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Academic year: 2021

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HABITUS MILITAR: REFLEXÕES SOBRE OS SUJEITOS DA CASERNA

Nádia Xavier Moreira* Rita Emília Alves da Silva** Sabrina Celestino*** RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar, por meio de uma revisão de literatura, traços fundamentais que conformaram o desenho institucional das Forças Armadas (FFAA). Toma de empréstimo para essa tarefa, a contribuição do conceito de habitus em Bourdieu (1983). Tal conceito oferece elementos para refletir sobre a interiorização dos valores, normas e princípios sociais pelos sujeitos militares, os quais asseguram a adequação entre ações individuais e realidade objetiva. Sendo assim, refletir sobre as instituições das FFAA sob a ótica de Bourdieu (2001) implica considerá-las lócus de construção de um sistema simbólico e significante de práticas e símbolos, sendo estes identificadores dos indivíduos a ele pertencentes. Entende-se que esEntende-se tipo de abordagem permite dialogar com os princípios orientadores da conduta neste tipo de organização, o que muito revela sobre a sua sociabilidade e imagem social.

Palavras-chaves: Forças Armadas. Habitus. Identidade.

MILITARY HABITUS: REFLECTIONS ABOUT PEOPLES OF THE BARRACK ABSTRACT

This paper aims to analyze, through a literature review, fundamental features that shaped the institutional design of the Armed Forces (FFAA). Considers for this task, the contribution of the concept of habitus in Bourdieu (1983). ____________________

* Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); realizou estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ; Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Capitão de Fragata (T) da Marinha do Brasil, Professora/Pesquisadora da Escola Superior de Guerra – Brasília. Pesquisadora do grupo de pesquisa Políticas Públicas e Forças Militares. Contato: nadiaxmoreira@yahoo.com.br.

** Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Mestre em Serviço Social pela PUC-Rio. Tenente Coronel da Reserva Remunerada (R1) da Força Aérea Brasileira vinculada ao Departamento de Controle do Espaço Aéreo. Pesquisadora do grupo de pesquisa Políticas Públicas e Forças Militares. Contato: as.rita@yahoo.com.br.

***Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); estagiária de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio; Mestre em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Servidora Civil docente do Magistério Público Superior. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação Humanidades em Ciências Militares do Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias. Líder do grupo de pesquisa Políticas Públicas e Forças Militares. Contato: anirbasuff@hotmail.com.

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Such a concept offers elements to reflect on the internalization of social values, norms and principles by militaries, which ensure the adequacy between individual actions and objective reality. Therefore, reflecting on FFAA institutions from the perspective of Bourdieu (2001) implies considering them as locus of construction of a symbolic and significant system of practices and symbols, these being identifiers of the individuals belonging to it. It is understood that this type of approach allows dialogue with the guiding principles of conduct in this type of organization, which reveals a lot about its sociability and social image.

Keywords: Armed Forces. Habitus. Identity.

HABITUS MILITAR: REFLEXIONES SOBRE LOS SUJETOS DE CASERNA RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar, a través de una revisión de la literatura, las características fundamentales que dieron forma al diseño institucional de las Fuerzas Armadas (FFAA). Toma prestada para esta tarea, la contribución del concepto de habitus en Bourdieu (1983). Dicho concepto ofrece elementos para reflexionar sobre la internalización de los valores, normas y principios sociales por parte de los sujetos militares, que aseguran la adecuación entre las acciones individuales y la realidad objetiva. Por lo tanto, reflexionar sobre las instituciones de la FFAA desde la perspectiva de Bourdieu (2001) implica considerarlas como el lugar de construcción de un sistema simbólico y significativo de prácticas y símbolos, siendo estos identificadores de los individuos que pertenecen a él. Se entiende que este tipo de enfoque permite el diálogo con los principios rectores de conducta en este tipo de organización, lo que revela mucho sobre su sociabilidad e imagen social.

Palabras clave: Fuerzas Armadas. Habitus. Identidad. 1 INTRODUÇÃO

“Mas a senhora sabe! A gente sai do quartel, mas o quartel não sai de nós. Até hoje de vez em quando eu escuto o toque da corneta tocando a posição de sentido e descansar. (risos).

(Memórias de um militar da reserva)

O diálogo com o militar da reserva para além de efetivar a chamada “prova de vida”, procedimento administrativo realizado anualmente pelos militares da reserva remunerada, ofereceu escuta a história de uma vida que fora forjada pelo quartel.

Este trabalho tem como objetivo analisar, mediante uma revisão de literatura, traços fundamentais que conformaram o desenho institucional das Forças Armadas (FFAA). Toma de empréstimo para essa tarefa a contribuição do conceito de habitus em Bourdieu (1983). Tal conceito oferece elementos para pensar a interiorização pelos sujeitos dos valores, normas e princípios sociais, assegurando a adequação

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entre ações individuais e realidade objetiva. Sendo assim, refletir sobre as instituições das FFAA sob a ótica de Bourdieu (2001) implica considerá-las lócus de construção de um sistema simbólico e significante de práticas e símbolos existentes neste espaço e identificador dos indivíduos a ele pertencentes. Entende-se que esse tipo de abordagem permite dialogar com os princípios orientadores da conduta neste tipo de organização, o que muito revela da sua forma de ser e de aparecer.

No âmbito das pesquisas de cientistas sociais brasileiros ainda é pouca a produção de trabalhos de investigação sociológica sobre as FFAA. Muitos dos estudos existentes privilegiaram a análise da intervenção dos militares na política ou a transição do regime militar para democracia.

Sabe-se que homens e mulheres ao ingressarem no contexto castrense tornam-se herdeiros de um conjunto simbólico identificador deste campo, composto por práticas e discursos expressos em cerimônias, rituais e no cotidiano institucional. As instituições preservam, assim, mecanismos que possibilitam o processo de assimilação e introjeção da herança construída.

Para além da dinâmica e das expressões concretas da sociabilidade, de sua estrutura física e produções materiais, as instituições militares materializam-se no campo da subjetividade, como força de perpetuação de determinadas práticas. Este mecanismo é assegurado por um processo de socialização imposto a todos que fazem parte dos seus quadros, cuja construção social advinda deste artifício forma a identidade militar.

Tal construção denominada por Castro (2004) de “espírito militar” consiste no processo experimentado pelos neófitos no ofício das armas de socialização profissional, durante o qual devem apreender os valores, atitudes e comportamentos apropriados à vida militar. Esta socialização é efetivada quando os sujeitos adquirem disposições percebidas como evidentes e naturais agindo de maneira determinada pelo contexto, pela tradição e pelas regras, sem que seja um processo consciente, quando há a incorporação do habitus militar1.

A inserção na caserna impõe, àqueles que buscam a carreira das armas, abraçar valores e princípios de visão e divisão de mundo (mundo civil e mundo militar), que resultarão na apreensão do habitus militar e na produção da filiação dos indivíduos a esta classe. O “nome de batismo” é muitas vezes substituído pelo “nome de guerra”, a “família de origem” na maioria das vezes é substituída pela “família militar”, o local de moradia é ampliado para os locais das transferências e os indivíduos singulares são formatados pela identificação genérica como “soldados”.

1 Faz-se, contudo, necessário observar que o processo de incorporação do habitus militar não é absoluto, podendo variar de acordo com a forma como o indivíduo é iniciado na carreira, se como soldado recruta ou aluno de uma escola de formação militar, modificando-se também de indivíduo para indivíduo, conforme sua formação educacional e profissional anterior, a exemplo da carreira dos médicos, dentistas, farmacêuticos, capelães e outros oficiais do quadros complementares, graduados em cursos superiores.

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2 SOBRE O CONCEITO DE HABITUS

A compreensão do conceito de habitus, segundo Ortiz (1983) requer o entendimento das premissas epistemológicas, sob as quais Bourdieu estava debruçado, pois a construção da teoria do habitus representou um amadurecimento teórico do autor expresso, sobretudo, na conciliação de duas leituras do social, vistas como antagônicas e contraditórias.

Faz-se importante destacar que Elias (1994, 1997) também desenvolveu reflexões teóricas acerca do conceito de habitus, antes de sua popularização por Bourdieu, definindo-o como a composição social dos indivíduos, segunda natureza ou saber social incorporado. Para o autor, o conceito de habitus requer um equilíbrio entre conservação e mudança, conquanto, considera que este muda com o tempo, pois as experiências de uma nação mudam e acumulam-se.

Elias (1994, 1997) destaca que o habitus tem origem em uma estrutura de funções sociais e objetivas, que estão sempre sujeitas a mudanças e são influenciadas em sua formação por coações sociais violentas, que exigem do indivíduo a incorporação de padrões sociais e um autocontrole das emoções e pulsões instintivas próprias de sua natureza. Para o autor, os elos emocionais do indivíduo em determinado grupo social são produtos da identidade-nós.

Entretanto, as características da personalidade do indivíduo estão ligadas ao grupo por padrões de origem social. Essas características pessoais, que o indivíduo preserva e que o identifica dentro do grupo, são denominadas pelo autor como

identidade-eu. O habitus estaria enraizado entre essas duas categorias: “nós” e

“eu”. Desse modo, como o militar transita em duas configurações sociais distintas, a sociedade civil e o mundo militar, o cruzamento entre a identidade-nós (militar) e a identidade-nós (sociedade civil) atua de forma distinta na identidade-eu do militar.

Para Bourdieu, o conceito de habitus busca romper com as interpretações deterministas e unidimensionais das práticas: “a noção de habitus exprime, sobretudo, a recusa a toda uma série de alternativas que a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do fatalismo e messianismo.” (BOURDIEU, 2001, p 60).

Na perspectiva sociológica desenvolvida pelo autor, o mundo social é constituído de três modos de conhecimento teórico: o fenomenológico, o objetivista e o praxiológico. Segundo Bourdieu (1983),

[...] o conhecimento que chamaremos de fenomenológico [...] explicita a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é, a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do mundo social como mundo natural e evidente, sobre o qual, por definição, não se pensa, e que exclui a questão de suas próprias condições de possibilidade. O conhecimento que podemos chamar de objetivista (de que a hermenêutica estruturalista

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37 é um caso particular) (que) constrói relações objetivas (isto é, econômicas e linguísticas), que estruturam as práticas e as representações práticas ao preço de uma ruptura com esse conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que conferem ao mundo social seu caráter de evidência e natural [...]. Enfim, o conhecimento que podemos chamar de praxiológico (que) tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade. (BOURDIEU, 1983, p. 46-47).

À luz desta compreensão, indivíduo e sociedade conectam-se através do que o autor denomina de habitus. Tal conceito é capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais, de expressar o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades, o que implica entender o individual, o pessoal e o subjetivo como também realidades sociais e coletivamente orquestradas, isto é, entender o habitus como uma subjetividade socializada (BOURDIEU, 1983). Habitus é então concebido pelo autor como

[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] o habitus produz práticas que [...] não se deixam deduzir diretamente das condições objetivas [...] nem das condições que produziram o princípio durável da produção: só podemos, portanto, explicar essas práticas se colocarmos em relação a estrutura objetiva que define as condições sociais da produção do habitus [...] com a conjuntura [...] que representa um estado particular dessa estrutura. (BOURDIEU, 1983, p. 65).

O conceito de habitus fornece elementos ao entendimento das relações de afinidade entre os comportamentos dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais, pois ele engendra a reprodução das condições sociais da produção do sujeito, através de um processo de interiorização e exteriorização em que estruturas sociais se transformam em estruturas mentais. Estruturas sociais e mentais são mutuamente atualizadas por meio das práticas sociais, as quais (re)constroem e atualizam a realidade social.

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Dois componentes compõem o habitus: o ethos, correspondente aos valores interiorizados, direcionadores da conduta do agente, e a hexis, atrelada à linguagem e à postura corporal. Hexis e ethos, estabelecidos no interior de determinado campo, revelam, respectivamente, as especificidades do indivíduo e as da classe social a que pertence.

Enfim, o conceito de habitus não anuncia uma ordem social pautada na lógica pura da reprodução e conservação; ao contrário, implica entender a ordem social através de estratégias e de práticas, nas quais e pelas quais os agentes reagem, adaptam-se e contribuem no fazer da história.

Coerência e reprodução total das estruturas não consistem em perspectivas contempladas pelo habitus. Princípio angular do conceito é o da relação dialética entre a conjuntura de um campo e sistemas de disposições individuais em processo de interação constante com as estruturas.

Para Bourdieu (1990), o pleno entendimento do conceito de habitus requer considerá-lo em sua interdependência com o conceito de campo, dada a relação dialética entre habitus individual e a estrutura de um campo socialmente determinado. Segundo o autor, grande parte das ações dos agentes sociais é fruto de um encontro entre um habitus e um campo.

Como parte do arcabouço teórico da obra de Bourdieu, o conceito de campo expressa a pluralidade dos mundos possíveis no espaço social, de relações entre grupos diferentemente posicionados. A sociedade é composta por vários campos, com lógicas e leis próprias de funcionamento, face as suas especificidades, como o campo da moda, o da religião, o da política, o da literatura, o das artes e o da ciência, entre outros. Todos eles se tornam microcosmos autônomos no interior do mundo social. A estrutura do campo é como um constante jogo, no qual, cientes das regras estabelecidas, os agentes participam, disputando posições e lucros específicos. Segundo Bourdieu,

[...] compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo da linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado, os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir. (BOURDIEU, 2001p. 69).

Mormente nas propriedades específicas de cada campo, existem homologias, invariantes estruturais e de funcionamento comuns a todos os campos (BOURDIEU, 2007):

• O reconhecimento de um objeto de luta comum. Em todos os campos existem capitais disputados por seus membros com vistas à movimentação e ocupação de posições de poder nesse campo;

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• A existência de pessoas para jogar o jogo, pois o estado da relação de forças entre esses jogadores define – de forma dinâmica- a estrutura de um determinado campo, em que dominantes e dominados adotam estratégias de conservação ou de subversão da ordem simbólica com base nas suas posições, num momento específico do jogo;

• A unidade manifestada por seus agentes contra todo ataque que tente denunciar os interesses reais do jogo, isto é, um tipo de corporativismo dos que estão jogando, seguindo as leis do campo e disputando contra os que pretendem penetrar no campo desrespeitando as regras, impondo novos objetos de luta, ou buscando deslegitimar comportamentos definidos como legítimos pelos jogadores do campo.

Tais jogadores, para que assim se caracterizem, precisam de um habitus correspondente ao campo em que se inserem. Por exemplo, no campo militar, exige-se a posse de um habitus militar; no campo religioso, um habitus religioso, dentre outros. Apenas quem incorpora o habitus próprio do campo tem condições de jogar o jogo e acreditar na importância de jogá-lo (BOURDIEU, 2007).

As premissas teóricas trabalhadas apontam a interdependência entre os conceitos de campos e habitus, dado que este último se estrutura e é posto em prática, de forma mais frequente, pelas formas de coesão e os estímulos conjunturais de um determinado campo, logo para apreensão do habitus militar, necessário se faz um esforço de entendimento do campo militar, de sua lógica de funcionamento e de suas leis próprias.

3 O CAMPO MILITAR E A CONSTRUÇÃO DO HABITUS

O campo militar possui uma lógica diferenciada daquela operada em outros campos, pois os militares, como componentes de um grupo responsável pela defesa externa do Estado, formam um campo específico, com conteúdo e significados próprios. O lugar dos militares, como braço armado do Estado, no interior da ordem social, foi sendo moldado historicamente. O entendimento deste campo requer um apanhado histórico da profissão militar.

O século XIX marca a emergência do profissionalismo militar. O Estado prussiano inaugura este processo2. Os prussianos foram os primeiros a abolir

2 Segundo Huntington (1996, p. 49), se fosse para indicar uma data precisa ao nascimento da profissão militar no Ocidente, seria 06 de agosto de 1808. Nesse dia, o governo prussiano publicou um decreto relativo ao recrutamento e progressão de oficiais, o qual dizia: “O único título a dar direito a um posto de oficial será, em tempo de paz, o da educação e conhecimentos profissionais; em tempo de guerra, bravura e percepção exímias. De qualquer parte da nação, portanto, todos os indivíduos que possuem essas qualidades estão habilitados aos mais altos postos militares. Fica abolida toda distinção de classe anteriormente existente, e todo homem, independentemente das suas origens, tem iguais deveres e iguais direitos”.

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distinções de classe no acesso ao corpo de oficiais, abrindo-se, assim, o caminho para adoção de critérios de ingresso pautados na educação geral e específica, de promoção na carreira por merecimento e desempenho. A Prússia foi a primeira nação a investir fortemente no estabelecimento e valorização social das instituições formativas militares e no sistema aprimorado e eficiente de estado maior. Foi ainda um prussiano, Karl von Clausewitz, com sua obra clássica Da guerra, que forneceu as bases teóricas à profissão e para forma de pensar a guerra patriótica (RAPOPORT, 1996). A propósito de tal questão, Domingos argumenta que

[...] na modernidade, a sagração do guerreiro ocorre, e só pode ocorrer, no altar da pátria, onde a bandeira nacional paira como ícone supremo. A sua defesa tanto justifica tirar a vida do outro quanto permite morrer de forma gloriosa. O moderno considera que quem guerreia em nome de Deus é fanático; o civilizado guerreia pela pátria sagrada. (DOMINGOS, 2005, p. 51).

A profissionalização militar acompanhou a formação do Estado nacional, tornando possível a este último o monopólio da violência organizada. Neste sentido, o conceito de burocracia em Weber (2008), característica principal do Estado moderno, também moldou as instituições militares. Assim, as elaborações weberianas sobre o tema constituem um arcabouço teórico bastante apropriado para se pensar nas organizações castrenses à luz de conceitos sociológicos.

O ingresso na carreira militar ocorre por concurso público. O fato de ser aprovado no processo seletivo não credencia de imediato o indivíduo ao cargo. É necessário que o candidato passe por uma escola de formação, ao fim do qual o sujeito é avaliado como apto ou não a exercer o posto. Importante destacar que a função militar requer um alto grau de especialização, adquirida através de treinamento específico e experiência, não constitui mero desenvolvimento de uma habilidade técnica, é uma habilidade intelectual complexa que requer estudo e treinamento abrangentes, uma vez que não cabe ao oficial o ato de violência em si, mas a sua administração e tudo o que a ela esteja envolvido3.

Para tanto, exige-se do moderno oficial militar dedicação de grande parte de sua vida profissional à escolaridade formal. Ao longo de toda sua carreira o militar terá que passar por diversos cursos, cuja conclusão e aprovação o qualificam para as devidas promoções. A fim de que possa mesmo almejar alcançar o topo de sua profissão, é imprescindível que ele tenha conhecimento do desenvolvimento histórico das técnicas de organizar e dirigir forças militares. Como os métodos de

3 Segundo Huntington (1996), ao se referir ao grupo profissional militar, está se falando dos oficiais, que são aqueles treinados para exercerem a função específica das FFAA de administração da violência, cabendo às praças a função de sua aplicação. Para o autor, “a direção, a operação e o controle de uma organização humana cuja principal função consiste na aplicação da violência é a qualidade peculiar do oficial”. (1996, p. 30).

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organizar e aplicar os instrumentos da guerra estão intimamente relacionados ao padrão cultural da sociedade em cada época, a qualificação militar requer uma vasta base de cultura geral, e a educação geral é reconhecida hoje, no próprio campo militar, como desejável para o oficial profissional.

É oportuno observar que os profissionais militares adquirem as suas licenças de exercício da atividade em escolas de formação privativas da instituição militar, as quais possuem currículos formalizados, contemplando o exercício de atividades intelectual e mecânica. Para Huntington (1996), os fatores responsáveis pelo surgimento do profissionalismo militar podem ser buscados na especialização tecnológica, no nacionalismo competitivo, no conflito entre democracia e aristocracia, na presença da autoridade legítima e estável e no serviço militar obrigatório.

O crescimento da população nos séculos XVIII e XIX, o início da industrialização, o desenvolvimento da tecnologia e do urbanismo deixaram as suas marcas na sociedade, fatores que contribuíram para a crescente divisão do trabalho e especialização funcional, tendências que se repercutiram na organização dos exércitos.

A guerra ganha um caráter mais complexo com o avanço da tecnologia, em termos de armamento, transportes e comunicações. Os Exércitos e as Armadas tornam-se organizações estruturadas, com um número crescente de indivíduos divididos por centenas de especialidades. Funções do profissional militar concretizam-se e especializam-se, distinguem-se das de político e de polícia, com as quais se tinham ligado no passado.

Alia-se a isto, o aumento da exigência de militares gestores à medida que a burocracia militar se expande em tamanho e complexidade, o que torna essencial o planejamento cuidadoso das operações e da coordenação de várias unidades e funções. Neste contexto, “o profissionalismo tinha que surgir.” (HUNTINGTON, 1996, p. 50).

A competição entre Estados possibilitou a criação de um corpo permanente de especialistas, com reconhecida utilidade social (e política), dedicados aos interesses da segurança militar da nação. Fato somente possível com o desenvolvimento do Estado-Nação que permitiu a centralização de recursos, destinados a sustentar economicamente um corpo de oficiais, dedicados exclusivamente à guerra.

A emergência de partidos e ideais democráticos forneceram as bases para substituição do ideal aristocrático para o representativo. Aspecto determinante para findar com o monopólio dos nobres no corpo de oficiais, o que abriu a possibilidade de recrutamento em todas as classes sociais, face à ideia, ainda tão cara às Forças Armadas, de que elas deveriam ser representativas da nação.

O processo de centralização do poder do Estado enfraqueceu gradualmente os centros de poder locais e possibilitou o desenvolvimento de lealdades e sentidos de pertença que transcendiam a aldeia e a região. Para o corpo de oficiais, tal

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enfraquecimento gerou as condições do reconhecimento de uma única fonte de autoridade sobre o estabelecimento militar, aceita como corporificando a autoridade da nação, porta de entrada para a progressiva despolitização deste grupo; sobressaindo-se, assim, ideais profissionais a valores políticos.

Ao longo do século XIX, o recrutamento militar obrigatório se consagra na forma superior de compor a tropa. A fórmula “nação armada” se impõe como marca do Estado moderno, após a derrota da França em 1870, atribuída ao fato dos prussianos terem mais zelo com a preparação guerreira de seus combatentes.

Assim, a emergência da guerra dos povos frente à tradicional guerra dos governos tem como desdobramento o crescimento rápido do número de soldados a serem enquadrados, formados e dirigidos, uma vez que a passagem pelas fileiras era apenas por curtos ou médios períodos de tempo. Surge a necessidade de alguém que os enquadrasse, ensinasse e dirigisse continuamente. O desenvolvimento dos programas de formação, dirigidos aos conscritos, conduz também ao nascimento do perfil de oficial-educador, que mais tarde, já no século XX, contribuirá para o incremento do prestígio social dos profissionais militares.

Vale acrescentar que a necessidade de armar grandes exércitos, e, como consequência, a real possibilidade da massificação do recrutamento, só foi concretizável após a Revolução Industrial, por meio da consolidação de uma indústria de armamento, destinada também à produção em massa. Como corolário deste processo, a conjugação da conscrição geral e da produção industrial massiva de armamento reduzem substancialmente os custos da guerra, empreitada essencialmente dispendiosa antes do século XIX, travada por exércitos pequenos. Nesta perspectiva, Domingos deduz que:

[...] na tropa moderna, o combatente já não é escravo ou criminoso retirado da prisão, em busca de liberdade ou do simples direito de continuar vivo; não é formalmente o mercenário procurando meio de vida nem o pobre sem arrimo, buscando proteção, vestindo farda a contragosto; tampouco representa casta ou cumpre ordens de senhores. O combatente civilizado serve ao Estado, mas pertence espiritualmente a nação e, como seu defensor, deve ser remunerado e respeitado (DOMINGOS, 2005, p.52).

O processo de profissionalização militar implicou a eliminação dos pré-requisitos aristocráticos para ingresso em suas fileiras; na exigência de um treino profissional básico e de competência, e, mais tarde, na imposição de formação geral mínima anterior à profissional, não ministrada por estabelecimentos militares, mas por Escolas Superiores autônomas.

No que concerne ao desenvolvimento da carreira, os critérios de base para a promoção passaram a privilegiar a promoção por tempo de serviço no posto

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(antiguidade), aliados ao requisito do mérito (merecimento). Estabeleceram-se, ainda, linhas de progressão profissional formais com requisitos (nomeadamente educacionais) para a ocupação de postos.

As academias e escolas militares adquiriram importância crescente e centralidade constantes, notadamente, pelo papel fundamental de socialização profissional que consolidaram, pois a doxa militar, entendida como conjunto de opiniões naturalizadas no campo militar, ponto de vista apresentado e imposto como universal, como autoevidente, cuja composição está além do alcance do debate ou da elaboração (BOURDIEU, 1996), não é facilmente incorporada, transformada em estrutura mental orientadora da prática de seus agentes.

Tal processo é realizado, inicialmente, nos cursos de formação, por meio de um complexo trabalho de socialização, através do qual ocorre a construção e incorporação do habitus militar.

4 A SOCIALIZAÇÃO NO CAMPO MILITAR

A socialização permite aos indivíduos se tornarem aptos a participarem dos diferentes sistemas sociais, compartilhando códigos, ideias e significados comuns. São várias as instituições, a exemplo da escola, família, grupos profissionais que promovem a socialização dos indivíduos, neles introduzindo uma realidade, tomada como evidente. Se o grupo familiar promove a socialização primária, corporações profissionais, a exemplo das instituições militares, agenciam socializações secundárias, as quais se deparam com um problema fundamental, tratar com uma personalidade já formada e um mundo já interiorizado, cuja realidade incorporada tende a persistir.

Para Bourdieu (2013), a socialização é a incorporação dos habitus de classe. O autor distingue ainda o habitus primário do habitus secundário. O primeiro encontra-se relacionado aos esquemas avaliativos compartilhados objetivamente, ainda que opacos e quase sempre irrefletidos e inconscientes que guiam a ação e o comportamento efetivo do sujeito no mundo. Constitui os elementos de socialização mais duradouros. O segundo representa uma camada extra de socialização e se relaciona com a distinção social e o “refinamento” do gosto.

Pode-se, assim, dizer que a ação pedagógica desenvolvida nas organizações militares está voltada para eliminar ou minimizar os efeitos de inserção de um tipo de habitus secundário por sobre o habitus primário. Entre aqueles que vêm de família que possuam militares, este processo tona-se mais fácil, uma vez que parte do habitus militar já foi incorporado pelo indivíduo, isto é, a socialização primária, recebida no ambiente familiar, já se encarregou da produção de um habitus primário coerente, em grande medida, com o habitus do campo militar.

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Estudo (ATASSIO, 2012) demonstra que muitos oficiais inculcam em seus filhos o “gosto” pela carreira das Armas. Assim, os esquemas de percepção e de ações transmitidos pelos pais militares serão reforçados com a entrada do estudante na academia militar. A exterioridade interiorizada pelo convívio familiar assemelhar-se-á àquela encontrada pelo cadete na instituição militar.

Este fator facilitará a adaptação do indivíduo à vida militar e, muitas vezes, definirá a escolha profissional do filho de militar, afinal, ele tende a perceber o mundo em função do seu habitus primário, de maneira que as disposições adquiridas em seguida influenciarão a aquisição de novas disposições. É desta forma que muitos filhos de militares chegam às academias alegando serem dotados de “vocação” para o exercício militar.

Academias e escolas militares são, além de espaço de formação, “instituições de sequestro” (FOUCAULT, 1987), onde indivíduos são separados de um mundo exterior para inculcar-lhes eficientemente a doxa institucional. Tal processo ocorre por meio de uma ação pedagógica do ponto de vista simbólico, na qual se busca matar o “velho homem” (BOURDIEU E PASSERON, 2012) e gerar um novo habitus, possuidor de características específicas da instituição FFAA, o qual foge aos padrões usuais da sociedade civil.

Este processo ocorre, em termos práticos, por meio de uma série de estratégias de socialização, cujo ponto principal reside na docilização dos novos membros, de forma tal que se ajustem adequadamente ao novo espaço, tornando-se úteis à manutenção da identidade e da integridade da organização.

Em pesquisa pioneira realizada, a partir de uma etnografia com cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), Castro (2004) indentifica que o indivíduo ao fazer parte de uma organização militar, desde o primeiro momento da estadia em regime de internato, é submetido a uma bateria de rituais expiatórios, treinamentos físicos e repetição, cuja principal função é forjar a construção de uma nova pessoa, de um novo “eu”, o militar, com qualidades distintas do “civil” (ou “paisanos”), cuja identidade é reconhecida a partir da ideia de pertencimento a um “mundo de dentro” (o meio ou mundo militar) em contraposição ao “lá fora” (meio ou mundo civil).

Um dos conceitos comumente utilizado por pesquisadores da área militar para dar conta desta característica institucional é sua classificação como instituição total. Goffman (2010, p.11) designa como instituição total “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada”.

Para o autor, as instituições totais promovem a ruptura das barreiras que separam os atos de trabalhar, dormir e brincar, comuns ao cotidiano da maior parte das pessoas, de maneira que essas atividades passam a acontecer sempre na companhia de outras pessoas, de acordo com um controle formal de horários e procedimentos, segundo o plano racional da instituição.

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As críticas à utilização do modelo de instituições totais, em estudos que privilegiam aspectos internos das organizações militares, notadamente, academias, foram feitas por Castro (2007). Para isto, o autor toma como parâmetro para análise seu estudo junto aos cadetes da AMAN (CASTRO, 2004). Segundo o autor, em uma academia militar inexiste uma divisão rígida entre equipe dirigente e interno. Na cadeia de comando militar, não há uma separação da mesma natureza. Dentro dessas divisões existem fortes mecanismos de mobilidade social com base no mérito individual. Ao contrário das instituições totais típicas, a comunicação informal e o estabelecimento de relações afetivas entre cadetes e oficiais são crescentemente estimulados ao longo do curso. Embora o respeito e a precedência hierárquica devam ser sempre observados, busca-se o estabelecimento de vínculos afetivos entre cadetes e oficias.

Castro (2004) entende que nas instituições totais não se busca uma “vitória cultural” sobre o internado, mas a manutenção de uma tensão entre seu mundo doméstico e o mundo institucional. Essa tensão persistente é usada como “uma força estratégica no controle de homens” (GOFFMAN, 2010, p.24). Numa academia militar busca-se justamente uma “vitória cultural” e não criar uma “tensão persistente”. A academia é claramente vista como um local de passagem, um estágio a ser superado. O autor destaca ainda que Goffman (1988) trata principalmente dos estabelecimentos de participação compulsória. Numa academia militar, ao contrário, só fica quem quer. Conclui Castro, que mais se perde do que se ganha em classificar como total as instituições militares.

A despeito de tais críticas, não há como desconsiderar a relevância e o pioneirismo de Goffman na análise de instituições relativamente autônomas em relação ao mundo exterior. Ele próprio adverte que a construção de um tipo ideal4

exige flexibilidade e ponderação, na medida em que os traços por ele descritos seriam encontrados em maior intensidade em alguns casos concretos do que em outros, o que não permite de antemão desprezar uma ferramenta conceitual como esta, mesmo porque não se propõe abarcar exaustivamente todas as possíveis variações que se poderiam encontrar nas pesquisas empíricas. Para o autor: “talvez seja melhor usar diferentes cobertores para abrigar bem as crianças do que utilizar uma coberta única e esplêndida, mas onde todas fiquem tremendo de frio” (GOFFMAN, 2010, p.12).

Goffman (2010) inclui quartéis e academias militares como exemplos de instituições totais. Ao longo de toda a obra, o autor torna repetidas vezes a fazer referências

4 Para Weber (1999, 2008), a realidade é densa e complexa, cabendo ao sociólogo a tarefa de torná-la, através da pesquisa, o mais compreensível. Nesta tarefa, o sociólogo constrói tipos, recursos metodológicos orientadores da investigação, existindo no plano das ideias. Os tipos-ideais consistem em enfatizar determinados traços da realidade até concebê-los em sua expressão mais pura, a qual não se apresenta assim na realidade. São como uma espécie de construção de hipótese acerca da realidade, tornando mais compreensivas as conexões de sentidos.

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diretas a casos militares de instituições totais. Janowitz também traz elementos para refletir o caráter totalizante das instituições castrenses. Segundo o autor:

[...] a íntima solidariedade social [...] baseia-se num fato ocupacional peculiar. A separação entre local de trabalho e de residência, característica das ocupações urbanas, não existe. Ao invés disto, a comunidade militar é uma comunidade relativamente fechada, em que a vida profissional e doméstica estão completamente misturadas. A nítida separação entre trabalho e a vida privada tem sido minimizadas na ocupação militar. (JANOWITZ,1967, p.177).

No caso particular das academias militares, ao mesmo tempo escolas em regime de internato, os elementos constituintes da projeção de uma identidade militar, assentada no contraste entre “nós militares” e “eles paisanos”, são expostos a um esgotamento acentuado.

Através de uma série de atividades são introduzidos nos alunos valores de obediência, submissão, assiduidade, pontualidade, racionalidade e meritocracia. Diversos fatores concorrem para isso, leis, decretos, portarias, ordens internas, regulamentos, estatutos, dentre outros, os quais, além de delimitarem exatamente deveres e direitos de cada um, pormenorizam como deve ser a conduta de cada elemento em várias situações.

O tempo, os estudos, a experiência adquirida no exercício da função, as condecorações, entre outros fatores, fornecem ao agente possibilidade de ascensão no campo, o que significa não apenas aumento de capital econômico, mas, sobretudo, de capital simbólico. Sobre este tipo de capital, explica Bourdieu:

O capital simbólico – outro nome da distinção – não é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente dotado de categorias de percepção resultantes da incorporação da estrutura da sua distribuição, quer dizer, quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio. (BOURDIEU, 2001, p. 145).

Se, conforme afirma DaMatta (1997, p. 61) “a farda iguala e corporifica”, as medalhas, as insígnias e outros signos expostos em uniformes expressam o capital simbólico daqueles que os ostentam. As promoções, as trocas de patentes por mérito (não por antiguidade, ou seja, por tempo de serviço) são vistas como reconhecimento e legitimação pela instituição e por seus integrantes, da importância daquele que ascende na carreira, sejam estes oficiais ou praças.

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O capital simbólico proporciona aos agentes do campo militar poder simbólico, não apenas dentro da caserna como também na sociedade civil, em que a autoridade militar é reconhecida e o indivíduo vestindo uma farda é, ainda, olhado com admiração e respeito, notadamente, pelas camadas com menor capital cultural e econômico.

Janowitz (1967) mostra, em estudo clássico, como se constitui a profissão militar, qual o habitus que a sustenta. Segundo o autor, para tornar-se um profissional das armas, o soldado deve deixar de ser o indivíduo que é e transformar-se num ser, cuja identidade é determinada pela instituição, cuja função é o combate. Todo aprendizado do soldado tem como finalidade construir um novo homem.

5 À GUISA DA CONCLUSÃO

Nas elaborações destacadas buscou-se traduzir conceitos e categorias teóricas, considerados oportunos para a compreensão das FFAA, sobretudo aspectos peculiares a esse campo e ao habitus militar. No que concerne aos chamados estudos militares, compreende-se, a exemplo do disposto por José Murilo de Carvalho, que em se tratado de pesquisa e produção de conhecimento, quase nada tem sido feito sob o ângulo sociológico fora do organizacional (CARVALHO, 2008).

Apesar das essenciais contribuições propostas pela chamada sociologia e antropologia militar no Brasil, considera-se que ainda são incipientes os estudos que busquem analisar os militares como sujeitos e grupo social, dedicados a refletir sobre seus contextos familiares e o cotidiano de trabalho e vida. São ainda bem escassos os estudos voltados à dimensão cultural do “ser militar”, dispostos a conhecer os valores individuais e coletivos apropriados, partindo do ponto de vista e das experiências destes sujeitos.

Entende-se que parte das dificuldades de vinculação e investigação nas instituições militares ocorre devido ao caráter fechado que essas instituições ainda apresentam no contexto nacional. Tal particularidade rebate no acesso ao campo, ainda bastante restrito aos sujeitos que compõem estes espaços. Portanto, constitui ainda desafio o conhecimento das características, cotidianos e dinâmicas das instituições militares.

É este movimento que impulsionou os esforços de investigação desse estudo, conformando a produção científica na qual busca-se investir. Como profissionais especialistas e pesquisadoras vinculadas às instituições militares das FFAA brasileiras, interessa-nos traduzir este campo social, tornando-o acessível para aqueles que se interessam pelos chamados estudos militares. No entanto, se esta área de estudo tradicionalmente se assenta em questões macroestruturais e geopolíticas vinculadas aos chamados assuntos de guerra, as preocupações desse trabalho se dedicam ao que comumente é denominado de assuntos de “não guerra”, ainda que para as autoras desse artigo, sejam conteúdos essenciais para aqueles que

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desejam compreender as questões operacionais e políticas inscritas no âmbito das instituições militares.

O campo militar, representando a priori por um mundo apartado, é revelado pela multiplicidade de componentes, que, ao longo da trajetória histórica das FFAA, foram empregados, com vistas a conferir organicidade e legitimidade a estes espaços. Neste contexto, o habitus militar conjuga elementos que integram e integralizam as experiências, forjando percepções e comportamentos, mas igualmente, uma dada identidade generalizada pelo “ser militar”. Indo ao encontro desta reflexão, concordarmos com o disposto por Bauman (2005), quando o autor refere que a identidade nos é revelada como algo a ser inventado e não descoberto”(BAUMAN, 2005, p.21) é neste sentido que identificamos a socialização militar como processo contínuo e duradouro de “invenção de identidade”.

Por fim, a socialização militar pode ser definida como o processo através do qual os sujeitos se tornam uma extensão das instituições, sendo identificados e caracterizados pelas Forças que representam. Formar militares para além da especialização do chamado “profissional das armas” requer do militar a perpetuação das tradições, valores, comportamentos e sentidos unificando e introjetando no militar habilidades e atributos que permitam-no perpetuar o contexto institucional. REFERÊNCIAS

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Recebido em: mar. 2020 Aceito em: abr. 2020

Referências

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