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PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA PUC-SP

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Academic year: 2019

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BOM DIA PARA RENASCER:

As Crônicas de Otto Lara Resende para a

Folha de S.Paulo

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM

COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

PUC-SP

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Carolina de Bartolo Chagas

BOM DIA PARA RENASCER:

As Crônicas de Otto Lara Resende para a

Folha de S.Paulo

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica – Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação do Professor Doutor Arthur Rosenblat Nestrovski.

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Profº Drº Arthur Rosenblat Nestrovski (orientador)

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Agradeço primeiramente a meu pai, Carmo Ribeiro Chagas, jornalista como eu, que ao saber que eu queria fazer mestrado sobre um cronista me deu sábio conselho (como sempre faz): escolha alguém que escreve bem. Depois, a Matinas Suzuki Jr. que me introduziu ao mundo de Otto Lara Resende na Folha através do livro Bom dia para nascer, com crônicas por ele selecionadas, conversas e boas dicas. Agradeço a meu orientador, Arthur Rosenblat Nestrovski que me guiou nessa volta aos bancos universitários e comigo ficou até o final deste agradável período.

Aos dois melhores amigos que o departamento de Comunicação e Semiótica da PUC me deu, Henrique Siqueira e Rodrigo Manzano, que dividiram comigo as angústias e alegrias desse processo.

No Instituto Moreira Salles (IMS-SP), gostaria de agradecer a Tatiana Longo dos Santos, que me introduziu à pesquisa no arquivo pessoal de Otto Lara Resende e especialmente ao Sérgio Barbosa da Silva que me acompanhou grande parte do processo e me entregou várias pepitas de ouro. Ao Pedro Paulo da Silva, devo agradecer também pela ajuda enquanto esteve no IMS, mas principalmente pela cuidadosa revisão geral e boas conversas acerca desse trabalho. Ainda tenho de agradecer imensamente ao escritor e jornalista Humberto Werneck, maior especialista nos quatro mineiros e ótimo tutor.

Meus sinceros agradecimentos a Hélio Guimarães pela indicação bibliográfica antes e na qualificação; a minha amiga Renata Buono, responsável pela direção de arte desse trabalho e a seus assistentes Rafaela Ranzani e Renato Breder, e a Américo Martins que muito me ajudou na leitura dos jornais de fora do Brasil. Ainda tenho de dizer muito obrigada a Bruno Lara Resende, Otavio Frias Filho, Edney Cielice Dias, Luiz Caversan, Matinas Suzuki (mais uma vez) e Mariana Lara Resende pelos depoimentos cedidos a essa pesquisadora. Ao apoio em várias horas, muito obrigada a Ricardo Meirelles, Paulo Sampaio, Leão Serva, José Roberto de Toledo, Mariana Murad Leiva, Marilena Rodrigues Leiva, Vânia Ferreira Dias, Maria Fernanda Leiva, Juliana de Bartolo Chagas, Maria Regina Natel de Almeida Pimentel, Kelly Cruz, Vera Lucia Araújo dos Santos, Vladimir Sacchetta, Claudia Fontoura D´Angelo e Karla Patrícia Nastari Pacheco Machado, Carlos Graieb, Lígia Chiappini de Moraes Leite, Wilma de Araújo Costa e John Norman.

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CHAGAS, Carolina de Bartolo. Bom dia para renascer: as crônicas de Otto Lara Resende para a Folha de S.Paulo. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Comunicação e Semiótica,

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

Essa pesquisa analisa a produção jornalística de Otto Lara Resende (1922-1992) a partir das crônicas que ele publicou no jornal Folha de S.Paulo entre os anos de 1991 e 1992. O trabalho estuda o suporte das crônicas – o jornal – e discute a importância desse gênero de escrita para os periódicos. O estudo também traça um panorama da crônica no Brasil, mostrando influências sofridas com o passar das décadas. Selecionamos ainda algumas crônicas das 523 que Otto Lara Resende publicou na Folha de S.Paulo para mostrar traços do texto do cronista, como a ironia, a crítica e uso do tom cotidiano. Os textos de Otto sobre a “Era Collor”, período da história recente do país que foi especialmente marcante pela atuação da imprensa, mereceram destaque no estudo. Surgida na França, no final do século XIX, a crônica logo veio para o Brasil e, no decorrer do século XX, paralelamente ao desenvolvimento da imprensa, consolidou-se e ganhou particularidades que depois se consagrariam como brasileiras. A crônica abrigou uma leva de escritores que se tornariam conhecidos principalmente por suas atividades de cronista, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria e Otto Lara Resende, entre outros. Jornalista no sentido mais amplo do termo – ele trabalhou em todos os setores da produção de um jornal: reportagem, edição, pauta, editoriais – e autor de livros – são dele O Braço Direito, Boca do Inferno, entre outros –, Otto Lara Resende imprimiu nos seus últimos trabalhos características marcantes do gênero crônica, destacados por essa pesquisa. Suas crônicas para a Folha são um bom exemplo de um cruzamento de fronteiras – do jornalismo e da literatura – que é típico dos periódicos nacionais e abre espaço para reflexões sobre a atualidade jornalística.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo, Crônica, Era Collor, Gênero de Fronteira, Otto Lara

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CHAGAS, Carolina de Bartolo. A good day to be reborn: Otto Lara Resende’s columns for the Folha de S.Paulo. Master’s dissertation – Department of Communication and Semiotics, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

This study analyzes the journalistic work of Otto Lara Resende (1922–1992) based on columns he published in the newspaper Folha de S.Paulo from 1991 to 1992. It describes the support in which the columns exist – the newspaper – and discusses the importance of this writing genre for the periodicals. It also provides an overview of journalistic columns in Brazil, describing influences evinced by the columns over the decades. Some of the 523 columns that Otto Lara Resende wrote for the Folha de S.Paulo are selected to demonstrate features of this columnist’s writing, such as irony, criticism and the use of day-to-day language. The texts by Otto concerning the “Collor Era,” a period of recent Brazilian history marked by intense activity by the press, are given a special focus. Having arisen in France at the end of the 19th century, the practice of writing and publishing columns soon arrived in Brazil, and with the overall development of the press in the 20th century the column’s role was consolidated and took on peculiarities that became established as distinctively Brazilian characteristics. The newspaper column has been a starting point for various writers who became known for their column writing, including Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria and Otto Lara Resende himself. He was a journalist in the widest sense of the term – having worked in all sectors of newspaper production: reporting, editing, report planning, editorials – and authored several books including O Braço Direito and

Boca do Inferno. His last columns display striking characteristics, as described in this study. His columns for the Folha are a good example of the blending of different fields – journalism and literature – which is typical of Brazilian periodicals, giving rise to reflections on current journalistic practice.

KEYWORDS: Journalism, newspaper columns, the Collor Era, borderline genre, Otto Lara

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INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1

TRÊS FACES DE OTTO LARA RESENDE

1.1 Otto Lara Resende, sobretudo jornalista 1.2 Otto Lara Resende ou a arte de fazer amigos 1.3 O personagem Otto Lara Resende

1.4 A tensa relação entre Folha e o governo Collor no momento da entrada de Otto

CAPÍTULO 2

UM OLHAR SOBRE A CRÔNICA NO BRASIL

2.1 As origens da crônica

2.2 O amadurecimento da crônica, um gênero quase nosso 2.3 Crônica, difícil definição

2.4 A crônica e o texto jornalístico 2.5 O espaço da crônica em xeque

CAPÍTULO 3

A PEQUENA REVOLUÇÃO DE OTTO LARA RESENDE NA FOLHA

3.1 Chegada de Otto, revolução

3.2 Da análise política para a conversa fiada 3.3 Nomes, amigos e palavras

3.4 Mudança de ponto de vista 3.5 O nascimento de crônicas de Otto

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INTRODUÇÃO

O nome desta dissertação é quase igual ao da primeira crônica de Otto Lara Resende para a Folha de S.Paulo. A data de início de Otto naquele jornal – 1º de maio de 1991 – coincidia com o dia de seus 69 anos, por isso o texto ganhou o nome de “Bom dia para nascer”. A calorosa repercussão que esses textos leves e bem estruturados tiveram naquela página 2 da Folha ajudaram-no a fazer as pazes com o jornalismo. Talvez por isso, em várias entrevistas que ele deu depois – e por causa de – sua estréia no jornal paulista, Otto lembrou que sua primeira crônica chamava-se “Bom dia para renascer”. Essa simpática coincidência foi um dos motivos que nos levaram à escolha desse nome.

Mas não foi o único.

Nos 15 anos anteriores à estréia de Otto – e em toda a história da Folha de S.Paulo –, a página 2, considerada a mais importante do jornal, era eminentemente política. De um lado ficavam os editoriais, do outro uma coluna esguia com artigos de fundo político e econômico. Ao centro, três colunas: a de São Paulo, que àquela época já era assinada pelo jornalista Clovis Rossi, a de Brasília e a do Rio de Janeiro. Nos três casos a missão do colunista do espaço era fazer uma análise política relacionada, quase sempre, com a cidade em que estava geograficamente localizado.

Em entrevista que integra esta pesquisa, o diretor de Redação da Folha de S.Paulo, Otavio Frias Filho, conta que a chegada do texto de Otto àquele espaço provocou uma verdadeira revolução na página: encantou leitores, diversificou o público e, talvez o mais importante, trouxe de volta a crônica jornalística para a Folha de S.Paulo. Entre os anos 1985 e 1991, as crônicas sumiram da Folha. A boa aceitação dos textos de Otto reabriu espaço para esse tipo de escrito, hoje tão comum nas páginas daquele jornal. Tanto isso é verdade, que com a morte de Otto, para ocupar aquele espaço, foi chamado um escritor (Carlos Heitor Cony) cuja missão foi perpetuar a crônica ali.

Por esse motivo, podemos também considerar que, com o texto de Otto, a crônica jornalística renasceu para a Folha de S.Paulo. E melhor, levada por um escritor que a exercitou todos os dias (exceto às terças-feiras) com as características da autêntica e bem executada crônica brasileira. Quase um suelto, o trabalho de Otto foi poeticamente definido por Matinas Suzuki Jr. (então diretor executivo da Folha e responsável pela ida de Otto para o jornal), como um raio de luz que adentrava pela soleira daquela página.

Dividido em três partes, o presente estudo pretende discutir o papel da crônica nos periódicos, a partir da experiência de Otto Lara Resende na Folha de S.Paulo.

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próximas ao escritor, além de se inteirar de textos relevantes sobre o gênero crônica. A partir da pesquisa, a dissertação foi estruturada da seguinte forma:

1. Um primeiro capítulo com um pequeno perfil do jornalista e escritor Otto Lara Resende. Para traçar esse perfil, abordamos três facetas de Otto: o profissional de imprensa respeitado que em jornal e televisão fez de tudo um pouco; o mestre na arte de fazer e cultivar amigos; o “personagem” Otto Lara Resende que foi “criado” por Nelson Rodrigues a partir das frases geniais de Otto e ganhou as páginas, pensatas, colunas e tiras de humor. Esse capítulo descreve ainda o clima tenso entre a Folha de S.Paulo e a presidência da República quando Otto lá começou a escrever.

2. O segundo capítulo faz um panorama sobre a crônica. Quando surgiu, suas principais características, a dificuldade para definir o gênero, a facilidade com que se reproduziu no Brasil. E discute a relevância desse tipo de texto nos periódicos, sobretudo brasileiros.

3. O terceiro capítulo mostra a mudança de perfil da página 2 da Folha de S.Paulo depois da chegada de Otto como titular da coluna Rio de Janeiro; apresenta alguns dos assuntos abordados por ele nos textos e encerra mostrando como Otto criticou sutilmente alguns aspectos do governo Collor em algumas crônicas.

Nos anexos, apresentamos na íntegra as crônicas de Otto que foram citadas parcialmente no decorrer deste trabalho – na ordem que aparecem no texto – e um mapeamento de todas as crônicas do autor publicadas pela Folha de S.Paulo entre maio de 1991 e dezembro de 1992. Na lista, indicamos o título, a data de publicação do texto e uma breve indicação do assunto central ali tratado. A maior parte da leitura dessas crônicas foi feita no arquivo do escritor no Instituto Moreira Salles de São Paulo (IMS-SP) e uma pequena parte foi pesquisada no Banco de Dados da Folha de S.Paulo. Otto não arquivou 19 das 523 crônicas que escreveu para o jornal.

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CAPÍTULO 1

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1.1 Otto Lara Resende, sobretudo jornalista

Nascido no dia 1º de maio de 1922 em São João del Rei (MG), Otto Lara Resende foi um jornalista completo. Em jornal, revista e televisão, ocupou todas as funções que um profissional da área pode preencher: foi repórter, redator, pauteiro, editor-chefe, diretor, editorialista, colunista, apresentador e diretor de TV. Morreu, em 28 de dezembro de 1992, cronista da página 2 da Folha de S.Paulo.

Otto foi convidado para escrever naquele espaço quando o repórter político Newton Rodrigues deixou o cargo. Newton esteve com o presidente Fernando Collor de Mello sem comunicar ao jornal. Os anos Collor foram especialmente tensos para a Folha de S.Paulo, como se verá mais adiante, e a atitude do colunista desagradou à direção do periódico, que preferiu demiti-lo. O nome de Otto Lara Resende foi indicado à Folha pelo então editor-executivo Matinas Suzuki Jr. e prontamente aceito por Otavio Frias Filho, diretor de Redação.

Naquela época, Otto escrevia todos os domingos para o jornal O Globo, função que assumiu em janeiro de 1976, com um artigo sobre o jurista Sobral Pinto. Matinas pediu que o articulista Janio de Freitas, amigo de Otto desde a década de 1960, fizesse uma primeira sondagem com o jornalista. Janio voltou animado do bate-papo, dizendo achar que havia uma chance de fechar o negócio. Otavio enviou Matinas ao Rio para formalizar o convite.

Quando me incumbiu da missão, Otavio me alertou que eu estaria diante de um dos personagens mais fascinantes que ele jamais conhecera e que seria uma das tarefas mais agradáveis que eu faria pelo jornal. Ele tinha razão. Encontrei Otto em sua casa e fomos a um restaurante no Jardim Botânico. O almoço começou por volta das 13h. A conversa dele era tão envolvente que por volta das 17h eu ainda não tinha conseguido fazer o convite.1

Otto disse que teria de falar com O Globo para acertar a colaboração para a Folha. Alguns dias mais tarde, ele ligou para Matinas e perguntou se aquela missão para a qual estava sendo convidado exigia exclusividade. “Nesse momento me deu uma dúvida”, lembra Matinas. “Na minha cabeça se eu falasse que sim, ele podia recusar por causa de O Globo. Quando percebeu meu vacilo, Otto emendou: ‘Eu gostaria muito que fosse’.”

A missão de Otto exigia resistência: preencher, todos os dias, o rodapé da página 2 da Folha de S.Paulo com um texto de, no máximo, 30 linhas. Ele só aceitou o desafio quando foi desobrigado pela direção do jornal a escrever somente textos sobre política.

Quando fui contratado pela Folha, eu não queria escrever naquela página, que acho um tanto sisuda. E aquele espaço era do Newton Rodrigues, que é um repórter político. E embora eu tenha sido repórter político durante muitos anos, não quero mais isso. Não agüentaria ficar hoje analisando o

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picadinho da política brasileira porque acho um saco. Mas eles me puseram ali exatamente como uma nota dissonante, com autonomia para escrever o que quiser. E eles preferem que seja um tom leve, de crônica.2

Apesar de aconselhado a tirar um dia de folga por semana, Otto Lara Resende acertou com Matinas que nos primeiros meses escreveria todos os dias. “Disse que era para pegar o ritmo”, lembra Matinas. E assim foi. Durante mais de três meses, Otto escreveu todos os dias para o rodapé da página 2. A partir da semana de 11 a 17 de agosto de 1991 passou a colaborar com a Folha de quarta a segunda. Folgava às terças. Não eram raras, no entanto, suas colaborações para outros cadernos do jornal, com a “Revista D”, o “Mais!”, a “Ilustrada”, “Turismo” e até o primeiro caderno, com textos de política. Durante o tempo que colaborou para a Folha, Otto assinou 572 textos, dos quais 523 na página 2 e 49 em outros cadernos.3

A repercussão daquelas crônicas, em uma página que por décadas fora eminentemente política, foi quase imediata. “Lembro de ter elogiado o Matinas pelo acerto do nome”4, diz Otavio Frias Filho. “Em todos os meus anos de profissão, nunca vi uma pessoa entrar num jornal e provocar uma reação positiva tão imediata como foi o caso do Otto. A página começou a ser lida de baixo para cima. O texto dele era uma luz que entrava pela soleira daquela página”, observa Matinas.

Os elogios a Otto tornaram-se freqüentes na seção de cartas, publicada no “Painel do Leitor”, bem à direita da página 3 da Folha. Com sete dias de textos publicados, ele ganhou o primeiro elogio de um leitor de São Paulo, que dizia ter gostado do “estilo elegante e bom humor” do cronista. Em 17 de maio, a seção publicou a primeira carta em que um leitor dava parabéns ao jornal pela contratação do cronista: “Congratulo-me, com a contratação de Otto Lara Resende pela sua cultura, sensibilidade humanística e raro senso político”, dizia o texto do leitor paulistano que foi o primeiro de uma série. Até o início de julho o jornal estampou mais de 12 cartas elogiando uma coluna específica ou o conjunto dos textos de Otto. Fato bastante raro nessa seção do jornal. Talvez a mais expressiva seja do amigo e publicitário Carlito Maia, que assinou carta publicada dia 11 de junho de 1991:

A Folha, 70, e eu, 67, somos de 19 de fevereiro, último dia de Aquário, daí as nossas afinidades. Com mais uma agora: a presença diária, na segunda página, de Otto Lara Resende, um verbívoro (ele se nutre da palavra transformando-a em luz). Você faz parte da minha vida, Otto Lara. Beijares e abraçares.

Otto Lara Resende se dizia um fanático por jornal. Lia vários logo cedo. E guardava tudo o que lhe interessasse ou levasse sua assinatura. Esse interesse pode ser percebido em seu arquivo

2 FREITAS, Armando. Otto Lara Resende, o mestre volta à crônica diária. Diálogo médico. São Paulo:ano 17, nº5, julho-agosto 1991.

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pessoal, doado pela família ao Instituto Moreira Salles (IMS) em 1994, após sua morte. Integram o acervo mais de 20 mil documentos, pelo menos a metade de sua autoria. Este hábito de ler jornais é comentado pelo próprio jornalista em entrevista publicada na revista Diálogo Médico:

Não conheço ninguém que leia jornais como eu. Você pode me perguntar quais são os editoriais de hoje do Globo, JB, Folha e Estado de S.Paulo eu te digo todos. Leio os quatro diariamente e ainda o Jornal do Commercio. Leio também a Veja e a IstoÉ. Leio ainda o New York Times Book Review e The Economist, que substituí pelo Time. Nunca deixei de ler o L’Express e o Nouvel Observateur. Tudo isso fora os livros, é claro. Sempre gostei também de ler, durante determinado tempo, jornais de outras cidades, como Curitiba, Vitória, Porto Alegre, etc. Eu passei a vida toda lendo jornais do Brasil inteiro.5

Otto gostava de contar que entrou no jornalismo como cachorro entra na igreja: porque a porta estava aberta. “Entrei e nunca mais saí”6, disse. Começou, aos 16 anos, em Belo Horizonte, colaborando para O Diário, publicação que se intitulava “o maior jornal católico da América Latina”, informa o jornalista e escritor Humberto Werneck em O Desatino da Rapaziada.7 Lançada em fevereiro de 1935 pela arquidiocese belo-horizontina, era dirigida por seu pai, o professor Antônio Lara Resende.

Está no livro de Werneck parte da história de Otto nesse período.

Seu primeiro texto publicado no jornal é de 1940. Escrito a partir de leituras de jornais cariocas, chamava-se “As panelinhas literárias”. O escrito responde artigo do Anuário Brasileiro de Literatura (publicação de grande prestígio na década de 1940) que criticava Tristão de Athayde. Na defesa de um de seus primeiros ídolos, Otto dá mostras de que sua pena seria afiada, como podemos conferir no trecho a seguir:

Entre as colaborações há, como é natural, umas que sobressaem mais, outras, menos. E há algumas que, a dizer a verdade, nada valem. Os seus autores deveriam prosseguir no heroísmo de “continuar a colaboração com a economia de papel”.

Ainda em Belo Horizonte, Otto publicou na Folha de Minas, onde chegou a ser responsável pelo “Suplemento Literário”. Nessa época ele já era ligado aos outros três “cavaleiros de um íntimo apocalipse”8, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, também colaboradores assíduos em periódicos mineiros.

Do quarteto, só Otto fez carreira no jornalismo. Apesar de ter começado em Minas Gerais,

5 In Diálogo médico. São Paulo:ano 17, nº5, julho-agosto 1991.

6 SANTOS, Tatiana Longo dos (org.) Três Ottos por Otto Lara Resende. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002. p. 31.

7 WERNECK, Humberto. O Desatino da Rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 96.

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foi no Rio de Janeiro que se consolidou na profissão. Em 1945, formado em direito, mudou-se para a então capital federal, onde já estavam Fernando Sabino e Hélio Pellegrino. Começou como repórter do Diário de Notícias e, logo em seguida, passou a trabalhar também para O Globo, Diário Carioca e o Correio da Manhã. Dessa época, amigos de Otto como Janio de Freitas, Moacir Werneck de Castro e Armando Nogueira informam que Otto escrevia editoriais para

O Globo bem como para o Diário de Notícias, jornais de posições políticas opostas. Não raro, eram de Otto tanto as provocações quanto as respostas polêmicas publicadas nos dois periódicos cariocas. Sobre esse período, ele afirmou em entrevista a Paulo Mendes Campos:

Fui fazer a Constituinte em 46. Trabalhei em mil jornais. Trabalhava a semana inteira, o dia inteiro, a noite inteira. Como a gente trabalhava! Eu não tinha especialidade, fazia de tudo. Fui tudo, em todos os jornais.9

Em 1951, foi contratado como redator do recém-fundado jornal Última Hora de Samuel Wainer. Ali, Otto escreveu sobre todos os assuntos. Assinou inclusive críticas de cinema sob o pseudônimo JO.

Já era considerável a experiência jornalística de Otto quando, em 1954, Adolpho Bloch chamou-o para assumir a chefia da redaçãchamou-o da revista Manchete, que fundara ambicionando disputar com O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, a preferência dos leitores cariocas. A presença de Otto foi decisiva nesse processo. Sobre esse período comenta Benício Medeiros em biografia do jornalista:

Otto fez bom ambiente na Manchete. A revista melhorou. Passou a publicar matérias mais leves e bem-elaboradas. O diretor levou para a redação o artista plástico iniciante Amílcar de Castro, mineiro como ele, que ajudou a modernizar a publicação, aproximando-a, na concepção gráfica, da Paris Match, então o supra-sumo na categoria das revistas ilustradas.10

Em novembro do ano seguinte, ele conseguiu entrevista que marcaria para sempre a história da revista. Em depoimento exclusivo a Otto Lara Resende o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott esclareceu o contragolpe ocorrido no início daquele mês e a movimentação das Forças Armadas que asseguraram a posse de Juscelino Kubitschek em janeiro de 1956. Juscelino fora eleito com pouco mais de três milhões de votos, aproximadamente 36% do total, o que gerou estremecimento nas Forças Armadas que achavam o percentual pequeno demais para legitimar a eleição do presidente. A entrevista foi feita menos de uma semana depois do dia 11 de novembro quando Lott, então ministro da guerra, frustrou o golpe militar que pretendia impedir a posse dos eleitos em 3 de outubro. A edição 187 da revista esgotou em menos de 12 horas. Foi Janio de Freitas, em artigo de 15 de novembro de 2005, intitulado “De golpes”,

9 SANTOS, Tatiana Longo. Op. cit., p.36.

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para a Folha de S.Paulo, que bem descreveu o episódio e a participação de Otto:

Diretor, não havia muito tempo de Manchete, Otto Lara Resende foi ele próprio fazer uma entrevista com Lott sobre os acontecimentos ainda ferventes. Conversaram por quatro horas, em companhia do general Odylio Denis, planejador executivo do golpe. Conversar com Otto Lara era ouvir Otto Lara. À loquacidade deliciosamente compulsiva do entrevistador contrapunha-se a exigüidade de palavras dos dois generais, sobretudo do entrevistado. Apesar disso, Otto escreveu a mais longa entrevista publicada por Manchete. E o fez sem anotações da conversa monologal. O texto foi levado à aprovação prévia do entrevistado. Lott ficou encantado. Ali estavam suas idéias. [...] A entrevista fez tanto sucesso que se equiparou como assunto aos acontecimentos políticos imediatos. E entre eles figurava nada menos do que o cruzador Tamandaré navegando, um tanto às tontas entre Rio e Santos, levando a bordo Carlos Lacerda e o escrete do golpe em fuga disfarçada de resistência.

Não por acaso, a matéria foi selecionada pelo também jornalista Fábio Altman para integrar a série de 48 entrevistas realizadas entre 1823 e 2000, reproduzidas no livro A Arte da Entrevista.11

Em dezembro de 1956, Otto deixa a direção da Manchete para, a convite do Itamaraty, assumir as funções de adido cultural em Bruxelas.

No começo da década de 1960, Otto voltou à rotina das redações quando assumiu o cargo de editorialista do Jornal do Brasil, época em que estreitou laços com Janio de Freitas. À frente da redação, Janio tinha mudado o perfil do jornal, que deixara de ser conhecido pelos classificados e começava a ser respeitado também por seu jornalismo. Nessa mesma época, Otto colaborou com crônicas esporádicas para a revista mineira Alterosa.

Na segunda metade da década de 1960, voltou a ter dois empregos ao integrar a equipe fundadora da TV Globo. Saía então diariamente do JB e seguia para o Jardim Botânico, endereço da sede da emissora, onde também fez de tudo um pouco. Em 1966 passou para a frente da câmera para apresentar o quadro O Pequeno Mundo de Otto Lara Resende, ao vivo, numa época em não se podia contar com o videotape, pois as fitas, importadas do Canadá, eram caríssimas. O quadro, parte do Jornal de Verdade, consistia em pequena crônica do cotidiano carioca.

Em 1967, Otto deixou a redação do JB e a TV Globo para assumir novo cargo a convite do Itamaraty: adido cultural da embaixada do Brasil em Portugal.

Em 1969, voltou ao Rio e ao jornalismo, dessa vez como diretor do Jornal do Brasil, onde ficou até 1974, ano em que assumiu o cargo de diretor da Rede Globo, a convite de Walter Clark. A amizade dos dois e as questões delicadas que resolveu em seu período como executivo da Vênus Platinada – apelido, aliás, atribuído a ele – levaram-no a dizer que era um “walter ego”, numa clara alusão a Clark, então todo-poderoso da emissora, de quem era assessor. Só para ilustrar as missões espinhosas que Otto exerceu na Rede Globo: coube a ele escrever a carta de demissão de Walter

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Clark da direção da empresa em 1977 e também sua resposta, assinada por Roberto Marinho. Otto deixou a TV Globo em 1984, num episódio mal-explicado. Apesar de continuar com suas colaborações para o jornal da mesma empresa, a saída o deixou de mal com a vida. Só faria as pazes com o jornalismo, em sua estréia como colunista da Folha de S.Paulo sete anos mais tarde.

Otto foi também um escritor refinado. Publicou contos magistrais em O Lado Humano

(Editora A Noite, 1952), Boca do Inferno (Editora José Olympio, 1957), O Retrato na Gaveta

(Editora do Autor, 1962) e As Pompas do Mundo (Editora Rocco, 1975). Seu romance O Braço Direito (Editora do Autor, 1963) foi uma obsessão para o autor, que o reescreveu até seus últimos dias. Em vida, Otto ainda assinou A Cilada, sobre a avareza, da compilação Os Sete Pecados Capitais da Editora Civilização Brasileira, lançado em 1964 (e relançado em 2001 pela Editora Bertrand Brasil), e viu sair a coletânea O Elo Partido e Outras Histórias (Editora Ática, 1991). Após sua morte em 1992, a editora Companhia das Letras relançou parte de sua obra (Boca do Inferno em 2002; O Braço Direito em 1993) além das coletâneas O Príncipe e o Sabiá

(em 1994), uma compilação de textos de Otto feita por Ana Miranda; A Testemunha Silenciosa

(em 1995), volume que inclui as novelas A Cilada e a que dá título ao livro; e Bom dia para nascer (em 1993), coletânea de 192 crônicas escritas para a Folha de S.Paulo, selecionadas por Matinas Suzuki Jr. Seu conto “Gato gato gato”, publicado originalmente em O Retrato na Gaveta foi incluído na antologia Os Cem Melhores Contos do Século, organizada por Ítalo Moriconi (Editora Objetiva, 2000).12

Em 1o de outubro de 1979, Otto foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Ocupou a cadeira 39, que tem como patrono Francisco Adolfo Varnhagen, o visconde de Porto Seguro. Otto substituiu Elmano Cardim (antigo diretor do Jornal do Commercio), vencendo o professor Djacir Menezes por 24 votos a 13.

Como escritor, Otto ganhou fama por sua mania de reescrever obsessivamente seus textos. Na conversa, quase sempre era o centro das atenções. No jornalismo, seus textos pareciam sair com naturalidade da máquina de escrever. Na literatura, era o oposto. “Escrever é de amargar!” disse ele várias vezes sobre essa dificuldade. As seis versões de seu romance O Braço Direito que

12 Sobre essas obras de Otto, consultar: SILVERMAN, Malcolm. “O mundo misantrópico de Otto Lara Resende”.

Moderna Ficção Brasileira (vol.2). Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1981; PEREZ, Renard.

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constam em seu arquivo no Instituto Moreira Salles são prova dessa dificuldade. Se dependesse dele, a edição revisada publicada depois de sua morte nunca teria saído da gaveta. Foi a escritora Ana Miranda quem deu os toques finais ao texto, que segundo ela estava praticamente pronto.

Seus livros foram bem acolhidos pela crítica, mas talvez fosse mais justo que Otto passasse para a história como jornalista, profissão que exerceu com brilhantismo por mais de meio século. A insinuação é do historiador e amigo Francisco Iglésias, que assina o texto da quarta capa da coletânea Bom dia para nascer, da Companhia das Letras.

Advogado, com certo exercício no serviço público, escritor, ele [Otto] foi sobretudo jornalista. Desde jovem trabalhou na imprensa: em Minas, no Rio e em São Paulo. Ao fim de alguns anos, tinha completo domínio do ofício, a ponto de ser capaz de redigir todas as seções. Escrevia com extrema rapidez e em linguagem admirável – correto, enxuto, com humor e lirismo, sempre de acordo com o exigido pelo tema. Só nunca foi pesado ou entediante, sabendo dosar a densidade e a leveza. Se trabalhou em quase todos os grandes jornais do país – ninguém os lia mais atentamente –, na Folha, em sua última tarefa, atingiu a plenitude. Na crônica de poucas linhas dizia muito e conquistou o maior público que teve: foi lido, comentado, discutido.

1.2 Otto Lara Resende, ou a arte de fazer amigos

Em texto publicado no caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, o escritor e jornalista mineiro Fernando Morais conta que logo depois de ter saído na imprensa que escreveria uma biografia sobre Assis Chateaubriand para a editora Companhia das Letras, foi procurado por Otto. “Os primeiros bilhetes de Otto Lara Resende começaram a chegar pelo correio em meados de 1987”13, diz. Depois de descrever sua alegre surpresa de ser procurado por um dos quatro mitos da literatura mineira (ao lado de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino), com quem tinha quase nenhuma intimidade, Fernando Morais descreve a correspondência do colaborador voluntário:

Os bilhetes eram sempre datilografados em pedacinhos de papel que davam a impressão de ser folhas ofício cuidadosamente divididas em quatro partes iguais. O texto era espremido em espaço um, sem rasuras ou correções, e tinha uma peculiaridade: os acréscimos, post-scriptum e pequenas alterações posteriores eram feitos sempre à máquina. Manuscrita, apenas a assinatura. O mesmo pedaço de papel parecia ter sido enfiado várias vezes no cilindro da máquina de escrever para incluir observações de que o autor se esquecera. Na parte de trás do envelope, acima do endereço, o remetente se identificava apenas como “o. l. r.” – tudo, endereço e iniciais, era sempre escrito em letras minúsculas.

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Otto encheu a caixa de correios de Morais com cartas por várias semanas. Nos bilhetes, aconselhava Morais a ler o discurso de posse de João Cabral de Mello Neto na Academia Brasileira de Letras, adquirir esse ou aquele livro ou ainda falar com essa ou aquela pessoa. Quando finalmente foi convocado a dar seu depoimento formal para o autor de Chatô, O Rei do Brasil, tentou de todas as formas fugir ao compromisso, “alegando que tinha trabalhado pouco tempo com Chateaubriand, que quase nada sabia sobre ele”, escreveu Morais. Sugeria, no entanto, que o colega procurasse Moacir Werneck de Castro e Rubem Braga. “Estes, sim, sabem tudo do Chatô”, prometia. Fernando Morais foi persuasivo e conseguiu convencer Otto a organizar o encontro dos quatro, que se deu no final de outubro de 1987, na casa de Rubem Braga no Leblon, Rio de Janeiro. Os melhores momentos dessa noitada foram transcritos no caderno “Mais!” da Folha de S.Paulo, em 199914 e mostram um Otto extremamente participante. Graças a seus inúmeros bilhetes e à tal volta ao tempo nos domínios de Braga, que acabou depois das três da madrugada com os quatro perambulando pelo Rio de Janeiro, a bordo do fusca “azul-calcinha” de Otto, em busca de um restaurante aberto, o autor de O Braço Direito é citado em quatro momentos da biografia de Assis Chateaubriand escrita por Fernando Morais.

Num deles, sem dúvida o mais saboroso, passado em algum momento do segundo semestre de 1954, Morais descreve o esforço de Otto Lara Resende para aplacar a ira de Chatô contra seu arqui-inimigo Samuel Wainer. Apesar de vivo e ainda gozando de boa saúde, Wainer era personagem de artigo assinado por Chatô, intitulado “Agora evacuemos o cadáver”. Achando que Chatô tinha exagerado nas tintas, Otto o procura e inicia diplomática conversa dizendo: “Doutor Assis, eu li seu artigo e gostaria de fazer algumas considerações”.15 Depois de muito elogiar as habilidades de Chateaubriand e tentar defender Wainer, Otto ouviu do interlocutor: “Seu Otto, essa argumentação é tão cretina quanto o patife que o senhor veio aqui defender. Não toque mais nesse assunto comigo”. Embora tivessem tido alguns encontros, Otto e Assis Chateaubriand nunca ficaram amigos. Fato nada comum na vida do jornalista mineiro. No rápido perfil do ocupante da cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras entre os anos de 1979 e 1992, o jornalista Murilo Melo Filho relata no livro Tempo Diferente:

À exceção de Assis Chateaubriand, Otto foi amigo pessoal e quase íntimo de todos os grandes capitães da nossa imprensa: Paulo Bittencourt, no Correio da Manhã; Nascimento Britto, no

Jornal do Brasil; Orlando Dantas, no Diário Carioca; Roberto Marinho, em O Globo; Samuel Wainer, em Última Hora; Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa e, por último, na Manchete

de Adolpho Bloch, que certo dia lhe sugeriu construir, no cemitério israelita de Vila Rosaly, uma sepultura conjunta, para os dois, argumentando:

14 Idem

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– Preciso ter, na eternidade, um bom vizinho para conversar.

As passagens descritas por Fernando Morais e Murilo Melo Filho dizem muito de Otto Lara Resende. Como ele mesmo confessou em entrevista a Paulo Mendes Campos “gosto de partilhar, de participar, sou bisbilhoteiro, abelhudo”.17 Quando achava que sua memória podia ser útil para algum fim, botava papel na máquina de escrever e datilografava18 com incrível rapidez bilhetes para os mais variados endereços, contendo informações preciosas. As cartas eram enviadas invariavelmente pelo correio. Uma curiosidade: de tanto usar o correio, a instituição achou justo homenageá-lo, após a sua morte, com um selo que circulou até 1995.

Dois pontos merecem destaque ainda no episódio que envolve Assis Chateaubriand: a naturalidade que ele entra na sala de Chatô para defender o amigo Samuel Wainer, atitude que mostra o trânsito livre entre os gabinetes de figuras importantes da história do país àquela época. E o empenho que teve junto a Fernando Morais para elucidar passagens da vida de uma figura de quem nem fora tão próximo.

Com os amigos, Otto era irrepreensível. Armando Nogueira descreveu essa capacidade em um texto escrito em 2002, lembrando os dez anos de morte do jornalista:

Tudo o que ousou fazer na vida, Otto fez muito bem. Amigos, por exemplo. Ele praticava como ninguém, a arte igualitária de fazer amizades. Dos santos, herdou o dom de aproximar as bem-vindas e, sobretudo, as desavindas. “Por que diabo, Deus meu, nasci com esse destino de compreender?”, indagava, aparentemente desconsolado.19

Seu filho Bruno Lara Resende acrescenta que uma de suas maiores alegrias era fazer o que chamava de “intriga do bem”. Segundo Bruno, Otto contava pequenas mentiras para deixar uma pessoa bem com a outra. Essa habilidade foi convertida em uma coleção de amigos. Muitos deles, importantes. Vinicius de Moraes e Oswald de Andrade ficaram amigos de Otto ainda em Belo Horizonte. O início da amizade com o segundo entrou para o folclore belo-horizontino.

Em 1944 em visita à capital mineira, Oswald subiu num palco armado diante de um grupo

16 MELO FILHO, Murilo. Tempo Diferente. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2005, p. 262. 17 SANTOS, Tatiana Longo dos. Op. cit., p. 24.

18 Seu filho Bruno conta que a arte de bem datilografar era um de seus maiores orgulhos. 19 NOGUEIRA, Armando. O inventor da boa intriga. Jornal do Brasil, 30 dezembro 2002.

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grande de jovens curiosos para conhecer o homem atrás de sua fama, e criticou a obra de Georges Bernanos, escritor católico francês radicado nas Gerais, por quem Otto tinha grande admiração. Este, por sua vez, não agüentou a provocação e saiu em defesa de Bernanos. A discussão acalorada durou algum tempo. Ao final, empolgado com o ocorrido, Oswald se aproximou de Otto e perguntou se ele não queria repetir a performance em outras praças.

No Rio, a lista de amigos cresceu conforme os anos foram passando. Bruno Lara Resende descreve bem as conquistas do pai ao se lembrar da casa que Otto Lara Resende inaugurou no bairro do Horto em 1962.

A casa logo virou um entra e sai de gente de todo o naipe. Freqüentaram aquele endereço de Glauber Rocha a Carlos Lacerda. Tancredo Neves, Nelson Rodrigues, Antônio Callado, Adolfo Bloch e quem mais você se lembrar. Chegou a um ponto de um dia um dos assíduos chegar lá e gritar “Quem tá aí?” Nesse dia, meu pai se irritou. Achou que tinha esculhambado e tentou regular mais as visitas. Mas não conseguiu. A casa continuou sendo um centro de encontro de muitos amigos queridos.20

O temperamento de Otto (“Sou visceralmente conciliador. A coisa que eu mais admiro no mundo é ponte”21, declarou), o gosto pela boemia (“Não pensem que vou mudar. Continuarei boêmio e impontual, como sempre”, disse ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras), a enorme quantidade de cartas que escrevia para os amigos e os cargos que ocupou em influentes meios de comunicação (que permitiram indicar ou mesmo chamar muitos amigos a fazer colaborações), cooperaram para torná-lo tão popular.

No acervo de Otto, no Instituto Moreira Salles, temos vários vestígios do cultivo dessas amizades – o principal deles é a sua correspondência. A série de cartas conta com mais de sete mil documentos. Durante boa parte de sua vida, ele se correspondeu com os escritores Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino (todos presença constante em sua vida e também habitantes do Rio de Janeiro), João Cabral de Mello Neto, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Rachel de Queiros, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Cyro dos Anjos, Pedro Nava, João Guimarães Rosa, Dalton Trevisan (além das cartas, Otto guardou vários originais corrigidos das obras do autor de A Guerra Conjugal), Antônio Callado, João Etienne Filho, Octavio de Faria, Ferreira Gullar e Murilo Rubião, entre tantos outros. Na mesma série, também encontramos cartas enviadas por importantes nomes da imprensa como Moacir Werneck de Castro, Armando Nogueira, Luis Edgard de Andrade, Carlos Castello Branco, Carlito Maia, Walter Clark, Tarso de Castro, Ziraldo, Samuel Wainer e Wilson Figueiredo. O historiador Francisco Iglésias e os políticos José Aparecido de Oliveira e Israel Pinheiro também merecem menção na lista dos mais assíduos das caixas de correio de Otto.

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Carlos Drummond de Andrade refere-se ao autor e aos personagens de Boca do Inferno no poema “Crítica de Domingo”, incluído em sua Viola de Bolso II:

É a vida uma ferida

a pungir n’alma das crianças? (O mundo não as entende) A secura comovida

que lhes rompe as esquivanças sabe-a Otto Lara Resende22

João Cabral de Mello Neto, de sua parte, dedicou ao autor um poema inteiro, reproduzido abaixo:

A Otto Lara Resende

Aqui o mar é uma montanha regular redonda e azul, mais alta que os arrecifes e os mangues rasos ao sul. Do mar podeis extrair, do mar deste litoral, um fio de luz precisa, matemática ou metal. Na cidade propriamente velhos sobrados esguios apertam ombros calcários de cada lado de um rio. Com os sobrados podeis aprender lição madura: um certo equilíbrio leve, na escrita, da arquitetura. E neste rio indigente, sangue-lama que circula entre cimento e esclerose com sua marcha quase nula, e na gente que se estagna nas mucosas deste rio, morrendo de apodrecer vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem é sempre a melhor medida. Mais: que a medida do homem não é a morte mas a vida.23

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A presença dos amigos está além das cartas, e pode ser encontrada nas incontáveis dedicatórias que Otto colecionou. Algumas, especialmente carinhosas, estão destacadas a seguir.

Esses textos rápidos mostram seus bons laços com figuras de destaque da elite sócio-econômica e sobretudo cultural. Na imensa coleção de livros autografados também podemos destacar palavras de escritores portugueses dirigidas a Otto em livros que ele colecionou no tempo que trabalhou como adido cultural em Portugal. Entre eles, vale mencionar obras de José Saramago, Miguel Torga, Almada Negreiros, José Régio e Alexandre O’Neill.

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De algumas dessas personalidades, Otto guardou apenas as dedicatórias, descartando a obra. Essa coleção de dedicatórias em folhas extraídas de publicações, presente em seu acervo, conta com 438 documentos. José Sarney, Lygia Fagundes Telles, Artur da Távola, Juscelino Kubitschek, Millôr Fernandes, Armando Nogueirasão alguns dos autores presentes nesta coleção. Abaixo algumas das dedicatórias guardadas nessa coleção.

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Outro indício incontestável da capacidade de Otto de bem se relacionar em todas as áreas são os perfis de sua autoria publicados em O Príncipe e o Sabiá, lançado logo após sua morte.24 Na introdução do livro, com sessenta perfis (dentre os quais o autobiográfico “Quem é Otto Lara Resende?”), a escritora Ana Miranda dá um pouco da dimensão da obra por ela organizada:

A leitura de seu fascinante material jornalístico, desde o relato de seu encontro nos anos 1940 com Mário de Andrade até a última crônica escrita alguns dias antes de sua partida deste mundo, é uma aula de história do Brasil. Otto conheceu milhares de pessoas, fossem ou não de grande expressão cultural, públicas ou anônimas; conversou com elas, compreendeu-as, escreveu sobre muitas delas. Encontrei, em sua obra, dezenas de perfis como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, apenas para citar alguns, da área de literatura; e Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, Jango Goulart, na área política, ou ainda textos inesperados, como um sobre Angela Diniz, a pantera de Minas, vítima de um crime passional.[...] Esse livro é muito parecido com Otto, bem de acordo com seu temperamento generoso de homem voltado para o Outro.

Para Moacir Werneck de Castro, amigo de Otto e autor da resenha do livro publicada no caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo de 20 de fevereiro de 1994, com o título “Retratos de Otto Lara Resende”, O Príncipe e o Sabiá dá a idéia da “onipresença intelectual, da quantidade (e qualidade) da gente que freqüentava, dos seus incessantes compromissos sociais e de trabalho”.

É relevante salientar que Otto viveu numa época em que o jornalismo estava muito próximo do poder e na cidade em que isso acontecia com mais intensidade. Até a inauguração de Brasília, em abril de 1960, o Rio de Janeiro era a capital do país. Ele destaca isso em um de seus depoimentos que integram o livro Três Ottos por Otto Lara Resende: “Como jornalista e como curioso, conheci muito político. Casei numa família de político”. A mulher de Otto Lara Resende, Helena, é filha de Israel Pinheiro – que, além de ter sido governador de Minas Gerais, em 1965, participou como deputado da Constituinte de 1946. O pai de Israel, João Pinheiro, também foi presidente de Minas, conforme nomenclatura da Repúplica Velha.

Otto e Helena tiveram quatro filhos, André, Bruno, Cristiana e a temporã, Helena, nascida em 1968 em Lisboa. Sobre a paternidade tardia (quando a caçula nasceu, Otto tinha 46 anos), ele diria: “Heleninha me permitiu ser pai de minha neta e avô de minha filha sem o inconveniente da mediação de um genro”.

Provas de amizade de Otto Lara Resende são ainda as orelhas, prefácios, posfácios e introduções de obras que escreveu vida afora. Escreveu um prefácio para Langues de Feu: essais sur Clarice Lispector

(Montreal, Trois, 1990), livro da canadense Claire Varin, além de tê-la auxiliado na pesquisa tal como fez com Fernando Morais (o livro foi publicado no Brasil pela editora LIMIAR, em 2002). Só para lembrar

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outros casos, escreveu a apresentação para o livro Textura e Contextura, de Marília Giannetti Torres (Editora Museu de Arte Moderna. Belo Horizonte, 1977); para À mesa com elegância, de Lia Willemsens Neves da Rocha (Editora Salamandra, Rio de Janeiro, 1990); para Vida, vida: memória, de Maria Helena Cardoso (Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1973); posfácio de Impressões do Brasil: a imprensa brasileira através dos tempos, rádio, jornal, tv (Editora Práxis, São Paulo, 1986); a introdução de Em Minas: viagens, de Carlos de Laet e Austregésilo de Athayde (Editora Globo, São Paulo, 1993), o prefácio de Três faces da liberdade,de Afonso Arinos Filho (Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1988) e de

Helena Antipoff; sua vida/sua obra, de Daniel Antipoff (Editora José Olympio, Rio de Janeiro 1973).

Figura 12 - Capa e contracapa de Três faces da liberdade, de Afonso Arinos Filho, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1988 (acervo OLR, IMS-SP)

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os seus escritos. Segundo consta, ele cumpria à risca todas as exigências de tamanho e gostava de ser comunicado de toda e qualquer alteração (com direito a aceitá-las ou não).

Figura 13 - Contracapa de A Ilusão Literária, de Eduardo Frieiro, 3 edição, Belo Horizonte, Itatiaia, Brasília, INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1983 (acervo OLR, IMS-SP)

1.3 O personagem Otto Lara Resende

Estabelecido no Rio de Janeiro e freqüentador assíduo de várias rodas da intelectualidade carioca, Otto Lara Resende ganhou fama, por volta da década de 1960, de autor de ótimas tiradas. A ponto de amigos e conhecidos “recorrerem” as suas frases para as mais diversas situações. A inicial brincadeira de citá-lo, tomou tal proporção que a certa altura Otto Lara Resende passou de personalidade a personagem, a quem se atribuía ótimas frases – das quais ele nem sempre assumia a autoria.

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por Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, ele relata que Otto “deve ter sido o único caso de um amigo de Nelson que nunca o defendeu por escrito, nem a pedidos, e de quem Nelson continuou amigo”.25 Na página que noticiou a morte de Otto Lara Resende na Folha de S.Paulo, em 29 de dezembro de 1992, Ruy Castro acrescentou: “Tenho convicção de que dos dois melhores amigos de Nelson Rodrigues, Hélio Pellegrino foi o que ele mais amou e Otto Lara o que ele mais admirou.”26

Encantado com a capacidade de Otto de proferir frases perfeitas, no início dos anos 1960, Nelson começa a citá-lo nos textos da segunda “temporada” de sua série Asfalto Selvagem no jornal Última Hora. Dia sim, dia também, Otto aparecia no texto. Ele era a razão de viver do personagem Doutor Odorico, um juiz cheio de pose. Presença constante na obra, Odorico não aparece uma só vez sem citar “Oto Lara Resende” (assim mesmo, com um T só), a quem muitas vezes chama de Oto ou Oto Lara. Numa cena ele “repetia andando de um lado para o outro a frase perfeita, irretocável do Oto Lara: ‘Não tenho uma opinião no bolso e outra na lapela’”.27 Na página seguinte, volta ao seu tema favorito: “Diz de si para si: ‘Ah se o Oto Lara estivesse aqui, vendo, ouvindo!...’”.

Foi o juiz Odorico, nas páginas de Última Hora que comparou Otto a um cano furado. Enquanto um esbanjava água “num esguicho perdulário”, outro esbanjava “espírito na conversa fiada”. Em outro momento do texto de Nelson, um artigo de um crítico chamado Carlinhos “só faltava aconselhar que aquele gênio verbal pegasse um taquígrafo para perpetuar-lhe os bate-papos, as piadas”. Ruy Castro conta que mais de uma vez, Nelson Rodrigues incentivou Otto a abrir uma “loja de frases” para vendê-las. A idéia, como não podia deixar de ser, também acabou nos jornais, na seção fixa de Nelson em O Globo. Otto guardou o recorte de 27 de fevereiro de 1975, do qual retiramos o trecho abaixo:

25 CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 211.

26 Ruy Castro em série de depoimentos da seção “Repercussão” do obituário do autor. Folha de S.Paulo, 29 dezembro 1992.

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A obsessão de Nelson chegou ao ápice com a estréia de Otto Lara Resende, ouBonitinha mas Ordinária28 em novembro de 1962, no teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Uma das mais famosas frases atribuídas a Otto, “o mineiro só é solidário no câncer”, é repetida 47 vezes durante a peça, funcionando como justificativa para a ação das personagens. Ao que tudo indica, dessa vez Otto, que preferia não demonstrar sua irritação com Nelson para não colocar mais lenha na fogueira, se irritou. Em algum momento, teria dito “lá em Minas, ninguém vai entender”. Não chegou a romper com o amigo. Fez pior. De birra, não foi assistir à peça, para desespero do dramaturgo, que tentou de todas as formas arrastar Otto para o gargarejo do teatro.

Em 12 de agosto de 1991, quase onze anos depois da morte de Nelson (em 21 de dezembro de 1980), em uma das crônicas para a Folha de S.Paulo, “Nelson: hoje, ontem”, Otto diz ter assistido a Bonitinha, mas Ordinária. A crônica começa assim: “Levantei-me outro dia como um só homem, tomei coragem e decidi enfrentar o desafio. Quando dei por mim, estava na porta do teatro Gláucio Gil. Comprei ingresso e fui sentar na fila F. Excelente lugar”. O texto segue contando detalhes do espetáculo e elogiando a instituição teatro (“Não entendo como é que se pode não gostar de teatro”, diz Otto lá pelo meio da crônica). No desfecho, ele conta: “Ah, sim, a peça: Bonitinha, mas Ordinária. E eu saí como se tivessem me pregado um rabo de papel...”.

28 RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo (vol IV). Organização Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Figura 15 – Texto

publicado na Folha de S.Paulo de 3 de dezembro de 1962

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Criado por Nelson, o personagem Otto Lara Resende foi imortalizado por vários outros colegas, escritores e humoristas que com ele conviveram (ou não). Especialmente no Rio de Janeiro. Sua penúltima frase vira-e-mexe estava nas colunas de Zózimo (especialmente no período que escreveu para o JB) e Joel Silveira, no “Informe JB”, e nas melhores tirinhas publicadas por humoristas como Millôr, Ziraldo e Luis Fernando Verissimo. Os cronistas Stanislaw Ponte Preta, que o apelidara de “genial frasista de São João del Rei”, e Antônio Maria também o citaram incontáveis vezes em seus escritos em Última Hora e O Jornal. As ilustrações abaixo são uma pequena amostra do que saiu com o nome dele em publicações Brasil afora. O sublinhado nos textos foi feito pelo próprio Otto, enquanto lia e arquivava cada um deles.

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Em algum momento de 1986, um texto assinado por Leocádio Guimarães e guardado por Otto, sem data nem local de publicação, mais uma vez fez brincadeira com a existência em carne e osso daquele tão popular autor de frases memoráveis. O título do escrito é “O mitológico Otto Lara Rezende (sic) existe (Sempre aos domingos)” e começa assim:

Muita gente imagina que Otto Lara Rezende não existe e, até, supõe tratar-se de um personagem do teatro de Nelson Rodrigues [...] Na verdade de tão citado, pelo próprio Nelson [...], por Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros, Otto vive na cabeça de muitos distraídos como uma figura de ficção, como um grande frasista, inteligente, onipresente, sábio e, entre sua origem mineira e sua vivência carioca, senhor do melhor espírito brasileiro.

O texto segue por mais seis parágrafos que o localizam como pai de André Lara Resende e marido da filha de Israel Pinheiro, para terminar dizendo que: “Mas quem quiser encontrá-lo, em ‘corpo e alma’, pode fazê-lo toda semana na página seis do primeiro caderno do jornal O Globo, onde ocupa duas colunas. Aos domingos, mas só aos domingos”.

Em entrevista que Otto fez com Nelson Rodrigues em 22 de agosto de 1977, quando o escritor pernambucano radicado no Rio divulgava seu livro O Reacionário - Memórias e Confissões, ele também questiona a obsessão do amigo em citá-lo:

OTTO - Nelson, a segunda crônica de seu livro chama-se ‘A viagem fantástica de Otto’, me responda essa questão que inúmeras vezes já me fizeram, houve momentos que pessoas acharam que eu não existia de tal maneira que você abusou do meu profano nome em vão. Eu pergunto porque essa obsessão, comigo e outros amigos?

NELSON - Eu sou amigo do Otto. E como amigo do Otto, quero tratá-lo sempre de uma maneira pessoal com a ternura que ele merece. Agora, amigos dele o perseguem declarando que eu o levo ao ridículo. Digo que estou sendo justo, você, Otto é um dos célebres personagens do Brasil.29

1.4 A tensa relação entre Folha e o governo Collor no momento da entrada de Otto

A seleção de capas da Folha de S.Paulo exposta a seguir dá um pouco a dimensão da tensão que o jornal viveu no período em que Fernando Collor de Mello ocupou a presidência da República. Os dois anos finais da Era Collor coincidem com o período em que Otto escreveu para o jornal. Como a relação entre a presidência da República e o jornal tenha sido uma exceção, convém salientar alguns detalhes desse período.

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O ponto inicial da tensão talvez tenha sido um trio de reportagens publicadas pela Folha

antes de Collor ser eleito presidente. Elas afirmavam que no último dia de seu mandato como governador de Alagoas, em 1989, Collor teria contratado, sem concurso, 462 pessoas para a Secretaria de Educação; quintuplicado seus gastos com publicidade – já com a campanha presidencial na mira e, ainda segundo a Folha, durante a campanha presidencial, teria sido escoltado por policiais militares que recebiam salário do governo de Alagoas.

Oito dias depois de assumir a presidência, Collor ordenou a invasão da Redação da Folha, em busca de supostas irregularidades em faturas de publicidade. O jornal estampou editorial no dia seguinte dizendo que a democracia brasileira não toleraria “versões juvenis de Mussolini”. Em agosto do mesmo 1990, o presidente abriu processo judicial contra a Folha sob a acusação de calúnia. O diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, o diretor-executivo da Sucursal de Brasília, Josias de Souza e os repórteres Nelson Blecher e Gustavo Krieger foram processados. Foi a primeira vez que a presidência da República abriu um processo contra um grande jornal do país. O governo dizia serem caluniosas as informações contidas em uma série de reportagens que acusavam o PRN, partido do então candidato Fernando Collor de Mello, de contratar, sem

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licitação, uma das agências de publicidade que haviam participado da campanha eleitoral de 1989. A partir dos textos publicados pela Folha, o deputado Luiz Gushiken, do PT-SP, abriu inquérito civil público para apurar esses contratos e, em fevereiro de 1991, concluiu que eram ilegais. O processo durou seis meses e foi vencido pela Folha.

Talvez para reforçar a idéia de eterna busca pela imparcialidade da publicação, mesmo em um momento em que havia uma briga judicial entre a Folha de S.Paulo e a presidência, o jornal deu muito espaço para o governo Collor em suas páginas. E tanto para anunciar os feitos do presidente, viagens internacionais e eventos oficiais como para mostrar denúncias que envolvessem Fernando Collor de Mello e todos os que estiveram em sua volta. No dia 25 de abril de 1991, o jornal estampou em sua capa “Carta aberta ao sr. presidente da República”. Assinada por Otavio Frias Filho, a carta afirmava que Collor procurava desorganizar a sociedade e intimidar a imprensa “lançando uma névoa cintilante de confusão”, mas que “apesar disso o sr. é obrigado a ouvir vozes capazes de dizer não”.

Não coube à Folha publicar nenhuma das reportagens que foram definitivas para o afastamento do presidente Collor do governo federal, em 29 de setembro de 1992, depois da abertura do processo de impeachment aprovado na Câmara por 441 votos a 38, nem sua posterior renúncia, no dia 30 de dezembro do mesmo ano.30

Em abril, Pedro Collor, irmão do presidente, deu entrevista à revista Veja denunciando o “esquema PC”. Na reportagem, Pedro Collor explicava que o amigo e tesoureiro da campanha eleitoral de Collor, Paulo César Farias (assassinado em sua casa de praia em Maceió em 24 de junho de 1996) seria responsável por tráfico de influência e irregularidades financeiras e que o presidente sabia de tudo. Em seguida a revista IstoÉ circulou com a entrevista em que Eriberto França, o motorista da secretária de Collor, Ana Acioli, confirmou os depósitos feitos por empresas de PC Farias em contas fantasmas movimentadas pela secretária.

O esquema de corrupção orquestrado por PC Farias chocou Otto Lara Resende e todo o país, foi objeto de uma comissão parlamentar de inquérito na Câmara dos Deputados para investigar as denúncias e levou à saída antes do final do mandado do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Sobre esse período, Otto comentaria em reunião do conselho da Folha: “Acho que esse é o período mais corrupto desde os antigos babilônios”.31

Em encontros e conversas telefônicas com executivos do jornal, Otto Lara Resende demonstrava bastante preocupação com o governo Collor, especialmente no período seguinte à

30 Mesmo com a renúncia, o Senado destituiu Collor de suas funções e suspendeu seus direitos políticos por oito anos. Itamar Franco, o vice-presidente, o substituiu no comando do país.

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descoberta do esquema PC. Suas crônicas, no entanto, não refletiram isso.

Mesmo arredio a abordar temas políticos em seu espaço, Otto foi forçado pelas circunstâncias a fazê-lo. Primeiro, o estilo do presidente, suas viagens internacionais, o entra e sai de ministros acabaram dando crônicas. Com o desvendar do esquema de corrupção, renderam assunto para os escritos de Otto Lara Resende, o ânimo geral do país, a briga da família de Collor, os desencontros de Fernando Collor e Rosane, o isolamento do presidente e outros episódios.

Ao todo, Otto escreveu 78 textos que, de alguma forma, tocam no período em que Fernando Collor de Mello esteve no poder e logo depois que ele deixou a presidência. Como veremos mais detalhadamente no capítulo 3, diante da multiplicidade de ângulos e assuntos que a crise suscitava, Otto tendeu sempre ao miúdo (tratou da aliança que faltava no dedo de Collor; do dia em que o presidente faltou ao trabalho e não explicou o porquê; da “camiseta poética”; do cooper; do jet-ski; do lixo da casa da Dinda).

Usando dos recursos literários permitidos ao gênero, fez daquele espaço um conforto para o leitor, mesmo no auge na crise. Seus textos, quando tocavam na ferida, traziam uma mensagem positiva, de que aquilo ia passar, ou eram temperados com fino humor. Por exemplo, na crônica “Jejum e desjejum” de 16 de setembro de 1991, referindo-se à crise brasileira, escreveu: “Desde que me entendo por gente se diz que é sem precedentes”. Dia 5 de outubro do mesmo ano, no texto “Um país legal”, saiu-se com a frase: “O Brasil é um país em que todos mandam e ninguém obedece.”

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2.1 Origens da crônica

Se buscarmos o fio da meada da crônica voltaremos à segunda metade do século XIX e ao Rio de Janeiro, onde, vindo de Paris, chega o folhetim. É Marlyse Meyer quem descreve um pouco da gênese desse ancestral da crônica. Com lugar preciso, geralmente o rodapé da primeira página dos jornais, esse espaço tinha uma finalidade específica: entreter e, muitas vezes, lançar jovens autores. Mexericos da alta sociedade, atrações teatrais, dicas de cozinha, receitas, quase tudo podia ser tema do folhetim, que, em certos momentos, tinha também a função de difundir as idéias correntes na Europa. Aos poucos, assuntos específicos como política externa e interna, economia, crimes ganham espaços determinados dentro das publicações e o perfil do rodapé da primeira página muda.1

O folhetim se divide em dois tipos específicos: folhetim-romance, espaço utilizado para a publicação de romances de ficção em capítulos e o folhetim-variedades, escritos diversos, que dependiam muito do estilo e talento de seu escritor, sobre assuntos frívolos e cotidianos. A crônica será uma evolução do folhetim-variedades e tem, desde seus primeiros escritos, a marca de textos ligeiros, propositalmente descomprometidos com o forte intuito de criar empatia com o leitor. Aos autores desses escritos deu-se o nome de folhetinistas.

Para Davi Arrigucci Jr., os primeiros cronistas como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e França Jr. tinham muito do folhetinista – que percorria “todo tipo de acontecimento com a volubilidade de colibri a esvoaçar em ziguezague”2– e aprendiam através das letras a conviver com

a sociedade tradicional e com novidades advindas dos processos de modernização, em que se incluía o jornal. França Jr., Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Raul Pompéia, Olavo Bilac e Machado de Assis são outros autores do século XIX que dominaram o bem-fazer dos folhetim-variedades, cativaram um público leitor e promoveram a transição desse primeiro gênero para a crônica.

Também na crônica, Machado de Assis é apontado como um marco. Arrigucci argumenta que ele descobriu rapidamente “a liga do ‘útil e do fútil’ que dava graça aos textos. E pôs mão à obra, dedicando-se à relativização dos solavancos entre os altos e baixos do assunto; balanceando [...] os pesos e contrapesos de toda questão”.3 Machado de Assis iniciou suas atividades em jornal

em 1860, aos 21 anos, no Diário do Rio de Janeiro e passou por várias redações cariocas, mesmo depois que se tornou romancista (aos 33 anos). Muitas vezes usou pseudônimos para assinar suas crônicas – Lélio, João das Regras, Malvólio foram alguns deles. Suas crônicas registraram a passagem do Império para a República e desde muito cedo já conquistaram o foco do gênero:

1 MEYER, Marlyse. “Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a chronica”. In CANDIDO, Antonio et. al. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 93 a 133.

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flagrar algo no cotidiano que morreria logo, assim que chegasse o jornal do dia seguinte. Machado foi um dos cronistas que mais rapidamente percebeu a importância do jornal para divulgação das crônicas, explorando o tom de superficialidade que cativava o leitor e, ao mesmo tempo, a grande gama de assuntos que os textos poderiam tratar. Vale a pena ler um trecho de uma de suas

Aquarelas chamada “O Folhetinista”, escritas para a revista O Espelho, em que trata da empatia com o leitor e da dificuldade do momento de escrever:

Todos o amam, todos o admiram, porque todos têm interesse de estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação de hebdomadário. Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para o folhetinista. Há-os negros, com fios de bronze, à testa deles está o dia... adivinhem? o dia de escrever! 4

No texto, “Machado Maxixe: O Caso Pestana”, José Miguel Wisnik trata de uma série de textos de Machado de Assis escritos no final do século XIX que colocam a música em destaque. O conto “Um homem célebre” é apontado como central dessa série. Esmiuçando o escrito de Machado que mostra o conflito de um ótimo compositor de polcas populares que insiste, sem sucesso, em produzir uma obra “erudita”, Wisnik aponta o nascimento da música popular brasileira através da polca que:

inaugura o mercado de música dançável, acompanhado do frisson que lhe corresponde e de todas as implicações que isso terá sobre a vida musical como um todo, quando a música popular urbana se espalhar pelos meios de reprodução de massa [...]. 5

Mais adiante, Wisnik compara o compositor (Pestana) a Machado de Assis e acrescenta que a crônica estava para Machado assim como a polca estava para Pestana: “Machado já exercitava na crônica, em 1878, um desembaraço irônico-paródico que estava longe de praticar na ficção [...]”.

O que Wisnik nos mostra é que como a música popular, a crônica enraizou-se de forma definitiva na cultura brasileira neste final do século XIX. E Machado de Assis foi dos primeiros a se dar conta dessa longevidade e boa aclimatação do gênero entre nós.

Assim como os jornais, que ganharam títulos respeitáveis, passando a ser produzidos em escala industrial, com periodicidade conhecida, os folhetins também sofreram adaptações segundo as regras do mercado. De imensos e excessivamente generalistas rodapés, encurtaram e se transformaram em coluna restrita a um tópico específico e com um título. Junto das (e nas) crônicas do período entre 1870 e 1920, Margarida de Souza Neves aponta a profissionalização do jornalismo; a semente de um público de massa e a “incorporação dos meios técnicos na produção

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literária” bem como da “linguagem e do estilo das inovações da época à própria escrita literária”. Para ficar um pouco mais no final do século XIX: Antonio Candido destaca Olavo Bilac como um dos autores que contribuíram para tornar o gênero um “produto sui generis do jornalismo literário brasileiro”. Para o crítico, “a leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira, gratuita, meio lírico-humorística”.7 Famoso por seus poemas, Olavo Bilac também

foi homem de jornal – entre 1890 e 1908, trabalhou para a Gazeta de Notícias. A leitura da prosa que Bilac exercitou em jornal endossa o comentário de Antonio Candido. No trecho abaixo, observamos como na escrita diária, ele já começa a perscrutar os limites desse novo gênero, a crônica:

Os noticiaristas registram; os cronistas comentam. O noticiarista retira da mina a ganga de quartzo em que o ouro dorme, sem brilho e sem prestígio; o cronista separa o metal precioso da matéria bruta que o abriga, e faz esplender ao sol a pepita rutilante.8

A crônica segue firmando raízes nas duas primeiras décadas do século XX. Nesse período, convivem nas páginas de jornal – e nas prateleiras das livrarias – o estilo rebuscado e conservador de nomes como Coelho Neto e Humberto de Campos bem como uma corrente renovadora, com textos mais leves de cronistas como Lima Barreto e Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio.

João do Rio e Lima Barreto são bons exemplos de cronistas que saem à cidade e colhem na vida urbana impressões variadas. Além de crônica leve e mundana, João do Rio registrou e denunciou os contrastes de uma cidade, o Rio de Janeiro, em que a beleza natural convivia com problemas sociais, como a miséria, o vício e a insalubridade. As influências européias, o folclore e o agravamento da desigualdade social brasileira foram temas constantes dos textos de Lima Barreto para os mais diversos periódicos. Os temas leves, pinçados nos bondes e ruas da cidade, também eram freqüentes nas colunas do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (publicado em forma de folhetim-romance no Jornal do Comércio). Dois trechos assinados por Lima Barreto publicados em semanas subseqüentes de dezembro de 1915 na revista Careta, que mostram como temas leves e mundanos e a denúncia social se alternavam em suas crônicas.

Assim começa a crônica Os outros, publicada em 11 de dezembro de 1915:

Não há prazer maior do que se ouvir pelas ruas, pelos bondes, pelos cafés, as conversas de dois conhecidos. Tenho um camarada cuja curiosidade pelo pensamento dos estranhos é tal que não há papel caído na rua, contendo algumas linhas escritas, que ele não guarde, recomponha, a fim de dar pasto a esse seu vício mental. Tem no seu museu cousas maravilhosas. Muitas vezes os missivistas pensam em ter inutilizado uma cartinha amorosa, um bilhete de ‘facada’ e vai um indiscreto como

6 NEVES, Margarida de Souza. “Uma escrita do tempo: Memória, ordem e progresso nas crônicas”. InCANDIDO, A. et al. Op cit. p. 83.

7 CANDIDO, Antonio. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 28.

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