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Lembrando o Passado Autoritário: Memórias sobre a Ditadura Militar no Brasil

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Academic year: 2021

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40º Encontro Anual da ANPOCS

SPG20: Os Estudos da Memória na Justiça de Transição no Brasil

Lembrando o Passado Autoritário:

Memórias sobre a Ditadura Militar no Brasil

Barbara Goulart

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Resumo: O paper analisa o processo social, político e moral de construção das memórias coletivas sobre a ditadura militar no Brasil. Primeiro eu discuto o conceito de justiça de transição e como ele foi aplicado no caso brasileiro. Depois eu mostro a importância da memória no processo de redemocratização, pois permite a erupção de traumatismos e estimula uma reconciliação da sociedade com o seu passado, ao mesmo tempo em que reafirma o modelo democrático vigente. Depois discuto a “guerra da memória” no Brasil, onde há uma disputa entre as memórias dos militares e dos militantes de esquerda. Afirmo que a esquerda venceu essa guerra, mas que existe um falso consenso, pois a versão da esquerda que venceu foi uma muito específica, onde há um mito de resistência contra a ditadura. No final, foco nas memórias coletivas sobre João Goulart, pois elas explicitam a pluralidade de perspectivas sobre o regime militar. Palavras-chave: Memória Coletiva; Ditadura Militar; Guerra da Memória; João Goulart.

Introdução

Em dezembro de 2014, foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade em cerimônia oficial realizada no Palácio do Planalto. Os trabalhos da CNV comprovam que os anos de chumbo ainda fazem parte da memória nacional, contribuindo para uma eterna reconstrução de um imaginário social sobre o período muitas vezes considerado um dos mais violentos na História do país. Em 2016 o passado da ditadura volta a aparecer em toda a imprensa nacional, quando aqueles que queriam o impeachment da presidente Dilma Rousseff são acusados de golpistas, pois estariam repetindo as atitudes que levaram à deposição do presidente eleito João Goulart pelo golpe de 1964. Esses dois eventos aparentemente díspares têm algo em comum: eles trazem à tona o passado autoritário do país.

Não apenas no meio político, mas também no meio acadêmico, a temática da ditadura vem há muito tempo sendo discutida, principalmente pela História. Além de diversos livros publicados sobre o assunto (FICO, 2008; ARAÃO REIS, 2000; entre outros), entre 1971 e 2000 foram produzidas 214 teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre a história da ditadura militar, 205 delas no Brasil e as restantes no exterior (FICO, 2004, pg. 40). Essa vasta bibliografia sinaliza para a importância do período em questão, mas é necessário que a sociologia também olhe para o passado de forma mais detida. Alguns sociólogos já começaram a se debruçar sobre o tema, como Santana (2014, 2009) em sua pesquisa sobre a atuação dos trabalhadores durante o

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regime militar. Contudo, muito ainda pode ser feito. Como bem disse Elisa Reis (1998), a sociologia política é capaz de analisar o passado como resultado de uma série de processos sociais, reunindo teias de determinações e escolhas. É capaz então de promover um diálogo entre os parâmetros estruturais e as escolhas individuais que explicam o passado (REIS, 1998, pg. 8).

Um caminho possível para se olhar o passado através das lentes da sociologia é pelo estudo das memórias coletivas. Nesse caso, a questão central é: Como as memórias coletivas sobre a ditadura são construídas? Devemos lembrar que os trabalhos sobre memória não têm como objetivo analisar o passado em si, mas sim as imagens construídas socialmente no mundo de hoje, a partir de diversas lembranças anteriores. Maurice Halbwachs (1990), analisando o papel da memória coletiva na História, chegou à seguinte conclusão:

(...) ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência. (...) A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p. 67 e p. 71).

Assim sendo, a memória seria uma reconstrução do passado realizada pelo presente. Como bem disse Deleuze (1999), o tempo próprio da lembrança é o presente. Portanto, é possível dizer que a memória atual sobre a ditadura é uma visão crítica desse passado autoritário realizada pelos tempos de hoje, marcados pela consolidação democrática. Nesse caso, essas memórias não são construídas de forma aleatória, ou autoevidente, a partir de uma construção verificável da História do país, mas sim são construções parciais a partir de narrativas específicas sobre eventos que já ocorreram. Como explicou Portelli (1996), os discursos sobre eventos traumáticos do passado são marcados não apenas por dor e luto, mas também por ideologias.

É exatamente porque as experiências são incontáveis, mas devem ser contadas, que os narradores são apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem, da narrativa, do ambiente social, da religião e da política. As narrativas resultantes – não a dor que elas descrevem, mas as palavras e ideologias pelas quais são representadas – não só podem, como devem ser entendidas criticamente (PORTELLI, 1996, pg. 108).

Quando pensamos em História, é importante se perguntar, com tantos acontecimentos no mundo, o que faz certo evento permanecer na memória nacional e

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outro ser simplesmente esquecido ou apenas lembrado por amigos e familiares? Para analisar esse fenômeno é necessário adotar uma perspectiva construtivista, pois como argumentou Pollak (1989), “não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas; como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade” (POLLAK, 1989, pg. 4).

O objetivo do presente trabalho é analisar o processo social, político e moral de construção das memórias coletivas sobre a ditadura militar no Brasil. Para isso, primeiro eu discuto o conceito de justiça de transição e como ele foi aplicado no Brasil. Depois eu mostro a importância da memória no processo de redemocratização, pois permite a erupção de traumatismos e estimula uma reconciliação da sociedade com o seu passado, ao mesmo tempo em que reafirma o modelo democrático vigente. Discuto também a “guerra da memória” no Brasil, onde há uma disputa entre as memórias dos militares e dos militantes de esquerda, concluindo que o que existe é um falso consenso em torno das memórias das esquerdas. No final, foco nas memórias coletivas sobre João Goulart, pois elas explicitam a pluralidade de perspectivas sobre o regime militar.

Justiça de Transição e Direito à Memória no Brasil

O conceito de justiça de transição é aplicado aos processos políticos que envolvem a mudança de regimes ditatoriais ou autoritários em direção à regimes democráticos de governo; ou de situações de conflito armado ou de violência política em direção à paz (ZAMORA, 2013, pg. 21). Nesse caso, é necessário que esses governos passem por um momento de expurgação desse passado traumático coletivo, para que seja possível olhar para o futuro novamente; ou “virar a página”. Como argumenta Ruti G. Teitel (2000), na justiça de transição, revisitar o passado é entendido como a única maneira de mover-se para frente.

Esse processo político articula três categorias básicas: verdade, justiça e reparação (NAPOLITANO, 2015, pg. 96). Primeiro é necessário recuperar a verdade sobre o que aconteceu, o que foi ocultado pelo regime autoritário. Para isso é necessário coletar e divulgar os relatos das vítimas. Depois é necessário trazer justiça a essas vítimas, punindo os responsáveis pelos crimes. E em terceiro lugar, reparar essas vítimas pelos danos sofridos nas mãos do Estado. Essa reparação pode ocorrer financeiramente, por meio de indenizações monetárias, ou por outros caminhos que

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permitam a reconstrução dos laços sociais desses indivíduos com a sociedade, como um pedido de desculpas oficial do governo, por exemplo. Na maioria das vezes, a reparação inclui os dois passos.

No caso brasileiro, o processo de justiça de transição ficou marcado pela Lei da Anistia, promulgada em 1979, onde o que foi definido, como sabemos, foi a “anistia ampla, geral e irrestrita”. Enquanto os militares argumentam que esse modelo favoreceu os chamados “subversivos” – que não seria mais julgados pelos crimes cometidos pela luta armada –, outros setores da sociedade defendem que, na prática, os mais favorecidos acabaram sendo os torturadores e chefes militares dos porões da ditadura, que nunca foram processados pelos seus crimes contra a humanidade. A brasilianista Leigh Payne (2008) chama o modelo brasileiro de anistia de “blanket amnesty”1, pois o Estado protege os perpetradores de serem processados. Assim, não haveria accountability, pois os agentes da ditadura não seriam responsabilizados pelos seus atos (PAYNE, 2008, pg. 9).

Agora é necessário pensar nas consequências desse modelo de anistia para o cenário político brasileiro. O verbete da palavra “anistia” escrito pelo jurista Evandro Lins e Silva no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) diz o seguinte:

Já ficou implícito, no resumido histórico do instituto ora comentado, que anistiar representa o esquecimento do fato ou fatos que trouxeram a perturbação da ordem vigente, é o oblívio, é apagar da lembrança o acontecimento violador da lei penal. A expressão latina dos romanos sintetiza em duas palavras o conceito de anistia: lex oblivionis (LINS e SILVA, 2001, vol. 1, p. 255).

Entretanto, argumento no presente texto o contrário. Defendo que a anistia política no Brasil incluiu uma crescente valorização da memória das vítimas justamente como elemento apaziguador e conciliatório. O reconhecimento da culpabilidade do Estado e a destinação de espaços públicos para que as vítimas contassem suas histórias fizeram com que a questão da justiça criminal ficasse em segundo plano e a dimensão da memória ganhasse o papel de protagonista no cenário político, mesmo que seja uma memória parcial desses mesmo eventos, como será mostrado no final do texto.

1 Em outro texto, o termo “blanket amnesty” é traduzido em português como “anistia protetiva” ou

“anistia obstinada” (PAYNE et. al, 2013). A primeira tradução ilumina o aspecto de proteção da anistia, que protege os responsáveis pelos crimes da ditadura, e a segunda tradução ilumina o aspecto de persistência desse tipo de acordo, que não é capaz de superar o modelo de anistia proposto pelos militares e onde a impunidade permanece.

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A incapacidade legal de processar militares e policiais, fez com que o Estado brasileiro concentrasse os seus esforços nas outras duas dimensões da justiça de transição. Assim, no Brasil a questão da verdade e da reparação aparece de maneira muito mais evidente do que o aspecto punitivo da justiça. Até hoje ninguém foi efetivamente punido pelas vias legais por crimes cometidos pela ditadura militar, entretanto, muitos passos foram dados para trazer à luz os crimes cometidos pelos militares e pela polícia, por meio de relatos públicos – onde aqueles que sofreram esses crimes podem contar a sua história –, e para reparar as vítimas, por meio de indenizações pagas pelo Estado. É por isso que argumento que a dimensão da memória é fundamental no processo brasileiro de justiça de transição. A possibilidade de relatar publicamente o que sofreram serve de amparo para as vítimas brasileiras, que não podem ver seus algozes condenados.

Saliento aqui o aspecto punitivo adquirido pela própria memória no caso brasileiro de justiça de transição, principalmente na dimensão normativa do processo. Assim, mesmo que a efetividade dessas memórias possa ser questionada – já que grande

parte da população brasileira não tem recordações sobre o regime militar2 – é visível a

forte tentativa do Estado e principalmente das vítimas em tornar públicos os crimes da ditadura. Como os militares não podem ser legalmente punidos, a memória serve como veículo para que não se esqueça dos crimes cometidos por eles.

Por Que Lembrar?

Argumento que as memórias coletivas sobre a ditadura devem ser repetidas e difundidas para que não sejam esquecidas. Enquanto a memória do indivíduo permanece ao longo de sua vida, podendo ser recobrada a qualquer momento, a memória coletiva é muito mais fluida e vulnerável. Ela precisa ser lembrada não apenas pelo indivíduo que a viveu, mas por toda a comunidade da qual ele faz parte. Os livros autobiográficos e os eventos públicos organizados em memória das vítimas servem para isso. No processo histórico-social aqui analisado, a memória de uma vítima da ditadura

2 Vale a pena mencionar que quando falamos em memórias sobre a ditadura, infelizmente estamos nos

referindo a um setor muito pequeno da sociedade, com escolaridade e renda considerável, que conhece os eventos políticos que ocorreram no pais entre 1964 e 1985. Estudo recente mostra que grande parte da população brasileira não tem conhecimento do que ocorreu no país nessa época e não tem memórias sobre a ditadura (CERQUEIRA e MOTTA, 2015).

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passa a ter valor não apenas para a própria vítima em questão, mas se torna parte de toda a memória coletiva do país sobre aquele período. Os sobreviventes tornam-se portadores

da memória dos crimes da ditadura, ou “arquivistas da tragédia3” (CANDAU, 2005, pg.

61). Assim, eles são representantes do que foi vivido não apenas por eles, mas pelo próprio Brasil, por isso suas memórias passam a ser de interesse nacional.

Grande parte da documentação sobre esse período é ainda de caráter sigiloso ou foi destruída pelos militares, preocupados em esconder os crimes cometidos pelo regime. Pela falta de documentos oficiais disponíveis e pela recusa dos militares em falar sobre o assunto, o testemunho das vítimas se torna peça central no quebra-cabeça de reconstituição da ditadura. Isso ocorre pelo motivo prático de ser uma das poucas fontes disponíveis para se descobrir o que realmente aconteceu, mas também pelo motivo moral de dar voz àqueles que foram silenciados por tanto tempo. O resultado disso é uma crescente “revalorização da primeira pessoa como ponto de vista” (SARLO, 2007, pg. 18). Beatriz Sarlo (2007) chama esse processo moral de “guinada subjetiva”.

Ademais, as vítimas sobreviventes representam também aqueles que não

sobreviveram. Sarlo (2007) aponta para o paradoxo do testemunho4, pois quem

sobrevive para testemunhar, assume a primeira pessoa dos que seriam os verdadeiros testemunhos, os mortos (SARLO, 2007, pg. 35). É possível se apropriar também de uma

expressão cunhada por James E. Young (1993): a “síndrome do túmulo ausente5”. Ele

argumenta que a ausência de corpos das vítimas resulta em um espaço de luto fisicamente vazio, e a escrita sobre a tragédia sofrida serve como possibilidade de criação de um local comemorativo, já que não há túmulos onde seja possível lembrar os entes perdidos. Posteriormente, locais físicos também são construídos para a comemoração, como museus ou memoriais.

A análise pode ser aplicada à ditadura militar brasileira – assim como de outros países latino-americanos – já que muitas vítimas nunca foram encontradas e foi necessário criar documentos e relatos escritos para comprovar e lembrar o ocorrido,

3 Expressão cunhada pelo antropólogo Joel Candau (2005) para comentar sobre as vítimas do nazismo

que publicaram suas memórias do período.

4 Apesar de o livro tratar sobre os testemunhos das vítimas da ditadura, nesse caso Sarlo (2007) está

falando sobre os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto. Entretanto, acredito que seu argumento possa ser aplicado para o caso das ditaduras militares.

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porque não havia provas físicas das mortes. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade é um exemplo disso. Outro exemplo é a prática recorrente em diversos países latino-americanos de se dizer os nomes dos mortos, seguido da palavra “Presente!”, pois explicita a necessidade de manter vivos na memória os abusos sofridos por aqueles que não puderam relatar o sofrido. Assim, apesar de fisicamente ausentes – muitas vezes até mesmo seus corpos nunca foram encontrados – eles estão vivos na memória dos sobreviventes.

Portanto, lembrar se torna um ato social e político, e o testemunho dos sobreviventes se transforma em elemento fundamental da reconstrução do passado. Não é por acaso que a “mania da memória” surgiu concomitantemente com o desenvolvimento da História do tempo presente, pois ainda há sobreviventes para relatar o ocorrido. O resultado desse processo foi a utilização do testemunho como fonte histórica, resultando também na hibridização entre memória autobiográfica e memória histórica (CANDAU, 2005, pg. 61), pois muitos sobreviventes da ditadura decidiram escrever seus próprios livros de memória. Nesse processo, a História Oral também ganha força e se afirma como método de pesquisa. Para Sarlo (2007), foi um movimento de “devolução da palavra, onde a conquista da palavra e de direito à palavra se expande, reduplicado por uma ideologia de “cura” identitária por meio da memória social ou pessoal” (SARLO, 2007, pg. 39).

É importante mencionar o papel do Estado nesse processo, que estimula, lidera e financia diversas iniciativas públicas de recolhimento de memórias. Vale a pena mencionar aqui o grande acervo do projeto iniciado em 2008, Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil, realizado em parceria da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O projeto foi coordenado pelos historiadores Antonio T. Montenegro, Carla S. Rodeghero e Maria Paula Araújo, e resultou também em um livro homônimo, organizado pelos mesmos e publicado em 2012. A presença desse acervo já comprova a importância atribuída às memórias da ditadura, dada a vastidão do projeto, que inclui 101 entrevistas, e também a presença ativa do Estado na preservação dessas memórias, já que foi financiado pelo Ministério da Justiça. O projeto também incluiu

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audiências públicas com os relatos das vítimas, e chamadas para iniciativas da sociedade civil, incluindo pesquisas, exposições, peças de teatro, etc.

É interessante mencionar a presença da palavra “anistia” no título do projeto e também no nome da comissão que o financiou, pois salienta não os aspectos violentos do passado ditatorial, mas enfatiza o aspecto apaziguador e conciliador do processo de anistia, já que as memórias serviriam para curar as feridas do passado e não para revanchismos ou confrontos. Para Maria Paula Araújo (2012), que participou do processo, a palavra anistia aparece como sinônimo de reparação – no sentido simbólico e não financeiro do termo –, pois a publicação desses relatos faria parte da reparação de danos por parte do Estado brasileiro às vítimas da ditadura (ARAÚJO, 2012, pg. 15). Entretanto, argumento que essa reparação vai além das próprias vítimas em questão, e engloba toda a sociedade brasileira, pois é possível dizer que o testemunho serve para “purgar ou purificar a nação dos pecados de seu passado violento, para que possa futuramente se reconciliar” (MOON, 2008, pg. 92).

Menciono também o livro 68: A geração que queria mudar o mundo, também realizado pela Comissão da Anistia, e organizado por Eliete Ferrer, do qual participaram 100 autores em 170 relatos. No prefácio escrito pela equipe da Comissão de Anistia, os autores enfatizam que no Brasil, anistia significa memória. E essas memórias servem como fundamentos da reparação às violações, mas também como uma reflexão necessária sobre a importância da não repetição dos atos arbitrários cometidos pela ditadura. Enfatizam também que essa reparação é coletiva, pois como dizem os

próprios, “esquecer a barbárie equivaleria a nos desumanizar” 6. Corrobora assim meu

argumento anterior, de que o testemunho das vítimas se torna parte das memórias coletivas do país sobre a ditadura, pois é moralmente necessário que todos se lembrem do ocorrido.

No site da Comissão da Anistia, é possível encontrar centenas de relatos e livros publicados pelos mesmos, destacando assim a iniciativa do governo em resgatar as

memórias sobre a ditadura7. Menciono também o espaço reservado no site do Ministério

6 A frase está na página 9 do livro, no texto escrito pela Comissão de Anistia, mas sem especificar o nome

dos autores.

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da Justiça para aqueles que desejam requerer sua anistia política8, e o projeto Memórias

Reveladas9 do Arquivo Nacional e institucionalizado pela Casa Civil da Presidência,

que coloca à disposição do público os arquivos da ditadura que faziam parte da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Há também o portal de internet Memórias da Ditadura10, realizado pelo Instituto Vladimir Herzog e apoiado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem o objetivo de divulgar a História do Brasil no período de 1964 a 1985. Sinalizo assim para a vastidão dos projetos de memória sobre a ditadura.

Vemos então o aspecto redentor adquirido pela memória. Argumento que a memória aparece para vingar a História. Já que as vítimas sofreram o que sofreram, e isso não seria possível mudar, é necessário então lembrar-se do ocorrido para que ele nunca mais se repita. A memória se torna um dever após o fim das ditaduras. Com a instalação do regime democrático no Brasil, as feridas puderam enfim ser expostas. Os diversos e incontáveis testemunhos que surgiram, possibilitaram a condenação do terrorismo de Estado e a ideia do “nunca mais” entrou no nosso vocabulário (SARLO, 2007, 20). Mesmo que juridicamente ninguém tenha sido condenado no Brasil – por causa da lei da anistia –, moralmente, socialmente, politicamente, e até mesmo historicamente, os torturadores e colaboradores da ditadura foram condenados pelo

Estado11, principalmente durante o governo Dilma Rousseff, ela própria vítima de

tortura pelos militares.

Entretanto, ao mesmo tempo em que se estabiliza uma memória oficial sobre a ditadura, ela acaba sendo marcada pelo seu caráter conciliatório. Com uma posição mais crítica, Vinyes (2015) argumenta que o que ocorre é uma privatização da memória, onde se tornaria impossível formar uma memória verdadeiramente pública sobre o passado, já que o próprio Estado preenche esse vazio com uma memória administrativa derivada da ideologia da reconciliação. Para ele, a ideologia da reconciliação não se assenta na realidade. Ao contrário, ela pretende criar a realidade, ou no máximo evitá-la. Assim, os elementos antagônicos das memórias sobre a ditadura são devorados, expandindo as

8http://justica.gov.br/seus-direitos/anistia 9http://www.memoriasreveladas.gov.br 10http://memoriasdaditadura.org.br/

11 O que não significa que a questão está solucionada, pois muitos ainda lutam a favor do encarceramento,

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certezas absolutas. A rememoração se torna então um instrumento de assimilação, que comemora uma memória tranquilizadora de êxito adquirido após o sofrimento e vontade (VINYES, 2015, pg. 227). Por isso, defendo que ainda é necessário investigar mais a fundo as memórias sobre a ditadura, revelando seus aspectos conflitivos e antagônicos, em vez de sublinhar apenas a chamada “boa memória” da reconciliação.

Pollak (1989) afirmou a necessidade de associar uma profunda mudança política a uma revisão autocrítica do passado. Colocando o Brasil nessa discussão, devemos lembrar a importância da democracia para a reconstrução desse período ainda pouco esclarecido na História do país. É inquestionável que, apesar da ditadura ter acabado há mais de duas décadas, ela continua presente na memória dos brasileiros. Como escreveu Hannah Arendt (1961), “a ação que possui sentido para os vivos (...) só é completa nas mentes que a herdam e a questionam” (ARENDT, 1961, pg. 31). Assim, por ser um momento de clivagem, de interrupção da democracia e de radicalização ideológica, a ditadura, e o combate a ela, muito possivelmente permanecerão na História do Brasil, pois representam não apenas um evento traumático do passado, mas simbolizam a necessidade de reafirmar o modelo político democrático. Portanto, a memória da ditadura faz parte do próprio imaginário político atual.

Argumento que por meio de uma análise crítica das narrativas sobre a ditadura – estudada a partir das construções simbólicas que ela representa –, é possível entender melhor o próprio período em questão. Como disse Paul Veyne (1968), “a História é quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos” (VEYNE, 1968, p. 423). E ao mesmo tempo, essas narrativas não são incidentais, elas são baseadas em crenças prévias dos narradores sobre os eventos em questão. Pretendo analisar quais crenças são essas e como elas foram construídas.

A Guerra da Memória

Michael Pollak (1989) havia diferenciado memória oficial de memória subterrânea. As memórias subterrâneas seriam aquelas consideradas proibidas ou clandestinas, pois iriam contra a memória oficial dominante (POLLAK, 1989, pg. 5). Para ele, haveria um conflito entre os dois grupos que possuem memórias distintas e seria necessário romper os tabus para que as memórias subterrâneas se tornassem

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públicas. Assim, haveria um grupo dominante e um grupo reprimido que disputariam a memória desse mesmo evento.

O quadro interpretativo proposto por Pollak (1989) pode ser apropriado para a análise do caso brasileiro, onde Martins Filho (2003) argumenta que há uma chamada “guerra da memória” da ditadura, em que os diversos atores políticos do período questionam a veracidade dos fatos apresentados pelos outros personagens. Assim, múltiplas memórias são construídas a partir de um mesmo fato, evento ou pessoa. Em sua análise, Martins Filho (2003) separa dois grupos principais que batalham pela memória da ditadura militar. Os primeiros seriam os militares que fizeram parte da ditadura, e os segundos seriam os ex-militantes de esquerda, principais vítimas da repressão política e especialmente da tortura. Nesse contexto, no caso da memória dos militares que apoiaram a ditadura, o que parece ser o objetivo deles é o próprio esquecimento do período em questão. Enquanto isso, os militantes sobreviventes da repressão, lutam para que a memória dos anos 1960 e 1970 se mantenha viva no Brasil (MARTINS FILHO, 2003).

Assim, o que está em questão não são apenas duas memórias divergentes do que de fato aconteceu durante a ditadura, mas um conflito em si próprio entre Memória e Esquecimento. Enquanto os militantes querem lembrar, os militares querem esquecer-se do ocorrido. São compreensões diferentes do que foi a Lei da Anistia de 1979. Para os militares, a anistia comprova que é necessário esquecer, principalmente para evitar o revanchismo. Segundo eles, os militantes de esquerda também cometeram “crimes” e era necessário esquecer os “crimes” cometidos por ambos os lados para o país poder seguir adiante. Mais uma vez segundo eles, a divulgação constante do que ocorreu durante a ditadura comprovaria que a anistia geral e irrestrita só estaria sendo aplicada

para os militantes e não para os militares em questão12 (MARTINS FILHO, 2003, pg.

2).

Entretanto, com a difusão de diversos relatos de militantes, os militares também começaram a contar sua versão da história. Há importantes pesquisas na área de

12 Vale a pena pontuar que os militares parecem se esquecer que os militantes de esquerda já foram

“punidos” pelos “crimes” que cometeram – foram presos, torturados, mortos ou exilados –, enquanto militares e policiais que cometeram crimes de violação dos direitos humanos saíram ilesos da ditadura militar.

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memória militar que devem ser mencionadas. Entre as principais obras está Visões do Golpe: A memória militar de 1964 (1994), livro organizado por Maria Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro. O livro analisa as memórias dos militares sobre o golpe de 1964. Nessa mesma linha de estudo está o livro Os Anos de Chumbo: A memória militar sobre a repressão (1994), organizado pelos mesmos autores. Depois foram publicadas também as memórias de Ernesto Geisel, por meio de depoimentos cedidos a Fundação Getúlio Vargas e organizados também por D’Araújo e Castro (1997).

As pesquisas sobre essa temática têm como ponto em comum uma explícita tentativa por parte dos militares de utilizar seus relatos pessoais como forma de combater o discurso dominante atual sobre a ditadura. Assim, os militares utilizam a oportunidade de contar sua história como forma de questionar a validade do discurso dos militantes de esquerda. Para isso, os entrevistados delineiam o regime sob uma perspectiva mais positiva, buscando justificar a implementação da ditadura.

É válido mencionar também que o silêncio dos militares contribui para a falta de informação disponível sobre os bastidores do golpe e do próprio regime. Por se tratarem de trabalhos estritamente na área de memória e História Oral, essas obras relatam apenas aquilo que os próprios militares escolheram relatar. A dificuldade de acesso aos documentos da ditadura impediu análises mais profundas sobre a extensão da atuação militar e sobre as suas práticas de repressão e principalmente de vigilância, que permanecem obscuras até hoje. O que se sabe sobre o assunto se limita ao arrazoado de elementos que são de conhecimento das vítimas que sobreviveram à repressão. Dados trocados apenas entre os militares são ainda desconhecidos e informações que comprovem as perseguições políticas são muito difíceis de encontrar, pois são assuntos que – por razões óbvias – não são discutidos abertamente por eles.

Voltando à questão da memória militar, é necessário também abordar a ideologia do grupo em questão. Para isso, é vital mencionar aqui algumas análises sobre a doutrina de segurança nacional, uma espécie de cartilha de instruções seguida pelos militares da época. Para Carlos Fico (2004), a doutrina seria o cimento ideológico da utopia autoritária. Teria como aspecto principal “a crença na superioridade militar sobre os civis, vistos, regra geral, como despreparados, manipuláveis, impatrióticos e –

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sobretudo os políticos civis – venais.” A doutrina tinha um viés saneador, buscando extirpar as figuras de esquerda do cenário político brasileiro, justificando, portanto, o golpe (FICO, 2004, pg. 39). A análise de Luis Felipe Miguel (2002) também reafirma a presença de um discurso de superioridade moral e técnica entre os mesmos. Salienta também os aspectos contraditórios da doutrina, que se posicionava contra o Estado liberal-democrático – considerado incapaz de garantir a segurança nacional – embora seja esse o Estado que encarne o ideal ocidental defendido pelos militares e combatido pelo comunismo (MIGUEL, 2002, pg. 44).

Menciono o livro de Elio Gaspari, A Ditadura Derrotada (2003), que apesar de se dizer um livro de história, por ser largamente baseado em depoimentos de Golbery do Couto e Silva e no diário pessoal de Ernesto Geisel, acaba por mostrar o ponto de vista militar sobre o regime instalado por eles. Assim, é possível dizer que mais do que relatar a história do “consulado militar” (GASPARI, 2003, pg. 16), como o autor pretendia, o livro acaba relatando as memórias militares do próprio “consulado”. É então um ponto de vista subjetivo e pessoal – dos militares – sobre os eventos que ocorreram durante a ditadura. Exponho aqui o resumo proposto por Marcos Napolitano (2004) para esse ponto de vista:

Arriscaríamos dizer que os traços principais dessa corrente seriam os seguintes: a) o golpe foi um acontecimento fortuito, sem projeto ou conspiração eficazes, produzido pela incompetência política de João Goulart; b) os conspiradores civis, inocentes úteis, foram progressivamente alijados do novo regime ou romperam com ele, ao perceberem o endurecimento político progressivo; c) havia um núcleo liberal no Exército que foi neutralizado pela "linha dura", entre 1967 e 1974 e obrigado por ela a aceitar medidas de violência política e d) a pressão dos quartéis estaria na base do endurecimento do regime, portanto, este processo não seria fruto de uma estratégia política. Nessa tradição de análise, a responsabilidade dos civis e militares "liberais" que foram artífices do golpe e do regime fica atenuada, pois eles teriam perdido o controle do processo político, abrindo espaço para a violência política da "ditadura escancarada" de 1968 a 1974 (NAPOLITANO, 2004, pg. 196). Vale a pena também citar aqui as memórias sobre o general Castello Branco. Livros como os de Luís Viana Filho (1975), chefe da Casa Civil durante seu governo, e Daniel Krieger (1976), líder do governo, ajudaram a cimentar uma memória do general como alguém “moderado” e até mesmo “legalista”. Entretanto, esse ponto de vista foi contestado nas obras de Jayme Portella de Mello (1979) e Hugo Abreu (1979), que questionaram a unanimidade dessa opinião. A disputa de memória também aparece na biografia do general, escrita por Lira Neto (2004).

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Cito também a polêmica em torno da memória do “golpe dentro do golpe”. Nessa linha de pensamento, o período posterior ao AI-5 é visto de maneira totalmente separada e diferente do período de 1964 até 1968. Entretanto, livros que publicaram as memórias dos militares, como o de D’Araújo, Castro e Soares (1994), se posicionam contra esse ponto de vista, pois através das entrevistas argumentam que já havia a chamada “utopia autoritária” muito antes de 1968, em que se acreditava que primeiro era necessário eliminar as ditas “subversões”, para que o país pudesse voltar à democracia (D’ARAÚJO et. al., 1994, pg. 9).

A questão das memórias militares sobre repressão e tortura também precisa ser levantada. É comum nessas memórias o argumento de que os excessos de violência seriam da responsabilidade de subalternos, que teriam desvirtuado o regime e atuado sem a aprovação dos oficiais e generais. Entretanto, Fico (2001) argumenta que essa tese não se sustenta, principalmente para o período posterior ao AI-2, após a implantação do DOI-CODI em 1969, pois o sistema mesclava policiais civis, policiais militares e militares das três forças. Assim, não era possível que eles não soubessem o que estava ocorrendo. Até mesmo no livro de Elio Gaspari (2003), mais simpatizante em relação aos militares do período da abertura, aparece a seguinte frase, dita pelo

General Geisel, que ganhou reputação de moderado13: “esse negócio de matar é uma

barbaridade, mas eu acho que tem que ser” (GASPARI, 2003, pg. 324).

Pelo o que foi escrito até aqui, é possível perceber que os relatos não se tratam de narrativas neutras sobre o passado, mas são histórias a partir de um ponto de vista pessoal. Como disse Fentress e Wickham:

As recordações têm a sua gramática específica e podem (devem) ser analisadas como narrativas; mas tem também funções e podem (devem) ser analisadas de uma maneira funcionalista, como indicadoras, concordantes ou contraditórios, da identidade social. (...) Certamente serão selecionadas, a partir de um conjunto potencialmente infinito de memórias possíveis, pela sua relevância para os indivíduos que recordam, pelo seu contributo para a construção da identidade e das relações pessoais (FENTRESS E WICKHAM, 2003, pg. 112).

13 A reputação de moderado do general Geisel pode ser comprovada no próprio livro de Gaspari (2003),

onde ele diz: “Quando [Geisel] assumiu havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia

um ditador sem ditadura” (GASPARI, 2003, p. 35). Entretanto, essa reputação é questionável quando

olhamos para a história, pois dois assassinatos políticos de grande repercussão ocorreram durante seu governo, o do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog.

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Assim, argumento que as lembranças dos militares servem não apenas para recontar o passado, mas para justificá-lo no presente.

Entre os militantes, o mesmo ocorre, mas a partir de outro ponto de vista. Os primeiros relatos de esquerda publicados foram os do militante da Ala-Vermelha do PC do B, Renato Tapajós, Em Câmara Lenta (1977); e Combate nas Trevas (1987), de Jacob Gorender, um dos fundadores do PCBR, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Nesse mesmo período foi publicado o livro Brasil Nunca Mais (1985), que continha relatos de diversos militantes. Outro livro de grande importância foi O Que é Isso Companheiro?(1979) de Fernando Gabeira. Os dois últimos, Brasil Nunca Mais e O Que é Isso Companheiro? foram grandes fenômenos editoriais, comprovando então a presença de um grande público interessado nas memórias da esquerda sobre a ditadura (MARTINS FILHO, 2003, pg. 4).

É visível que o campo da memória social tem uma conotação política explícita. A memória aparece como mecanismo de luta política, mostrando a tentativa por parte dos militantes de mudar sua posição política no presente. O processo de democratização do país foi um momento de clivagem política, onde a retórica sobre o passado pode ser usada para legitimar a força desses grupos no presente democrático. Pollak (1989) escreveu14:

Essa memória "proibida" e portanto "clandestina" ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória (POLLAK, 1989, pg. 5).

Acredito que o argumento possa ser aplicado à memória das esquerdas no Brasil. As narrativas que antes eram subterrâneas e proibidas pelo regime militar – que também objetivava uma dominação hegemônica –, foram desenterradas e trazidas à tona com o processo democrático. Assim, essa mudança política foi um “sopro de liberdade de críticas, que despertou traumatismos profundos” (POLLAK, 1989, pg. 5). Não é preciso ser um ávido estudioso da ditadura militar brasileira para saber que nesse caso, a memória dos ex-militantes acabou se tornando hegemônica após a transição

14 Nesse caso, Pollak (1989) estava escrevendo sobre a divulgação dos crimes do stalinismo, mas acredito

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democrática, se intensificando ao longo dos anos. Enquanto isso, a memória dos militares foi cada vez mais rejeitada e vista como resquícios de golpismo na sociedade brasileira15.

O Falso Consenso

Porém, argumento que o que existe é um falso consenso. Como explica Rollemberg (2006), não basta afirmar que a esquerda venceu a guerra da memória, pois quem venceu não foram as esquerdas – no sentido plural do termo – mas um grupo muito específico da esquerda, com uma memória muito específica do que foi a ditadura militar no Brasil. Rollemberg (2006) defende que apesar de outras esquerdas terem publicado suas memórias, aquela que se tornou dominante no senso comum, ou na memória coletiva, foi uma narrativa em particular, aquela publicada por Fernando Gabeira, em O Que É Isso Companheiro? (1979), onde a resistência contra a ditadura aparece de maneira heroica e consensual.

Primeiramente é preciso discutir o caráter heroico atribuído à esquerda armada brasileira. Como disse Fico (2004), o livro de Gabeira contribuiu para a mitificação da figura do guerrilheiro, visto como ingênuo, romântico e rebelde (FICO, 2004, pg. 32). Joaquim Alves de Aguiar (2001) argumenta que as autocríticas elaboradas por Gabeira, levando a questionamentos internos sobre a luta armada, acabam por reafirmar a

imagem de herói dos participantes do sequestro do embaixador americano16, “que com

toda a precariedade, lograram um tremendo sucesso: negociaram com os três patetas da

Junta Militar que comandava o país17” (AGUIAR, 2001, pg. 159).

O livro de Alfredo Sirkis (1980), outro ex-militante da esquerda armada, também teve grande sucesso editorial e repete em grande parte a visão mítica da

15 Entretanto, a análise de Faria Pereira (2015) sugere que o discurso revisionista, que relativiza os crimes

da ditadura, é mais forte e amplo do que se pensava. Frases de exaltação do regime militar proferidas por políticos como Jair Bolsonaro, que tem um eleitorado considerável, parecem sinalizar o mesmo.

16 O livro de Gabeira foca principalmente no sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil,

Charles Burke Elbrick, ação armada da qual ele participou, mas com um papel pequeno. O sequestro ocorreu em setembro de 1969 e foi realizado por integrantes dos grupos guerrilheiros de esquerda MR-8 e Ação Libertadora Nacional, que conseguiram trocar o embaixador por companheiros presos.

17 Os três patetas aos quais Aguiar (2001) se refere são os três ministros militares que comandaram o país

após o afastamento de Costa e Silva em setembro de 1969, por motivos de saúde, e até a posse de Garrastazu Médici, em novembro do mesmo ano. A Junta era composta por Aurélio de Lira Tavares (Exército), Augusto Rademaker Grunewald (Marinha) e Márcio de Souza Melo (Aeronáutica).

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esquerda armada proposta por Gabeira (FICO, 2004, pg. 32). O próprio Sirkis admite que no Brasil a reputação dos ex-guerrilheiros é muito melhor do que em países como a Argentina. Entretanto, ele não atribui isso a influência de sua biografia ou a de Gabeira, mas argumenta que a guerrilha argentina causou muito mais mortes e dificultou o processo de democratização do país (SIRKIS, 1998, pg. 25). Apesar de ser possível discutir os motivos históricos para essa reputação mais positiva dos brasileiros – discussão que vai além do escopo da presente pesquisa –, mesmo que as biografias de Gabeira e Sirkis não sejam responsáveis pela criação dessa reputação, é inegável que elas pelo menos ajudaram a difundi-la. Em outro momento do livro, Sirkis também afirma que saiu da escola com “ânsia de ser herói” (SIRKIS, 1998, pg. 132), o que se tornou então uma profecia auto-realizada.

Agora é necessário analisar de forma mais aprofundada a questão do consenso em torno da resistência, o que está ligado ao caráter heroico da guerrilha, mas extrapola a questão da luta armada. Além da reputação de heróis adquiridas pelos militantes de esquerda, também se tornou senso comum a ideia aludida no livro de Gabeira de que todos resistiram; menos os militares do regime, obviamente. De maneira indireta, a posição clara contra a ditadura aparece de maneira consensual entre a classe média brasileira. Em certo momento do livro, Gabeira relata os eventos que ocorreram logo

após a morte do estudante Edson Luís18. Ele diz que naquele momento havia duas

línguas, a dos políticos e a outra das pessoas comuns, “que iam passando”. Elas tinham algo em comum. Gabeira escreve:

Duas línguas se falando, nenhuma entendendo a outra, exceto num ponto: estavam todos contra o governo. O enterro de Edson Luís, no dia seguinte, ia mostrando com clareza essa identidade. Milhares de pessoas apareceram e as janelas da praia do Flamengo estavam cobertas de luto pela morte do menino que poderia ser nosso filho (GABEIRA, 1979, pg. 76).

Assim, há uma ilusão de consenso contra a ditadura, uma ideia de “resistência total”, onde os grupos civis de apoio ao regime são apagados das narrativas e, posteriormente, possivelmente das memórias coletivas do país. Há também uma despolitização da luta, pois a manifestação contra a morte do estudante ocorre porque

18 Edson Luís de Lima Souto morreu em 28 de março de 1968, durante um protesto contra o aumento do

preço da comida no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Ele foi assassinado por policiais militares e sua morte se tornou um símbolo da luta contra a ditadura, marcando também o início das manifestações populares contra o regime, que foram proibidas com a decretação do AI-5 no final do mesmo ano.

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“ele poderia ser nosso filho”, e não por causa de um claro conflito ideológico contra o regime autoritário de direita. Nesse caso, é provocada então uma pessoalização da luta contra o regime, onde as propostas políticas do movimento de esquerda, do qual ele participava, ficam em segundo plano. Ao longo do livro, Gabeira sinaliza que as manifestações populares diminuíram progressivamente, passando de “Passeata dos cem mil” para “Passeata dos 25 mil” – títulos de dois capítulos do livro. Entretanto, isso parece se dar muito mais pelo aumento da repressão, causando medo entre a população, do que por uma genuína falta de interesse de diversos setores em lutar contra o regime.

Rollemberg (2006) faz uma contraposição às memórias de Tapajós (1977), onde o questionamento da luta armada aparece de maneira explícita, pois diversos companheiros foram perdidos na luta e a ditadura ainda permanecia intocável naquela

época (o livro foi escrito pouco antes do fim do AI-519). Enquanto isso, a sociedade

brasileira parecia alheia às dores sofridas pelos combatentes, continuando sua rotina diária sem saber o que ocorria nos porões da ditadura. Assim, o esquecimento e a ignorância coletiva em relação aos crimes da ditadura são latentes, sugerindo até mesmo uma omissão por parte dos brasileiros.

Em outro texto, Rollemberg (2003) comenta sobre as memórias de Jacob Gorender. No livro de Gorender (1987) a resistência da esquerda também é questionada, mas por outro caminho. Ele afirma de forma explícita que a esquerda cometeu um erro, pois a luta armada começou tarde demais. Ela não foi uma resposta imediata ao golpe, mas surgiu apenas quando os militares já haviam dominado o país e destruído os movimentos de massa. Ademais, a esquerda já estava distante da classe operária, do campesinato e das camadas médias urbanas. Para Gorender (1987), a luta deveria ter começado em 1964, quando “as condições históricas determinavam a luta armada” (GORENDER, 1987, pg. 249-250). É importante enfatizar a perspectiva polêmica da análise de Gorender, pois admite o caráter revolucionário dos movimentos pré-64, defendendo que o golpe foi sim contrarrevolucionário e preventivo (GORENDER, 1987, pg. 67). Assim, o caráter político de direita e burguês do regime militar é enfatizado. É enfatizada também a luta de classes, pois o golpe seria uma reação da burguesia contra o movimento revolucionário que se instalava no país nos anos 1960 e

19 A versão original do livro foi publicada em 1977, mas rapidamente foi censurada e saiu de circulação.

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que segundo o autor estava crescendo, podendo resultar de fato em uma possível revolução de esquerda. Por isso o caráter preventivo do golpe.

Portanto, saliento que Tapajós (1977) e Gorender (1987) iluminam as zonas cinzentas das memórias da ditadura – os momentos onde não houve resistência – como o atraso na reação das esquerdas ou a ignorância da sociedade brasileira em relação às torturas. Enfatizam também o conflito ideológico do período, da luta de movimentos de esquerda contra um regime autoritário de direita. Enquanto isso, o livro de Gabeira (1979) apresenta uma versão muito mais simples da história, onde os militares aparecem como vilões, e os militantes como heróis e representantes da sociedade brasileira. Como disse o antropólogo Joel Candau (2005), a vocação da memória é a de dividir (CANDAU, 2005, pg. 58). Assim, no caso do regime militar, haveria dois grupos – militantes e militares – um lutando contra o outro. Essa teria se tornado a versão dominante das memórias sobre a ditadura.

Recuperando as ideias de Daniel Aarão Reis (2000), Rollemberg (2006) explica que seria mais pertinente recuperar a memória daqueles que resistiram do que daqueles que apoiaram, colaboraram, ou até mesmo se omitiram em relação ao regime militar. Como escreveu a própria, foi mais fácil dizer que “todos resistiram, todos resistimos, assim parecia melhor” (ROLLEMBERG, 2006, pg. 5). Como apontei antes, a memória serve o presente e não o passado. Seu objetivo não é relatar o passado como ele foi, mas revelar os elementos que são de interesse do presente. Ela é intrinsecamente passional, emotiva e principalmente subjetiva e parcial (CANDAU, 2005, pg. 59).

Bruno Groppo (2015) argumenta que no processo de construção de memórias sobre as ditaduras são erigidos dois mitos principais: o mito da vítima e o mito da resistência. Esses dois mitos se misturam, pois ao mesmo tempo em que se acredita que a sociedade inteira foi vítima da ditadura, se acredita também que todos resistiram (se todos resistiram, todos foram vítimas). O movimento autoritário é visto como uma força autônoma, pela qual a sociedade não tinha nenhum controle ou responsabilidade. Portanto, foi uma vítima inocente. Acredita-se também que a população inteira resistiu à ditadura, como se o regime fosse imposto exclusivamente de cima para baixo, sem nenhum tipo de apoio ou consentimento por parte da população. O resultado final é uma

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simplificação da história, onde é construída uma narrativa maniqueísta, dos bons contra os maus.

E essa memória sobre a luta armada se tornou dominante durante o processo de anistia e de transição democrática. Nesse momento, uma memória de união entre os diversos setores da sociedade contra o regime militar parecia mais apropriada do que a lembrança de erros, divisões, rompimentos, etc. (ROLLEMBERG, 2006; AARÃO REIS, 2000). Era o momento de se unir contra a ditadura e olhar para o futuro democrático, em vez de remoer mágoas do passado. Como argumenta a socióloga Claire

Moon20 (2006), o processo de reconciliação – nesse caso simbolizado politicamente pela

anistia – é uma ficção transformativa, que confere unidade moral aos eventos ocorridos (MOON, 2006, pg. 272).

Para exemplificar essa ideia de reconciliação e conformação com o passado, é possível citar aqui novamente o livro de memórias de Alfredo Sirkis (1980), que resulta em um final de consenso e apaziguamento, gerado pela anistia política dada aos dois lados, militares e militantes. Como escreveu Sirkis (1998) no prefácio da edição de 1998 de seu livro: “Aquela anistia, nivelando a subversão aos chamados crimes conexos, foi injusta, pois foram atos muito diferentes, porém acabou sendo sábia. Em história isso acontece” (SIRKIS, 1998, pg. 24). Assim, os conflitos do passado são superados, apontando para um futuro de consenso no país.

A Pluralidade de Memórias sobre Jango

Por causa da diversidade de caminhos possíveis de análise presentes dentro da temática das memórias sobre a ditadura, é inevitável que seja feita uma escolha do que será estudado, deixando outras possibilidades de pesquisa para trás. Com isso em mente, escolhi focar em minha tese de doutorado na memória coletiva sobre um indivíduo histórico, nesse caso, o ex-presidente João Goulart. Como sua imagem é marcada pela controvérsia, ela acaba por exemplificar a pluralidade de representações sociais possíveis de serem construídas sobre uma mesma figura histórica. Ademais, por ser figura central em um dos eventos mais traumáticos do país – o golpe de 1964 –, a memória de Jango é carregada de ideologias e simbolismos, evidenciando diversas

20 Claire Moon (2006) analisa o processo de reconciliação política da África do Sul após o fim do

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questões sociais presentes no Brasil de hoje, como o conflito entre democracia e autoritarismo, por exemplo.

Portanto, o objetivo específico da tese será analisar as diversas memórias coletivas por trás das narrativas sobre Jango, mostrando como e por que elas foram socialmente construídas. A pluralidade de memórias sobre ele justifica essa escolha, pois suas representações são marcadas principalmente pela diversidade de perspectivas. Assim, os elementos contraditórios entre os diversos discursos serão revelados. Como explicou Marieta de Moraes Ferreira (2006), a memória sobre Goulart tem como característica principal a ambiguidade. Ao mesmo tempo em que ele é descrito como homem fraco, ele seria capaz de liderar uma revolução comunista (MORAES FERREIRA, 2006, pg. 19).

Castro Gomes e Ferreira (2007) salientam que Jango é um presidente pouco estudado pelas ciências sociais, e quando é lembrado, ele aparece em chave muito crítica ou negativa. Eles afirmam, portanto, a necessidade de questionar essa ideia de “não lugar” de Goulart, dando espaço para memórias subterrâneas sobre essa figura. Assim sendo, seria necessário pesquisar as “múltiplas faces” do presidente, isso é, estudá-lo em sua pluralidade, tentando compreender as diversas perspectivas sobre ele, tanto por atores diferentes como em momentos históricos diferentes (CASTRO GOMES e FERREIRA, 2007). Em trabalho posterior, Ferreira (2011) reafirma a importância de se estudar Jango mais a fundo, pois o estudo da biografia do ex-presidente possibilita o entendimento de outros aspectos importantes da História contemporânea, como os problemas sociais, políticos e econômicos do período, além dos “dilemas, contradições, práticas e tradições das esquerdas no presente” (FERREIRA, 2011, pg. 18).

É importante dizer que as análises que serão aqui mencionadas não se tratam de trabalhos sobre memória, mas sim sobre história. O motivo óbvio para isso é que não existem pesquisas que analisem especificamente as memórias coletivas sobre Jango. Elas são todas análises históricas que discutem os eventos políticos e a atuação do ex-presidente no período em questão. As memórias são mencionadas como fonte de História Oral, contribuindo para a análise do historiador, e não como objeto em si próprio de pesquisa sociológica sobre construções de memórias coletivas. Entretanto,

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argumento que essas análises históricas também podem ser apropriadas para se falar sobre memória.

Primeiro é preciso mencionar a escassez de trabalhos sobre João Goulart (ALMEIDA NEVES DELGADO, 2009, pg. 125). Assim, o próprio esquecimento faz parte das memórias sobre Jango, pois a memória constitui não apenas aquilo que foi contado, mas aquilo que se escolheu não contar (BLOCH, 1995). Existe então um claro paradoxo nas memórias coletivas sobre o tema aqui analisado, pois apesar de João Goulart ser o presidente em exercício durante o evento considerado um dos mais marcantes de todo o século XX no Brasil, poucos historiadores ou cientistas sociais se dispuseram a analisar a sua figura. Na maioria das vezes, ele é rapidamente mencionado em trabalhos maiores sobre o contexto do golpe. Nesse caso, essas análises tiveram um certo olhar teleológico sobre Jango, analisando-o dentro da ótica de que era inevitável que seu governo fosse interrompido por um golpe militar (BADARÓ MATTOS, 2008, pg. 245).

Essa perspectiva foi argumentada pela teoria do populismo, largamente difundida por Francisco Weffort (2003), onde o governo de Goulart é o marco do processo que culminou no golpe de 1964. Jango teria sido o último entre os diversos governos populistas que teriam sido implementados no Brasil, incluindo os de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, onde líderes carismáticos manipulavam as massas trabalhadoras. Todos foram enquadrados no modelo populista, muitas vezes esquecendo-se de analisar as diferenças entre eles. Nas análises dessa corrente de estudos, a especificidade de Jango seria apenas de ter sido o último governo populista antes da ditadura. O governo Jango foi analisado dentro de uma perspectiva marxista muito particular, onde o colapso do populismo – modelo político considerado pequeno burguês – teria provocado a ditadura militar brasileira. Nesse caso, a falta de um governo que fosse genuinamente do proletariado teria impedido o levante das massas para apoiar Jango contra os militares (WEFFORT, 2003). O argumento também foi trabalhado por Ianni (1978).

Na contramão dessas análises está a obra clássica de Moniz Bandeira, O governo João Goulart: As lutas sociais no Brasil (1961-1964) (1977/2001), lançada originalmente ainda nos anos 1970. Ela é considerada de extrema relevância, pois foi a

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primeira tentativa de estudar o governo Jango em sua especificidade. Moniz Bandeira buscou estudar o governo Jango mais a fundo, para além do golpe militar que viria a seguir. Nela, o autor relata o período em que ele esteve na presidência até o momento do golpe.

Recentemente outros analistas se dispuseram a estudar o ex-presidente fora do eixo de estudos sobre a ditadura militar. Com as comemorações dos quarenta anos do golpe em 2004 e os trinta anos da morte de Goulart em 2006, novas obras foram publicadas sobre o assunto. Entre elas, estava o livro Jango: um perfil (2004), de Marco Antonio Villa. Apesar da novidade em se estudar o perfil do ex-presidente – contribuindo para uma literatura ainda escassa sobre o assunto – o autor escolheu reproduzir muitas das velhas representações sobre Goulart. Villa descreve Jango como homem vacilante, inábil e possivelmente golpista (VILLA, 2004). Repete então elementos presentes no discurso tradicional dos militares, como a tendência

revolucionária do ex-presidente e sua incapacidade política21 (MORAES FERREIRA,

2006, pg. 19). Argumentos que foram utilizados para justificar o golpe de 1964

22(D’ARAÚJO et. al., 1994).

Entretanto, pesquisas do IBOPE reveladas recentemente apontam que Jango

tinha mais de 70% de aprovação popular às vésperas do golpe23. Assim, é difícil

defender que um presidente com uma aprovação tão alta teria sido tão incompetente politicamente. E se ele era incompetente, como explicar sua capacidade de organizar as esquerdas até ameaçar dar um golpe? Ameaça que foi forte o suficiente para que os militares organizassem sua deposição.

21 Para clarificar, cito aqui a entrevista do general Muricy para o CPDOC. Ele diz sobre Goulart: “Ele era

um homem culturalmente despreparado, apenas um bom fazendeiro, um bom criador de bezerro.”. E em outro momento ele fala sobre a “estratégia de comunização” de Goulart e sobre a “ascensão de Jango junto às forças de esquerda”. MURICY, Antônio Carlos da Silva. Antônio Carlos Murici I (depoimento, 1981). Rio de Janeiro, CPDOC, 1993. Villa repete argumento similares, dizendo que quando nos aproximamos historicamente de Goulart, a imagem de “destemido é substituída pelo fraco”, “o político hábil aparece como inconsequente”, que teria chegado a presidência como “fruto da fortuna e não da virtude”. Ao mesmo tempo fala da “guinada à esquerda” do presidente e que em diversos momento de sua trajetória na presidência, “ele ameaçou com a possibilidade de dar um golpe de Estado” (VILLA, 2004, pg. 7-9). Os dois colocam Goulart como fraco e golpista. Assim, apesar da discussão sobre a verdade histórica desse argumento estar além do escopo do presente trabalho, é inegável que os argumentos de Muricy, militar e um dos articuladores do golpe de 1964, e de Villa, historiador, são bastante semelhantes.

22 Cito Muricy mais uma vez: “A Revolução de 64 era contra a transformação do Brasil, contra o caminho

do Brasil para a anarquia”. E Villa: “O golpe de estado acabou ocorrendo, só que contra ele [Jango]” (VILLA, 2004, pg. 9). Assim, apesar das nomenclaturas diferentes, os dois concordam que o movimento de 1º de abril de 1964 ocorreu graças a inabilidade e tendências golpistas de Jango.

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Entretanto, a maioria dos historiadores nessa nova leva de pesquisas analisou o ex-presidente de forma mais positiva, buscando trazer novas perspectivas sobre a figura de Jango. Muitos também criticaram a análise teleológica de seu governo, evitando colocar sua derrubada como desfecho inevitável do contexto político do período. Nessa linha de estudos está o livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, intitulado Jango: as múltiplas faces (2007), onde são expostas as memórias de diversos personagens daquele período. Como foi mencionado anteriormente, os próprios autores afirmam que Jango é um presidente esquecido ou lembrado em “chave muito crítica/negativa”. Assim, é necessário estudar mais a fundo as memórias sobre ele, enfatizando principalmente a pluralidade de perspectivas nos relatos sobre o ex-presidente. Entretanto, por se tratar de um trabalho de historiadores, as memórias são mostradas apenas como fontes orais para se analisar o governo Jango. Ainda permanecem em aberto os motivos sociais e políticos pelos quais essas memórias foram construídas.

Na mesma linha está a coletânea organizada por Marieta Moraes Ferreira, João Goulart: entre a memória e a história (2006). Nessa obra, diversos historiadores e cientistas sociais buscam analisar de forma mais detida vários aspectos do governo Jango. O livro inclui capítulos sobre o trabalhismo, a questão agrária, o golpe, anticomunismo, etc., incorporando então as temáticas principais do período político. Menciono também a obra de Munteal, Ventapane e Freixo, O Brasil de João Goulart: um projeto de nação (2006). Apesar de o livro ser constituído por artigos já publicado sobre o tema, a introdução dos autores e o posfácio de César Benjamin sinalizam a necessidade de olhar para Jango sob um novo olhar, estudando as especificidades de seu governo e indo além de uma análise exclusiva sobre os eventos que resultaram no golpe militar.

Outra obra recém-publicada sobre o ex-presidente é João Goulart: Uma Biografia (2011), escrita por Jorge Ferreira. Na introdução do trabalho, Ferreira (2011) questiona a descrição de Goulart feita por Villa (2004) e outros, como Skidmore (1969), que o definiram como político incapaz. Para isso, o autor sublinha a experiência profissional de Jango na política, onde foi deputado estadual, secretário de Estado, deputado federal, ministro do Trabalho, duas vezes vice-presidente da República, presidente do Senado, antes de ser presidente da república. Ademais, fez faculdade de

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Direito e como cita o autor, “formou-se em política brasileira pelas mãos de Getúlio Vargas” (FERREIRA, 2011, pg. 10). Assim, o autor comenta que é difícil definir como incapaz alguém com tanta experiência política. Nas próximas páginas do livro, Ferreira (2011) relembra a escassez de trabalhos sobre Goulart e salienta que a maioria dos estudos sobre o tema trata da crise do governo e do colapso da democracia, e não da figura de Goulart, que permanece como personagem secundário (FERREIRA, 2011, pg. 13).

Conclusões

Voltando a Pollak (1989), talvez exista no Brasil um processo duplo de irrupção de memórias subterrâneas. A memória dominante durante o regime militar era aquela defendida pelos próprios militares, de que a ditadura era necessária e foi na verdade um contragolpe, impedindo o alastramento do comunismo no país. Com a redemocratização, as memórias das vítimas conseguiram ser expostas, revelando as torturas e os dolorosos crimes cometidos pela ditadura. Assim, a memória desse grupo se tornou dominante. A seguir houve uma segunda leva de irrupção de memórias. Nessa segunda leva, o que ocorre não é o surgimento de um terceiro grupo de memórias, mas a visibilização dos fossos entre as diversas memórias das esquerdas no Brasil, que são

muito mais divergentes e complexas do que se parecia à primeira vista24. Como

colocou Rollemberg (2006), haveria “uma boneca dentro da boneca” (ROLLEMBERG, 2006, pg. 6). E acredito que essa segunda leva ainda esteja em curso, pois é necessário investigar mais a fundo as múltiplas memórias das esquerdas sobre a ditadura.

Entretanto, é necessário também pensar nos efeitos em longo prazo desse tipo de argumentação. A presença de espaços de não-resistência nas memórias subterrâneas sobre o período militar serve como argumento para a teoria de Aarão Reis (2000), de que na verdade a ditadura foi muito mais um resultado da colaboração entre civis e

24 A partir das descomemorações dos 50 anos do golpe, foi possível perceber uma variedade maior de

relatos sobre a ditadura. Fico (2004) argumenta: “A explicação certamente fundamenta-se no fato de que

velhos mitos e estereótipos estão sendo superados, graças tanto à pesquisa histórica factual de perfil profissional quanto ao que poderíamos caracterizar como um "desprendimento político" que o distanciamento histórico possibilita: tabus e ícones da esquerda vão sendo contestados sem que tais críticas possam ser classificadas de "reacionárias". Processa-se uma mudança geracional, sendo cada vez mais frequente que pesquisadores do tema não tenham parti pris” (FICO, 2004, pg. 30). Não sou tão

otimista quanto Fico, pois a variedade de perspectivas nas análises sobre o passado não significa necessariamente que essas pesquisas todas sejam de qualidade. Mesmo assim, sinalizam para uma maior multiplicidade de memórias sobre a ditadura.

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