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Academic year: 2021

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Cinema e educação: por uma pedagogia indisciplinada

da imagem

Maurício de Bragança Doutor em Letras/Universidade Federal Fluminense/ Professor Adjunto do Departamento de Cinema e

Video e Professor do corpo permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. Coordenador do curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF. Bolsista PQ 2 do CNPq

Resumo

A ubiquidade das telas e do audiovisual na sociedade contemporânea exige uma reavaliação da utilização de imagens como recursos pedagógicos na sala de aula. A complexidade destes registros necessita uma nova postura do educador, que deve enfrentar este corpo a corpo com a imagem através de uma aproximação às teorias próprias do audiovisual como forma de preservar-lhes sua potência política e estética. Este artigo discute a impropriedade da adequação do audiovisual ao mero uso conteudístico pautado pelo perfil das disciplinas, a fim de evitar a domesticação da imagem e sua subserviência a contextos escolares.

Palavras-chave

Audiovisual, escola, disciplinas escolares, cinema e educação

Abstract

The ubiquity of screens and audiovisual texts in contemporary society requires a reassessment of the use of images as learning resources in the classroom. The complexity of these records demands a new attitude of the educator, who must face the images through an approach to audiovisual own theories as a way to preserve their political and aesthetic power. This article discusses the impropriety of the adequacy of the audiovisual to the contents defined by the profile of the disciplines in order to avoid the domestication of the image and its subservience to school contexts.

Keywords

Audiovisual, school, school subjects, cinema and education

Introdução

Sabemos da preponderância de uma cultura visual na contemporaneidade e da necessidade urgente de uma sensibilização do olhar nesse panorama de ubiquidade de telas e de registros audiovisuais. O mundo das imagens e do audiovisual, em particular, organiza as sociedades e as formas como as relações sociais se estabelecem no âmbito da cultura. Isso implica não apenas no fato de que o ambiente das novas tecnologias nos proporcionou uma maior intimidade com os processos de realização de textos audiovisuais mas, sobretudo, no aspecto de que o audiovisual demanda novas práticas de leitura, articuladoras dos processos de mediação dos quais somos agentes ativos. Esse corpo a corpo com as imagens exige uma mobilização intelectual capaz de promover o enfrentamento não de forma ingênua ou neutra, mas que nos permita compreender que os textos audiovisuais são carregados de proposições estéticas e políticas.

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A nova escola já percebeu a irreversibilidade do enfrentamento das imagens, confirmada pelas inúmeras pesquisas que hoje em dia comportam as relações entre as várias disciplinas e o universo imagético. O mercado editorial voltado para a produção de livros didáticos está cada vez mais aberto à recepção destas perspectivas interdisciplinares que percebem a inevitabilidade do contato com as imagens e o universo audiovisual. Podemos dizer que, hoje em dia, é praticamente impossível pensarmos em estudar biologia, história, literatura ou qualquer outro conteúdo disciplinar constante das grades dos currículos do ensino básico sem estarmos sensíveis ao contato com as imagens e às práticas que demandam estes encontros.

Esse enfrentamento, no entanto, exige que se compreenda a natureza desestabilizadora da produção audiovisual e sua capacidade de colocar em xeque os regimes de afirmação contextual que compõem os horizontes disciplinares. E é exatamente nesse ponto que percebemos o descuido, de grande parte dos educadores, que insistem em tratar os textos audiovisuais como meros apêndices confirmadores das teses disciplinares com as quais trabalham. Esse desacerto advém de uma falta de intimidade com as teorias da imagem e do audiovisual, que percebem a complexidade discursiva e estética destes textos, demandando mais do que boas intenções na utilização do cinema e do audiovisual aliados aos conteúdos disciplinares em sala de aula. Corremos o risco de, ao desconsiderar esta especificidade teórica, despolitizarmos o texto audiovisual e pensarmos esses registros apenas como reflexo dos conteúdos a serem tratados.

A imagem tem uma capacidade de instabilidade e questionamento que, antes de ser domesticada através de apropriações didáticas ou utilitaristas, deve ser evidenciada como forma de garantir sua potência. O que vemos, em geral, nas rotinas de utilização das imagens em sala de aula, é uma redução dessa capacidade desafiadora do discurso audiovisual em função de uma acomodação do texto imagético às teorias disciplinares que estão sendo trabalhadas. O resultado é uma subserviência da imagem às disciplinas, reduzindo de forma drástica e arbitrária a radicalidade das proposições inerentes ao universo das imagens e do audiovisual.

Gostaríamos de evocar uma experiência singela e corriqueira, porém bastante ilustradora dos desafios impostos pela abertura às experiências de contato com as imagens inseridas numa prática de intenção pedagógica. Ainda no início do meu trabalho como professor de história da rede estadual de ensino do estado do Rio de Janeiro, recém-saído da universidade no início da década de 1990, deparei-me com a dificuldade encontrada em uma turma da 5ª. série do antigo regime de ensino. Esta era uma turma de uma cidade do interior do estado, que apresentava uma carência no conteúdo básico da disciplina relacionada à História e Estudos Sociais. Aqueles alunos não conseguiam conceber, por exemplo, a ideia de tempo a partir da divisão por unidades de século. Não conseguiam, portanto, identificar claramente o que significava a ideia de século XX, século XIX, Idade Moderna, conceitos e unidades temporais que construímos para definir uma abordagem ocidental da história. Para propor uma reflexão sobre o conceito de tempo com a turma, preparei uma aula baseando-me em várias coleções de imagem que sugeriam a ideia de “presente” e “passado”. As imagens traziam mulheres em figurinos do século XIX, carruagens, aparelhos eletrônicos, meios de transportes contemporâneos e antigos, paisagens de várias épocas distintas, dentre várias outras imagens que evocavam registros ligados ao passado e ao presente.

Dividi a turma em duplas e, para cada uma, distribuí uma coleção de várias dessas imagens solicitando que eles agrupassem esses repertórios em dois conjuntos, sem definir a

priori o conceito que iria orientar a separação dessas imagens. Ao final, as duplas

apresentariam suas seleções que, na minha ingênua expectativa, iriam confirmar a apropriação das imagens a partir destas ideias com as quais gostaria de trabalhar: passado e presente.

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Minha surpresa se deu ao constatar que as imagens vieram agrupadas a partir de várias percepções distintas: havia quem tivesse observado que as imagens podiam ser coloridas ou em preto e branco; outros notaram que as figuras eram recortadas de forma retangular ou de forma arredondada; alguns perceberam que parte das imagens apresentavam pessoas e outras, objetos; outro grupo observou que algumas imagens eram registros fotográficos e outras eram figuras desenhadas. Eu, particularmente, absorto na minha legítima, porém ingênua, intenção de orientar a discussão preparada para aquela aula, não havia sequer cogitado a possibilidade de outros resultados que não aqueles que orientavam os meus objetivos e nem havia observado as múltiplas diferenças daqueles conjuntos de imagem.

Diante dessas várias possibilidades apresentadas pela turma, que frustravam o meu interesse inicial, tive a oportunidade de perceber a dificuldade que se instaurava ao depararmo-nos com as imagens: elas remetiam a percepções distintas e nos desafiavam de formas diferentes. Esse episódio, quase simplório de tão cotidiano, registro rotineiro de muitas práticas comuns no ato pedagógico de inúmeros professores do ensino básico, nos impõe uma série de reflexões, demonstrando a complexidade do trabalho de enfrentamento das imagens em âmbito coletivo numa sala de aula. Aqui, nos debruçávamos sobre ilustrações e registros fotográficos, mas se pensarmos na utilização de produtos audiovisuais, a complexidade dos textos tende a ser ainda maior. De qualquer maneira, este episódio pode ser bastante profícuo e propositor de uma série de reflexões em torno da utilização de imagens e textos audiovisuais na sala de aula, ajudando-nos a pensar algumas questões fundamentais que pautam a relação entre educação e o audiovisual.

Uma primeira questão que nos surpreende no relato é da ordem da mediação. Aquelas imagens funcionavam como textos mediadores que estabeleciam conexões entre uma ideia de realidade histórica, representada pelos símbolos evocados, e o mundo a qual estes observadores pertenciam. No meu imaginário, uma charrete e cavalos, por exemplo, pertenciam a um mundo deixado para trás, devido a minha experiência eminentemente urbana. Estas figuras evocavam um tempo passado, superado, por exemplo, pelos meios de transporte como aviões, trens balas e foguetes. A minha insensibilidade e distanciamento da vivência daquela comunidade de alunos me impediam de perceber os cavalos que ainda serviam como meio de locomoção naquele ambiente de características marcadamente rurais.

Neste sentido, inspirados pelas proposições metodológicas de Martín-Barbero (2001; 2014), devemos deslocar o foco metodológico da “imagem como meio” para a “imagem como processos de mediação”, capaz de desvelar os distanciamentos e as relações hegemônicas implicadas naquelas práticas de leitura da imagem, priorizando as articulações entre as práticas de comunicação nas quais se esboçam diferentes temporalidades e a pluralidade de matrizes culturais. Assim, “pensar a linguagem como mediação é pensá-la ao mesmo tempo como feita de signos e prenha de símbolos”, em que “o símbolo não se presta à fria análise das estruturas, mas reaquece e contamina tudo com o excesso e o conflito das interpretações” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 31).

Relacionar as imagens ao âmbito das mediações, como processos capazes de organizar mundos e construir realidades, não exclui, no entanto, a experiência do enfrentamento direto entre o espectador e as imagens. Pelo contrário, tais processos são atravessados pela fantasia, pela capacidade que essas imagens apresentam de superar o real e proporcionar a experiência da invenção de mundos para além da ideia de representação. Neste sentido, os filmes apelam para a fantasia, a intuição, a imaginação e as emoções, que não cabem no modelo explicativo com que os professores costumam enfrentar o texto fílmico. É nessa chave que a educadora e pesquisadora Adriana Fresquet (2013) ressalta o potencial “deseducador” do cinema, no sentido em que os filmes, muito frequentemente, não se adéquam ao regime normatizador com que se construiu o ambiente escolar.

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A escola, mesmo sem ser uma prisão, é o lugar da regra, da ordem, da transmissão de determinados saberes considerados essenciais para a formação das crianças e dos adolescentes. O cinema entra na escola como um gérmen de caos e desordem. Já temos um belo contraste. Uma tensão (FRESQUET, 2013, p. 45).

É nesse caos estimulado pelos filmes que os alunos e os professores experimentam novas formas de ser e estar no mundo, expandindo processos de subjetivação e exercitando práticas de leitura contaminadas pelo potencial intuitivo em desacordo com metodologias tradicionais desenvolvidas pelos registros científicos que marcaram a formação do conhecimento pelas disciplinas.

Dessa forma, ao estabelecermos o potencial discursivo presente nas mediações que os textos audiovisuais apresentam, podemos pensar, como nos sugere Martín-Barbero (2014, p. 10-11), que a educação é, antes de tudo, um processo comunicativo que envolve três dimensões fundamentais: seu vínculo com a cultura; seu compromisso com a capacitação dos alunos (que permita sua inserção no campo de trabalho); e sua responsabilidade na formação de cidadãos comprometidos com o ideal de uma sociedade justa e democrática. É nessa perspectiva que o autor colombiano evoca os estudos de Antonio Gramsci e Paulo Freire, como forma de evidenciar a comunicação como processo social e como campo de batalha cultural (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 21), capaz de superar, na nossa compreensão, dualidades reducionistas que vinculam olhar e passividade, mediação e simulacro, imagem e disciplina, ou ainda, saber e hierarquia.

Retomando, portanto, o exemplo da aula frustrada acima citada, chegamos a uma segunda questão: ao pensarmos os textos audiovisuais como processos de mediação, apostamos também na suspeita da própria relação hierárquica que tradicionalmente se construiu entre “aquele que ensina” e “aquele que aprende”. Essa lógica que preservou o papel da escola como reprodutor ideológico é posta em xeque a partir da ideia de que os saberes são recicláveis e, sobretudo, algo que só existe em relação. O texto audiovisual se organiza a partir das apropriações simbólicas que produzem sentido aos grupos e, sob este aspecto, descredenciam o a priori que o saber disciplinar autoritariamente insiste em afirmar. As imagens, ao contrário, instauram a suspeita, desarticulando as relações de poder que o mestre, como explicador/tradutor de imagens, tenta preservar. Os textos audiovisuais demandam o exercício efetivo de práticas de leituras que desautorizam a hierarquização de saberes e, para isso, o educador deve estar ciente de que estes textos são polifônicos e abertos às mais diversas produções de sentido.

Denunciar a hierarquia de poder que se estabelece dentro da sala de aula impõe uma outra abordagem do texto audiovisual. Estas imagens devem ser encaradas não como um mero reflexo contextual ou como um dispositivo a serviço de um projeto político pautado apenas pelos modelos de representação que preservem o status quo disciplinar, mas sobretudo como práticas discursivas complexas que incorporam as contradições próprias ao diálogo interdisciplinar. Nesse modelo de apropriação das imagens, se estabelece “uma dialética da crença e da dúvida”, como pontuou Jean-Louis Comolli (2008), que declara que

no cinema, a dúvida, já que ela é articulada com a verdade da inscrição, sempre é trazida por uma crença; dúvida e certeza se combatem e voltam a atuar em um movimento sincrônico, e essa alternância define o lugar do espectador como lugar incerto, móvel, crítico (COMOLLI, 2008, p. 171).

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É exatamente nesse ponto que devemos insistir numa espécie de suspeita da imagem, que faz com que o espectador se sinta convocado a interagir com o que assiste, não a partir de uma interpretação que busque “o significado do filme”, mas como problematizador do próprio estatuto da imagem sob aquilo que o mesmo Comolli aponta como “o risco do real”. “O cinema não existe apenas – isto já é muito – para tratar do mundo e da realidade que nos define. Ele deve também inscrever cinematograficamente sua potência e complexidade. O monumental e o ínfimo” (COMOLLI, 2008, p. 170).

É necessário insistir numa espécie de reeducação do olhar frente às imagens como maneira de sustentar a suspeita inerente a qualquer texto audiovisual a que o teórico francês faz menção. É neste sentido que a “indisciplinaridade da imagem” demanda a formação de um educador que problematize nossa relação frente às provocações impostas pela complexidade dos textos audiovisuais.

Tais provocações se organizam em torno da ideia de que o contato com os filmes, por exemplo, se dá não apenas a partir de um encontro com textos narrativos que propõem uma discussão, mas sobretudo que tais textos se configuram um mergulho no vazio e no insondável proposto pelo universo da arte. Assim, da mesma forma que assistimos ao filme, essa experiência espectatorial também indica que o filme, de alguma forma, nos “lança um olhar”. Ele nos interroga, ele demanda uma leitura sobre nós mesmos, no eixo daquilo que Georges Didi-Huberman nos desafia em “O que vemos, o que nos olha”: “E eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 30). Nesta dinâmica da relação entre o espectador e a arte, se o objeto é apreendido pelo nosso olhar, nós também somos capturados pelo objeto, promovendo uma espécie de aproximação e afastamento que organiza a arquitetura de olhares nesse em a que Didi-Huberman faz menção. A proposta é radical e nos impele a um mergulho interior motivado pela circularidade de olhares que se impõe na nossa relação com a arte: “devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui” (ibidem, p. 31). Para o cineasta brasileiro Rogério Sganzerla (2001, p. 31), sob um determinado ponto de vista, esse também foi um desafio proposto pelo cinema moderno, ao intuir uma nova relação entre o espectador e a tela.

Hoje o espectador não é iludido pela tela: passou a época da fascinação e do deslumbramento alienante. De certa maneira, ele tem consciência de sua situação – de que é um espectador, nada mais (“Bandido Giuliano”, “Viver a vida”). O público não precisa aceitar em bloco o filme e as ideias contidas: é preciso dar-lhe liberdade para que possa pensar e concluir por si mesmo. Desde “Cidadão Kane”, o espectador é um homem livre, seja para refletir os fenômenos sociais (Visconti, Rosi), seja para observar o mecanismo da tragédia (Welles, Losey), ou simplesmente para deixá-lo livre (Godard). Além da verdade do autor, na relatividade do cinema moderno impõe-se a verdade do espectador.

Essa dimensão constitutiva da subjetividade do olhar destitui qualquer possibilidade de condução dessa experiência por parte de um “educador” munido de um protocolo de prévias intenções. Desprovido desse saber apriorístico domesticador diante do texto audiovisual, o novo educador repropõe o estatuto da imagem ao mesmo tempo em que recusa a verticalidade como eixo de construção de saberes. Dessa forma busca incentivar nos alunos aquilo que Jacques Ranciére (2012) identifica como o “espectador emancipado”, capaz de, através da experiência, pensar as imagens em relação, constituindo uma práxis que tensiona a dicotomia olhar/agir.

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A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição das posições. O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si (RANCIÈRE, 2012, p. 17).

O aluno envolvido nesse processo emancipador percebe, a partir de uma formação teórica e prática, que a leitura de um filme é um gesto que se configura como práxis política num processo de reeducação do olhar. Essa é a virada epistemológica fundamental necessária para que possamos enfrentar os textos audiovisuais não mais como apêndices ou ecos de uma realidade objetiva ou contextual, como tradicionalmente são utilizados nas práticas dos educadores do ensino básico que convocam o audiovisual como recurso em sala de aula. É neste sentido que devemos apostar numa sensibilização dos educadores que trabalham com o cinema e audiovisual a partir de uma aproximação às teorias próprias ao universo da imagem como forma de prepará-los para a emancipação de espectadores desde o âmbito do ensino fundamental e médio. É importante ressaltar, mais uma vez, que esse processo de emancipação, como nomeia Rancière, se dá de forma coletiva, na qual professor e aluno se colocam como espectadores que experimentam, juntos, os desafios impostos pelos textos audiovisuais. Estes, por sua vez, nesta perspectiva emancipadora, não podem ser silenciados por apropriações meramente contextuais e disciplinares que, na verdade, oprimem o espectador, tornando-o refém de uma leitura já previamente indicada. É nesse horizonte que, recuperando os escrito de Paulo Freire, podemos pensar a emancipação do espectador anunciada por Jacques Rancière, como um processo de democratização das práticas de leitura e de libertação do olhar frente ao processo domesticador imposto pela leitura disciplinarizada:

O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de percepção da realidade que tenham os oprimidos, é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo pelo antidiálogo, pela sloganização, pela verticalidade, pelos comunicados é pretender a libertação dos oprimidos com instrumentos de “domesticação”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá-los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra (FREIRE, 2014, p. 72).

A partir deste trecho esclarecedor de Paulo Freire, podemos pensar que o uso meramente disciplinarizado da produção audiovisual funciona como uma espécie de verticalização de saberes, na qual a leitura conteudística proposta pelo professor, ainda que motivada por nobres intenções, já indica previamente o caminho para a apropriação do texto, que está a serviço de uma confirmação contextual como forma de “salvar os alunos desse incêndio”, sem deixar que eles mesmos percebam os caminhos de fuga.

É preciso que pensemos possibilidades de deslocar o lugar do espectador a um ponto de questionamento crítico do próprio estatuto da imagem na cultura contemporânea. Isso faz parte de uma nova proposta de consciência crítica que viabilize uma outra leitura do mundo, pelas imagens, conjugada às práticas de interpretação próprias da cultura letrada. Esse é um outro desafio imposto pela contemporaneidade, que insere o audiovisual como um texto que

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deve ser enfrentado e lido na mesma importância que a produção vinculada ao universo do letramento. A nova escola não pode mais fugir deste desafio, proporcionar o ambiente necessário para o desenvolvimento da capacidade crítica das imagens, articulada à interpretação e leitura dos textos tradicionais. As práticas de leitura, na cultura contemporânea, conjugam a imagem, as sonoridades e as letras, de forma que a articulação entre essas linguagens contribuam para o desenvolvimento de uma capacidade de crítica e de reflexão. Martín-Barbero mais uma vez nos ajuda a pensar a questão, ao denunciar o preconceito com que os intelectuais mais tradicionais e o próprio ambiente de uma escola conservadora costumam tratar o audiovisual:

Boa parte do mundo adulto, e em especial o acadêmico, atribui aos meios audiovisuais a causa da crise da leitura e do empobrecimento cultural em geral. (...) Enquanto o livro é declarado espaço próprio da razão, do argumento, do cálculo e da reflexão, o mundo da imagem massiva é reduzido ao espaço das identificações primárias e das projeções irracionais, das manipulações consumistas e da simulação política (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 45).

É a aposta no surgimento de uma outra atuação de cidadania, estimulada pelo exercício de leitura problemática das imagens e pela possibilidade de intervenção social, que essa interação sujeito/imagem agencia. Como ler as imagens? Como estabelecer uma relação crítica com os textos audiovisuais que nos permita suspeitar da própria narrativa fílmica e não nos manter “fieis” às proposições em questão. A proposta é desafiadora e estimulante, uma vez que coloca em xeque a estabilidade do nosso próprio lugar de leitor/espectador, em busca de uma postura que seja capaz de abandonar nossa cômoda posição de observador e assumir uma atitude que conjugue a ideia de conhecimento e ação, num processo de emancipação intelectual já mencionado.

Essa preocupação vem a reboque da própria necessidade de mudanças do funcionamento da escola como dispositivo de produção de subjetividades no contexto contemporâneo. A escola é um organismo vivo que deve responder aos estímulos de formação de novos corpos, subjetividades e sensibilidades próprias aos desafios da sociedade atual. A escola tradicional não atende mais a essas demandas e, muitas vezes, reside nesse desencaixe os motivos da falência de um projeto pedagógico mais conservador.

Se o século XX foi atravessado pela cultura midiática e a superexposição de discursos visuais, a virada do século XXI tensionou ainda mais nossa relação com a produção audiovisual. As novas tecnologias e a chegada massiva dos dispositivos digitais trouxeram novos e urgentes desafios para a escola, que não pode mais se pautar apenas, ou fundamentalmente, na cultura letrada. Sobre essas mudanças, e as incompatibilidades que elas geram no âmbito da escola, nos aponta Paula Sibilia (2012, p. 198):

É uma transição entre certos modos de ser e estar no mundo – que, certamente, eram mais compatíveis com o colégio tradicional e com as diversas tecnologias dessa linhagem escolar – e as novas subjetividades que atualmente florescem, e que manifestam sua flagrante incompatibilidade com tais ferramentas enquanto se ensamblam com outros artefatos.

Nessa perspectiva, é muito importante que as escolas dialoguem com as novas tecnologias, e mais que isso, proporcionem uma reflexão crítica acerca dos processos de

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mediação nos quais se inserem os dispositivos digitais e a produção e circulação de imagens virtuais. Aqui a contribuição da Educomunicação é fundamental. Nessa proposta metodológico-pedagógica, a educação é enfatizada na sua interface com os processos de comunicação, numa dinâmica interdisciplinar, colaborativa e multimidiática. A dimensão do audiovisual se expande para além do cinema, incluindo também a fotografia, games, e a produção de imagens compartilhadas nas mídias sociais.

Essa nova concepção de educação, trabalhada no âmbito do ensino fundamental e médio, representa uma perspectiva mais democrática e menos hierarquizada nas relações com os artefatos e dispositivos tecnológicos sem, no entanto, deixar de problematizá-los em sua dimensão social. É nesse horizonte, também interessada na dimensão comunicacional do processo educativo, que Paula Sibilia, encaminha sua discussão acerca da obsolescência da escola, instituição concebida a partir de um modelo adestrador de corpos a serviço de uma espécie de “cruzada disciplinadora” (SIBILIA, 2012, p. 201) capaz de fornecer as bases de manutenção da sociedade moderna no século XIX.

A autora, ao desenvolver seus argumentos acerca da necessidade de superação deste modelo, reconhece a importância de uma interface tecnológica ao disseminar um outro processo de constituição de subjetividades na contemporaneidade. Nesse modelo, a presença permanente das telas e a hiperconectividade a partir dos múltiplos dispositivos eletrônicos se destacam como discussões fundamentais, que contribuem para uma profunda transformação das linguagens organizada em torno da civilização da imagem que se ergue nos escombros de uma cultura letrada.

Tendo atravessado um século inteiro sob a coruscante luz do cinema, e várias décadas de intenso contato com a televisão, a cultura atual está fortemente marcada pelos meios de comunicação audiovisuais e, mais recentemente, essa produção e circulação de imagens foi exponencialmente multiplicada com a irrupção triunfal dos dispositivos digitais (SIBILIA, 2012, p. 206).

Nesta paisagem contemporânea marcada pela profusão de dispositivos digitais e telas dos mais variados tamanhos espalhadas por todos os cantos, a escola enfrenta seu maior desafio ao lidar com novos agenciamentos e processos de constituição de subjetividades e articulações identitárias, nos quais a preponderância dos meios de comunicação audiovisuais é um aspecto fulcral, como aponta a autora.

Assim, como forma de avançar o debate, propomos uma reflexão acerca do investimento numa nova abordagem da imagem em ambiente escolar. Para isso, destacaremos alguns eixos de trabalho que podem orientar os educadores a lidarem com esses desafios, introduzindo uma pedagogia da imagem na escola dissociada de uma perspectiva meramente utilitarista como recurso pedagógico em sala de aula, mas sofisticando a formação do aluno no que concerne à leitura, apropriação e produção dos textos audiovisuais. Sobre essa tensão que o ensino do cinema pode proporcionar à própria natureza das práticas escolares, Adriana Fresquet

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2013, p. 62) nos diz: “O cinema provoca o devir da escola, prevê uma ‘outra escola’, renovando-se pelo exercício que só a alteridade permite. Eu diria que o cinema inclina a escola para a frente, mas também para trás, para os lados, ele a deixa de ‘pernas para o ar’ mais de uma vez; basicamente, ele a desestabiliza”.

Num primeiro eixo, o audiovisual é trabalhado a partir de uma reflexão teórica sobre a própria imagem, de forma a proporcionar um contato dos alunos com o texto audiovisual em sua articulação discursiva. Nessa perspectiva, a análise da imagem é encaminhada a partir de uma preocupação política aliada à estética e à linguagem dos textos audiovisuais, enfatizando

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uma conjugação do campo das artes e da comunicação. Aqui é fundamental também atentar para aspectos relacionados à linguagem cinematográfica, aos estudos da narrativa e a alguns conceitos teóricos principais. Essa abordagem permite ao aluno questionar os filmes e as imagens a partir de seu próprio campo de construção de conhecimento e horizonte filosófico.

Como compromisso a ser alcançado, a escola proporciona aos alunos desenvolverem uma intimidade com a linguagem cinematográfica que lhes permita fazer uma análise fílmica partindo da própria materialidade discursiva do filme e não a partir de simples especulações de gosto pessoal ou de objetivos de ordem utilitarista alheios à especificidade dos textos audiovisuais. Esse eixo apresenta uma função pedagógica muito clara vinculada à sensibilização e à autonomia do olhar do espectador na percepção das especificidades do discurso construído pelo texto audiovisual. Além disso, esse cuidado teórico permite uma ampla abordagem de textos de naturezas diferentes, como a publicidade, o cinema, o universo dos games, os videoclipes, assim como textos midiáticos audiovisuais de uma forma geral.

Um segundo eixo de atuação na escola se dedica à formação de público e à constituição de um repertório em torno da produção de imagens. Num processo de aprendizagem de leitura do texto audiovisual, é fundamental que se pensem estratégias voltadas à constituição de referências que ajudem a entender estes textos como um processo, constituído a partir de uma dimensão histórica e dos diálogos que se constroem na própria relação com uma tradição da produção de imagens. Assim, os discursos audiovisuais constroem-se também como práticas intertextuais e dialógicas que se revelam nas várias camadas de sentido que se apresentam a partir de suas filiações com a própria história e teoria. Desta forma, pensamos esses textos em relação, reduzindo a ênfase que geralmente é dada na vinculação com os objetivos curriculares disciplinares, procedimento que ameaça a polifonia dos textos audiovisuais ao torná-los subservientes ao contexto. Com o desenvolvimento desta prática, o grupo de alunos se sente mais confortável em pensar relações e diálogos possíveis de experiências diacrônicas e não lineares, ao mesmo tempo em que coloca em relação uma produção audiovisual de natureza diversa.

É importante perceber, neste eixo, uma crescente sofisticação do olhar sobre os textos e a construção de um arquivo de memória que permite ampliar as referências ressaltadas nas análises propostas. Um outro aspecto deste eixo é o incentivo de debates convocados pelos filmes, criando-se, a partir desta experiência, um fórum de discussão permanente na escola sobre os vários aspectos sociais e culturais sugeridos pelos filmes. Um objetivo deste núcleo é perceber que os filmes são experiências discursivas capazes de mobilizar importantes tensões presentes na cultura e na sociedade. Essa prática valoriza também a experiência coletiva ao estimular que os alunos e professores assistam aos filmes juntos e passam a discuti-los, enfatizando um aspecto fundamental da sociabilidade fílmica e do próprio processo de debate público para o exercício da cidadania. É importante ressaltar que essa experiência faz parte de uma tradição cineclubista, por exemplo, essencial para a constituição e manutenção de um capital simbólico em torno do cinema e de outras produções audiovisuais.

Num terceiro e último eixo de atuação, propomos a constituição de um núcleo de produção audiovisual, onde os alunos da escola participam de oficinas técnicas que os capacitam a produzir suas próprias narrativas audiovisuais. Neste laboratório de produção de vídeos, os alunos experimentam o deslocamento do lugar de espectador para o de realizador, através da construção de imagens. Estas práticas proporcionam uma experiência pedagógica importante complementar à aprendizagem do processo de leitura dos textos audiovisuais. Aqui, os alunos vivenciam a escritura destes textos, exercitando uma sensibilização de seu olhar sobre as suas próprias práticas de leitura sobre a vida e o mundo, através de narrativas audiovisuais e/ou experiências imagéticas pensadas em equipe. Os resultados destas experiências são também objeto de discussão no fórum cineclubista mencionado acima, de

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forma a ressaltar que os exercícios produzidos pela turma se inserem num espectro mais amplo de reflexão sobre o papel do texto audiovisual no mundo contemporâneo.

Assim, tendo como preocupação uma conscientização da autonomia do discurso imagético, associada a um estímulo à emancipação do olhar do espectador, acreditamos que a escola pode tornar-se um importante lugar de reflexão sobre o audiovisual na sociedade contemporânea. Para isso, como pretendemos discutir neste artigo, cabe ao professor, e à escola como um todo, perceber que estes textos se apresentam como discursos problemáticos capazes de deflagrar importantes reflexões de ordem estética e política se enfrentados e respeitados em toda a sua especificidade. A produção audiovisual não pode ser encarada apenas como um mero recurso metodológico vinculado ao cumprimento de um programa curricular, ajustado a uma leitura previamente estabelecida pela necessidade de confirmação de determinadas proposições conteudísticas.

Referências

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção,

documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 56. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. FRESQUET, Adriana. Cinema e educação – Reflexões e experiências com professores e

estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica

Editora, 2013.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. A comunicação na educação. São Paulo: Contexto, 2014. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

SIBILIA, Paula. A escola no mundo hiperconectado: redes em vez de muros? MATRIZes, São Paulo, Ano 5 – No. 2, p. 195 – 211, jan/jun 2012. Disponível em

Referências

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