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A INFÂNCIA POÉTICA EM GASTON BACHELARD E LEWIS CARROLL

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A INFÂNCIA POÉTICA EM GASTON BACHELARD E LEWIS CARROLL

POETICAL CHILDHOOD BY GASTON BACHELARD AND LEWIS CARROLL ALINE CHIQUINI1 Universidade São Francisco - USF

anne.chiquini_05@hotmail.com LUZIA BATISTA DE OLIVEIRA SILVA2

PPGSSE - USF Luzia.silva@usf.edu.br / lubaos@gmail.com RESUMO – o artigo objetivou-se fazer uma análise acerca do devaneio infantil, a partir da poética

filosófica de Gaston Bachelard (1988), fundamental no estudo de obras de literatura, como a obra

Alice no País das Maravilhas de Lews Carroll (2013), distinguindo-se, nessa análise, o sonho acordado

ou devaneio e o sonho noturno enquanto elemento inconsciente na Psicanálise freudiana. O devaneio, para Gaston Bachelard (1988), é abertura para a criação, no mundo infantil, que conduz à topoanálise e à tomada de consciência do indivíduo, categorias também implícitas na obra de Carrol. O uso das metáforas se justifica para que se ilustrem os pensamentos e os diálogos de Alice com os personagens da história, numa convergência de olhares e de linguagem simbólica com categorias bachelardianas.

Palavras-chave: devaneio infantil, literatura, psicanálise freudiana, Bachelard, Carrol.

ABSTRACT - The article aims to make an analysis about the children’s daydreaming, from the philosophical poetics of Gaston Bachelard (1988), fundamental in the studying of literary works, such as Alice in Wonderland by Lewis Carroll (2013), distinguishing in this analysis, daydreaming and night dreaming as an unconscious elements in Freudian psychoanalysis. The daydream, to Gaston Bachelard (1988), is an opening for creation in the children’s world, which leads to top analysis and awareness of the individual, categories also implicit in Carrol's work. The use of

1Aline Chiquini é aluna-pesquisadora de Iniciação Científica/PPGSSE/USF, do curso de Psicologia da Universidade São Francisco – USF, membro do Grupo de Pesquisa TCTCLAE – Teoria Crítica e Teorias Críticas Latino-Americanas e Educação. O artigo é parte do resultado da pesquisa de IC/2018-2019.

2Luzia Batista de Oliveira Silva – Docente no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação - PPGSSE/USF;

é Bacharel e Mestre em Filosofia pela PUC/SP, Doutora em Educação pela FE/USP, pós-doutorada em Antropologia/Ciências Sociais pela PUC/SP, e pós-doutorada em Filosofia pela UnB - Universidade de Borgonha, Dijon/FR. Líder dos Grupos de Pesquisa TCTCLAE – Teoria Crítica e Teorias Críticas Latino-Americanas e Educação - CNPq/USF; Estética, Educação Superior e Infância – CNPq/USF.

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metaphors is justified in order to illustrate Alice's thoughts and dialogues with the characters in the story, in a convergence of looks and symbolic language with bachelardian categories.

Key words: children’s daydream, literature, Freudian psychoanalysis, Bachelard, Carroll.

INTRODUÇÃO

“Eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho”. [G. BACHELARD, 1989].

Discutiu-se acerca do devaneio da infância e o sonho noturno, numa aproximação e diferenciação de olhares no que se refere a alguns conceitos bachelardianos sobre a infância, inclusive sobre a distinção de olhares entre Bachelard (1988) e Freud (1973).

Discutiu-se também acerca da obra Alice no país das Maravilhas, de Lewis Carroll. O autor

abre um leque de produções imaginárias sobre o mundo, do ponto de vista de uma criança, convergindo para a noção de topoanálise, na poética da casa, assim como descreve Silva (2013):

No reino da imaginação, a objetividade é uma violência. As imagens da casa conspiram para uma integração psicológica, imagens que mostram que a ‘Psicologia descritiva, psicologia das profundidades, psicanálise e fenomenologia poderiam, com a casa, constituir esse corpo de doutrinas que designamos sob o nome de topoanálise’. (SILVA, 2013, p. 343).

A topoanálise, na obra dos autores deste estudo, é uma categoria importante que tem a ver com lugares de análise numa obra, proposta por Bachelard, que procuramos aplicar na dimensão imaginária da obra Alice, em sua casa imaginária no País das Maravilhas.

Atenção também foi dada aos personagens de Carroll no que tange, metaforicamente, aos tipos de sujeitos e aos lugares sociais, aos olhares e linguagens que marcam o mundo infantil e o ser criança. Destacou-se, em Bachelard, a consciência de uma permanência da infância no adulto e sua compreensão da fase infantil, com um olhar diferenciado no que diz respeito à criança e como o adulto pode enxergar o mundo a partir da criação de seu próprio mundo imaginário. Talvez, esse núcleo tenha sido o elemento que possibilitou a Caroll falar com tanta propriedade de lugares da infância e do ser criança, em sua obra.

O SONHO NOTURNO E O DEVANEIO

O sonho, para Bachelard, vai muito além do que podemos compreender como parte do mundo noturno. O sonho acordado ou devaneio tem a ver com nossa capacidade de imaginar, criar, brincar, fantasiar e desligar-se das sobrecargas da vida de trabalho, da vida burocrática e enfadonha de adulto. O autor (1988) nos provoca numa passagem da obra A Poética do Devaneio quando indaga:

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Então onde colocar o eu nessa substância que sonha? Nela o eu se dissolve, se perde... Nela o eu se presta a sustentar acidentes caducos. No sonho noturno, o cogito do sonhador balbucia. O sonho noturno não nos ajuda a formular sequer um non-cogito, que daria um sentido à nossa vontade de dormir. (BACHELARD, 1988, p. 143)

Para Bachelard, não é o sonho noturno que contribui diretamente para pensarmos numa criação, é a imaginação que dá asas para voarmos nas invenções, sendo o devaneio um sonhar acordado, um sonhar de olhos abertos. Geralmente, partimos de uma imagem que nos encanta e que depois se transforma em imagens poéticas que nos afagam e acalentam a vida contra as intempéries e os sobressaltos cotidianos.

Não se pode negar que o conceito “sonho” sempre intrigou a humanidade, por isso, pode-se compreender como, na visão psicanalítica, Freud (1900, 2012) pode-se refere ao mesmo:

O sonho [...] não é desprovido de sentido, não é absurdo, não pressupõe que uma parte de nosso patrimônio de representações durma enquanto outra começa a despertar. Ele é um fenômeno psíquico de plena validade – mais precisamente, uma realização de desejo; [...] ele foi constituído por uma atividade intelectual altamente complexa. (FREUD, 2012, p. 143).

Destarte, ao se falar em sonhos, deve-se compreender que no viés freudiano, ele é um conceito que diz respeito ao ato psíquico inconsciente, por isso, seu real significado fica encoberto pela censura. Porém, no sentido bachelardiano, distingue-se o sonho noturno (inconsciente) do sonho onírico, que diz respeito ao devaneio do adulto3 e o devaneio propriamente dito, que é o devaneio infantil4, como destaca Ferreira, (2008)

No devaneio, o sujeito tem consciência de que é o autor de sua ‘atividade onírica’, preservando desse modo a unidade de seu cogito. O mesmo não ocorre com o ‘sonhador de sonho noturno’ em que o seu eu ‘se dissolve’ e ele perde a individualidade. (FERREIRA, 2008, p. 185).

Entende-se, então, que o onirismo na vida do adulto é diferente do devaneio na vida infantil, e, nas palavras de Bachelard (1988, p. 129), “...o sonhador de devaneio, se for um pouco filósofo pode, no centro de seu eu sonhador, formular um cogito. Dito de outro modo, o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência”. A criança, quando pratica o devaneio, compreende, então, a aventura de sonhar.

De acordo com Bachelard, (1989, p. 144), “O devaneio é uma atividade psíquica manifesta.”, que para o autor, significa uma atividade de olhos abertos, atividade de um sujeito acordado, já no sentido freudiano este conceito foi criado por Freud em A interpretação dos Sonhos

3O onirismo tem a ver com o sonho acordado do adulto.

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(1900, 2012), a fim de caracterizar o sonho noturno durante o sono, que segundo Reis (2011, p. 32):

O conteúdo manifesto refere-se à experiência consciente durante o sono, correspondendo ao relato ou descrição verbal do sonho, ou seja, aquilo que o sonhador diz lembrar. Já o conteúdo latente corresponde às ideias, impulsos, sentimentos reprimidos, pensamentos e desejos inconscientes que poderiam ameaçar a interrupção do sono se aflorassem à consciência claramente. (REIS, 2011, p. 32).

O sonhador de devaneio se encanta, incialmente, por uma imagem e se deixa conduzir por ela. Por isso, pensando na infância, a criança cria o seu mundo a partir da imaginação. Esse sonhar acordado remete à própria linguagem infantil, às brincadeiras criadas, aos brinquedos imaginados. Tudo é possível quando se sonha, o que permite que o real possa se glorificar pelo processo de sublimação5, assim como descreve Bachelard na obra A Terra e os Devaneios da Vontade (1991, p. 5): “[...] o processo de sublimação encontrado pela psicanálise é um processo psíquico fundamental. Através da sublimação desenvolvem-se os valores estéticos que se nos afigurarão como valores indispensáveis para a atividade psíquica normal”.

É fundamental, então, não desprezar os sonhos acordados, porque eles podem alcançar a realidade, amenizando traumas e sofrimentos, e não se trata de entrar em delírio, tal como no uso de drogas, mas colocar em xeque o potencial humano em prol da vida e suas benesses. Como podemos compreender ao final da citação, o autor considera o devaneio uma tarefa tão primorosa que podemos fazer com que a matéria sonhada se evemerize6, se engrandeça em nós.

Na obra Alice no País das Maravilhas, o sonho está presente no sentido noturno, como no ato

de sonhar e também no sentido do devaneio, como o ato de sonhar acordado, que é o conceito investigado neste artigo.

Sonhar, sob o ponto de vista bachelardiano, nos remete à essência do devaneio interior; é quando uma criança pode ser livre no sentido mais amplo do termo e devanear com os elementos da natureza – terra, água, fogo e ar. Nesse sentido, o imaginário é capaz de encontrar um universo inesperado em cada sonhador. Nesse universo, Alice nos mostra algo muito além do real, o que

5A sublimação tem a ver com o conceito enunciado precocemente no discurso freudiano: “é o processo psíquico

pelo qual o sexual abjeto se transforma no sublime” (BIRMAN, 2008, p. 19).

6A palavra evemerize tem a ver com o Evemerismo, isto é, com a “Doutrina de Euevêmero ou Evêmero de Messina

(Secs. IV-III a. C.), autor de uma Sagrada Escritura traduzida para o latim por Evênio, na qual se queria demonstrar que os deuses são homens corajosos, ilustres ou poderosos, divinizados depois da morte (Cícero)...” (ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia, 2000, p.391).

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somente será possível, se compreendermos essa façanha do imaginário na infância, se formos capazes de entrar no sonho infantil, dando atenção especial à nossa criança interior, a fim de devanearmos com Alice em seu país dos exageros enquanto expansão imaginária de seu criador, atestando a existência de nossa criança interior, como afirma Abrams (1999, p. 12).

A OBRA ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Alice no País das Maravilhas é uma obra de criação do britânico Charles Lutwidge Dodgson,

publicada, pela primeira vez, em julho de 1865, assinada sob o pseudônimo de Lewis Carroll. A obra conta a história de Alice, uma menina curiosa e questionadora, que, ao seguir, um coelho acaba caindo numa “toca” – ou seria uma armadilha? Sua queda e entrada numa outra situação diferente a levam para um lugar habitado por seres incomuns, um país dos sonhos, um lugar onde ainda se pode ser livre.

Esse incidente ocorrido com a menina Alice nos lembra de que muitos autores têm apontado que a criança precisa da solidão para a criação. Por isso, ao ser deixada livre, a criança torna-se capaz de olhar para algo simples e transformar, dando-lhe vários significados, com sensibilidade e imaginação, como diria Carroll (2013, p. 13), ao escrever, na primeira linha de seu conto, que sua personagem “Alice estava cansada de ficar sentada na beira do lago, com a irmã,

sem nada para fazer”. Então, a partir da solidão e do “tédio”, ela buscou por algo, como uma aventura, e valeu-se de sua criatividade para criar um mundo outro, um mundo que somente ela, Alice, soube olhar, como nos ensina Bachelard, ao se referir às pinturas de Chagall, um pintor francês (BACHELARD, 1994, p. 9), que retrata, em suas telas, que “O Paraíso é um mundo das belas cores, um quadro”, tal como Alice, que encontra, no País das Maravilhas, seu sonho, sua imaginação, sua infância. Alice, como qualquer outra criança que vive livre em sua solidão, mostra-se uma “sonhadora de Paraíso” (BACHELARD, 1994, p. 9).

A obra nos faz pensar na questão da criança no século XIX. A criança (ou infante) tem a ver com aquele que não tinha voz, que só escutava e que não pertencia à burguesia, sendo, por isso, obrigada a trabalhar nas indústrias e fábricas, inclusive, trabalhando mais horas do que um adulto. A criança trabalhava como as mulheres, consideradas frágeis e incapazes de produzir como os homens. Por isso, trabalhavam mais horas, o que nos leva a pensar que se trata de uma criança da burguesia que se entrega ao devaneio, mas poderia se tratar de uma criança pobre, que encontra no devaneio uma fuga para o mundo que a devora.

Pensando nos devaneios de Alice e prestando atenção na descrição sobre a fazenda em que ela vivia e seu mundo imaginário, é possível trazer à obra A Poética do Espaço de Bachelard (1978) o

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significado do conceito poético da casa, mais precisamente, a categoria de topoanálise7, que (Bachelard, 1978, p. 201) interpreta como um lugar de conforto, a casa como um lugar de aconchego, amparo, o lugar da graça, da bonança, porque “... A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa.” E que vida não começa pelo útero, o primeiro lugar fechado, cercado, amparado. Depois os cuidados com a criança, a presença constante do adulto funcionam ou deveriam funcionar como uma garantia de proteção.

A personagem nos descreve, em detalhes, a realidade da casa em paralelo com a casa dos seus sonhos, e ao final da obra, Carroll diz que Alice

Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade... a relva só farfalharia ao vento, e as águas da lagoa só se encrespariam ao ondular dos juncos... as xícaras de chá tilintantes se transformariam no tinir dos sinos das ovelhas, e os gritos agudos da Rainha na voz do pastorzinho... e os espirros dos bebês, o guincho do Grifo, e todos os outros barulhos esquisitos se converteriam (ela sabia) no alarido movimentado terreiro da fazenda... (CARROLL, 2013, p. 148).

O sonho acordado de Alice, em Carroll, se caracteriza como o devaneio em Bachelard. De olhos abertos ou olhos fechados, entende-se, nessa passagem, que a personagem está acordada... A criança Alice se entrega aos seus devaneios e conta, para isso, com os objetos, as coisas que estão presentes na fazenda, em especial, os animais. Chega mesmo a sonhar que fala a linguagem deles ou que eles falam a sua.

Numa convergência de olhares, Bachelard (1978, p. 197) aponta que “...parece que a imagem da casa se transforma na topografia de nosso ser íntimo.” Topografia do lugar ou dos lugares que lhes são íntimos; os lugares mais visitados na casa são os lugares onde os seus sentimentos habitam e são, por ela, visitados. A brincadeira das sensações não se restringe apenas ao fato de ela ficar grande, depois ficar pequena, em miniatura; tudo em sua volta ganha sentido e dimensão: as portas, o jardim, os animais, a “toca” a queda. O mundo desconhecido é o mundo desvanecido de nós mesmos. Esses elementos têm relevância, sim, como os acidentes geográficos do terreno, os esconderijos, os contornos, são grafias, ou seja, as representações escritas – palavras; o que deixa claro que a linguagem e a capacidade de se comunicar são fundamentais nessa obra.

Percebe-se, na imaginação da menina, a comparação entre a casa real e a casa da sua imaginação. Novamente, Bachelard (1978, p. 197) afirma que “Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós estamos nelas”.

7 Pode-se traduzir, na obra bachelardiana, como sendo o espaço de habitar, a morada, o local onde vivem os seres

e as coisas, mas pode-se também entender como o lugar dos sentimentos, o mundo imaginário, onde a imaginação pode reinar.

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As imagens dos lugares queridos estão em nossa alma de terráqueo que sonha com as alturas, a leveza, a doçura, revelando que somos seres de sentimentos e afetos, de percepções e linguagem, de sonhos e realidades.

Em seus pensamentos, Alice explora o País das Maravilhas, ou seja, sua casa imaginária, da forma que ela quer, com as cores, sabores, odores que lhe aprazem, porque sabe intuitivamente que, depois de adulta, se desejar voltar à infância, só precisa abrir seu coração, libertar sua alma prisioneira das burocracias da vida e regressar à casa que criou, e como diz Bachelard (1988, p. 13): “O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos”.

O COELHO BRANCO

O coelho é um animal de estimação e também um animal na culinária das pessoas em muitos países do mundo. No século XIX, provavelmente, era apenas um animal para consumo humano.

Mas a sonhadora Alice enxerga no coelho um amigo para conversar e, por isso, coloca na figura do animal as vestes de uma pessoa. Seu Coelho Branco usa um colete e um relógio de bolso e se apresenta correndo, apressado; parece muito atrasado (CARROLL, 2013, p. 14).

É fundamental considerar que a criança pode nos mostrar, através de seu mundo infantil, o que vê no mundo adulto. O Coelho Branco poderia representar, em linguagem simbólica, o adulto que está sempre ocupado, atarefado, com pressa, vivendo o tempo do relógio, do controle, do trabalho. A criança poderia, nesse caso, estar nos indicando essa pressa e agitação do mundo adulto e, com sua imaginação, retratar, do seu jeito, o mundo do adulto.

Na atualidade, vivemos num mundo imediatista, onde tudo tem que ser resolvido num mesmo tempo e para já – agora. A criança percebe tudo isso à sua volta e, como um ser atento que é, recria, em seus sonhos, as situações cotidianas.

Segundo Bachelard (1988, p. 165), “Nunca teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos”. Talvez, também Carroll tenha sonhado muito, na sua vida, aquilo que viu e viveu. Por isso, sua capacidade para criar uma personagem que transita entre os mundos, como na citação abaixo:

Alice olhou para cima, mas lá estava tudo escuro; diante dela havia um outro corredor comprido e o Coelho Branco ainda estava à vista, andando ligeiro por ele. Não havia um segundo a perder; lá se foi Alice como um raio. Tendo tempo apenas de ouvi-lo dizer, ao dobrar uma esquina: ‘Por minhas orelhas e bigodes, como está ficando tarde!’ Dobrou a esquina e já não havia mais sinal do Coelho Branco. (CARROLL, 2013, p. 17).

A criança, que é muito notada, provavelmente, deve ser muito curiosa. Ao olhar para esse trecho com a visão da criança que vive no adulto, tem-se um olhar diferenciado. Podemos perceber

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o que está por trás do Coelho Branco: a busca da criança para ser percebida, ter direito de falar, de ser ouvida. Por isso, procura, suprir essa necessidade com a descoberta da imaginação, onde tudo é possível.

O GATO DE CHESHIRE

O diálogo de Alice com o Gato começa quando ela pede ajuda, ao lhe perguntar qual direção deve seguir, e ele indica que de um lado encontrará a Lebre de Março, e do outro, o Chapeleiro Maluco. Assim, a conversa segue (CARROLL, 2013, p. 77):

‘[...] Visite qual deles quiser: os dois são loucos!’ ‘Mas não quero me meter com gente louca’, Alice observou. ‘Oh! É inevitável!’, disse o Gato; ‘somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.’ ‘Como sabe que sou louca?’ perguntou Alice. ‘Só pode ser’, respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui’(CARROLL, 2013, p. 77).

Um chapeleiro, uma lebre e um gato. A profissão de chapeleiro era algo importante num período em que as chapelarias eram muito procuradas, muito requisitadas. O chapéu ainda é um 'marco' na vida das pessoas, de todas as classes e grupos sociais. As lebres, que se parecem com os coelhos, são maiores, com orelhas também maiores. Trata-se, talvez, nessa história, de uma versão mais popular do coelho. Quem sabe o coelho represente o burguês, o senhor de negócios e a lebre, a plebe, a classe popular, enlouquecida pelo trabalho desumano. O gato, há muito tempo adotado como animal de estimação, talvez, simbolize o intelectual e, por isso, a pessoa que pode dar informação sobre caminhos e direções.

Voltando a Alice. Parece relutante em aceitar a loucura do mundo adulto. Talvez, por isso, resista em crescer, pois, ser criança abre todas as possibilidades da imaginação, ao passo que crescer é saber tomar cuidado para que essa infância não se vá para sempre. Então, é melhor ser criança do que ficar presa no mundo “louco” dos adultos.

Ao reviver, nos sonhos, os arquétipos8 da nossa infância, compreendemos, então, como nos apegamos ao mundo nessa fase, como amamos as coisas que deram sentido ao brincar, ao criar, pois, segundo Bachelard (1996, p. 121), “Todas as belezas do mundo, nós as amamos numa infância redescoberta, numa infância reanimada a partir dessa infância que está latente em cada um de nós”. Muitas vezes, essas imagens são esquecidas quando nos tornamos adultos, porém, ao relembrarmos

8O arquétipo junguiano é um conceito que se refere às imagens primitivas, originadas de uma repetição progressiva

de uma mesma experiência durante muitas gerações. Na poética bachelardiana, os arquétipos são “reservas de entusiasmo”, possibilidades de devir. Graças ao “onirismo dos arquétipos”, o sonhador cria imagens, cria um mundo. (FERREIRA, 2008, p. 26).

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das vivências da infância, essas imagens simbólicas podem vir à tona, podem ganhar vida através de nossas lembranças e imaginação.

A LAGARTA USUÁRIA DE NARGUILÉ

A Lagarta é um ser de metamorfose, marcada no primeiro estágio de vida da larva, pode ser simbolizada, nesse contexto, como a tomada de consciência de Alice, a transição da consciência, porque, no diálogo que ela tem com a menina, a questiona, o tempo todo, com perguntas, como: “Quem é você?” (CARROLL, 2013, p. 55). A menina fica confusa e responde: “Eu... mal sei, Sir. Neste exato momento... pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então.” (CARROLL, 2013, p.55). A lagarta sabe que a menina passou por várias mudanças, porque, para uma lagarta, a mudança faz o processo parecer mecânico, rápido, dado seu tempo de vida, mas se trata de chamar atenção para as mudanças que ocorrem em nós o tempo todo e nem sempre as percebemos; elas são mais visíveis nas crianças.

Alice, metaforicamente, cresce e diminui, num processo que parece contraditório, mas o conhecimento oscila entre o certo e o duvidoso, entre o que se sabe e o que se ignora. Por isso, ela oscila em seus pensamentos e julgamentos porque, ao que parece, passa por um processo de autoconhecimento ao se entregar ao devaneio. Isso se dá a partir da reflexão que faz das coisas que sente, vê e a fazem agir e das ações que se passam em sua tela mental.

Em Bachelard (1988, p. 5), a tomada de consciência é uma forma de mudança, de passagem de um estágio mental para outro, do devaneio para o despertar, porque

Toda tomada de consciência é um crescimento de consciência, um aumento de luz, um reforço da coerência psíquica. Sua rapidez ou sua instantaneidade podem nos mascarar o crescimento. Mas há crescimento de ser em toda tomada de consciência. A consciência é contemporânea de um devir psíquico vigoroso, um devir que propaga seu vigor por todo o psiquismo. A consciência, por si só, é um ato, o ato humano. É um ato vivo, um ato pleno. Mesmo que a ação que se segue, que deveria seguir-se, que deveria ter-se seguido, permaneça em suspenso, o ato consciencial tem sua plena positividade [...]. (BACHELARD, 1988, p. 5).

Percebemos que Alice expande sua consciência através do diálogo. Ela começa a pensar em suas mudanças a partir das perguntas da Lagarta, e como adverte Bachelard (1988, p. 5): “...Aumentar a linguagem, criar a linguagem, valorizar a linguagem, amar a linguagem — tudo isso são atividades em que aumenta a consciência de falar”. Trata-se de uma criança, cuja fala, provavelmente, não era ouvida, no período, como muitas crianças ainda não são ouvidas na atualidade, seja pela ausência dos adultos ou pela ignorância de aprender com a criança.

Bachelard (1988, p. 12) concebe a ideia de que aquilo que criamos no devaneio será conservado em nós como aquilo que sempre foi nosso: “Ou seja, o sonhador, na noite do sono,

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reencontra os esplendores do dia. Então ele está consciente da beleza do mundo. A beleza do mundo sonhado lhe devolve, por um momento, a sua consciência”.

MEMÓRIAS DE ALICE

Após muito tempo, a personagem, já crescida, nos mostra que conservou suas memórias de infância, como pontua Carroll, (2013):

Por fim, conservaria seus anos maduros, o coração simples e amoroso de sua infância, e como iria reunir outras criancinhas a sua volta e tornar os olhos delas brilhantes e impacientes com muitas histórias estranhas, talvez até com o sonho do País das Maravilhas de tanto tempo atrás, lembrando sua própria vida de criança, e os dias felizes de verão. (CARROLL, 2013, p. 149).

Ao conservar as memórias de infância, estamos provando que somos capazes de perceber em nós, de acordo com Bachelard (1996, p. 94), a permanência do núcleo da infância, que dura a vida toda. O autor usa o termo solidão a fim de mostrar que estamos perto e longe ao mesmo tempo, que “... vamos para longe do presente reviver os tempos da primeira vida, vários rostos de crianças vêm ao nosso encontro”.

Compreende-se por que essa história contada por Alice, quando adulta, para outras crianças, tem tudo a ver com o seu devaneio da infância, suas solidões primeiras. E ao voltar para a casa do País das Maravilhas, ela se volta para seu íntimo, traz as lembranças dos devaneios mais felizes de sua época de infância, quando viveu várias aventuras nos mais remotos sonhos de criança.

Bachelard (1988, p. 11) ensina que “A quem deseja sonhar bem, devemos dizer: comece por ser feliz. Então o devaneio percorre o seu verdadeiro destino: tornar-se devaneio poético: tudo por ele, nele, se torna belo [...]”.

Podemos afirmar que a história de Alice no País das Maravilhas é um convite precioso para

olharmos o passado com mais delicadeza, enxergar a beleza e a subjetividade. A criança é revolucionária em criar simbologias. Tendo isso em mente, é possível refletir acerca do que a imaginação e os sonhos na infância podem estar querendo nos mostrar, buscando em nosso interior e deixando fluir esse voo de liberdade que faz parte de nossa vida humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sonho é um conceito complexo, cheio de significados, tanto na representação do sonho noturno, do qual emerge o inconsciente nos fazendo entrar em contato com nosso lado profundo e mais verdadeiro de nós mesmos, objeto de estudo da psicanálise como na representação do sonho

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de devaneio, que é nosso sonhar acordado de criança, caracterizando-se pelo simbolismo, no qual a criança pode imaginar novas possibilidades de criar algo, inventar, usar sua curiosidade com criatividade. Parece fundamental compreendermos que o devaneio pode nos fazer transcender para olhares outros, olhares novos sobre a criança que já sabe devanear, que já tem em si a potência do devaneio. Talvez, se não atentarmos para isso, tendemos a perder muito desses olhares quando nos tornamos adultos deixando de lado nossa criança interior e todo esse “onirismo de arquétipos”. Considerando o sonho de devaneio, como proposto por Bachelard, foi possível refletirmos acerca dos personagens de Alice no País das Maravilhas; entender o quanto a criação pela imaginação

é importante para a criança e entender o valor do potencial criativo que está por trás de uma história inventada. Cada personagem foi responsável por mostrar o interior de Alice, através dos símbolos criados. O Coelho Branco é a representação do mundo adulto, o Gato de Cheshire traz o lado intelectual; o Chapeleiro e a Lebre são vistos como loucos, os adultos estressados que correm para sobreviver perante as demandas e tarefas; a Lagarta, como o símbolo da consciência, representa as transformações da criança até se tornar adulta, transformações que nem sempre a família consegue perceber com clareza e acompanhar.

Pensando na realidade dos adultos, o nosso contentamento é pensar que, talvez, sejamos capazes de entender e vivenciar, com generosidade e respeito, a criança que permaneceu em nós, valorizar a nossa subjetividade e nosso potencial, assim como fez Alice, que, no final da narrativa, já crescida, conserva seu lado criança. Por isso, relembra, rememora feliz e com alegria seus sonhos de criança e sua infância de aventuras felizes.

REFERÊNCIAS

ABRAMS, Jeremiah (Org.). O reencontro da criança interior. São Paulo: Cultrix, 1999.

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não: O novo espírito científico / A poética do espaço.

Prefácio José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

______. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,

1988.

______. A terra e os devaneios da vontade: Ensaios sobre a imaginação das forças. Tradução de

Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

______. O direito de sonhar. Prefácio de José Américo Motta Pessanha. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1994.

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FERREIRA, Agripina Encarnación Alvarez. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: Eduel, 2008.

FREUD, Sigmund. Sobre os sonhos. Tradução de Renato Zwick. Rio de Janeiro: Imago, 1973.

REIS, Carlos Moura dos. Princípios Fundamentais para a Interpretação dos Sonhos. Revista FIBRA & Ciência, n. 3, p. 31-44, 2011.

SILVA, Luzia Batista de Oliveira Silva. A fenomenologia da imaginação na “poética do espaço” de Gaston Bachelard. Revista de Educação Educere et Educare, Vol. 8 no 16 jul./dez. 2013 p.

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