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Dores do corpo e dores da alma : o estigma da tuberculose entre homem e mulheres acometidos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

Ana Consuelo Alves da Silva

Dores do Corpo e Dores da Alma:

o estigma da tuberculose entre homens e mulheres acometidos

Doutorado em Educação na Área de Concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, sob a orientação da Profa. Doutora Letícia Bicalho Canêdo.

Campinas - SP 2009

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© by Ana Consuelo Alves da Silva, 2009.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP

Título em inglês : Pains of the body and pains of the soul: the stigma of tuberculosis between men and women Keywords : Tuberculosis ; Stigma (Social psychology) ; Sex – Difference ; Social isolation ; Patient’s - Perception Área de concentração : Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte

Titulação : Doutora em Educação

Banca examinadora :Profª. Drª. Letícia Canedo Bicalho (Orientadora) Prof. Dr. Claudio Bertolli Filho

Profª. Drª. Kimi Aparecida Tomizaki Profª. Drª. Helenice Bosco de Oliveira Profª. Drª. Agueda Bernadete Bittencourt Profª. Drª. Raquel Viviani Silveira Data da defesa: 18/02/2009

Programa de Pós-Graduação : Educação e-mail : mentalbites@terra.com.br

Silva, Ana Consuelo Alves da.

Si38d Dores do corpo e dores da alma : o estigma da tuberculose entre homens e mulheres acometidos / Ana Consuelo Alves da Silva. – Campinas, SP: [s.n.], 2009.

Orientador : Leticia Bicalho Canedo.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Tuberculose. 2. Estigma (Psicologia social). 3. Sexo – Diferenças. 4. Isolamento social. 5. Doentes – Percepção. I. Canedo, Letícia Bicalho. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

A Deus. À toda minha família, especialmente ao meu querido marido e amigo Mário Augusto Gomes por seu valioso apoio, por sua compreensão e incentivo durante a realização deste trabalho. Aos queridos Camila, Rafael, Luis e Frederico pelo companheirismo e pelo afago. À Profª. Drª. Letícia Bicalho Canêdo pelas orientações, desde o Mestrado, contribuindo para meu percurso intelectual.

Aos colegas do FOCUS pelas discussões compartilhadas, especialmente à Profª. Drª. Graziela Serroni Perosa, pela participação e valiosa contribuição no exame de qualificação. À amiga Camila Tenório Cunha pela ajuda com a bibliografia.

À minha amiga Sonia Di Maio pelas contribuições bibliográficas e pelas discussões que enriqueceram minha reflexão sobre a arquitetura sanatorial.

À minha amiga Christiane Miller pelo apoio afetivo em todos os momentos. Aos pacientes que dividiram comigo suas histórias.

Aos Coordenadores do Programa de Controle da Tuberculose, Drª. Vera Galesi e Dr. Douglas Belcufiné, pela inspiração e incentivo.

À Prefeitura Municipal de Jacareí pela oportunidade oferecida para a realização desta pesquisa. Em especial, ao Eduardo Guadagnim, Marisa Braga, Drª. Jeureci, Enf ª. Dalva e Dr. Hipólito pela confiança em meu trabalho. À Equipe do Programa da Tuberculose de Jacareí, especialmente ao Dr. Leonardo Cysneiros, Elaine Cristina Barbosa, Drª. Thereza Cristina, Cristina Aparecida, Rosa Macedo, Drª. Mariza Inocente e Maria Aparecida Motta pelos anos de dedicação, companheirismo e amizade.

À Profª. Drª. Helenice Bosco de Oliveira pelas contribuições no exame de qualificação e pela disponibilidade oferecida no Hospital das Clínicas para a complementação deste estudo. Em especial, à Enfermeira Izilda, pela grande ajuda que viabilizou as entrevistas com os pacientes. À Irmã Domitila que me recebeu afetuosamente no Sanatório Maria Imaculada e dividiu comigo suas experiências.

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DEDICATÓRIA

À querida Isabelinha, Com toda minha ternura.

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RESUMO

O presente estudo teve por objetivos investigar se a terapêutica de isolamento dos acometidos pela tuberculose, no início do século XX, contribuiu para a estigmatização dos doentes; se o estigma relacionado a esta doença está presente atualmente; se há diferenças entre homens e mulheres para lidar com este estigma; e se há, diante das possíveis diferenças, repercussões distintas na condução e conclusão do tratamento. A metodologia utilizada compreendeu um estudo de caso e a aplicação de entrevistas com doentes de tuberculose. O estudo de caso foi realizado na cidade de São José dos Campos, a qual se tornou referência para o tratamento da tuberculose, na “era sanatorial”, a partir da leitura e análise das publicações jornalísticas do início do século passado. As entrevistas foram realizadas com homens e mulheres que trataram da tuberculose no ambulatório de referência do município de Jacareí e do complexo hospitalar da

UNICAMP. Os resultados obtidos sugerem que o isolamento prescrito por médicos no início do século XX como um dos recursos importantes para a cura da tuberculose contribuiu para a sobrecarga de alguns emblemas depreciativos atribuídos aos doentes, intensificando o estigma da doença. A análise sugere ainda que homens e mulheres, pelo distinto processo de socialização, lidam diferentemente com a doença, o que reflete desde o modo como buscam por um tratamento até como o conduzem. Enquanto os homens apresentam a debilitação física como queixa primordial no adoecimento por tuberculose, para as mulheres o estigma apresenta-se como a primeira e mais constante queixa, perdurando mesmo após a conclusão do tratamento.

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ABSTRACT

This survey aimed to investigate if the isolation therapy of those affected by tb in the beginning of the 20th century contributed to the stigmatization of patients, if the stigma of this illness is still present, if there are differences between men and women in dealing with this stigma, and if there are, in front of possible differences,distinct repercussions in carrying on and concluding the tratment. The methodology used envolved survey of case and applying interviews with tb patients. The survey of case was developed in the city of Sao Jose dos Campos, which became a reference for tb treatment in the beginning of the last century, from the reading and analysis of news publications of that time. Interviews were taken with men and women who were treated of tb in the reference clinic in the city of Jacarei and in the medical facilities of UNICAMP (University of Campinas). The results achieved suggest that the isolation, prescribed by doctors in the beginning of the last century as one of the important resources to the cure of tb, contributed with the overcharge of some depreciating symbols attributed to tb patients intensifying the stigma of this illness.The analysis also suggests that men and women, due to distinct process of socialization, deal with the illness differently, which reflects from how they seek for treatment to how they carry it on.While men have as major complaint about being ill of tb phisical debility, with women the stigma is the first and most constant complaint, lasting even after treatment is concluded.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

A construção do objeto de pesquisa ... 4

O Estado da Arte ... 8

Desenvolvimento da Tese ... 25

CAPÍTULO I - O isolamento físico e a intensificação do estigma 29 1.1. A propagação do estigma da tuberculose nas publicações jornalísticas ... 35

1.1.1.“Generosos são a minha terra e meus ares” ... 39

1.1.2. A “indústria de doentes” ... 41

1.1.3. A transformação da cidade e dos discursos ... 50

1.1.4. Os diferentes interesses expostos pelas propagandas ... 52

1.1.5. O uso das estatísticas na defesa dos interesses ... 61

1.2. As diferentes representações da tuberculose ... 64

1.3. As diferentes representações dos doentes de tuberculose ... 67

1.3.1. Tuberculoso: uma vítima da miséria social e moral ... 68

1.3.2. Tuberculoso: um criminoso ... 78

1.3.3. Tuberculoso: assim como o leproso, deve ser isolado ... 83

1.3.4. Tuberculoso: sob o domínio da toxina tuberculosa ... 87

1.3.5. Tuberculoso: um indigente na zona urbana ... 91

1.3.6. Tuberculosas: as doentinhas vítimas do estigma ... 96

1.4. A ‘eternização’ do estigma ... 103

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CAPÍTULO II - O isolamento social e a permanência do estigma 109

2.1. A organização dos ambulatórios e a ótica dos doentes ... 111

2.1.1. Regras Universais x Singularidade ... 114

2.1.2. Atendimento padronizado x Estabelecimento de vínculos ... 117

2.1.3. O deslocamento do doente: insuficiência do serviço x complexidade da doença 122 2.1.4. O uso de máscara: proteção x exposição ... 124

2.1.5. Tratamento Supervisionado: cuidado x controle ... 127

2.1.6. A compreensão dos encaminhamentos aos serviços de saúde pelos doentes ... 131

2.2. A tuberculose e seu significado para os homens e para as mulheres ... 135

2.2.1. Caso 1 ... 136

2.2.2. Caso 2 ... 140

2.2.3. A doença tem uma história: a percepção da tuberculose pelos doentes ... 150

2.2.4. A busca dos doentes pelos serviços de saúde... 156

2.2.5. A reação dos doentes diante da instituição do diagnóstico ... 158

2.2.6. A compreensão da tuberculose pelos doentes... 164

2.2.6.1. A reprodução dos estereótipos pelos doentes de tuberculose ... 169

2.2.6.2. Tuberculose: doença estigmatizada ou estigmatizante? ... 175

2.2.6.3. As Dores do Corpo e as Dores da Alma ... 183

2.2.7. A condução do tratamento... 188

2.2.7.1. Tratamento Supervisionado: exposição x dispêndio de tempo ... 190

2.2.7.2. A abordagem terapêutica e a percepção da gravidade da tuberculose ... 192

2.2.7.3. O histórico da tuberculose e a percepção de sua gravidade ... 194

2.2.7.4. A duração do tratamento da tuberculose sob a ótica dos doentes ... 197 xiv

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2.2.7.5. O uso da medicação contra a tuberculose sob a ótica dos doentes ... 199

2.2.7.6. Obediência: um facilitador para adesão terapêutica ... 203

CONSIDERAÇÕES FINAIS 207

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 213

ANEXOS 229

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INTRODUÇÃO

A tuberculose, a partir dos últimos anos do século XVIII até início do século XX foi idealizada nas obras literárias e artísticas e identificada como uma doença de poetas e intelectuais. Muitos talentosos sofreram com a doença e isso gerou um sentimento confuso, compartilhado por pessoas de posição e nível social mais elevado,de que a genialidade tornava o indivíduo vulnerável à doença ou a doença despertava tal genialidade1. Acrescendo a essa concepção “romântica” da doença, a tuberculose foi o protagonista de muitos romances2.

A identificação do agente patológico da tuberculose, por Robert Koch em 1882, e a confirmação do caráter transmissível da moléstia contribuíram para a mudança das representações sociais da doença e de seus acometidos. Assim, a expressão pública da doença, que marcava socialmente determinados homens e mulheres bem posicionados socialmente, passou a explicitar outras categorias sociais como únicas a serem atingidas pela tuberculose, evitando tornar público o que antes era exaltado pelos romancistas.

Desta maneira, um pouco distante da imagem de doença que acometia os providos de talentos, com posição social e nível escolar elevado, a tuberculose, já no início do século XX, começou a ser associada aos providos de vícios e que viviam na miséria, qualificando-os como portadores do “mal social” 3. A noção de que a doença se ajustava ao caráter do indivíduo foi

1 As cidades eram atraentes aos artistas, facilitando a aglomeração de pessoas e, portanto, a proliferação da doença. FARREL, J. A assustadora história das pestes e epidemias. São Paulo, 2003. p. 134.

2 A “beleza romântica do tísico” empolgou poetas e prosadores tornando-se, até certo ponto, um paradigma da elegância da época. NOGUEIRA, O. Vozes de Campos do Jordão. Experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo. São Paulo, 1950. p.20. Entre as obras literárias, podemos citar: A Montanha Mágica, de Thomas Mann; A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas; Lucíola, de José de Alencar; Floradas na Serra, de Dinah Queiroz.

3 Cf. FERNANDES, T. M. D. (Coord.) Memória da Tuberculose: acervo de depoimentos. Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz, 1993. 120 p.

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sendo substituída pela noção de que ela exprimia seu caráter, sendo expressão da sua individualidade e resultado de seu próprio comportamento.

A essa mudança da visão da ordem moral da doença, corresponde uma transformação dos agentes encarregados em definir o discurso a ser proferido e o comportamento social a ser seguido frente ao problema do mal identificado “concretamente” como pertencente a uma população específica, pobre e provida de vícios diferentes dos hábitos dos talentosos artistas que bebiam absinto nos cabarés.

Isso porque a proliferação da tuberculose se intensificou nas camadas mais pobres, especialmente da população urbana, em razão das precárias condições de vida das grandes cidades industriais do final do século XIX e início do século XX que favoreciam o contágio e o desenvolvimento da doença. Esse novo cenário, que enfatizava a miséria do doente e sua potencialidade em transmitir a doença, foi modificando o discurso dos porta-vozes da imagem social da tuberculose e, a partir daí, foi se configurando o estigma de contágio.

Não mais um paradigma da elegância da época, a tuberculose passou a ser vista como uma entidade mórbida produzida por um agente patológico específico e transmissível, adquirido a partir dos comportamentos desregrados e das condições de vida precárias4.

Essa nova concepção da tuberculose como “doença social”, ou seja, como doença que acomete os mais pobres e “desregrados” trouxe aos acometidos por ela um tratamento diferenciado. E como as condições objetivas que afetam a vida dos indivíduos na sequência de reviravoltas sociais, como as trazidas pela Revolução Industrial, diferem segundo os grupos sociais e dependem de uma formulação pública para legitimá-las, o enaltecimento pelo

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sofrimento dos tísicos foi sendo substituído pelos agentes públicos responsáveis pela ordem médico-social: de doença de poetas passou ao estereótipo do doente que ameaçava a vida física e moral dos sadios e que deveria, portanto, ser isolado.

Os relatos de confidências pessoais dos doentes e a produção escrita dos tísicos demonstram o quanto o isolamento apresentava-se muito mais dolente do que os padecimentos físicos sofridos pela infecção. A produção de poesias, contos, romances e diários era uma forma de expressão das angústias diante do sofrimento que a enfermidade impunha aos doentes e uma tentativa de amenizar o estigma que lhes era impingido5.

Deste modo, o romantismo da doença dos sensíveis foi perdendo espaço para a tragédia da doença dos degenerados e das vítimas da miséria social. E assim, até as produções artísticas foram se compondo em terceira pessoa do singular como manejo de inibição do estigma, ocultando a condição de contaminado ou de predisposto6.

As tentativas de ocultar a doença, bem como outras formas que os doentes encontram para lidar com o estigma da tuberculose, é o tema central desta pesquisa.

O estigma está sendo tratado aqui no sentido dado por Goffman: uma criação social, que isola certos atributos, os classifica como indesejáveis e desvaloriza as pessoas que os possuem. O estigma tende a se tornar predominantemente importante e a superar as outras características da identidade da pessoa, que assim, fica “deteriorada” (GOFFMAN, 1982). Deste modo, o estigmatizado sofre discriminação de muitas maneiras e é não somente rejeitado por seus

4

NOGUEIRA. O. Vozes de Campos do Jordão. Op. Cit. p. 20.

5 A morte física prometida pela doença tinha como etapa anterior a exclusão social declarada nas confidências pessoais. Cf. BERTOLLI FILHO, C. História Social do Tuberculoso: perspectivas documentais. Cadernos de

História e Saúde da Fiocruz, Rio de Janeiro, v. 2, p. 42-50, 1992. p. 42.

6 Ver, entre outras, as composições literárias de Dinah Silveira de Queiroz e de Paulo Dantas, as quais se apresentam na terceira pessoa. Cf. BERTOLLI FILHO, C. História Social do Tuberculoso... Op. Cit.

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semelhantes, mas compartilha das mesmas crenças que seus pares sendo alvo e agente da própria estigmatização.

O tuberculoso reuniria, até então, muitos atributos considerados indesejáveis, como os vícios e a miséria. Acrescido a isso, o próprio tratamento ofertado para sua convalescença, o confinaria ao isolamento e exaltaria a sua condição de portador de um mal contagiante, tornando o estigma predominante em sua vida.

A construção do objeto de pesquisa

Embora essa nomeação da tuberculose como doença social e sua associação aos vícios e à miséria tenham sido referidas por diversos autores7, considerei relevante, neste estudo, identificar o trabalho social que institucionalizou as práticas de tratamento da doença e dos doentes, as quais possam ter contribuído para a propagação do estigma.

O meu interesse nesta pesquisa se baseou em duas observações advindas de minha prática como psicóloga de um ambulatório especializado no tratamento da tuberculose: 1) apesar de o tratamento da tuberculose não mais se basear na terapêutica higieno-dietética de isolamento físico e social do doente nos sanatórios8, e sim prioritariamente da terapia medicamentosa, as práticas

7 BERTOLLI FILHO, C. História Social da Tuberculose e do Tuberculoso. 1900 – 1950. 1993. 2 v. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993; BELCUFINÉ, D.C. São José dos Campos: Relação histórica do seu desenvolvimento com a mortalidade por tuberculose, 1935 a 1999. 2001. 222 f. Tese (Doutorado). 2001- Universidade de São Paulo, São Paulo: 2001; ANTUNES, J.L.F.; WALDMAN, E.A. A tuberculose através do século: ícones canônicos e signos do combate à enfermidade. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 367–379, 2000. GONÇALVES, H. Peste Branca: um estudo antropológico sobre a tuberculose. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. 194 p.; CARBONE, M.H. Tísica e Rua: os dados da vida e seu jogo. 2000. 106 f. Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2000.

8 O sanatório, assim como o hospital, era uma solução que respondia às necessidades do Estado para segregar o doente assegurando uma vigilância contínua e às necessidades dos médicos, que encontravam um local de comunicação imediata do ensino com as experiências. No entanto, para o homem doente era uma solução anacrônica que o estigmatizava em sua miséria. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 48.

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de isolamento social permanecem nos dias atuais, revelando a presença do estigma de contágio; 2) entre homens e mulheres, são elas quem mais se queixam do estigma que acompanha a tuberculose e isso reflete na maneira como lidam com o diagnóstico, como manejam seu tratamento e, consequentemente, em seu desfecho.

Inicialmente observei que os doentes do ambulatório expressavam temor de serem submetidos ao isolamento físico e, mesmo que não o fossem, doentes e familiares mantinham comportamentos como a separação de utensílios pessoais e a segregação intrafamiliar, os quais demonstravam a presença do estigma, promovendo o mesmo efeito estigmatizante doisolamento sanatorial.

No entanto, observei diferenças nos comportamentos entre as mulheres e homens doentes. Entre as mulheres, por exemplo,foi possível observar: a omissão do diagnóstico aos parentes ou outras pessoas da rede social; a negação em realizar o tratamento em unidade de saúde próxima à residência evitando o conhecimento de seu diagnóstico por sua comunidade; as queixas relatadas ao receberem o diagnóstico exprimindo temor pela rejeição dos familiares e dos amigos; e a condução adequada do tratamento evitando a interpelação dos agentes da saúde em visitas domiciliares ou por outros contatos.

Entre os homens, observei que eles comparecem ao serviço de saúde acompanhados por um familiar, na maioria das vezes do sexo feminino (mãe, esposa ou filha). Em geral, eles não omitem o diagnóstico aos familiares, aos amigos ou no ambiente de trabalho. Eles não se negam a realizar o tratamento em unidade de saúde próxima à sua residência, e até o preferem para facilitar o acesso. E, em suas queixas, não exprimem temor pela rejeição e nem incômodo pelas interpelações dos agentes da saúde nas residências ou nos locais de trabalho.

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A partir destas observações preliminares, a pesquisa bibliográfica, em especial a leitura de Goffman (1982), auxiliou a compreensão sociológica do processo saúde-doença e, mais especificamente, do adoecimento por tuberculose; dos efeitos psicológicos do adoecimento por uma patologia estigmatizante; e das diferenças relativas ao adoecimento no que confere ao gênero. A pesquisa bibliográfica ajudou ainda a pensar as hipóteses que fundamentaram este estudo: (1) o manejo do tratamento ofertado aos tuberculosos no início do século passado, o qual preconizava o isolamento sanatorial, contribuiu para estigmatizar os acometidos e (2) o estigma da doença, presente na atualidade, mobiliza diferentemente os homens e as mulheres doentes, tendo em vista os distintos papéis sociais atribuídos a cada gênero.

Antecedendo a discussão bibliográfica, apresento, de forma resumida, o que é a doença tuberculose e o que ela representa dentro do panorama mundial e brasileiro.

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A tuberculose é uma doença infecciosa e contagiosa, causada pelo microorganismo

Mycobacterium tuberculosis, também denominado por bacilo de Koch (BK), que se propaga através do

ar, por meio de gotículas contendo os bacilos expelidos por um doente com tuberculose pulmonar. A inalação destas gotículas por uma pessoa saudável, provoca a infecção tuberculosa e o risco de desenvolvimento da doença. Todos os órgãos podem ser acometidos pelo bacilo da tuberculose, porém, o pulmão frequentemente é o mais acometido (1). Como o doente do pulmão caracteriza-se como o possível agente transmissor, as ações de busca dos doentes se dirigem àqueles que apresentam um dos principais sintomas da doença: a tosse persistente (2). A oferta de exames bacteriológicos, entre outros exames complementares (3), é a forma de identificar precocemente o doente e interromper a cadeia de transmissão.

Embora existam proposições para explicar a fisiopatologia envolvendo as respostas imunitárias, a carga da tuberculose está relacionada à desigualdade social, onde a pobreza, má nutrição e más condições de vida geram impacto sobre os outros componentes (4). Deste modo, a tuberculose é uma doença com fortes componentes sociais e econômicos. A probabilidade de se infectar, adoecer e morrer pela doença se apresenta maior entre a população de baixa renda que vive em precárias condições de habitação e de saúde (5).

Atualmente, o tratamento da doença é realizado, preferencialmente, com a terapia medicamentosa. As intervenções cirúrgicas e as internações são destinadas aos casos especiais (6).

O panorama mundial mostra que a tuberculose é um problema de grande relevância. Pelas estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), há 8,9 milhões de casos novos a cada ano, e a mortalidade alcança 1,7 milhão de pessoas (7).

O Brasil ocupa, entre os vinte e dois paises identificados pela OMS como detentores da maior carga de tuberculose, o 16º lugar, em número absoluto de casos. Com uma prevalência de 58 casos por 100 mil habitantes (90 mil casos por ano) a tuberculose tem sido a causa de morte de seis mil pessoas por ano no Brasil (8).

(1) BRASIL. Ministério da Saúde. Manual Técnico para o Controle da Tuberculose: cadernos de atenção básica. 6. ed. ver. e ampl.

Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 62 p. (Série A. Normas e Manuais, 148). p. 9.

(2) Outros sintomas como emagrecimento, perda de apetite, fadiga, sudorese noturna, febrícula vespertina, dor torácica são considerados sugestivos do adoecimento por tuberculose pulmonar. Ibid. p. 13.

(3) A cultura do bacilo de Koch, os exames radiológicos e a prova tuberculínica são outros exames que auxiliam o diagnostico da tuberculose pulmonar. Ibid. p. 18.

(4) RUFFINO NETTO, A. Carga da Tuberculose. Jornal Brasileiro de Pneumologia, São Paulo, v. 30. n. 4, p. 307-309, 2004. (5) BRASIL. Ministério da Saúde. Controle da Tuberculose: uma proposta de integração ensino-serviço. Rio de Janeiro: FUNASA/CRPHF/SBPT, 2002. 65 p.

(6) Entre os casos especiais destacam-se os doentes com intolerância medicamentosa, com intercorrências clínicas ou cirúrgicas graves e os casos sociais (vulnerabilidade social e psicológica). Ibid. p. 24.

(7) TEIXEIRA, G. Tuberculose na América do Sul. A posição do Brasil. Boletim de Pneumologia Sanitária, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 133-134, 2006.

(8) NOGUEIRA, J. A. Implantação da estratégia DOTS no controle da tuberculose em Ribeirão Preto, São Paulo (1998-2004). Boletim

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O Estado da Arte

Desde os anos 50, os estudos sociais sobre as doenças vêm se avolumando e, cada vez mais, procuram relacionar os doentes com a sua rede social. Iniciados com o célebre trabalho de Talcott Parsons sobre a "teoria do papel de doente" (sick role theory) que ele considerava como um dos elementos de base para a compreensão do funcionamento do sistema social, e passando pelos estudos de Michael Balint sobre o papel desempenhado pelos sentimentos no processo terapêutico9, todos hoje buscam compreender como determinada doença é assumida e vivenciada pelas vítimas e por sua comunidade. São consideradas, nestes estudos, tanto as representações e as interpretações da doença (HERZLICH, 1996; SONTAG, 2002), como as condições de seu aparecimento, difusão e as modalidades de intervenção para seu controle as quais se inscrevem dentro de um contexto social, médico e político (ADAM; HERZLICH, 1994;

HOCHMAN, 1998; QUEIROZ, 2003).

Estes estudos têm contribuído para o entendimento de como os doentes lidam com seu adoecimento e como conduzem seu tratamento demonstrando as diferentes formas de compreensão e manejo no processo saúde-doença. Em especial, enfatizo as recentes proposições metodológicas, como as de Kleinman10, que partem da aprendizagem das normas que definem os comportamentos físicos, considerando-a como adquirida no meio social onde se vive, seja como produto do uso da atividade física no trabalho, seja como resultado das estratégias publicitárias, ou mesmo no campo médico, seja pelas distinções sutis de perigo que cada grupo social desenvolve no seu interior.

9 Cf. BALINT, Michael, The doctor, his patient and the ellness. New York: Intern Universities, 1972. 395 p.; PARSONS, Talcott. The social system. New York, Free Press, 1964. 575 p.

10 Cf. KLEINMAN, A. Santé et stigmate. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 143, p. 97–99, 2002.

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Para essa investigação, o trabalho de Claudine Herzlich traz contribuições à compreensão sociológica da medicina e das doenças. Ela demonstra em sua análise das representações sociais da saúde e da doença que tais representações compreendem uma elaboração psicológica complexa onde se integram a experiência de cada um, os valores e as informações circulantes de cada sociedade11.

Considerar as representações sociais da saúde e da doença foi importante no presente estudo, pois permitiu a compreensão da doença, em especial da tuberculose, não como uma entidade mórbida que invade o corpo de qualquer ser humano, mas como um evento que remete a diferentes significados e, portanto, às diversas respostas, dependendo do lugar social em que ele ocorra.

Para Claudine Herzlich, ainda que as representações compreendam essas diversidades, a divisão clássica das concepções endógenas e exógenas da doença comumente ordena tais representações12. Em diferentes épocas, em diversas sociedades, sob diversas formulações, persistem estas concepções. A concepção exógena explicaria a doença como sendo causada pela intrusão real ou simbólica de um objeto no corpo do doente, frequentemente representada pelo modo de vida conduzido por cada um. E a concepção endógena seria representada pelo indivíduo e sua participação na gênese de seu estado, ou seja, a doença seria causada pelo “voo mágico da alma do indivíduo” 13. A pesquisa dessa autora foi realizada com base em entrevistas com profissionais liberais, intelectuais e membros de classes médias, nas quais ela observa a persistência e frequente alternância entre essas concepções, endógeno/exógeno, no pensamento dos indivíduos interrogados, associando-as ao modo de vida urbano. Desta maneira, a gênese da

11 Cf. HERZLICH, C. Santé e Maladie. Analyse d’une représentation sociale. Paris: École Hautes et Sciences Sociales, 1996. 210 p.

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saúde e da doença é vista como uma luta entre o “indivíduo/saúde e o modo de vida/doença” 14. Ou seja, a doença seria, quanto a sua origem, um “objeto” produto do modo de vida, da sociedade, pois nasce da concretização e da acumulação dos elementos insanos que atacam o indivíduo. No entanto, a esse objeto, o indivíduo responderia com certa margem de liberdade pela resistência da saúde física e psíquica15.

As concepções expostas parecem à autora ser caracterizadas pelo fato de que as relações entre o homem e o meio são exclusivamente conhecidas em termos de luta, entre o exógeno, que se assimila sem reservas à doença e o endógeno à saúde16. É o que a leva a concluir que, nessa luta, o indivíduo seria considerado culpado não por acometer a doença, mas por perder a saúde17.

O adoecimento por tuberculose pode remeter a essas duas concepções acima. Isso porque o doente pode compreender sua enfermidade como uma resposta às suas condições de vida, o que o faz sentir-se como vítima dessas condições ao mesmo tempo em que o faz sentir-se como culpado por se submeter a elas. Esse sentimento de culpa, de certo modo, pode ser uma das explicações ao comportamento de omissão de diagnóstico observado entre as mulheres. Ou seja, ainda que a introdução de um agente real exterior no corpo do doente venha corroborar a concepção exógena da doença, o voo mágico da alma do indivíduo, sua exposição e vulnerabilidade o conduziriam à perda de sua saúde.

Em outro estudo, realizado com Philippe Adam, Claudine Herzlich acrescenta e destaca o sexo para mostrar que a condição de vida revela divergências significativas no que confere aos

12

Cf. HERZLICH, C. Santé e Maladie... Op. Cit. 17. 13 Ibid. p. 17. 14 Ibid. p. 42. 15 Ibid. p. 69. 16 Ibid. p. 70. 17 Ibid. p. 71.

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índices de mortalidade. As taxas de mortalidade diferenciadas para homens e mulheres em países industrializados exprimiriam fatores sociais que expõem os homens ao risco de morte mais violenta por acidentes de trânsito ou de trabalho, e à incidência de alcoolismo e tabagismo18. Os homens casados, por exemplo, exibem taxas de mortalidade inferior a dos solteiros, sendo esta diferença menos significativa no caso das mulheres.

Outro aspecto importante constatado no estudo é que a busca de cuidados médicos se diferencia conforme a classe social. Foi observado que os membros das classes populares buscam os cuidados médicos com a finalidade “curativa”, ou seja, para tratar de motivos graves, enquanto os membros das classes superiores buscam os cuidados médicos mais a título de prevenção19.

Essa diferenciação na busca de cuidados médicos relacionada às classes sociais nos ajuda a compreender o porquê os doentes de tuberculose, que reconhecidamente pertencem às classes populares20, são, em sua maioria, diagnosticados nos pronto-socorros dos hospitais, caracterizados por atendimentos de urgência, e não em serviços ambulatoriais que requerem a espera pelo doente por uma consulta previamente marcada. Como a tuberculose não se apresenta como uma infecção aguda e abrupta, ou seja, ela se desenvolve lentamente, o diagnóstico nem sempre é concluído precocemente, daí a descoberta tardia, isto é, em pronto-socorros, apresentando, muitas vezes, quadros de lesões pulmonares em estado avançado, o que

18 ADAM, P.; HERZLICH, C. Sociologia da doença e da medicina. Tradução de Laureano Pelegrin. São Paulo: Edusc, 1994. p. 52

19 Ibid. p 58.

20 O que podemos observar na bibliografia brasileira é a constante referência à pobreza como característica da população adoecida pela tuberculose. Não ao acaso, mas o perfil epidemiológico demonstra a estreita relação desta doença com o baixo nível socioeconômico. CARBONE. M.H. Tísica e a Rua... Op. Cit. VENDRAMINI, S.H. F. O tratamento Supervisionado no controle da tuberculose em Ribeirão Preto sob a percepção do doente. 2001. 180 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2001. BERTAZONE. E.C. A Assistência ao Portador de Tuberculose Pulmonar sob a ótica dos trabalhadores de enfermagem. 2003. 115 f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2003. CAPUANO, D.A. Busca Ativa de casos de tuberculose pulmonar em uma unidade de atendimento em farmacodependência no município de São Paulo. 2001. 143 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

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caracterizaria a urgência e gravidade dos casos. Sob este aspecto, ressalta-se também que a oferta de serviços de saúde e a política de busca de casos são fatores importantes no acesso dos doentes a um diagnóstico precoce21.

Mas quem pioneiramente realizou a associação entre classe social e os cuidados com o corpo foi Luc Boltanski. Seus estudos nos auxiliam a entender o quanto um corpo enfermo pode ser signo de uma posição social. Ou seja, as percepções e as identificações das sensações mórbidas estariam estreitamente relacionadas às expectativas dos sujeitos em relação à vida, às experiências passadas e, mais precisamente, à maneira como adquiriu, no seu meio social, o conhecimento sobre a saúde e as doenças. Desta forma, o modo e as representações que os indivíduos têm dos processos de saúde-doença deflagram sua posição social22.

Boltanski fez uma pesquisa sobre a variação do consumo médico nas distintas classes sociais. Ele observou que o interesse e a atenção que os indivíduos atribuem ao corpo, à aparência física, às sensações mórbidas aumentam na medida em que se sobe na escala social. Ele exemplifica que ao responder sobre as enfermidades sofridas nos últimos anos, os membros de classes superiores apresentam uma descrição muito mais detalhada e estruturada das mudanças em seus estados mórbidos. Diferentemente, os membros das classes populares se queixam de dores não localizadas ou de debilidade generalizada e se conformam com a repetição do que se recordam ter escutado dos médicos, ou seja, com fragmentos de termos científicos. Isso seria

21 GOMES, R. et al. Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que as mulheres? As explicações de homens com baixa escolaridade e homens com ensino superior. Cadernos de Saúde Publica, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 565-574, 2007.

22 BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Tradução de Regina A. Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. p 132.

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explicado pelo fato de que a capacidade em entender, identificar e expressar as mensagens corporais varia segundo a capacidade para verbalizá-las23.

A partir desta leitura, pode-se pensar que, no caso da tuberculose pulmonar, a forma de percepção, identificação e expressão dos sintomas pelos doentes poderia influenciar o retardamento do diagnóstico. Podemos observar, pela experiência clínica, que a dor torácica é, muitas vezes, “confundida” com a dor na coluna, a qual seria relacionada ao excesso de trabalho físico, comum entre a população que mais adoece de tuberculose. A febrícula e a falta de apetite passam, por vezes, despercebidas. E a tosse, quando não vem acompanhada de hemoptise (sangue), pode ser facilmente associada ao uso do cigarro. Desta forma, a percepção tardia ou equivocada dos sintomas clássicos da tuberculose pulmonar pelos doentes poderia retardar a sua busca por soluções médicas e, portanto, retardar o diagnóstico e o tratamento.

Boltanski descreve ainda como os membros dos grupos sociais possuem em comum um “código de boas maneiras” que rege as relações com o próprio corpo. Esse código, inconsciente, estaria profundamente arraigado e se revelaria em suas formas de se relacionar com o corpo como um signo da posição social.

Ora, nas classes populares, é comum observar as mulheres, as crianças e os idosos procurarem com maior frequência os serviços de saúde ambulatoriais24. Os homens, diferentemente, procuram os serviços de saúde emergenciais como os hospitais e pronto-socorros. Isso confirmaria o código de boas maneiras que rege as ações dos membros das classes populares no que confere ao adoecer. Isto é, o consumo médico pelos homens não seria incentivado por sua

23 BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo... Op. Cit. p 133.

24 QUEIROZ, Marcos S. Representações sobre saúde e doença: agentes de cura e pacientes no contexto do SUDS. Campinas: Ed. UNICAMP, 1991. p. 34. Numa pesquisa realizada com agentes e pacientes do SUS confirmou-se que

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rede social, já que o homem é valorizado quando cumpre com sua tarefa de provedor da sua família e o adoecimento o impede de cumprir com essa tarefa. Somente quando ele não mais apresenta condições para cumpri-la, o que caracterizaria uma emergência, ele seria autorizado a interrompê-la e procurar auxílio médico.

Por estas razões, Boltanski relaciona as formas de percepção dos processos de saúde e doença às classes sociais. Os membros das classes populares, por exemplo, percebem a doença quando esta os impossibilita de realizar seu trabalho, já que, em geral, seu instrumento de trabalho é o próprio corpo. A resistência à dor ou à enfermidade, não se valeria por uma manifestação de princípio moral, mas sim por uma percepção diferente da doença, considerando-a considerando-apenconsiderando-as quconsiderando-ando estconsiderando-a o impedisse de fconsiderando-azer uso hconsiderando-abituconsiderando-al do corpo. Diferentemente, os membros de classes superiores percebem a enfermidade como uma degradação insidiosa da saúde e não como um acidente repentino, súbito25.

Isso ajuda a pensar como a tuberculose é percebida e interpretada por seus acometidos. Tratando-se de uma doença que evolui lentamente, comparada às comuns doenças infecto-contagiosas, o início da percepção dos sintomas pode ser ainda mais prolongado pelos membros das classes populares. Isto porque o indivíduo percebe a doença quando esta o impede de realizar suas atividades diárias, ou seja, quando seu corpo fica por demasiado comprometido. Desta forma, quando o indivíduo sente-se enfermo, a doença pode se apresentar já em estágio clínico avançado, e não a percebendo como um processo de degradação da saúde, os doentes podem considerá-la abrupta e, portanto, merecedora de intervenção médica emergencial.

a mulher, mais do que o homem, percebe os sintomas e procura por soluções dentro ou fora do âmbito da medicina oficial, tanto para ela quanto para seus filhos.

25

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No âmbito da antropologia, por sua vez, muito estudos, como o de Cecil Helman, relacionam as crenças e práticas individuais dos doentes a fatores morfológicos (como gênero, idade), aos fatores educacionais formais ou informais, e, também, ao sistema organizado de assistência à saúde de cada sociedade26. Cecil Helman faz uma diferenciação entre enfermidade e

doença. A enfermidade representaria a anormalidade dos sistemas e órgãos do corpo humano. A doença seria a resposta subjetiva do doente ao seu mal estar27. Neste sentido, a enfermidade poderia ser a mesma em diferentes culturas, mas a doença seria construída diferentemente em cada época ou sociedade. É assim que ele vê também a diferenciação entre homens e mulheres no que concerne às formas de lidar com o adoecer. Ele observa, por exemplo, que em várias sociedades a mulher aprende a apresentar pequena tolerância aos problemas de saúde, o que explicaria a procura mais rápida pelos serviços médicos28.

O cerne da presente pesquisa é compreender essa diferenciação quanto ao gênero no que confere ao processo de adoecimento pela tuberculose, especialmente à forma de lidar com o estigma da doença. Se levarmos em consideração o lugar social que a mulher ocupa na instituição familiar das classes populares, ou seja, daquela que “cuida” da família e é autorizada socialmente a tolerar menos os incômodos do corpo e da mente, podemos, em princípio, compreender uma das diferenças inicialmente observadas entre o comportamento das mulheres e dos homens que adoecem de tuberculose: em geral, a mulher é diagnosticada mais precocemente do que os homens, ou seja, aos primeiros sinais da doença ela busca por um serviço de saúde enquanto o homem retarda sua busca por auxílio, apresentando, muitas vezes, a doença em estágio avançado de evolução no momento do diagnóstico.

26 HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. Tradução Eliane Mussnich. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p 24. 27 Ibid. p 104.

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Neste ponto, os conceitos de violência simbólica e dominação masculina desenvolvidos por Pierre Bourdieu29 auxiliaram na compreensão da diferença socialmente construída e “naturalizada” entre os sexos. Para o autor o mundo social constrói o corpo como depositário de visão e divisão sexualizantes, imperando a força da ordem masculina, seja na divisão social do trabalho, seja na divisão social das tarefas e dos espaços, ou ainda na divisão biológica dos corpos, de seus movimentos e de suas sensações. A masculinização do corpo do homem e a feminilização do corpo da mulher adquiridas através do adestramento tenderiam a capacitá-los de atributos correspondentes a cada gênero. Estes atributos, como por exemplo, a virilidade, no caso dos homens, e a fragilidade, no caso das mulheres, provocariam efeitos distintos na forma de lidar com o corpo, especialmente com o corpo doente.

A maneira como Bourdieu trabalhou a divisão entre os sexos é instigante porque nos permite verificá-la presente em estado bem concreto nas coisas do mundo social, como, por exemplo, nas roupas e acessórios, na distribuição dos objetos dentro da casa, nos espaços reservados no ambiente doméstico e fora dele. E, ao mesmo tempo em estado incorporado, observá-la nos corpos curvados ou eretos, posturas dos afazeres cotidianos, nos comportamentos públicos ou íntimos, nas percepções do mundo e nas reflexões sobre as coisas da vida30. É o que leva este autor a considerar a diferença sexual como produto de um trabalho transformador e coletivo que sublinha intensamente as diferenças biológicas e funcionais. Vem daí sua preocupação em assinalar exaustivamente as várias instituições interligadas que competem para a eternização destas estruturas na organização da saúde, da educação, da religião e da família ao reconhecer e legitimar essas diferenças como base para a organização social a cada tempo e lugar. Isto é, a estrutura de divisão sexual se mantém “eterna” face ao trabalho destas instituições

29 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 160 p.

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que se encarregam para garantir a perpetuação da ordem dos gêneros, mas a organização social que se configura a partir deste trabalho é dinâmica face aos conflitos e mudanças sociais.

Sobre as diferenças entre homens e mulheres na forma de lidar com as doenças, outra pesquisa, baseada apenas no estudo de pessoas portadoras de hanseníase, auxilia a compreender os distintos comportamentos frente ao diagnóstico de uma patologia estigmatizante31. Entre os comportamentos constatados no estudo os quais exprimem essas diferenças podem ser citados: a prevalência entre as mulheres da tentativa de ocultar a doença dos familiares; maior assiduidade apresentada por elas aos serviços que prestam assistência a esta patologia, e índice mais elevado de interrupção do tratamento entre os homens.

Ao confrontar esses dados com minhas observações preliminares, pude identificar que, assim como o comportamento de omissão de diagnóstico, a assiduidade aos serviços de saúde é também mais comum entre as mulheres portadoras de tuberculose.

A compreensão da vivência pelos adoecidos pela tuberculose na era sanatorial também se fez importante para essa pesquisa, já que a vivência estaria diretamente relacionada ao lugar social do doente e ao momento histórico da doença. A partir de um estudo sobre a tuberculose, a sífilis e a cólera32, foi possível compreender como estas doenças foram vivenciadas pelos doentes relacionando suas respostas subjetivas aos discursos médico e político responsáveis pelas medidas concretas de controle da população adoecida. No caso da tuberculose, as medidas de

30 Cf. BOURDIEU, P. A dominação masculina... Op. Cit. p. 17.

31 OLIVEIRA. M.H.; ROMANELLI, G. Os Efeitos da Hanseníase em homens e mulheres: um estudo de gênero. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 51-60, 1998.

32 BARDET, J.P. Peurs et Terreurs face à la contagion. Chólera, Tuberculose, syphilis XIX – XX siècles. Paris, Fayard, 1988, 442 p. Outros estudos descrevem a história social da tuberculose, entre eles: LE GOFF, J. As doenças têm história. Tradução de Laurinda Bom. Portugal: Terramar, 1985. 361 p.; FARREL, J. A assustadora... Op. Cit.; SOURNIA, J.C.; RUFFIE, J. Epidemias na história do homem. Tradução de Joel Goes. Lisboa: Ed. 70, 1986. 247p.

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controle se referiam a internação do doente em hospitais específicos para o tratamento e controle da moléstia – os sanatórios.

Recorrer ao cenário no qual o cuidado dos doentes em prol da coletividade preconizava o isolamento ajudou a pensar como a institucionalização dessas organizações sanitárias - os sanatórios - contribuiu para a intensificação do estigma de contágio.

Os sanatórios apresentavam duas missões aparentemente antagônicas: cuidar e isolar o hóspede. Ao mesmo tempo em que o hóspede era um doente que necessitava de cuidados médicos e de tratamento higieno-dietético, era também um excluído da sociedade saudável que necessitava de vigilância33. Esse tipo de isolamento trazia consequências pessoais funestas acrescidas das consequências socioeconômicas desastrosas como a perda do emprego, dos pertences e do convívio familiar34.

Além do isolamento, outro procedimento que confirmava o caráter estigmatizante da doença era o tratamento cirúrgico. Embora em muitos casos a cirurgia propiciasse a estabilização da tuberculose, a teria a custo de sofrimentos psíquicos e morais, pois causava deformidades estéticas aos jovens e notadamente às mulheres35. Isso porque, o procedimento cirúrgico mutilador consistia na retirada das primeiras costelas para redução das cavidades pulmonares36. Ou seja, ele resultava também no rebaixamento do lado do corpo que sofria a deformidade torácica, evidenciando a presença da doença.

33 BARDET, J.P. Peurs et Terreurs…Op. Cit. p.218. 34 Ibid. p.240.

35 Ibid. p.246.

36 BELCULFINÉ, D. C. São José dos Campos: Relação histórica do seu desenvolvimento com a mortalidade por tuberculose, 1935 a 1999. 2001. 222 f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p 23.

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Desta forma, não somente o isolamento em razão do perigo de contágio, mas também os procedimentos cirúrgicos mutiladores contribuíam para a intensificação de uma vivência estigmatizante.

Atualmente, as cirurgias pouco compõem o quadro de procedimentos para o tratamento da tuberculose, o qual é feito quase que exclusivamente pelo uso de medicação37. E, de certa forma, a experiência clínica nos mostra que a imagem da tuberculose não é mais associada a esse tipo de vivência que estigmatizava os doentes que eram submetidos à cirurgia.

Sobre vivências estigmatizantes, o clássico de Erving Goffman, “Estigma” 38, ajuda a compreender como os sujeitos lidam com um “traço” estigmatizante que pode afastar os outros e destruir a possibilidade de atenção para seus outros atributos. Para lidar com esse “traço”, o ser humano ao transmitir suas informações sociais no encontro com o outro pode mobilizar recursos para manipular tais informações. Caso essas informações sociais representem símbolos de estigma, o que contrapõem aos símbolos de prestígio, como ocorre, por exemplo, com os portadores de deformidades físicas, dependentes químicos e homossexuais, haveria ou não a possibilidade de manipulação destas informações. Havendo essa possibilidade, o indivíduo poderia impedir que o símbolo de estigma aparecesse em todos os momentos em que houvesse uma interação social, como é o caso do indivíduo estigmatizado no qual sua característica distintiva não é conhecida e nem imediatamente percebida39.

37 As internações sanatoriais, mesmo que em número reduzido, ainda persistem. Elas são muito menos indicada pela gravidade dos sintomas do que pelas condições psicossociais do doente em conduzir seu tratamento.

38 GOFFMAN, E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. 158 p.

39

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A partir desta compreensão, pode-se pensar que a tuberculose, se entendida como um

traço estigmatizante, pode ser uma informação manipulada pelo seu portador, já que esse traço

não é totalmente evidente a todos, nem em todos os momentos da vida social do doente.

No entanto, aqueles doentes que são submetidos aos tratamentos que exigem internação sanatorial têm mais dificuldade em manipular tal informação perante sua rede social. Deste modo, a evidência do atributo “tuberculoso” o impediria de recorrer à manipulação da informação social para aliviar a vivência estigmatizante.

Para o entendimento das condições psicológicas comumente apresentadas pelas pessoas que vivem a condição de internamento, longe do convívio social mais amplo por um período considerável de tempo, um outro estudo de Goffman, “Manicômios, Prisões e Conventos” 40, traz um melhor esclarecimento sobre o tema.

Goffman observa que a posição intramuros poderia desencadear um status favorável ou desfavorável dependendo do tipo de instituição a qual o sujeito estaria submetido. No caso de um sanatório, instituição destinada a tratar de pessoas que sem intenção ameaçam a saúde da sociedade mais ampla, o status adquirido teria o caráter de estigma41.

A internação em sanatório, portanto, desencadearia um status desfavorável ainda mais intenso nos dias de hoje. Isso porque o tratamento da tuberculose, preferencialmente, é realizado em ambiente ambulatorial e não mais hospitalar. Em geral, os casos que merecem internação são considerados “casos sociais” – moradores de rua e dependentes químicos, ou seja, aqueles que

40 GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução Dante Moreira Leite. 6. ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1999. 312 p.

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não apresentam condições psicológicas e/ou socioeconômicas de realizar o tratamento em sua própria residência, necessitando de cuidados nutricionais ou de vigilância mais acurada.

Ainda com relação ao estigma, outro estudo que vai além da compreensão dos estereótipos e das reações sociais possibilitou refletir sobre a gênese do comportamento social que o promove. Arthur Kleinman sugere que o estigma seja repensado como uma experiência moral e emocional comum a determinado mundo local, constituída a partir da ligação entre as esferas individuais e coletivas do saber e do ser. As reações sociais constituiriam respostas em torno do que os grupos e os indivíduos consideram como fonte ou vetor de uma ameaça tanto interna quanto externa. Sendo assim, a estigmatização compreenderia uma rotina que faz parte da experiência moral de cada lugar, ou seja, seria “um meio pelo qual os membros desse microcosmo buscam exprimir e defender seu próprio investimento nos valores locais” 42.

Por este âmbito, o estigma, então, não seria um processo exterior e comum a todas as sociedades, mas exprimiria as emoções morais dos mundos locais e das vidas individuais gerados na ameaça ou no contato com o perigo43.

Sob este parâmetro, pode-se pensar no adoecimento pela tuberculose como uma vivência estigmatizante somente a partir de um mundo local que a construiu como tal. A tuberculose pode não ter dizimado vítimas, pode não ter sido alvo de preocupações públicas, pode não ter sido

42 Para ilustrar sua interpretação o autor demonstra como as duas sociedades, chinesa e americana, lidam com o portador de sofrimento psíquico. Na China, a família tende a esconder os filhos os quais apresentam uma patologia mental. Visto que na China o que importa é antes de tudo a família e as relações de proximidade, os portadores de patologia mental são tratados como uma ameaça a essas relações. Por outro lado, o que define a ideologia nacional americana são a autonomia e a responsabilidade pessoal, as quais ficariam comprometidas no caso de uma doença ou deficiência mental. Portanto, os doentes e deficientes mentais são estigmatizados de um lado porque são percebidos como perigo para eles mesmos e para os outros e, por outro lado, por serem considerados como incapazes de exercer a ideologia nacional. KLEINMAN, A. Santé et stigma... Op. Cit. p. 99.

43 Partindo da concepção de que o estigma não é algo exterior aos indivíduos, ele não pode ser combatido por mensagens antiestigmatizantes ou fazer-se objeto de uma legislação constrangedora sobre os direitos dos pacientes.

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reconhecida como um problema social em outras sociedades, pode não ter propiciado o isolamento de pessoas, e, por fim, pode não ser estigmatizada em outro mundo local. Tal compreensão retira o caráter de estigma da doença em si, e o coloca sob as relações que se dão ao seu redor.

No campo da filosofia, um estudo que trata mais especificamente do estigma relacionado à tuberculose é o trabalho de Susan Sontag44. O elemento novo que recortei para auxiliar a presente pesquisa é sua reflexão sobre as metáforas que acompanham algumas doenças. Nesse estudo, a autora descreve como tanto a tuberculose quanto o câncer foram intensamente e de modo similar sobrecarregados com ornamentos da metáfora que acresciam o estigma associado a estas duas patologias. Ela entende que essa sobrecarga de significação acompanha qualquer doença cuja causa se apresente misteriosa e cujo tratamento não seja eficaz. No entanto, ainda que se encontre a causa e o tratamento para determinada doença, essas metáforas não deixam de existir abruptamente, pois são configuradas a partir das representações socialmente construídas.

Sontag identifica que, no final do século XIX e início do século XX, a tuberculose representava uma metáfora ambivalente, ou seja, tanto como símbolo de refinamento quanto como de um flagelo social45. As repercussões destas metáforas seriam observadas no modo como os indivíduos respondem ao contato com a doença.

Em outro trabalho46, Sontag descreve como as metáforas militares são utilizadas para descrever as doenças e elucidá-las nas campanhas de saúde pública. Sob este aspecto, a doença

Os princípios éticos de alto nível, como a solidariedade, teriam, então, pouca chance de serem eficazes para transformar a experiência moral de um lugar. KLEINMAN, A. Santé et Stigmate. Op. Cit. p. 99.

44 SONTAG, S. A doença como metáfora. Tradução Marcio Ramalho. Rio de Janeiro: Graal, 2002. 108 p. 45 Ibid. p. 80.

46 SONTAG. S. Aids e suas metáforas. Tradução Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 111 p.

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representa a invasão de um inimigo no organismo e que, portanto, contra o invasor se deve travar uma guerra, uma luta para combatê-lo. Essa transformação da doença em inimigo levaria à atribuição de culpa ao doente por portar algo tão devastador. Desta forma, a reputação da doença contribuiria para a estigmatização daqueles que são por ela acometidos, pois ao se enfatizar a ameaça que a doença representa para a coletividade se incita o medo e, consequentemente, se levantam barreiras, reais ou imaginárias, contra a temível contaminação por seus hospedeiros47.

Pode-se pensar que o uso destas metáforas nas campanhas de combate, nos programas de

controle, na luta contra a tuberculose, faz travar um sistema bélico legitimando a doença como

algo tão arrasador, e que, de certo modo, contribui para a estigmatização dos seus portadores.

Atualmente, há um elemento novo associado à tuberculose que pode acrescer ainda mais o estigma de contágio: a Aids48. Isso porque desde o advento da Aids a tuberculose tem sido uma das doenças que mais acomete os portadores de HIV. Diante de tal incidência, mesmo os pacientes que não portam a co-infecção, podem sofrer com o estigma, pois a associação entre estas duas patologias pode estar presente. E assim como a Aids, a tuberculose pode sugerir um modo de contaminação por transgressão social. Ou seja, o modo de contaminação estaria estreitamente relacionado às condições de vida do infectado.

47 SONTAG. S. Aids e suas metáforas... Op. Cit. p.95. 48

A co-infecção tuberculose - Aids acomete em média 20 % dos doentes com tuberculose. Neste sentido, o advento da Aids intensificou a preocupação da saúde pública com a tuberculose. Isso porque a maioria dos doentes com tuberculose que evoluem para óbito tem Aids e a infecção pelo HIV pode elevar em 25 vezes o risco de desenvolvimento da tuberculose doença. OLIVEIRA, H. et al. Perfil de Mortalidade de Pacientes com tuberculose relacionada a comorbidade Tuberculose – Aids. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 4, p 503-510, 2004. KEIT-PONTES, L. et al. Tuberculose associada à Aids: situação da região do nordeste brasileiro. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 4, p. 323-329, 1997. Ver também: LOPES, M. S. Estudo qualitativo de características psicossociais de pacientes contaminados pelo HIV. 1993. 210 f. Dissertação (Mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993. Esta última referência trata-se de um estudo realizado a partir de entrevistas com pacientes soropositivos que aborda o momento da comunicação do diagnóstico e as mudanças ocorridas em suas vidas.

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No Brasil, ao que tudo indica, o trabalho pioneiro que procurou demonstrar os aspectos sociais e psicológicos dos doentes de tuberculose foi escrito em 1950, pelo sociólogo Oracy Nogueira49. Ele descreveu as representações sobre a doença referidas pelos doentes internados em sanatórios naquela época e identificou alguns “mecanismos de defesa” dos tuberculosos para lidar com o estigma associado à doença. O uso de gírias entre os doentes para evitar os termos considerados pejorativos é um dos mecanismos de defesa que ele descreve50.

O autor refere que quando saudável, o indivíduo aprendeu a olhar a doença, o doente e o ambiente sanatorial como as outras pessoas que o cercam. Uma vez doente, ele hesitará em aceitar a nova concepção de si mesmo, emoldurada pelas noções e atitudes estigmatizantes51.

Outro “mecanismo de defesa” utilizado pelos doentes de tuberculose que ficavam durante anos internados em sanatórios foi demonstrado em um trabalho mais recente, pelo historiador Bertolli Filho52. Ele se dedica a compreender, a partir da análise de depoimentos, diários, contos, poesias e romances produzidos pelos doentes de tuberculose, como estas formas de expressão de angústias tendiam a amenizar o estigma provocado pela condição de enfermo. Nos longos períodos de espera da cura ou da morte, pouca coisa poderia ser feita pelos doentes saturados pela mesmice do cotidiano sanatorial53.

Foi possível, por fim, considerar que o adoecer traz implicações que perpassam desde as instâncias institucionais até a vivência psicológica de cada indivíduo. Portanto, para se

49

NOGUEIRA, Oracy. Vozes de Campos do Jordão... Op. Cit.

50 Na gíria dos tuberculosos, “curado” significava defunto e “goiaba” era o termo utilizado para identificar uma moça tuberculosa, “corada por fora e bichada por dentro”. Ibid. p. 43.

51 Ibid. p 55.

52 Cf. BERTOLLI FILHO, Cláudio. História Social da Tuberculose e do Tuberculoso... Op. Cit. 53

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compreender como cada um vivencia o adoecimento e como conduz seu tratamento seria importante considerar os vários aspectos envolvidos neste processo.

Há pouco mais de meio século, os tuberculosos padeciam de uma doença de cura incerta, que os excluía do mundo saudável por anos, e que os fazia representar uma ameaça constante por portarem um agente patogênico que golpeava duramente as preciosas vidas. Não surpreende que com esse cenário estes doentes tenham sido estigmatizados. Mas o que se tem hoje para que o estigma permaneça?

Mesmo que tenham ocorrido modificações nas formas de diagnóstico e tratamento dos doentes, ainda que a possibilidade de cura tenha se tornado mais efetiva, da era sanatorial aos dias atuais, na nossa sociedade, algumas representações da doença e dos doentes podem ter se renovado, mas nem todas deixaram de existir54.

Desenvolvimento da Tese

Este trabalho está dividido em dois capítulos. No primeiro capítulo, investigo como o estigma se propagou no início do século passado. A hipótese formulada foi a de que os médicos, baseados na terapia “higieno-dietética” que priorizava o isolamento, teriam sido importantes porta-vozes do estigma ao atestar a exclusão social dos tuberculosos. O capítulo foi desenvolvido a partir da pesquisa realizada em publicações jornalísticas, de 1920 a 1967, da cidade de São José dos Campos - SP, considerada como centro de tratamento da tuberculose na primeira metade do século XX. Ancorada em três tipos dessas publicações - o Correio Joseense, da imprensa local; o

54

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Boletim Médico, destinado tanto aos especialistas da área quanto ao público em geral; e Os “Oios” da Coruja, publicação semanal das doentes internadas em um dos sanatórios, foi possível

entender melhor como o medo do contágio se propagou e a sua relação com o isolamento dos doentes.

No segundo capítulo, busco, a partir de entrevistas com doentes, comparar a maneira como homens e mulheres respondem à doença, sobretudo, ao estigma relacionado a ela. A hipótese se assentou na diferença sexual, que, junto com autores como Pierre Bourdieu e Michèle Ferrand, eu considero como socialmente construída. Desta maneira, a sociedade “naturalizaria” algumas tendências que podem ser observadas nas distintas formas em lidar com o adoecer, como, por exemplo, o fato de o consumo médico ser mais elevado entre as mulheres.

Não é natural que homens e mulheres percebam a doença de formas diferentes, entretanto, isso teria influência no modo como buscam e conduzem seus tratamentos. Acredito que por esta razão, diante de uma doença estigmatizada ou estigmatizante, ambos não compartilham das mesmas respostas. No caso da tuberculose, para os homens doentes o que mais importaria seriam as consequências físicas debilitantes – “as dores do corpo”, enquanto para as mulheres, seriam os efeitos emocionais que a doença poderia trazer – “as dores da alma”.

Para investigar essa hipótese foram realizadas, inicialmente, entrevistas com oito doentes de tuberculose, do ambulatório público no município de Jacareí-SP, que realizavam o tratamento em regime ambulatorial no momento da entrevista. Posteriormente, ampliou-se a amostra, sendo entrevistados mais seis doentes que já tinham concluído o tratamento, totalizando sete mulheres e sete homens entrevistados.

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Eu havia acompanhado todos estes doentes durante a realização do tratamento, tendo, portanto, estabelecido um vínculo com cada um deles. Com exceção de uma mulher que referia não querer se expor comparecendo mais vezes ao serviço de saúde e que ficaria mais à vontade se fosse entrevistada em sua residência, aqueles que estavam em tratamento no momento da pesquisa foram entrevistados no próprio ambulatório em dias e horários distintos da consulta médica. Já os que tinham concluído o tratamento foram entrevistados em sua própria residência, sugestão feita por mim, tendo em vista que naquele momento eu não mais trabalhava naquele ambulatório.

A fim de comparar se as divergências observadas entre os homens e as mulheres estavam presentes em outro local que, diferente de Jacareí, não estava próximo de uma cidade que se configurou como centro de tratamento da tuberculose do início do século passado, foram realizadas outras dez entrevistas, mais curtas e pontuais, no Ambulatório de Tisiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

Nesta amostra, todos os pacientes, cinco homens e cinco mulheres, estavam em tratamento para a tuberculose no momento da entrevista e todos foram convidados a participar da pesquisa, no momento em que aguardavam ou já tinham sido atendidos pelos agentes de saúde daquele ambulatório.

O número total de entrevistados neste estudo corresponde a 20% da média de doentes atendidos no ano por estes dois ambulatórios. Todas as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Em Jacareí, as entrevistas tiveram, em média, a duração de uma hora, enquanto na UNICAMP duraram aproximadamente trinta minutos.

Referências

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