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As ilustrações do período de escravidão no Brasil, nos livros didáticos de História do Ensino Médio: uma proposta de leitura de imagens

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Academic year: 2020

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Paulo Augusto Tamanini

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

professor@tamanini.com.br

Ana Meyre de Morais

Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA)

ameyremorais@gmail.com

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

AS ILUSTRAÇÕES DO PERÍODO DE

ESCRAVIDÃO NO BRASIL, NOS LIVROS

DIDÁTICOS DE HISTÓRIA DO ENSINO

MÉDIO: UMA PROPOSTA DE LEITURA DE

IMAGENS

RESUMO

Este artigo consiste numa proposta de leitura das ilustrações contidas em livros didáticos de História, do período de escravidão no Brasil, cujos conteúdos se reportam a algumas formas de violência. Servem de fonte os livros História, Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior, 2º ano, publicado em 2013 pela editora FTD; e História: passado e presente, de Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi, 2º ano, uma publicação feita em 2016; ambos foram lançados pela editora Ática. O trabalho problematiza e sugere a leitura das ilustrações presentes nos livros didáticos, a partir do desmonte da totalidade da figura para compreender os saberes que as imagens detêm. O corpo teórico metodológico fundamenta-se nos escritos de Lucia Santaella (2012) e Circe Bittencourt (2009) quanto à hermenêutica das imagens no Ensino de História. A pesquisa evidenciou que as imagens de violência acerca da escravidão no Brasil, contidas nos livros didáticos de História, são instrumentos eficazes na produção de um conhecimento histórico que leva à criticidade, reflexão e questionamentos acerca dos conteúdos instituídos, prontos, acabados. A pesquisa também mostra que toda imagem porta saberes, além de despontar como uma forma diferenciada de produção de conhecimentos, bastando que os professores sejam capacitados para empreender leituras nos livros didáticos. Palavras-chave: Imagens de violência. Livro didático. Ensino de História.

THE ILLUSTRATIONS OF THE PERIOD OF

SLAVERY IN BRAZIL IN THE HIGH SCHOOL

HISTORY BOOKS: A PROPOSAL FOR IMAGES

READING

ABSTRACT

This article consists of a proposal to read the illustrations contained in history textbooks, from the period of slavery in Brazil, whose contents refer to some forms of violence. The books History, Society & Citizenship, by Alfredo Boulos Júnior, 2nd year, published in 2013 by FTD; History: past and present, by Gislane Azevedo and Reinaldo Seriacopi, 2nd year, a publication made in 2016; both were released by Ática. The work problematizes and suggests the reading of the illustrations present in textbooks from the dismantling of the entire figure to understand the knowledge that the images hold. The theoretical methodological body is based on the writings of Lucia Santaella (2012) and Circe Bittencourt (2009) regarding the hermeneutics of images in history teaching. The research showed that the images of violence about slavery in Brazil, contained in history textbooks, are effective instruments in the production of historical knowledge that leads to criticism, reflection and questioning about established, ready, finished contents. The research also shows that every image carries knowledge, in addition to emerging as a differentiated form of knowledge production, and trained teachers are able to undertake readings in textbooks. Keywords: Images of violence. Textbook. History Teaching.

Submetido em: 26/03/2019 Aceito em: 24/02/2020 Publicado em: 22/06/2020

http://dx.doi.org/10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49

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INTRODUÇÃO

Em um processo simbiótico, as imagens, para além de publicizar, também informam, são fontes de saberes que articulam diálogos. No campo da Educação, especificamente nos Livros Didáticos deixaram há muito de ser apenas coadjuvantes; participam e enunciam dizeres. Pouco a pouco, tornou-se imprescindível interpretar o material imagético contido nos Livros Didáticos de História, para um bom andamento de uma aula. Na perspectiva da História das Imagens, as ilustrações são também maneiras de narrar o passado e, sobre ele, ensinar.

A maioria dos pesquisadores reforça o entendimento de que as ilustrações podem também ser excelentes recursos didáticos capazes de suscitar debates, discussões e que contribuem para a construção de novos conhecimentos. Portanto, as imagens presentes nos Livros Didáticos de História se tornaram uma das ferramentas mais instigantes e desafiadoras no trabalho pedagógico do Ensino, mas exigem certa destreza, habilidade e capacitação do professor para sobre elas arguir.

Nesse sentido, por a imagem ser parte integrante de um universo visual bastante diversificado, sua compreensão está atrelada a alguns parâmetros teóricos que tentam significá-la, dentro de um contexto narrativo, inclinado a reforçar os conteúdos anteriormente informados pelos textos escritos.

No livro didático de História, muitos acontecimentos são abordados com o auxílio de imagens que mostram algum índice de violência, que reportam aos ódios, preconceitos, discriminação, exclusão, racismo e intolerância, dentre outros, e que, por vezes, são ignoradas. É possível perceber que muitas das imagens ligadas ao período da escravidão no Brasil, na maior parte das vezes, sequer são questionadas em sala de aula, por professores e/ou alunos. Abordar as imagens que tratam da violência no ensino de História suscita o entendimento de que as imagens não são meras ilustrações, senão outra forma de narrativa, outra forma de linguagem que enuncia, diz, comunica e informa.

O fato de os livros didáticos de História serem produzidos em escala industrial facilita que eles se constituam um dos suportes mais usados pelos professores em sala de aula. Contudo, a produção e a circulação amplas dos manuais didáticos se por lado facilitam um Ensino de História mais ou menos padronizado, por outro, podem direcionar uma só forma de perceber, interpretar e refletir sobre um passado.

Para dirimir tais preocupações, critérios editoriais regionais, por vezes, são estabelecidos com o intuito de atribuir importância aos conteúdos específicos, questionando também a forma como certas temáticas podem ser abordadas. Para além dos textos escritos, atualmente, os didáticos de História cada vez mais dão espaços às ilustrações, imagens, gráficos, mapas etc. Entretanto, tal variedade e incremento requer certa capacitação dos professores para a interpretação e leitura das ilustrações, gráficos, mapas e das imagens.

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 40 Isto posto, e, problematizando como a iconografia pode ser trabalhada didaticamente em suas especificidades, em sala de aula e no ensino de História, este artigo coteja as reflexões teóricas de Lucia Santaella (2012) eCirce Bittencourt (2009) que se debruçam sobre a leitura e hermenêutica das imagens no Ensino de História. As autoras ajudam a compreender que a presença das ilustrações nos livros didáticos de História é uma forma de o professor ensinar de maneira interdisciplinar, verificando os aparatos possíveis para se extrair delas novos saberes. Por serem consideradas textos visuais, as ilustrações potencializam então, o exercício de uma reflexão comungante, facultando ao professor e ao aluno compreender os conteúdos de forma associativa, em que imagens e textos escritos se juntam para uma interpretação da História mais abrangente.

Para tanto, como objeto de análise para a escrita deste trabalho, utilizamos três imagens presentes nos livros didáticos que fazem parte de coleções que foram aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2015 e 2018, quais sejam: História Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior, 2º ano, publicado em 2013 pela editora FTD; História: passado e presente, de Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi, 2º ano, publicado em 2016, lançado pela editora Ática. A primeira imagem trata de uma reprodução da ilustração de Robert Walsh 1830, intitulada Compartimentos de um navio negreiro; a segunda, La Marie-Séraphique, Saint Domingue (Haiti), aquarela datada do ano de 1773, Museu Château dos Ducs de Bretagne, Nantes, França, uma reprodução de um artista desconhecido, e, por último, Mercado da Rua do Valongo, composição de Jean-Baptiste Debret, 1835. Museu Castro Maya, Rio de Janeiro.

O presente trabalho então é uma proposta de leitura de imagens e de análise das ilustrações. Metodologicamente, parte-se de um desmonte da totalidade de cada figura selecionada para, posteriormente, ser pensada e dissecada em conjunto, em busca de saberes e conhecimentos contidos em cada parte. Para tanto, esta verificação obedecerá aos seguintes passos: coleta de imagens acerca da escravidão no Brasil contidas nos didáticos e proposta de reflexão desde a autoria da imagem até sua composição iconográfica. A proposta de análise e leitura da imagem tem a intenção de contribuir com a capacitação dos professores de História que se utilizam dos didáticos em sala, para a construção de uma aula mais dinâmica e menos performática em que os escritos tinham certa primazia.

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DESCOBRINDO FORMAS DE VIOLÊNCIA EM UMA IMAGEM

APARENTEMENTE INOCENTE

Repleta de inquietações, a atual historiografia brasileira tem tratado o passado de uma forma relacional em que os fatos narrados possam responder também às questões sociais e culturais mais atuais. Na atualidade, nas aulas de História, tem-se tentado pensar sobre o passado, partindo de questões que

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 41 incomodam no presente, fazendo-se uso de estratégias capazes de abordar os acontecimentos de uma forma mais interdisciplinar que possa responder às inquietações mais urgentes.

Nas pesquisas de cunho historiográfico e no Ensino de História, parece ser mais importante saber fazer as perguntas, construir indagações coerentes, estar habilitado a tecer críticas e refletir sobre os conteúdos prontos que chegam aos alunos. Circe Bittencourt (2009, p. 154) ressalta que “[...] a história entendida ao mesmo tempo como “ciência do passado” e “ciência do presente” gera cuidados para o pesquisador e para o professor”, porque a proposição de temas deve ser escolhida ao se tomar por base situações conflitantes do presente, tendo cuidado para evitar situações desacertadas. Assim, as considerações Circe Bittencourt (2009, p. 204) reverberam:

[...] um dos objetivos básicos da História é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter o passado em “nossos tempos”. A História propõe-se reconstruir os tempos distantes da experiência do presente e assim transformá-los em tempos familiares para nós.

Nessa perspectiva, as imagens violentas utilizadas para a composição de narrativas acerca de um passado igualmente violento podem aproximar debates sobre a própria violência, as diferenças, a falta de respeito pelo outro etc. Logo, como ferramenta pedagógica com poder de comunicabilidade, a imagem pode ser usada em sala de aula pelo professor, não para ocultar e dissimular a própria violência, mas possibilitar aos alunos reflexões mais apuradas sobre os conflitos e as discrepâncias tão comuns nas relações.

Quando pensamos em imagens violentas, na maioria das vezes imaginamos aquela cena em que corpos estejam esquartejados, ensanguentados. Contudo, há ilustrações nos livros didáticos de História que manifestam violências menos gritantes e explícitas e que podem repercutir de forma tão venal quanto às explícitas. Como as imagens nem sempre apresentam uma prática de violência categórica, essas passam despercebidas pelo professor e pelos alunos, pela falta de habilidade do olhar, pela ausência de treino e percepção. Atentemos para a imagem a seguir:

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Imagem 1 - Compartimentos de Um navio negreiro

Fonte: Livro didático História: sociedade & cidadania

A imagem acima é um desenho esquemático do inglês Robert Walsh (1772-1852), intitulado Notícias do Brasil: 1828 – 1829, publicado em 1830. Robert chegou ao Brasil no ano de 1828, era médico e ministro religioso da Colônia britânica no Rio de Janeiro. Fez viagem para Minas Gerais, em São João Del Rey, chegando a visitar também Vila Rica, quando passou um bom tempo na região. Na obra, ele apresenta de forma sucinta alguns fatos que ocorreram nas terras brasileiras, tais como a existência de doenças, a forma como os escravos eram trazidos para o Brasil, costumes, educação, além de outras que lhes atraíram o olhar.

Presente no livro didático História: sociedade & cidadania1, na página 102, para ilustrar o capítulo 6 que aborda a temática Africanos no Brasil: dominações e resistência, a imagem encontra-se posicionada na parte superior esquerda, sem legenda; a fonte informa apenas o nome do autor, ano e pertencimento a uma Coleção particular. Um verbete, ao lado, informa que se trata de uma ilustração acerca da forma como os escravos eram trazidos para o Brasil. Diz Boulos (2013, p. 102.):

[...] ilustração mostrando como os escravizados viajavam: amontoados em porões e sem as mínimas condições de sobrevivência. Até o Rio de Janeiro, as viagens duravam: cerca de 45 dias a partir da Costa da Mina; de 33 a 40 dias a partir da região congo-angolana; cerca de 75 dias a partir de Moçambique.

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 43 O desenho mostra os indícios de violência como parte constitutiva de um processo de relacionamento, quando homens se tornaram propriedades uns dos outros. A imagem não pode estar lá apenas para confirmar o que o texto preceitua. Isto porque a própria figura tem um conteúdo passível de ser explorado e interpretado em sala de aula. Acreditamos que a imagem tem comunicabilidade própria, carrega saberes, informa, instrui e que se abre às leituras.

Lucia Santaella (2012, p. 111) pontua que “[...] as relações entre texto e imagem podem ser observadas de muitos pontos de vista”. Será preciso considerar o lugar tomado pela imagem no texto escrito com a finalidade de perceber os efeitos que a ilustração tem quando é analisada a totalidade dos signos da narrativa. Perceber as imagens como emitentes de signos é entender que as imagens são possuidoras de saberes que ultrapassam o escrito.

Paulo Augusto Tamanini (2017, p. 339) reforça que “[...] as imagens têm tarefa infindável no ato de representar à medida que também são duradouros e intermitentes os critérios de observação”. Ainda que o desenho esquemático no livro didático não apresente uma legenda, o processo de leitura demanda uma observação mais ampla. A figura retrata o recorte lateral e superior de um navio e que traz, entre tantas outras, e de forma subliminar, a maneira como os escravizados eram trazidos. O desenho Compartimentos de um navio negreiro representa uma reconstrução gráfica de um fato ocorrido na história brasileira, sobre o tráfico de escravos cuja temática precisa ser discutida em sala de aula. O desenho não mostra apenas a esquematização da divisão de um navio pelo lado interno. Ela revela a crueza de uma realidade vivida por milhares de escravizados. Além disso, expõe o porão lotado com muitos barris em que água e outros víveres eram guardados e que se misturavam com aqueles que não tinham direito sequer de fazer uso desses alimentos.

No lado esquerdo, despontam figuras humanas amontoadas que se acotovelavam em busca de um espaço para poder resistir às penas de uma longa viagem. Portanto, partindo desses recortes, já seria possível, em sala de aula, suscitar perguntas sobre as condições de viagem e as formas implícitas de violência à que os escravizados estavam submetidos. O modo como as pessoas eram transportadas e a proibição de se alimentar com os víveres ali próximos já seria um bom começo para se discutir temáticas comuns do passado e que se reverberam na atualidade.

Portanto, a ilustração em si suscita questões pertinentes, já que, segundo Boehm (2017, p. 23), “pensar a imagem será, portanto, refletir sobre o entrelaçamento entre ela e aquilo que ela mostra”. À medida que a imagem vai sendo observada e questionada, outros saberes se revelam, novas perguntas surgem, compondo um saber historiográfico mais ampliado. Ainda que o cenário aborde o período de sujeição de negros escravizados na América portuguesa, as reflexões trazidas pelo professor para os alunos na sala de aula, no presente, fazem da imagem um elemento contemporâneo. Dessa maneira, passado e

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 44 presente se cruzam e se aglutinam para juntos refletirem sobre temáticas atuais: formas visíveis e invisíveis de violências e de escravidão, suscitadas pela leitura de imagens.

Jaime Pinsky (1994, p. 28) ao tratar em seus estudos sobre a escravidão ressalta as condições a que os negros eram submetidos, nas viagens de sua terra de origem, para o Brasil. Considerados mercadorias semoventes, os escravizados foram desprovidos de seus direitos enquanto pessoas humanas. Essa prática de violência tinha início ainda na terra de origem dos cativos e se estendia ao longo de todo percurso, onde a violência não se encerrava. Ao chegar a seu destino, continuariam os escravizados a serem violentados. Pontua Pinsky (1994, p. 32) “como mercadoria, além de comprado, vendido ou alugado, o escravo podia ser oferecido como fiança e trocado por bens móveis ou imóveis”.

Observemos outra imagem, relacionada à mesma questão:

Imagem 2 - La Marie-Séraphique, Saint Domingue (Haiti)

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 45 A imagem acima se encontra no livro didático de História: passado e presente2 na página 84. A imagem reporta à prática que era muito comum em diversas colônias das Américas. Disponibilizada de modo também a complementar os textos, a imagem faz parte do conjunto de ilustrações do capítulo 5: Africanos na América portuguesa, especificamente, “A travessia do Atlântico”. Com informações vagas e autor desconhecido, a ilustração La Marie-Séraphique, Saint Domingue (Haiti) é um trabalho artístico aquarelado, datado do ano 1773. Embora a forma como a imagem se encontra disponibilizada na página chame a atenção do aluno, não existe nada na parte do texto escrito que o convide à reflexão, à ponderação, à crítica. Ao lado esquerdo superior, um verbete indica uma sugestão de vídeo intitulado “Cais do Valongo” para o aluno se inteirar de assuntos arqueológicos congêneres.

A ilustração traz elementos que são marcantes e de fácil reconhecimento. A ideia de espaço permite perceber a transparência das cores. Na imagem acima, notamos que as cores também dizem, informam. A tonalidade da cor do céu, água e montanhas estão definidas, criando até mesmo um aparente movimento da água. Outro aspecto dominante é o contraste das cores claras que aos poucos abrem espaço para as mais escuras, dando um toque de profundidade à figura do navio e das pequenas embarcações ao redor dele. Logo abaixo, um desenho esquemático, presta informações sobre as divisórias do navio. Mas é a quantidade de figuras humanas representadas que pode instigar o professor e o aluno para algumas intervenções.

Portanto, é pertinente observar que as imagens presentes no Livro de História, quando arguidas e refletidas podem servir de fonte para a própria releitura da História. Estar atento à forma como se olha uma imagem é perceber que a História pode ser ensinada em sala de aula não somente através de longos parágrafos e frases cheias de datas e nomes, mas pelos aparatos visuais. Se as imagens também são textos, devem ser lidas, interpretadas e arguidas.

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PROBLEMATIZANDO UMA IMAGEM DE JEAN-BAPTISTE DEBRET

PRESENTE NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

Jayme Pinsky (1994, p. 21) adverte: “dizer que o negro veio para o Brasil seria uma forma equivocada, quando na verdade, ele foi trazido”. Logo, tirados à força de seus lugares de origem para serem submetidos a um processo de escravidão, revela o quanto de violência os negros escravizados sofreram. Uma das primeiras formas de violência foi a retirada involuntária deles de suas terras, de seus costumes, de seu cotidiano. Forçar uma pessoa ou grupos de pessoas a estar em um lugar sem sua anuência é também violentá-la!

2 Dos autores: Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi, o livro pertence a Coleção do Ensino Médio – 2º ano. Editora Ática,

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 46 É recorrente, na maioria dos livros didáticos de História, informar que no processo de travessia para o Brasil, um número grande de cativos ficava amontoado nos porões de um navio, em um ambiente inóspito, sufocados, com parca alimentação, passando sede e sofrendo abusos da tripulação. O impacto dessa informação torna-se maior, quando o texto escrito é acompanhado por uma imagem. Portanto, a imagem tem a facilidade de aproximar mais a realidade do dito, escancarando em cores e formas o que o texto escrito não pode informar.

Gilson Rambelli (2006, p. 63) tenta amenizar a situação dos escravos ao dizer: “[...] passar privações como sede, fome e desconforto não eram características apenas dos transportados como mercadorias, muitos tripulantes, e passageiros, enfrentavam esses desafios”. Contudo, ampliar o número daqueles que passavam fome e sede não desqualifica a torpeza do fato. Pelo contrário, redimensiona para níveis ainda mais reprováveis.

Ao chegarem ao Brasil, os cativos passavam por avaliação de suas condições de saúde e, em seguida, eram postos à venda. Tratados como mercadoria, homens, mulheres, crianças e idosos tinham preços distintos.

Esse contexto foi representado na imagem a seguir:

Imagem 3 - Mercado da Rua do Valongo

Fonte: Livro didático – História, Sociedade & Cidadania.

A imagem acima se encontra na página 102 do livro História, Sociedade & Cidadania e segue os mesmos padrões de diagramação da anterior. Embora a imagem não apresente escravos em situações de

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 47 amontoamento, como nas anteriores, ou amarrados, ou ainda com acessórios que possam evidenciar práticas violentas, atentemos para a forma como os escravos foram representados.

A imagem Mercado da Rua do Valongo (aquarela3, 17,5 x 26,2cm) é um trabalho artístico do pintor francês Jean-Baptiste Debret, nascido em Paris (1768-1848); nome bastante conhecido, por retratar de diversas formas a escravidão no Brasil. A imagem selecionada apresenta uma cena pintada com cores quentes – cores que lembram o sol e o fogo. Contudo, não basta identificar só cores e atribuir-lhes conotações simbólicas. A leitura de uma imagem é um processo que deve ser construído na série de elementos que contextualiza certas informações.

Conforme pontua Santaella (2012, p. 34-35),

[...] existem muitos pontos de vista dos quais se pode fazer a leitura de uma imagem e um deles reside em decompor seus elementos básicos, a fim de submetê-los a uma avaliação de suas qualidades específicas e das relações que possam ser estabelecidas entre si no momento de constituir o conjunto.

Logo, como ponto de partida, será necessário afastar a imagem do texto escrito para deixar que os saberes advindos de suas especificidades se projetem. Contudo, há outras questões que podem ser levantadas, antes de observar a imagem em si, em sala de aula. Antes mesmo de pensar sobre as imagens, seria preciso retroceder um pouco e questionar seu autor, as condições do surgimento daquela imagem: quem pintou? Por que pintou? A pedido de quem? etc. Entre tantas imagens que abordam as travessias, porque os autores desses Livros didáticos escolheram imagens que retratam um ambiente tão ordeiro, amplo, salubre etc., quando os ambientes de compra e venda eram tão diferentes? Não seria uma forma cômoda, pronta, dada, instituída de ilustrar e falar sobre uma performance que não existia?

Essas questões que chamamos de introdutórias se explicam porque toda imagem tem uma gênese: fatos e intenções que a precederam e que devem ser levados em conta.

Dado este passo, partimos então, para o plano do desmonte da imagem: o campo visual apresenta 24 figuras humanas – adultos e crianças, esboçadas com traços finos, a maioria retratada sentada, com corpos esqueléticos, seminus, divididos por grupos, usando panos de coloridos distintos – amarelo, vermelho e branco. Duas dessas figuras humanas são representadas como sendo pessoas de pele branca: um sentado de maneira relaxada, com pano da cabeça; o outro de pé, altivo, vestindo roupas senhoriais. Ao fundo três portas: duas fechadas e uma aberta que aludem à possibilidade de liberdade ou de cativeiro. O cerceamento da liberdade é também outra forma de violência. O espaço aparenta um entreposto destinado a vendas de escravos. A posição de enquadramento permite pôr em foco detalhes sobre os elementos que estão no plano de expressão, materializados na forma plástica.

3 Os pintores podem se utilizar de várias técnicas de pintura para executarem seus trabalhos. Como uma das técnicas pictóricas

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 48 Sobre as características das imagens produzidas por Debret, Valéria Lima (2004, p. 31) contribui afirmando que:

[...] Debret manteve as características de suas imagens aquareladas, modificando-as apenas em nome de uma maior fidelidade à clareza do discurso neoclássico. Ainda assim, é curioso saber que mesmo em suas pequeninas aquarelas, tão espontâneas à primeira vista, esconde-se um cuidadoso processo de composição, para o qual Debret executava um grande número de pequenos desenhos. Geralmente reunidos em pequenos cadernos ou folhetos, esses desenhos servem, hoje, para que possamos identificar os passos seguidos na organização das cenas representadas em suas aquarelas.

A representação de Mercado da Rua do Valongo, feita por Debret, diz respeito aos locais de vendas de escravos, após desembarques no Brasil, onde outro processo de violência se iniciava. Mas porque as pessoas negras foram retratadas com corpos definhados? Temos aí outra inquietação que pode ser levantada como forma de violência: a fome.

Estar capacitado para a leitura de imagens é perceber que os saberes advêm de uma construção contínua e que usa de diversos aparatos para melhor lustrar o Ensino.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura de imagens demanda competências e habilidades por parte do leitor, que diariamente se depara com uma enxurrada de ilustrações compartilhadas nas redes sociais, por exemplo. A leitura das imagens exige uma breve reflexão sobre a relevância delas para o processo ensino-aprendizagem e a necessidade de formação contínua dos professores. Capacitá-los para a leitura de imagens torna-se um grande desafio, quando ainda se tem certa prevalência pelo escrito, pelo texto redigido etc.

Portanto, a leitura dos recursos imagéticos usados nos livros didáticos suscita capacitação, preparo, treino e fundamentação teórica para que profissionais da Educação possam contribuir para a construção de conhecimentos interdisciplinares.

Nos manuais didáticos de História, muitos fatos ocorridos na história brasileira têm como auxílio imagens de teor violento que, se não arguidas e questionadas, continuarão a reproduzir preconceitos, incomplacência, segregacionismo. Logo, a nós educadores, resta maior atenção quanto à presença das imagens nos livros didáticos. Isso porque não podemos nos eximir da carga significativa e de alto teor narrativo que as imagens possuem.

Sem serem questionadas, as imagens de cunho violento podem acabar tornando-se meras ilustrações, ou seja, servindo apenas como recursos decorativos nas páginas do livro didático. Enfim, um colorido que apenas ameniza a densidade dos textos escritos.

Todavia, as imagens são repletas de significação, intencionalidade e são fruto de contextos. A história ensinada observa as imagens como um recurso pedagógico promissor. Questioná-las, aperfeiçoar

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Debates em Educação | Maceió | Vol. 12 | Nº. 27 | Maio/Ago. | DOI: 10.28998/2175-6600.2020v12n27p38-49 49 formas de se trabalhar as ilustrações em sala de aula, fazendo combinações do escrito com o iconográfico, é credenciar ao Ensino de História a constatação de que o passado pode ser estudado, pesquisado e ensinado, através de recursos mais atuais, modernos e interacionais. O ensino do passado deixaria de ser algo anacrônico, pesado e menos interessante. A proposta de leitura das imagens selecionadas para este artigo se mostra uma entre tantas outras sugestões para a melhoria do ensino de História.

Na busca de conhecimento e de produção de saberes, o despertar para os detalhes das imagens treina o olhar do aluno para buscar nas minúcias, nas parcialidades algumas respostas que explicam a totalidade.

Extrair das imagens saberes, é treinar os olhos para perceber que nenhuma imagem é inocente. Escondidas nas cores, nos traços, na composição figurativa, várias formas de violência se mostram. Por vezes, o que enormes parágrafos conteudistas não informam, uma imagem o fará. Nos vários capítulos dos livros didáticos de História, um olhar treinado e auspicioso de um professor e de um aluno sobre uma imagem saberá captar e distinguir o quão uma figura pode ensinar.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Gislane. SERIACOPI, Reinaldo. História: passado e presente. 2º ano. 1ª. ed. São Paulo: Ática, 2016.

BTTENCOURT. Ensino de história: fundamentos e métodos. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009. BOEHM, Gottfried. Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica. In: Pensar a imagem. Emmanuel Alloa (Org.) 1ª. ed., 2ª. reimp. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2017.

BOULOS Júnior, Alfredo. História sociedade & cidadania. 2 º ano. 1ª. ed. São Paulo: FTD, 2013. LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro. Ed., 2004.

PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil.13ª. ed. São Paulo: Contexto, 1994. (Repensando a história). RAMBELLI, Gilson. Tráfico e navios negreiros: contribuição da Arqueologia Náutica e Subaquática. Revista: Navigator. V. 2, Nº. 4, 2006.

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.

TAMANINI, Paulo Augusto. Os ícones e seus signos: a aplicabilidade das imagens nas pesquisas e estudo da história do império bizantino. História: Questões & Debates, [S.l.], v. 65, n. 1, p. 337-358, jul. 2017. ISSN 2447-8261. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/46370. Acesso em: 21 mar. 2019.

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