Nascimento. Ele mora em um casebre que exala miséria e degradação por todos os lados; há um coqueiro morto plantado ao lado do barraco, que é de tábuas velhas, zinco e sapê. Ainda antes de entrar nesse lugar, Caliban lembra-se do velho, quando lhe mandava todos os dias abaixar o toldo para proteger o restaurante do sol, e quando, à noite, ordenava-lhe contar piadas a fim de fazer os clientes beberem até tarde.

Tanto a favela como o casebre são lugares que, no momento da narrativa, influenciam Caliban na sua nova posição de identidade, pois ao querer ser Heitor e deixar de ser O Grande Caliban, outra identidade parece surgir. Diferentemente da Casa Samba e do Rio de Janeiro, que impulsionaram a criação de sua identidade artística, a favela e o casebre do Nascimento consistem em lugares que, imagina, facilitarão a recuperação da identidade de Heitor.

Para desespero do comediante, o velho Nascimento também não conhece nenhum Heitor, apenas O Grande Caliban. Desce o morro de volta, em disparada, pois percebe que sua busca foi inútil: “O dia parecia estar se fechando sobre ele, espremendo sua vida, e o pânico que sentiu foi como uma agulhada no corpo ao correr para fora, esquecendo de fechar a porta atrás de si” (p. 30). A noite, que se aproxima, lembra-lhe que todos os dias, nessa hora, o seu personagem Caliban se apresenta na Casa Samba. Mesmo sabendo que nesta noite não se apresentaria, o fantasma do personagem lhe aflige, desconcertando-o. Todos os dias cumpria-se este ritual: a noite cumpria-se aproxima, as luzes são acesas, as pessoas saem às ruas, Caliban e Miranda se apresentam e encerram sobre aplausos, completando a festa. Tal clima de folia e alegria lhe custara a imposição de uma máscara que agora luta para retirar.

Na descida do morro há, novamente, descrição da paisagem urbana: “quando Caliban passou pelo túnel e entrou na estrada que faz a grande curva da Baía de Copacabana, viu luzes surgirem nos apartamentos e hotéis empilhados como rochedos brancos e angulares contra o fundo de morros negros” (p. 31). A claridade da cidade em oposição à escuridão da favela revela-nos os contrastes entre ambos os lugares: econômicos, visuais e identitários. Enquanto a cidade é descrita como a favorita, por exalar beleza e harmonia, ornada com belos prédios e iluminada por luzes, a favela representa a pobreza, a desordem e os problemas.

(13)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

138 Em seguida, o narrador expõe ao leitor a angústia de Caliban em viver naquela cidade que de alguma forma “o fizera”. Quando chegou ao Rio, Caliban se apaixonou por aquele lugar e passou a amá-lo até o dia em que resolve se aposentar. Em meio a tantas reflexões que florescem ultimamente em sua mente, pensa que todo aquele amor devoto só lhe servira para tumultuar a sua vida. Percebe que seu sucesso em nada tinha favorecido aquele lugar, que tudo fora ilusão, tanto sua fama como o amor que pensara ter adquirido pelos cariocas. Tinham sido amantes, ele e o Rio, no entanto, agora o Rio parece desprezar-lhe. Talvez sempre o desprezara, sem que percebesse. A cidade é agora, para ele, amante indiferente, e quer deixar de amá-la:

Caliban tinha sido um de seus amantes, mas ao cruzar a cidade de carro sentiu a indiferença dela à sua confusão, à sensação de ter perdido algo que permanecera sem nome; além do mais, suspeitava que ela, a cidade, fora inclusive indiferente ao seu sucesso. [...] Caliban odiou-a de repente... (p. 31).

Enquanto ainda é possuído pela raiva à cidade, lembra-se de Miranda, sua colega e amante, e transfere todo o ódio a ela. A fim de descontar aquele sentimento de fúria, dirige-se ao apartamento em que Miranda mora, em Copacabana, que fora totalmente decorado por ele. Pela tristeza ainda maior de Caliban, aquele lugar reflete o Rio de Janeiro:

O piso do saguão em grandes quadrados em preto e branco sugeria não só os austeros prédios brancos, erguidos contra os morros negros, e as calçadas de Copacabana – um mosaico cuidadosamente elaborado de pequenas pedras brancas e negras -, mas também os rostos dos próprios cariocas, combinações sem fim de preto e branco. O tapete verde na sala de estar poderia ser uma amostra recortada de um dos morros, enquanto o resto da decoração – as peças antigas muito elaboradas, com acabamento de marfim, mesas de mármore repletas de estatuetas, sofás estofados em seda branca, com penas de ganso, cortinas brancas e espelhos de moldura dourada – repetia a opulência, a falta de controle, a brancura exuberante da cidade. E os lustres com as lanças faiscantes de cristal [...] capturavam a luminosidade do Rio à noite (p. 31; 32).

O apartamento de Miranda é, para Caliban, um lugar que também o reflete, bem como ao Rio de Janeiro, e, dessa forma, torna-se um lugar formador de sua identidade: “pela primeira vez Caliban tomou consciência de quanto a sala representava a cidade e ele próprio” (p. 32). O local não remete às lembranças do antigo garçom, mas às do famoso comediante. A decoração é fruto de seu trabalho como O Grande Caliban e, portanto, lá nada pode fazer ressurgir o passado, que é longínquo. Torna-se difícil restabelecer, ali, a identidade de Heitor. Mesmo a relação com Miranda reafirma sua identidade artística: afinal, veio dela a sugestão

(14)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

139 do nome Caliban, que tantos aplausos arrancou do público, mas que agora é nome que ele despreza; sua relação com ela, não interrompida após o casamento, faz com que continue visitando assiduamente esse apartamento, tão ligado à memória de sua vida artística.

Caliban, nervoso, pergunta a Miranda se ela conhece algum Heitor Guimarães. Ela fica perplexa, pois imagina que esteja acusando-a de infidelidade. Caliban então diz: “ „Eu sou Heitor Guimarães‟ ” (p. 35). Miranda afirma estar louco, porque “ „você é Caliban. O Grande Caliban‟ ” (p. 35). O nome Heitor torna-se irreconhecível naquela casa, pois nem o próprio Caliban tem certeza de quem realmente é. Então, destrói todo o apartamento que tinha adquirido e montado com o dinheiro proveniente de sua identidade artística.

O conto termina com a fúria do comediante: quebra o apartamento de sua amante e foge, após, em direção ao elevador. Sem perceber, repele a Miranda, assim como o Rio, sua amante, o rejeitara, segundo suas próprias palavras. Talvez, nesse momento, Caliban tenha se lembrado do que dissera Henriques, quando lhe confessara, logo no começo do conto, que iria abandonar Miranda. Henriques o tranquilizara, dizendo que o Rio e Miranda eram iguais, pois sempre teriam alguém para gostar deles. Então, Caliban não necessitaria ficar com remorso. Tanto o Rio como Miranda não mereciam mais sua atenção, pois o enganaram ao pensar que era importante para eles. Na sequência, Miranda chora e insiste em chamá-lo de Caliban, pois para ela, assim como para todas as outras pessoas que ele havia tentado convencer de que era Heitor Guimarães, ele sempre foi O Grande Caliban e assim continuaria sendo.

A paisagem urbana, no conto, vem a revelar as contradições daquela cidade: em um lugar internacionalmente reconhecido pela beleza, comparado a um paraíso, há também a presença da favela. De forma análoga, sob a máscara alegre e irreverente de O Grande Caliban, oculta-se um homem triste, atormentado e confuso com relação a sua própria identidade.

Considerações finais

Ao findar esta análise, reafirmamos a relevância das categorias espaciais e as relações entre estas e o processo de formação identitária através da qual o sujeito tanto deixa sua marca no lugar por ele ocupado, como é marcado por ele.

O espaço e suas categorias, presentes na narrativa, foram instigadores do processo de (des)construção identitária do personagem O Grande Caliban; semelhantemente, ele marcou os lugares por que passou. Evidencia-se, dessa forma, a relação dialética entre o espaço e o

(15)

Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 7, p. 126-140, ago.-dez., 2010. Recebido em 18 out;

aceito em 17 nov. 2010.

140 habitante: neste caso, entre o Rio de Janeiro e Caliban, entre a cidade e o personagem ficcional de Marshall.

ABSTRACT: This study analyzes the intersections between urban territory and the literature departing from the

character Caliban in Paule Marshall‟s short story "Brazil". It will be made an analysis of the dialectic relationship among the protagonist and the space where he circulates, since both are built starting from the relationships that imbricate to each other. In "Brazil", the space has great relevance because it is intimately associated the character, influencing him in the attitudes, thoughts and in the formation of his cultural identity. Inversely, Caliban leaves his mark in the places where he passed, showing with clearness the narrows relationship between the space and the inhabitant, or between Rio de Janeiro and Caliban.

KEYWORDS: Urban territory. Caliban. Space. Dialectic relationship.

Referências

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999.

CUNHA, Maria Isabel da. Os conceitos de espaço, lugar e território nos processos analíticos da formação dos docentes universitários. Revista Educação Unisinos. v. 12, n. 3, set.-dez.

2008. p. 182-186. Disponível em: <

http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_educacao/vol12n3/182a1 86_art03_cunha.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2010.

GOMES, Renato Cordeiro. Cartografias urbanas: representações da cidade na Literatura. In:

Revista Semear I. Rio de Janeiro, n. 1. 1994. Disponível em:

<http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/1Sem_12.html>. Acesso em: 20 out. 2010.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

MARSHALL, Paule. Brasil. Trad. Diego Rodrigues. Revisão de Stelamaris Coser. p. 1-37. [mimeo].

____. Brazil. In: ____. Soul Clap Hands and Sing. Washington: Howard University Press, 1988. p. 131-177.

MOURÃO, Ada Raquel Teixeira; CAVALCANTE, Sylvia. O processo de construção do lugar e da identidade dos moradores de uma cidade reinventada. Revista Estudos de

Psicologia, v. 11, n. 2, maio – ago. de 2006. p. 143-151. Disponível em:

<http://redalyc.uaemex.mx/pdf/261/26111203.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2010.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999.

SUERTEGARAY, D. M. A. Espaço geográfico: uno e múltiplo. In: SUERTEGARAY, D. M. A.; BASSO, A.; VERDUM, R. (Orgs.). Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2000. p. 13-34.

Referências

Documentos relacionados

de professores, contudo, os resultados encontrados dão conta de que este aspecto constitui-se em preocupação para gestores de escola e da sede da SEduc/AM, em

De acordo com o Consed (2011), o cursista deve ter em mente os pressupostos básicos que sustentam a formulação do Progestão, tanto do ponto de vista do gerenciamento

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

Realizar a manipulação, o armazenamento e o processamento dessa massa enorme de dados utilizando os bancos de dados relacionais se mostrou ineficiente, pois o

hands of the judiciary, a sort of way to apply effectively regulated justice, not an extension of justice, it is not king acting through its apparatus of justice, the king is

Por fim, na terceira parte, o artigo se propõe a apresentar uma perspectiva para o ensino de agroecologia, com aporte no marco teórico e epistemológico da abordagem

Neste tipo de situações, os valores da propriedade cuisine da classe Restaurant deixam de ser apenas “valores” sem semântica a apresentar (possivelmente) numa caixa