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REFLEXÕES SOBRE O BANCO CENTRAL DO BRASIL

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Academic year: 2021

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REFLEXÕES SOBRE O BANCO CENTRAL DO BRASIL

Cláudio Jaloretto Versão preliminar Dez/2015 Pico Della Mirandola em seu “Oratio de Hominis Dignitate” dizia que o homem traz em seu gene duas espécies de vida: a divina e a animal; ele pode evoluir até se tornar um anjo ou degenerar-se até se transformar em uma fera. Tudo depende de sua vontade, de seu próprio arbítrio.

O Banco Central do Brasil padece dessa mesma dualidade ou dupla personalidade. Ele é uma avis rara, única e carrega consigo duas espécies de pessoa jurídica: a de uma instituição financeira e a de agência governamental. Ele pode também evoluir até se tornar uma instituição financeira plena, independente, autônoma ou degradar-se até se transformar em uma mera e burocrática repartição pública.

A diferença com o homem de Della Mirandola é que a transformação ou evolução não depende apenas dele. Depende de outras forças ou vontades externas, sintetizadas naquilo que convencionamos chamar, genericamente, de sociedade.

Essas forças, próprias de um regime democrático, às vezes antagônicas, por vezes terríveis como na renúncia de Jânio ou ocultas como no bilhete de Getúlio, é que tornam árdua a busca de identidade do banco central brasileiro. A própria história de sua criação ilustra essas dificuldades.

Concebido em 1931, pela Missão Niemeyer e fundado após 20 anos da criação de seu embrião, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), o Banco Central do Brasil (Bacen) nasceu com autonomia formal1 e orçamentária2, mas tinha que compartilhar seu poder com o Banco do Brasil, seu irmão mais velho e perdulário. Foram precisos mais 20 anos para que o Bacen finalmente ocupasse seu devido lugar e tivesse em mãos os instrumentos necessários para gerenciar a política monetária e

1

Originalmente a diretoria do Bacen era formada por 4 membros com mandato fixo de seis anos (Lei 4595/64, art. 14, combinado com o inciso VI do art. 6º original).

2 Parágrafo único do art. 8º da Lei 4595/64: “Os resultados obtidos pelo Banco Central da República do

Brasil serão incorporados ao seu patrimônio”. Esse parágrafo foi alterado pelo DL 2376 de 25/11/87, que determinou que os resultados positivos deveriam ser transferidos ao Tesouro Nacional.

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cambial do País. Nesse entretempo, perdeu sua autonomia formal e orçamentária e ganhou, de quebra, a Conta Única do Tesouro3 e o tabelamento dos juros reais4.

Esse rápido retrospecto demonstra que o caminho do Bacen até atingir sua autonomia plena ainda será árduo e difícil, decorrente em boa parte do não entendimento de suas funções pelos agentes políticos, seja por questões ideológicas, seja por receio de eventual perda de poder político.

Para atingir sua maioridade, no entanto, o Bacen precisa enfrentar algumas questões além daquelas tradicionalmente relacionadas à autonomia formal, quais sejam: a solução ou, pelo menos, um melhor entendimento de sua dualidade como instituição pública, a questão de ser depositário das disponibilidades da União e as relações entre emissão de moeda e financiamento do Tesouro. São os aspectos que serão abordados a seguir.

O duplo orçamento

Como agência ou autarquia governamental, o Bacen atua como regulador do sistema financeiro nacional e formulador da política monetária e, como instituição financeira é o depositário dos recursos da União, detentor das reservas internacionais do país e negociador no mercado interno de títulos públicos. Não há como dissociar as duas funções posto que, na execução da política monetária, transaciona com os diversos agentes seja na operação com títulos, seja com reservas cambiais, seja como depositário dos recolhimentos compulsórios e, na função de regulador do sistema financeiro, atua tanto na fiscalização dos agentes quanto na gestão dos recursos compulsórios.

Dessa dualidade resultam várias distorções e inconsistências. É obrigado, na prática, a manter duas contabilidades distintas, aquela que submete suas contas (ou parte delas) aos critérios da contabilidade pública e a outra em que se obriga a manter e divulgar balanço contábil elaborado sob critérios contábeis privados, gerando e distribuindo a seu controlador o resultado (lucro ou prejuízo).

Em termos orçamentários, não faz o menor sentido o Bacen submeter toda a sua atividade aos princípios da contabilidade pública. As ações decorrentes de sua função como instituição financeira não podem se submeter ao rito anual do processo

3 Parágrafo 3º do art. 164 da Constituição Federal.

4 O parágrafo 3º do art. 192 da CF determinava que os juros reais fossem limitados a 12% a.a.;

afortunadamente a regulamentação nunca foi feita, até que a Emenda Constitucional nº 40, de 2003, revogou esse dispositivo.

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orçamentário. É só imaginar o Bacen tendo que cumprir todos os passos da burocracia orçamentária para, por exemplo, efetuar uma operação compromissada de compra de títulos públicos. Antes de negociar com o vendedor do título, ele teria que verificar a existência de dotação orçamentária, fazer o empenho dos recursos, fazer a liquidação do empenho e, finalmente, efetuar o pagamento.

Antes da Constituição Federal de 1988, o Bacen não submetia suas contas ao crivo do orçamento público. Suas operações, receitas e despesas obedeciam ao receituário da contabilidade privada e seu orçamento era aprovado pelo Conselho Monetário Nacional - CMN. Com a promulgação da Constituição, que consagrou o princípio da unicidade orçamentária, houve o questionamento e a demanda para a inclusão das contas do Bacen no orçamento.

O entendimento sobre a matéria convergiu para a utilização de dois orçamentos para o Bacen: o orçamento monetário5, que seria utilizado para a previsão de receitas e despesas relacionadas às operações de autoridade monetária, ou de instituição financeira, e que é aprovado pelo CMN; e o orçamento administrativo, cujas receitas e despesas passaram a integrar a lei orçamentária da União.

Essa dualidade foi reconhecida na LDO de 19896 e replicada nas leis dos anos subsequentes. Com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, houve a fixação explícita de quais despesas deveriam integrar o Orçamento Geral da União - OGU, quais sejam: as despesas com pessoal e encargos sociais, custeio administrativo e investimentos7. Por outro lado, o orçamento da autoridade monetária inclui além das receitas e despesas operacionais do Bacen, as despesas de braceagem8 e as decorrentes do sistema de pagamentos e da administração das reservas internacionais. Em termos de relevância, o total do orçamento administrativo do Bacen corresponde a algo em torno de 1,5% do total das suas despesas.

5 Não deve ser confundido com o antigo orçamento monetário, do período em que o Bacen dividia suas

funções de autoridade monetária com o Banco do Brasil.

6 Lei nº 7800 de 10/7/89.

7 Essa definição foi estabelecida após um longo debate com o relator da LRF na Câmara, que insistia na

inclusão no OGU de todas as operações do Bacen, sob o argumento pífio de que o Banco Central, ao emitir títulos para a execução da política monetária, estaria aumentando a dívida pública e, por consequência, estaria camuflando despesas. Esse debate, além da definição das despesas que integrariam o OGU, resultou na proibição do Bacen emitir títulos.

8 É resgatado aqui um termo em desuso pelo menos desde que a moeda deixou de ter valor intrínseco ou

desde que a cunhagem de moeda, na idade média, deixou de ser uma atividade privada; significa custo de emissão de moeda.

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Na prática, as despesas não financeiras9 do Bacen, com as exceções acima citadas, transitam pelo OGU e são pagas pelo Tesouro; contabilmente, o Bacen registra em seu balanço a totalidade de suas despesas e, como receita, a transferência recebida pelo Tesouro, apurando o resultado final que será transferido a este, ou seja, há apenas o trânsito de recursos entre Bacen e Tesouro Nacional - TN que diverge no tempo e na fonte orçamentária.

A questão subjacente a esse mecanismo é que o orçamento administrativo do Bacen faz parte do orçamento do Ministério da Fazenda, responsável pela gestão da política fiscal, tornando a gestão da política monetária dependente da gestão daquela política. Embora em valores não relevantes, o contingenciamento das despesas administrativas do Bacen pode afetar a capacidade deste de cumprir suas funções e, no extremo, tornar o Bacen vulnerável a eventual pressão sobre sua atuação, mesmo que venha a ter sua autonomia formal.

Disponibilidades do Tesouro no Bacen

A unificação dos recursos de caixa do Tesouro foi um grande avanço em termos de gestão orçamentária, tendo o processo se iniciado no ano de 1979, quando o Decreto-Lei nº 1755/79 estabeleceu a obrigatoriedade de todas as receitas federais serem recolhidas à conta do Tesouro Nacional no Banco do Brasil.

A criação do caixa único obedece ao principio de unicidade orçamentária e foi formalmente implantado no bojo do processo de reorganização financeira do Governo Federal, ocorrido em meados da década de 80, inicialmente com os recursos depositados no Banco do Brasil e, a partir de 1987, no Banco Central do Brasil. A Constituição Federal de 1988, finalmente, determinou que as disponibilidades de caixa da União fossem depositadas no Banco Central.

A obrigatoriedade do depósito das disponibilidades da União no Bacen suscita algumas dúvidas sobre a remuneração desses depósitos e sobre se seria adequada a manutenção desses recursos no Banco Central, do ponto de vista fiscal e monetário.

Os recursos da União depositados no Banco Central são remunerados, o que torna a Conta Única um dos raros casos em que depósitos à vista são remunerados. Do ponto de vista contábil, é indiferente ela ser remunerada ou não, pois como o único

9 Não foi utilizado o termo “despesas primárias”, pois o conceito de resultado primário para as operações

do Bacen é, ou pelo menos deveria ser, diferente do conceito de resultado primário para o setor público não financeiro.

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acionista do Bacen é a União, essa despesa significa apenas um resultado menor na apuração do resultado. A diferença é apenas temporal. Porém, do ponto de vista fiscal, essa questão não é trivial. Um dos aspectos se refere à destinação dada a essa receita. Como o resultado do Bacen deve ser utilizado para resgate de títulos públicos em sua carteira, a remuneração da Conta Única também deveria ser utilizada para o mesmo fim. Outro aspecto diz respeito ao hedge dado às operações com títulos pelo Tesouro Nacional. Este pode administrar a colocação de títulos no mercado primário independentemente da necessidade de recursos vis a vis as condições de mercado, já que os recursos obtidos estarão sendo remunerados na Conta Única até a sua utilização. O problema é que o Tesouro pode arbitrar, nesse caso, também contra a Autoridade Monetária e, por consequência, contra a política monetária.

Quanto à manutenção das disponibilidades da União no Bacen ou no sistema financeiro, a primeira questão que se coloca é com relação ao impacto sobre a política monetária e sobre o sistema financeiro. Em termos numéricos, o saldo da Conta Única em dezembro/2014 correspondia a 10,7% do PIB e a aproximadamente 150% do patrimônio líquido dos dez maiores bancos do País, aí incluídos os três maiores bancos federais. Acresce o fato de que a carga tributária da união corresponde a aproximadamente 22% do PIB, o que dá uma ideia do fluxo anual das operações do Tesouro. Sem dúvida, o Tesouro Nacional é um grande cliente, com capacidade de trazer ruídos significativos em suas operações no sistema financeiro, ao buscar, por exemplo, uma melhor remuneração para suas disponibilidades.

Há que se considerar, também, o fato de que a manutenção das disponibilidades da União no sistema financeiro geraria a necessidade de recolhimento de parte desses recursos no Bacen sob a forma de depósito compulsório, não remunerado se os recursos forem à vista ou com remuneração se recursos depositados a prazo. Nesse aspecto, a manutenção das disponibilidades no Bacen tem o mesmo efeito de um depósito compulsório de 100%.

De outro lado, há que se considerar que a Conta Única como passivo do Bacen também provoca, dada a magnitude, volatilidade na condução diária da política monetária pois qualquer movimentação financeira do Tesouro repercute em variações líquidas nas reservas bancárias do sistema financeiro. Além disso, há sempre o risco de descoordenação das políticas fiscal e monetária. O saldo da Conta Única dá a dimensão

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do impacto de políticas divergentes, principalmente em um contexto de um eventual banco central autônomo face a um governo hostil.

Emissão de Moeda

O Banco Central do Brasil detém, desde sua fundação, o monopólio de emissão de moeda10 e essa foi uma das principais razões para a sua criação. A transferência desse monopólio, do Tesouro Nacional para o Bacen teve, basicamente, o objetivo de evitar o financiamento inflacionário via emissão de moeda.

O Bacen tem razoável proteção legal quanto a tentativas desse tipo: é proibido constitucionalmente de financiar o Tesouro, seu resultado não pode ser utilizado para o pagamento de despesas fiscais e há razoável entendimento das forças políticas quanto aos efeitos deletérios sobre a economia de uma emissão monetária sem controle.

A pergunta que se faz é se é possível, no arcabouço institucional atual, o financiamento do Tesouro pelo Banco Central. A resposta, no caso de financiamento direto, é não; no caso de financiamento indireto, a resposta é sempre positiva, dado que o resultado do Bacen é transferido ao Tesouro11. E não há nada irregular nisso. O que se deve evitar é a emissão monetária como fonte principal ou significativa de financiamento do déficit do governo. Reside aqui uma das razões porque o Bacen é consolidado ao Setor Público não Financeiro na mensuração do déficit abaixo da linha.

Um assunto que merece comentário nesse aspecto é com relação ao conceito de senhoriagem. Existem duas definições de senhoriagem, as quais embora apresentem resultados muito parecidos, são diferentes em sua essência: uma definição, mais comum e conhecida, é a de senhoriagem monetária, que mede a variação do passivo monetário do Banco Central e, portanto, mede o financiamento via emissão monetária e não a receita pela emissão de moeda. A outra definição é chamada de senhoriagem custo de oportunidade, e mede a receita do Bacen pelo fato de emitir uma dívida (ou passivo)12 que não paga juros. É essa receita que é transferida ao Tesouro via resultado do Banco Central.

10 Embora esse monopólio tenha sido quebrado de várias formas durante o período de hiperinflação, por o

Bacen não desempenhar adequadamente sua função de “guardião da moeda”.

11

O resultado do Bacen é derivado, basicamente, dos ganhos com senhoriagem.

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Conclusões

Na busca pela evolução virtuosa, como no caso do homem de Della Mirandola, o Banco Central do Brasil ainda tem um longo trabalho pela frente, seja em termos de convencimento das diversas forças políticas, seja em termos de discussão entre os formuladores de política econômica. Até alcançar esse objetivo maior, vemos que há ainda um longo trecho a ser percorrido, via entendimento mais claro e objetivo do papel e das funções do Bacen e via mudanças institucionais que assegurem a ele a possibilidade de cumprir sua missão da forma mais adequada e eficiente possível.

Referências

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