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A FUNÇÃO DO FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO

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A FUNÇÃO DO FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO

Daiane da Silva Lourenço IC-Fecilcam, Letras, Fecilcam, dailourenco4@hotmail.com Me. Wilson Rodrigues de Moura (OR), Fecilcam, wilsonromoura@hotmail.com 1. Introdução

A literatura fantástica é um gênero literário pouco produzido no Brasil. Em nosso país, apareceu de forma mais elaborada apenas a partir do século XX. Em suas origens, esse gênero literário procurava causar espanto no leitor apresentando monstros, fantasmas e castelos assustadores. As publicações do último século, ao contrário, empregam elementos sobrenaturais não em forma de criaturas estranhas, mas de eventos inesperados que ocorrem no cotidiano das personagens. Tal mudança nos chamou a atenção, pois os fatos estranhos passaram a ser aceitos pelo leitor, no decorrer da leitura, como reais.

Devido a essas constatações, esse artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica a cerca das definições publicadas por teóricos sobre o gênero, que não é estanque, mas manteve, ao longo dos séculos, características como a hesitação do leitor, a inserção de fatos estranhos e a fusão do real e do irreal. Com o objetivo de compreender a função do gênero fantástico em narrativas, realizamos análises de alguns contos de Murilo Rubião, escritor considerado um dos precursores da literatura fantástica no Brasil. As análises tinham como pressuposto que todos os contos rubianos são fantásticos e os resultados comprovaram tal proposição. Por meio das análises de A Cidade, O Convidado, Os Comensais, percebemos que nos contos existem elementos que favorecem o aparecimento do fantástico e contribuem para enfatizar os problemas do ser humano presentes nos contos, são eles: a metáfora, a hipérbole e a metamorfose. Por isso, procuraremos além de mostrar a função do elemento fantástico nas narrativas rubianas, mostrar como esses elementos citados são importantes para que o fantástico apareça nos contos e consiga chamar a atenção do leitor para questões da sociedade.

2. O gênero literário fantástico

O fantástico teve suas origens em romances que exploravam o medo, o susto, porém, ao longo dos séculos, foi se transformando até chegar ao século XX como uma narrativa mais sutil. Volobuef (2000) afirma que tal gênero abandonou a sucessão de acontecimentos surpreendentes, assustadores e emocionantes para adentrar esferas temáticas mais complexas. Devido a isso, a narrativa fantástica passou a tratar de assuntos inquietantes para o homem atual: os avanços tecnológicos, as angústias existenciais, a

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opressão, a burocracia, a desigualdade social. Assim, o gênero fantástico deixou de ser apenas narrativa de entretenimento, pois “não cria mundos fabulosos, distintos do nosso e povoados por criaturas imaginárias, mas revela e problematiza a vida e o ambiente que conhecemos do dia-a-dia” (VOLOBUEF, 2000, p. 110).

As obras publicadas a partir do século XX têm sido estudadas por diversos teóricos, que procuram uma definição para as mesmas e analisam as semelhanças que possuem. A seguir, apresentaremos os resultados que obtivemos da pesquisa bibliográfica que realizamos sobre o gênero fantástico produzido no último século.

2.1. Literatura fantástica: tentativas de definição

Muitos trabalhos sobre a literatura fantástica já foram publicados no século XX, quando esse gênero ganhou mais destaque, porém foi a publicação da obra Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov, que deu início às discussões sistematizadas sobre o fantástico e é, por isso, considerada essencial para o estudo do mesmo, devido às análises profundas feitas pelo escritor.

Todorov (2004) antes de falar sobre o fantástico esclarece que ele deve ser entendido como um gênero literário. O autor apresenta algumas características presentes na maioria das narrativas fantásticas na tentativa de definir o gênero. Para ele, a essência do fantástico consiste na irrupção, em nosso mundo, de um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis racionais. É nesse momento que surge a ambigüidade, a incerteza diante de um fato aparentemente sobrenatural. O sentimento de dúvida causado no leitor permite, então, a aparição do fantástico. “A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2004, p. 36).

Tentando esclarecer o gênero fantástico, Todorov (2004) afirma a necessidade de que sejam preenchidas três condições para que um texto pertença a esse gênero:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, a hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem (...). Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética” (TODOROV, 2004, p. 39).

A primeira e a terceira condições constituem o gênero, já a segunda pode ou não ser cumprida. A natureza do fantástico estaria, nesse caso, relacionada à evocação de sentimentos no leitor, que se encontra diante de acontecimentos que fogem às leis naturais.

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Algumas afirmações feitas pelo teórico são contestadas em relação as narrativas fantásticas contemporâneas, já que Todorov estudou apenas narrativas do século XIX. Os textos fantásticos dos séculos XX e XXI têm características diferentes das publicações anteriores. Uma de suas afirmações contestadas é a proposição de que sempre no final da narrativa o leitor ou a personagem encontram uma explicação para os fatos sobrenaturais e o efeito do fantástico desaparece. Em muitas narrativas atuais, ao contrário, a hesitação diante do sobrenatural é mantida até o final.

Além de expor acerca de algumas características do gênero fantástico, Todorov (2004) trata de suas funções no texto, considerando-as como função literária e função social. A função social está presente nas narrativas porque o emprego do sobrenatural seria um pretexto para que os escritores falem sobre assuntos que não ousariam dizer na realidade, considerados “proibidos” na sociedade, como o incesto, a necrofilia, o homossexualismo. A função literária realiza a modificação do enredo da narrativa de forma mais rápida, rompendo o equilíbrio inicial.

A publicação da sistematização da literatura fantástica realizada por Tzvetan Todorov, no final dos anos 60, proporcionou a publicação de outros trabalhos sobre obras fantásticas focando, principalmente, as narrativas do século XX. De modo geral, os estudiosos do gênero enfatizam a oposição existente no interior das narrativas fantásticas entre o real e o irreal.

Goulart (1995) considera o gênero fantástico antinômico, combinando a irrealidade ao realismo, “o insólito e o estranho ocorrem no universo familiar, e o cotidiano se caracteriza pela mistura do desconhecido com o conhecido”. O aparecimento do fantástico é propiciado pela ruptura da ligação da obra literária com elementos extraliterários, criando o impossível e improvável. Para o autor, é a fluidez das fronteiras entre o natural e o sobrenatural que torna aceitáveis as situações insólitas, por isso tanto as personagens quanto o leitor não questionam os fatos e não sentem medo.

A falta de compreensão da realidade contida na narrativa é o que origina o fantástico, segundo Volobuef (2000). Para a autora, o leitor, à princípio, sente-se desorientado, pois são deixadas lacunas no texto, não há explicações ou justificativas para os acontecimentos. “O texto realiza uma espécie de jogo com a verossimilhança, em que realismo e fantástico se alternam (...)”. Dessa forma, surge a incerteza em meio a um ambiente antes considerado familiar, nosso cotidiano, e aparece o fantástico. Por conter enredos complexos e tratar de temas críticos, Volobuef afirma que esse gênero ultrapassa as fronteiras da literatura trivial.

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Paes (1985), outro estudioso do gênero, considera o fantástico um fato inteiramente oposto às leis do real e às convenções do normal que ocorre no mundo da realidade. O fato sobrenatural, portanto, afeta o leitor por ocorrer em meio ao cotidiano, colocando-o em dúvida em relação ao seu conceito de realidade. A recusa da realidade é uma maneira metafórica de denunciar problemas sociais.

Além dos teóricos mencionados, Schwartz (1981) realizou um estudo aprofundado da narrativa fantástica contemporânea focando a obra do escritor Murilo Rubião. Um fato fantástico, para o autor, seria tudo aquilo que transgrida as normas da tradição cultural. Tais normas seriam os valores e juízos existentes em nosso mundo referencial. Por isso, “a avaliação de um fantástico ficcional tem sempre como ponto de referência o repertório normativo do leitor”. Devido à presença do real junto ao irreal, causando o “efeito do real”, no decorrer da leitura o leitor dá credibilidade à narrativa, distanciando a dúvida.

Por ser um gênero que sofreu e tem sofrido diversas modificações ao longo dos séculos, o fantástico tem sido muito estudado e seus estudiosos o definem de formas diferentes. No entanto, algumas características são comuns a todos os estudos realizados, são elas, em suma, a evocação de emoções no leitor por meio de fatos sobrenaturais, a presença desses fatos sobrenaturais no cotidiano e a fusão do real e do irreal.

3. O aparecimento do fantástico na literatura brasileira: Murilo Rubião e seus contos

Até o início do século XX, a literatura brasileira não havia apresentado importantes obras fantásticas. O florescimento do gênero fantástico em nosso país, de acordo com Rodrigues (1988), ocorreu por volta dos anos 40, contudo Machado de Assis já havia utilizado elementos sobrenaturais em uma de suas obras do século XIX: Memórias Póstumas de Brás Cubas, na qual o narrador é um defunto relembrando fatos de sua vida. Outros autores também haviam utilizado o sobrenatural, como Aluísio Azevedo, Mário de Andrade, em Macunaíma, Monteiro Lobato, Raul Bopp, em Cobra Norato, e Guimarães Rosa também.

O uso do fantástico de uma forma mais elaborada, porém, ocorreu no conto e Murilo Rubião é considerado seu precursor, com a publicação em 1947 do livro O Ex-Mágico. Fonseca (1987) também considera importantes as contribuições de Moacyr Scliar, citando O Carnaval dos Animais (1968) e de José J. Veiga, com Os Cavalinhos de Platiplanto (1959), entre outras obras. Apesar de ambos publicarem contos fantásticos, Murilo Rubião foi quem utilizou o gênero de forma mais sistematizada, dedicando-se a ele exclusivamente.

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Murilo Eugênio Rubião é o primeiro contista do gênero fantástico na literatura brasileira. Sua obra, com a primeira publicação em 1947 de O Ex-Mágico, permaneceu desconhecida por algumas décadas, mas ganhou reconhecimento com O Pirotécnico Zacarias (1974).

O modo como emprega o fantástico em seus contos causa perplexidade nos leitores, contudo o mais impressionante é a forma como os fenômenos sobrenaturais são aceitos no decorrer da leitura como se fossem reais. Segundo Goulart (1995), o sobrenatural está presente também na elaboração da obra de Murilo Rubião, considerada pelo crítico grande e pequena ao mesmo tempo. Isso porque, contando apenas os livros, sua obra consta de oito livros, com 89 contos. Seria um número considerável, contudo dos contos citados, apenas 32 são originais, os outros são republicações que o autor fez. Quando questionado sobre o assunto, o autor disse que reelaborava suas obras para torná-las mais claras e reais. A cada nova publicação, o escritor alterava os contos, às vezes modificando-os muito. Atualmente, o escritor mineiro é considerado de fundamental importância para a literatura nacional e os críticos consideram suas obras de grande qualidade, principalmente pelo trabalho com a linguagem.

3.1. A função do elemento fantástico nas narrativas rubianas

A partir da revisão bibliográfica feita sobre o gênero fantástico, analisamos os contos A Cidade, O Convidado, Os Comensais de Murilo Rubião para tentar entender a função do elemento fantástico em suas narrativas. Percebemos, por meio das análises, que as narrativas rubianas contêm uma linguagem denotativa, por esse motivo seus contos devem ser lidos além do sentido literal do texto. As metáforas presentes contribuem para o aparecimento do fantástico e conduzem o leitor a uma compreensão da totalidade do conto. O surgimento do fantástico em meio ao enredo das narrativas rubianas tem um objetivo, “o elemento extraordinário não se limita apenas a uma experiência de leitura prazerosa para efeitos de distração do leitor, mas assume uma função eminentemente crítica” (SCHWARTZ, 1982, p. 101). Por meio do fantástico, o leitor é instigado a prestar atenção ao seu próprio cotidiano diante do exagero de algumas situações referentes à sociedade contemporânea que, até então, poderia não ter percebido. O elemento fantástico, portanto, é um artifício para tratar de problemas da nossa sociedade. O exagero apresentado chama atenção a uma questão social em específico, a fim de que o leitor ultrapasse o nível ingênuo de leitura.

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O elemento fantástico é considerado por Goulart (1995) um mecanismo que sacode o leitor, questionando a validade de conceitos tidos como definitivos. A realidade conhecida na verdade é uma máscara social e o sobrenatural possibilita a reflexão sobre uma situação de vida que tomamos como normal durante um longo período, sem questionamentos. Por essa razão, Schwartz (1988) afirma que o texto fantástico rubiano mascara a mais realista das literaturas. Ainda diz que o mundo presente nos contos não é absurdo pela intersecção de realidades incompatíveis ou inverossímeis, mas é absurdo pela própria condição humana.

Os contos rubianos são considerados ideológicos por Schwartz (1981), por terem uma linguagem que adquire funções além do texto ficcional. O teórico enquadra as narrativas em três temas: cristão, por ser notável a presença de simbologia de figuras cristãs em alguns contos, como A lua e Botão-de-rosa; social, devido a críticas feitas a realidade da sociedade focando temas como a opressão, em A cidade, a burocracia, em A fila, o sistema industrial, em O edifício, entre outros; e existencial, por questionar a existência humana e seu relacionamento, como no conto O convidado. Os temas abordados são universais e conduzem o leitor à reflexão sobre questões sociais importantes por meio do emprego do fantástico.

Por meio dessa pesquisa, além de compreender a função do fantástico nos contos, percebemos que há elementos que são fundamentais para que o fantástico surja, ou seja, para que o leitor hesite ante os fatos. Esses elementos são a metáfora, a hipérbole e a metamorfose, constantes nas narrativas rubianas.

3.1.1. A metáfora do homem contemporâneo

Ao estudar a função do elemento fantástico nas narrativas, constatamos que a metáfora é um elemento importante para que o fantástico apareça nos contos. No decorrer da leitura dos textos, notamos que diversas lacunas são deixadas, sem a demonstração de preocupação do escritor em preenchê-las. Contudo, ao término do conto, a totalidade do texto nos revela que, na verdade, as lacunas são intencionais para criar uma ambigüidade e favorecer as metáforas presentes. A metáfora é, portanto, parte constitutiva do elemento fantástico.

A forma mais conhecida de conceituação da metáfora é a de uma comparação abreviada, conceito que não abrange seu sentido e função real. Para Castro (1977), a metáfora não é mais vista hoje como ornamento de discurso ou simples variante da

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comparação, é uma atividade recriadora da linguagem, a mais usada de todas as figuras de linguagem pelos escritores de todas as épocas.

Essa figura é amplamente utilizada pelos poetas como recurso estilístico para desenvolver o trabalho com a linguagem. Há o emprego do termo em seu sentido próprio e no sentido metafórico, chamado de transposto. É essa mudança de sentido que caracteriza a metáfora. Segundo Genette (1966), ela tem a característica de significar mais que a expressão literal, há um acréscimo de sentido além dos objetos, dos pensamentos.

Ao pensar sobre a metáfora e a comparação, Moisés (2004) considera a primeira como dependente da segunda. A metáfora é estruturada em torno de uma comparação, explícita ou implícita, que inclui dois termos e resulta na transformação de sentido de cada um e no nascimento de um sentido novo.

O emprego da metáfora no texto em prosa é diferente do poético. Seu emprego não é na forma direta e imediata, e sim indireta e mediata. As metáforas presentes no texto só se revelam quando a leitura chega ao fim, por meio da totalidade da narrativa. Elas permitem ao leitor uma nova compreensão da leitura realizada e a atribuição de novos sentidos e novas imagens, a partir da realidade conhecida.

Boranelli (2008), estudioso dos contos de Murilo Rubião, mostra que a metáfora percorre toda a narrativa do escritor. Segundo ele, no gênero fantástico a metáfora se apresenta de modo sistemático e original, é um dos elementos geradores do fantástico e dá novos sentidos à realidade presente na narrativa. A metáfora permite a aproximação de duas realidades afastadas por meio da criação de uma nova imagem. O efeito de surpresa, de acordo com Castro (1977), é fator peculiar da metáfora verdadeiramente original e viva, e intensifica o efeito do fantástico sobre o leitor, contribui com o universo absurdo do texto. Moisés (2004) afirma que a metáfora procura representar simbolicamente a realidade e, assim, contribui com o elemento fantástico.

Os contos rubianos sempre apresentam um fato sobrenatural com a intenção de enfatizar acontecimentos da sociedade que têm como centro o homem contemporâneo. Em A fila, a personagem protagonista, Pererico, sai de sua cidade do interior e vai à cidade grande com o objetivo de conversar com o gerente de uma fábrica, porém é encaminhado para uma fila composta de pessoas que aguardam para conversar com o gerente, fila que não tem fim, mesmo após dias e dias. A metáfora presente no conto é a fila como representação da burocracia e o homem alienado e levado a aceitá-la, ou seja, o sistema alienador existente na sociedade atual. É, portanto, como afirma Boranelli (2008), uma metáfora do comportamento social que procura alertar contra uma realidade alienante. Como a metáfora consegue unir a razão e a imaginação, dois mundos contrários e

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distantes, nos contos fantásticos aquilo que nos parece estranho no início torna-se familiar, mesmo com elementos sobrenaturais. A ambiguidade ilimitada resultante da metáfora é traço importante para a existência do fantástico.

Além desse, outros contos também são metafóricos. Dentre eles, em A cidade, a prisão de Cariba por fazer perguntas metaforiza a alienação do cidadão atual diante das autoridades e a opressão social ainda vigente. O convidado mostra o relacionamento artificial da sociedade que procura apenas manter aparências. E Os comensais procura salientar a força que a rotina exerce sobre o homem contemporâneo.

Por meio da metáfora, os contos rubianos conduzem o leitor a uma visão mais crítica da sociedade. Ao término da leitura, conseguimos entender o significado metafórico de cada um de seus contos.

3.1.2. Hipérbole: o exagero da metáfora humana

Um outro elemento que contribui para que o fantástico apareça na narrativa é a hipérbole, o exagero dos fatos presentes no texto. Segundo Schwartz (1981), a hipérbole aparece nas obras de Murilo Rubião como figura-chave que desvenda os mecanismos fantásticos da narrativa. Sendo assim, além da metáfora, essa figura é importante para o surgimento do elemento fantástico nos contos.

Considerada por Moisés (2004) uma forma de enfatizar por meio do exagero, de forma negativa ou positiva, a hipérbole ajuda a chamar atenção a uma verdade e pode ser empregada na linguagem falada ou na literária. Em um texto fantástico, seu emprego, como afirma Todorov (2004), conduz ao sobrenatural.

Baseando-se em Roland Barthes, Schwartz (1981) mostra que a hipérbole se apresenta sob duas formas: aquela que exagera por aumento, a auxesis, e a que exagera por diminuição, tapinosis. Em seu estudo, afirma que a obra rubiana apóia-se, em geral, na auxesis. Para exemplificar tal proposição, cita o conto Bárbara. O narrador desse conto, marido de Bárbara, conta sobre a ambição da mulher, que realizava diversos pedidos e, ao mesmo tempo, engordava. “Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava”. Quanto mais aumentava sua ambição, mais aumentava seu tamanho. Pediu o oceano, uma árvore de cerca de dez metros de altura, um navio, uma estrela. E o narrador afirma, no final do conto, que crescera de tal maneira que vários homens dando as mãos uns aos outros não conseguiriam abraçá-la.

Em outros contos rubianos também há o emprego do exagero, mas de formas diferentes, nem sempre se referindo ao tamanho da personagem. O conto O edifício, no

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qual um engenheiro recém-formado, João Gaspar, foi contratado para dirigir a construção de um grande arranha céu, apresenta uma hipérbole sem limites. Mais de cem anos foram necessários para que as fundações do edifício ficassem prontas, e o edifício tinha ilimitado número de andares. No decorrer do conto, o edifício ganhava mais e mais andares, até que o próprio engenheiro não tinha mais controle sobre o trabalho incansável dos operários. A falta de controle das ações é característica dos contos de Murilo Rubião. Como ocorre também em Aglaia, onde o casal, apesar de evitar contato sexual e se prevenir, continua gerando filhos em períodos cada vez mais curtos. Ainda há o conto Teleco, o coelhinho, na qual a personagem Teleco, acostumada a metamorfosear-se para agradar ou brincar com as pessoas, ao final da narrativa perde o controle sobre as transformações e morre em forma de uma criança.

Sendo parte essencial para o surgimento do fantástico na narrativa, a hipérbole é de grande importância nos contos e se manifesta de diversas formas, atinge não somente as personagens, mas o tempo, o espaço, aparece representada nas ações e nas descrições.

3.1.3. Metamorfose: um elemento metafórico dos problemas humanos

A metamorfose é, assim como a metáfora e a hipérbole, um elemento importante para o aparecimento do fantástico, entretanto não é tão frequente nos contos quanto os outros dois elementos citados. O tema da metamorfose é constante na literatura antiga e contemporânea. Ultrapassando séculos, sofreu evoluções e aparece de diferentes modos nas narrativas. Santos (2006) analisou a evolução de tal tema e afirma que recebeu tratamento diverso em cada época. Na mitologia grega, a metamorfose estava relacionada ao desejo de um ser de se transmutar, ou a causas externas, como forma de punição ou prêmio. Na literatura clássica, tinha um fim determinado: a punição a uma afronta ou crime. Na literatura do maravilhoso, contos de fadas, as transformações voluntárias ou involuntárias estão presentes, há frequentemente seres mágicos, como bruxas e fadas, que têm a capacidade de modificar fisicamente os seres. Na literatura contemporânea, a metamorfose deixou de ser somente física e passou à utilização da metáfora. No universo criado por Murilo Rubião, a metamorfose é uma forma de abordar os problemas humanos, tais como: burocracia, marginalização, relacionamentos, rotina.

Segundo Santos (2006), nos contos rubianos o tema da metamorfose remete à problemática existencial: o sentido da vida. As narrativas são constituídas de dúvidas, mistério, absurdo. A metamorfose não é apenas física, mas reflete também a própria

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reescritura dos contos, a tentativa das personagens de se ajustarem ao mundo que os rodeia. O absurdo surge diante o leitor, mas, curiosamente, não incomoda as personagens.

Em Teleco, o coelhinho, Teleco tem o poder de transformar-se em qualquer animal para agradar as pessoas, mas sua verdadeira busca é pela forma do ser humano, pois sente-se marginalizado e quer ser aceito socialmente. Apesar de agir como humano, não tem a aparência de um. Suas tentativas são frustradas e, ironicamente, apenas quando morre consegue adquirir a forma tão desejada: uma criança.

Alfredo, personagem do conto que recebe o mesmo nome, é irmão do narrador. O narrador, após a insistência da esposa em dizer que ouvia o som de um lobisomem, sobe uma montanha e se depara com um dromedário, seu irmão Alfredo que estava desaparecido. Cansado de conviver com os homens, devido ao fato de “se entredevorarem no ódio”, transforma-se em um porco, mas não foi feliz, porque passava o tempo disputando comida com os companheiros e fossando o chão. Com vontade de resolver a situação, a personagem transmuda-se no verbo “resolver” e não teve mais descanso, tendo que resolver assuntos e não conseguindo solucionar a todos. Desanimado, Alfredo transforma-se em um dromedário, na esperança de ter que somente beber água, o resto de sua vida.

A metamorfose é mais um artifício empregado pelo escritor para criticar o homem moderno. “Seus contos não se propõem a responder ou resolver as questões do mundo, ao contrário, são enigmas que conduzem à reflexão do real” (SANTOS, 2006, p. 196). A metamorfose, nessas narrativas, tem o sentido de degradação, de impotência diante do mundo, revela um homem que não se compreende e não consegue fugir de sua condição de vida. O absurdo, portanto, não resulta do sobrenatural presente no texto, mas da própria condição humana.

4. Considerações finais

A pesquisa realizada nos ajudou a entender o surgimento e as transformações sofridas pelo gênero literário fantástico, no decorrer dos séculos, as quais o permitiram abandonar a intenção de evocar medo no leitor. No século XX, como apresentado, esse gênero passou a suscitar a dúvida devido a perplexidade do leitor ante um acontecimento estranho que surge em meio a fatos do cotidiano.

O estudo teórico realizado sobre o gênero em questão e as análises de contos de Murilo Rubião permitiram a comprovação de que tais contos são realmente fantásticos e utilizam o sobrenatural não apenas como forma de o leitor questionar a veracidade dos fatos presentes na narrativa, mas como uma forma de chamar-lhes a atenção para a vida do

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homem contemporâneo. A função desempenhada pelo fantástico, portanto, é a de conduzir o leitor a um questionamento da realidade, chamar sua atenção para algumas situações reais vivenciadas pelo ser humano. Mas, para que o fantástico apareça, a metáfora, a hipérbole ou a metamorfose deve estar presente no texto, fazendo o leitor hesitar de antemão e criando uma ambiguidade no texto que leva ao aparecimento do fantástico.

Por fim, uma leitura dos contos rubianos após compreender a função do fantástico e a importância da metáfora, da hipérbole e da metamorfose nessas narrativas, permite entender que as situações inexplicáveis enfrentadas pelas personagens rubianas refletem a condição real humana, repleta de conflitos, dificuldades e questionamentos acerca da vida e do relacionamento entre os homens, que está cada vez mais difícil e inseguro.

A proposta de continuação deste trabalho procurará mostrar que a leitura desses contos em sala de aula, conduzida pelo professor de uma maneira que os alunos aprendam e consigam fazer uma interpretação profunda deles, pode ajudá-los a ver o mundo ao seu redor de forma mais crítica, refletir sobre o que tem visto ocorrer na sociedade. Para tanto, as metáforas, elementos que contribuem para o surgimento do fantástico nas narrativas, devem ser compreendida como crítica à sociedade.

Acreditamos que o aluno, ao conhecer melhor o gênero fantástico e descobrir que a metáfora, a hipérbole e a metamorfose são elementos importantes nas narrativas, conseguirá ir além da leitura superficial dos textos e compreenderá o quanto os textos literários podem contribuir para sua formação.

5. Referências

BORANELLI, Valdemir. O fantástico nos contos de Murilo Rubião e de Júlio Cortázar: entre o mito literário e a polimetáfora. São Paulo: PUC, 2008. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas: estruturas e funções. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1977.

FONSECA, Pedro Carlos Louzada. O fantástico no conto brasileiro contemporâneo. Estudos de literatura luso-brasileira. Ribeirão Preto, SP: Editora Coc., 1987. p. 165-199.

GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1966.

GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte, MG: Lê, 1995.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. PAES, José Paulo. As dimensões do fantástico. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

SANTOS, Luciane Alves. A metamorfose nos contos fantásticos de Murilo Rubião. Nau Literária. Porto Alegre, n. 3, p. 186-199, jul./dez., 2006.

SCHWARTZ, Jorge. (Org.). Murilo Rubião. São Paulo: Abril Educação, 1982. SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

VOLOBUEF, Karin. Uma leitura do fantástico: A invenção de Morel (A. B. Casares) e O processo (F. Kafka). Revista Letras, Curitiba, n. 53, p. 109-123, jun. 2000.

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