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Gil Vicente e o drama litúrgico natalino: algumas considerações

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GIL VICENTE E O DRAMA LITÚRGICO NATALINO: ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES

GIL VICENTE AND THE CHRISTMAS LITURGICAL DRAMA: SOME

CONSIDERATIONS

Maria do Amparo Tavares Maleval

Universidade do Estado do Rio de Janeiro1

Resumo: Sabe-se que, na Europa

medieval, o teatro deu os seus primeiros passos ligado aos ofícios religiosos. O

drama litúrgico então surgido

compreendia a peça Visitatio sepulchri – visitação do sepulcro pelas santas mulheres −, representada nas matinas do domingo de Páscoa, e a Visitatio

praesepe, que, ligada às comemorações

natalinas, se desdobraria em Officium

pastorum e Ordo Stellae – isto é, na visitação dos pastores e dos Reis Magos ao presépio em que se encontrava o Messias recém-nado, estes últimos concernentes aos festejos da Epifania à volta do 6 de janeiro. Também ao ciclo natalino pertencia o Ordo Prophetarum, constituído pelo desfile de profetas, bíblicos e pagãos, que anunciaram a encarnação do Messias, seguido pelo Canto da Sibila, contendo as profecias da sibila Eritreia sobre a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final.

Gil Vicente, em seus autos de devoção , elaborou principalmente peças para o Natal, que perfazem mais da metade de suas obras devocionais, nelas retomando a tradição de forma inovadora. Vamos por ora nos ater ao exame dos seus três primeiros autos natalinos – Pastoril Castelhano, Reis

Magos e Sebila Cassandra −,

observando-lhes algumas particularidades, que fazem do dramaturgo português único dentre os seus coevos ibéricos.

Abstract: It is known that, in medieval

Europe, the theater began linked to religious offices. The liturgical drama then emerged understood the play

Visitatio sepulchri – visitation of the

sepulcher by the holy women –, represented in the matins of Easter Sunday, and the Visitatio praesepe, which, linked to Christmas celebrations,

would unfold (it unfolded, se

desdobrava) in Officium pastorum and

Ordo Stellae – this is, in visitation of the

shepherds and the Wise Kings (Magi) to the presepio in which was the Messiah newborn, the latter concerning the celebrations of Epiphany around January 6. Also de Christmas cycle belonged the

Ordo Prophetarum, constituted by the

parade of the prophets, biblical and pagan, who announced the Messiah s incarnation, followed by the Sibyl s singing, containing the prophecies of the Eritran sibyl about the second coming of Christ and the Last Judgment.

Gil Vicente, in his devocional plays, mainly made pieces for Christmas, that make up over half of his devotional works, retaking the tradition in an innovative way. Let s stick to the exam of his three first Christmas pieces – Pastoril

Castelhano, Reis Magos e Sebila Cassandra −, observing some particularities that make of de Portuguese playwright unique among its Iberian coevals (and not only).

1 Professora aposentada da UFF e da UERJ, onde continua a atuar como Pesquisadora Visitante. É também pesquisadora do CNPq.

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Palavras-chave: Teatro medieval;

drama litúrgico; Gil Vicente.

Key-words: Medieval play; liturgical

drama; Gil Vicente.

Sabe-se que o surgimento do teatro em nosso processo civilizatório ocorreu intimamente ligado aos cultos religiosos. Se nos reportarmos à Grécia antiga, vemos que o mesmo decorreu dos cortejos em honra de Dionísio nos rituais de fertilidade. E na Europa medieval, dos ritos e ofícios litúrgicos franco-romanos do cristianismo, nos quais os sacerdotes apresenta(va)m-se como atores, através de perguntas e respostas se comunicando entre si, o coro e/ou com os fiéis, que dessa forma participa(va)m do culto. Também acontecia, ao lado dessa dramaturgia séria , a eclosão de um teatro carnavalesco, tantas vezes proibido por documentos episcopais, e não só2, de serem realizados no recesso dos templos.

O que se tornou prática bem aceita pela Igreja, por ela desenvolvida em igrejas e outros locais sagrados, bem como nas procissões, eram representações relacionadas principalmente aos ciclos religiosos do Natal e da Páscoa, desenvolvidas a partir ou a par dos tropos do rito romano, isto é, de pequenas recitações ou diálogos entre os oficiantes do culto e o coro, inseridos na liturgia da missa oficiada em língua latina. A gestualística ritual, bem como a mistura de música e palavras no culto, aliadas à intenção didática, de comoção e conversão dos assistentes, concorreriam para o nascimento do teatro, em uma época em que as reuniões de cunho profano seriam menos abundantes que as religiosas − missas, festas de santos padroeiros, peregrinações, etc3. Assim surgiria o drama litúrgico4

europeu.

O drama litúrgico

Iniciado com a Visitatio sepulchri, representada na Páscoa, teve como base a composição Quem queritis in sepulchro, que também era utilizada como tropo da

2 Por exemplo, Afonso X, na primeira das Siete Partidas (Partida I, ley 34, tit. VI).

3 Cf., a propósito H. HARGUINDEY BANET. Introducción a Tres pezas cómicas medievais. A Coruña: Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor , , p. .

4 Drama litúrgico é uma denominação que só apareceria em meados do século XIX, como destaca E. CASTRO. Teatro medieval. 1 – El drama litúrgico. Barcelona: Crítica, 1997, p. 15. Nesta obra, Eva Castro reúne documentos desse gênero, do século XI ao XVI, no latim original e em tradução para o espanhol, antecedidos de prólogo e estudos específicos.

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missa pascoalina nos séculos X-XI, como atestam códices monásticos beneditinos5,

não se podendo saber ao certo se dita composição surgiu originariamente como texto do tropo ou do drama. Desse drama pascoalino6 se originaria a Visitatio

praesepe, que, ligada às comemorações natalinas, se desdobraria em Officium pastorum e Ordo Stellae – isto é, na visitação ao presépio em que se encontrava Jesus recém-nado, pelos pastores e pelos Reis Magos, estes guiados por uma estrela. Baseavam-se, respectivamente, no evangelho de Lucas (2, 1-20)7 e no de

Mateus (2, 1-12)8.

5 IDEM, ibidem, p. 15-16.

6 Da Visitatio sepulchri se registram diversas versões na Europa medieval. Na Península Ibérica podem ser encontradas em diversas localidades, como também Prosas do Ciclo de Páscoa. Também aí se registram outras peças pascoalinas medievais: o Planctus Passioni em Maiorca e o Peregrinus em Vic. Cf. E. CASTRO, op. cit., p. 111-257.

7 Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM (A). São Paulo: Edições Paulina, [1981], p. 1345- : ... Enquanto [José e sua esposa grávida] lá estavam [em Belém, na Judéia, para o recenseamento, procedentes de Nazaré, na Galiléia], completaram-se os dias para o parto, 7 e ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala. // 8 Na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias da noite montavam guarda ao seu rebanho. 9 O Anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. 10 O anjo, porém, disse-lhes: Não tenhais medo! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: 11 Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi. 12 Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura. E de repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus, dizendo: // Glória a Deus nas alturas / e paz na terra aos homens que ele ama! / / Quando os anjos os deixaram, em direção ao céu, os pastores disseram entre si: Vamos já a Belém, e vejamos o que aconteceu, o que o Senhor nos deu a conhecer. Foram então às pressas, e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado numa manjedoura. 17 Vendo-o, contaram o que lhes fora dito a respeito do menino; 18 e todos os que os ouviam ficavam maravilhados com as palavras dos pastores. 19 Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração. 20 E os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora dito.

8 IDEM, ibidem, p. 1284: Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntando: Onde está o rei dos judeus, recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no Oriente e viemos homenageá-lo. Ouvindo isto, o rei Herodes ficou alarmado e com ele toda Jerusalém. 4 E, convocando todos os chefes dos sacerdotes e os escribas do povo, procurou saber deles onde havia de nascer o Messias. Eles responderam: Em Belém da Judéia, pois é isto que está escrito pelo profeta ... Então Herodes mandou chamar secretamente os magos e procurou certificar-se com eles a respeito do tempo em que a estrela tinha aparecido. 8 E, enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide e procurai obter informações exatas a respeito do menino e, ao encontrá-lo, avisai-me, para que também eu vá homenageá-lo. A essas palavras do rei, eles partiram. E eis que a estrela que tinham visto no Oriente ia à frente deles até que parou sobre o lugar onde se encontrava o menino. 10 Eles, revendo a estela, alegraram-se imensamente. 11 Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o homenagearam. Em seguida, abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra. 12 Avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressaram por outro caminho para a sua região.

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O drama litúrgico é descrito por Eva Castro como una ceremonia cantada, cuyo modo de narración se realizó a través de um texto preexistente y de unos actuantes, que prestaban su voz y su cuerpo para los diálogos . Com relação à encenação, era feita em um espaço determinado e inclusive decorado em certas ocasiões, e estaba destinado a una comunidad, que no solo asistía de forma pasiva, sino que incluso participaba activamente 9. Dessa forma, já apresentava os

componentes do teatro que hoje conhecemos, tais sejam: o libreto, os atores, o espaço do cenário, a decoração e o público participante. Mas, como acentua a especialista, tudo parece indicar que nem os autores , nem os atores nem o público do drama litúrgico percibían en el una manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia, sino que lo entendían y sentían como una ceremonia más, engastada en el ritual romano oficial 10.

Das peças natalinas litúrgicas, escritas em latim, representadas no medievo, teve também grande destaque o Ordo Prophetarum, que, aliás, foi há pouco tempo reconstituído por especialistas e representado na catedral de Santiago de Compostela e, a partir daí, em outras localidades galegas. Essa peça descreve as profecias sobre a vinda do Messias feitas pelos profetas do Antigo Testamento, bem como por pagãos. Como as demais representações destinadas às matinas do Natal, tinha por objetivo não só embelezar e tornar agradável a liturgia, mas ensinar, de forma didática, explícita e deleitável, os mistérios da Encarnação. Essa dupla função, estética e devocional, acarretaria o seu aproveitamento nas esculturas das igrejas, cujas imagens não só servem de adorno, mas também ensinam ao público, de forma concreta, os dogmas da fé. Assim, além de documentada em textos cujo exemplar mais antigo seria do século XI, do mosteiro de São Marcial de Limoges11, esse drama pode ser observado, por exemplo, na

estatutária medieval do Pórtico da Glória da magnífica catedral compostelana.

9 E. CASTRO, op. cit, p. 27. 10 IDEM, ibidem, p. 27-28.

11 As peças escritas em latim para essa cerimônia, ainda hoje existentes, são três: a mais antiga (séculos XI-XII) pertence ao mosteiro de São Marcial de Limoges; em seguida, a da catedral de Laon (século XIII) e a da catedral de Rouen (século XIV).

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O Ordo Prophetarum apresenta a singularidade de ter se desenvolvido, como assinalam os especialistas, como M. Castiñeiras, a partir de um sermão, e não de um tropo, antífona, responsório ou poema lírico, como era habitual em outras composições dramáticas 12. Originou-se da célebre homilia Contra Iudaeos, ou De

symbolo, atribuída a Santo Agostinho durante toda a Idade Média, mas que na

verdade seria de Quoduuldeus, bispo cartaginês do século V.

A essa procissão de profetas se juntava o Canto da Sibila augurando a segunda vinda de Cristo no fim do mundo e o Juízo Final, profecia documentada nos escritos agostinianos, que adiante abordaremos13. Podendo também ser

apresentado separadamente, direcionava-se aos que, como os judeus, não aceitavam a Jesus como Salvador. Na reconstituição compostelana do Ordo

Prophetarum a que nos referimos, para esse canto, finalizando o espetáculo e

constituindo o seu clímax, foi aproveitada a versão de Afonso X em uma das suas cantigas de Santa Maria14, escritas como se sabe em galego-português. Mas na

própria catedral de Santiago de Compostela se documentou uma sua versão em latim num breviário medieval, que foi publicado impresso em Lisboa em 1497. Embora no século XIII já se registrassem versões em línguas vernáculas, como a de Afonso X, o texto em latim continuaria a ser cantado até o século XVI15.

Representações natalinas na Ibéria Medieval

No processo de secularização do drama litúrgico ocorrido, foi um Auto de Natal, relacionado ao Ordo Stellae, o texto teatral mais antigo documentado na Península Ibérica em língua-romance. Trata-se da Representación de los Reyes

Magos16, manuscrito anônimo de fins do século XII escrito em castelhano, em

12 M. CASTIÑEIRAS, Serafín Moralejo e a procesión dos profetas no Pótico da Glória In Ordo

Prophetarum. Drama litúrgico do século XII. Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega

Seción de Literatura e Indústrias da Edición, 2006, p. 13-16.

13 S. AGOSTINHO. Cidade de Deus (Contra os pagãos). Trad. de Oscar Paes Leme; Rev. de Orlando dos Reis; Introd. de Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990, Parte II (Livros XI a XXII), p. 336-337.

14 AFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Ed. crítica de Walter Mettmann. Vigo: Xerais, 1991, vol. II, p. 408-410.

15 Cf. E. CASTRO, op. cit., p. 284.

16 Usamos o texto coligido por, F. L. CARRETER. Teatro Medieval. 4 ed. Madrid: Editorial Castalia, 1986, p. 97-106.

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versos de métrica variada, prevalecendo os de arte menor17, o qual, da mesma

forma que o Jeu d Adam francês, não se originou de fontes exclusivamente litúrgicas. É composto por monólogos sucessivos de Gaspar, Baltasar e Melchior, um diálogo entre eles, outro entre eles e Herodes, um monólogo deste e mais um seu diálogo com um sábio e um rabi, finalizando o texto. Expressa, nos monólogos dos reis magos, o assombro de cada um deles diante da nova estrela e o pequeno conflito interior ingenuamente dramatizado, como observa Francisco Ruiz Ramón, entre la duda de la razón y el impulso del corazón 18. Assim, ao mesmo

tempo em que se dispõem a buscarem o Messias, cujo nascimento lhes estaria sendo indicado pela estrela, para o adorarem, expressam dúvidas quanto a sua divindade, propondo Baltasar que isto será provado pela preferência que mostrará diante dos presentes – ouro, incenso e mirra − que lhe oferecerão: se for Rey celestial , elegirá el incienso, que digno de él será 19.

Três séculos depois surgiria a primeira peça natalina de autoria conhecida, escrita por Gómez Manrique (1412-1490)20: a Representación del Nacimiento de

Nuestro Señor21, composta em versos de arte menor22. Destinava-se às monjas do

mosteiro das clarissas em Calabazanos23, que teriam participado da

representação. Para tal recepção, evidentemente que os temas nele desenvolvidos estariam de acordo com a ideologia franciscana.

17 Isto é, os versos de até oito sílabas métricas, pela contagem castelhana, ou a sete na contagem portuguesa, que só considera até a última sílaba tônica.

18 F. RUIZ RAMÓN. Historia del teatro español desde sus orígenes hasta mil novecentos. Madrid: Alianza Editorial, [1966], p. 25.

19 F. L. CARRETER, op. cit., p. 102.

20 Existe documentado um auto anônimo de finais do século XV, Auto de la huida a Egipto, destinado a monjas clarissas, do mosteiro de Santa Maria de Bretonera. Põe em cena um episódio da infância de Jesus, do evangelho de Mateus (2, 13-15), ao qual se acrescentam passagens apócrifas dos três ladrões arrependidos e outra cena protagonizada por João Batista. Este, junto com um peregrino que abraçará a vida eremítica, adora a Sagrada Família.

21 Gómez Manrique Compôs ainda outras pequenas peças, como um Pranto para a Semana Santa, um texto para Momos da Infanta D. Isabel dedicados ao seu irmão D. Afonso e uma Saudação das virtudes a um sobrinho de D. Gómez.

22 Embora considerando a importância do exame estilístico do ritmo, das rimas etc, não iremos nos ater a isto, por fugir ao escopo desse estudo, que se dedica à retomada dos temas, personagens e assuntos do drama litúrgico natalino por Gil Vicente, reportando-se ainda aos seus antecessores e coevos ibéricos.

23 Foi dedicada à irmã do autor, María Manrique, vicária do referido mosteiro. Cf. F. L. CARRETER,

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Inscrito na tradição do Officium pastorum, como tal, desenvolve-se a partir do episódio evangélico da conclamação dos anjos aos pastores e a ida destes ao presépio para a adoração e oferenda de presentes ao divino recém-nascido. Mas apresenta um conflito inicial, retirado dos evangelhos apócrifos, em que se demonstra a desconfiança de José, caracterizado como um labrego, diante da gravidez de Maria. Esta, representada por uma monja, se defende das acusações do marido e invoca intervenção divina para iluminar a ceguidad de José 24. Um

anjo intervém, lembrando ao desconfiado marido as palavras proféticas de Isaías: uma virgem daria à luz o Messias. E, após Maria enaltecer a Deus por tão excelsa graça, mesmo prefigurando as dores por que passaria com a imolação do seu filho – o que, aliás, constitui profecias sibilinas também documentadas por Santo Agostinho25 e retomadas por Afonso X na já citada cantiga, que adiante

comentaremos −, passa o anjo à sua função tradicional: de anunciar aos pastores o nascimento do imaculado Señor de los señores em Belém. Para a adoração no presépio comparecem também os arcanjos Gabriel, Miguel e Rafael que louvam a Maria, bem como meninos que apresentam as insígnias da Paixão – açoite, coroa de espinhos, cruz, cravos e lança. E o texto termina com o cântico das monjas, composto por cinco quadras de versos em redondilha menor26, que indicam a sua

extração popular, em que buscam afastar os dolorosos augúrios da Paixão materializados pelos meninos-atores.

Já Juan del Encina (1468/1469-1529), considerado o verdadeiro iniciador do teatro espanhol27, dedicou às comemorações natalinas três das suas quatorze

peças28, destinadas ao ambiente palaciano: uma primeira Égloga representada en la

noche de la Natividad de nuestro Salvador, uma segunda Égloga representada en la

24 GÓMEZ M., in F. L. CARRETER. Teatro Medieval. 4 ed. Madrid: Editorial Castalia, 1986, p. 108. 25 S. AGOSTINHO, op. cit., p. 336.

26 Quadras de versos de cinco sílabas pela contagem portuguesa.

27 Sua obra foi compilada primeiramente por ele próprio em um Cancionero de 1496, em Salamanca, dedicado aos duques de Alba. Posteriormente foram feitas outras recompilações, acrescidas das peças escritas após essa data, como as de 1507 e 1509, também impressas em Salamanca. Cf. estudo e textos em J. ENCINA. Teatro completo. Edición de Miguel Ángel Pérez Priego. 5 ed. Madrid: Cátedra, 2014.

28 Por ele chamadas de églogas − a maioria, dez, para circunstâncias variadas, inclusive para o Natal −, representaciones − duas, destinadas à Semana Santa − e auto − uma, o Aucto del repelón . Não cabe no momento discutir tais denominações genológicas, mas lembrar que

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mesma noche de Navidad e a Égloga de las grandes lluvias. As duas primeiras foram

representadas em 1492, no palácio, próximo à cidade de Salamanca, do segundo Duque de Alba, D. Fradique Álvarez de Toledo, primo do Rei Católico. Anos depois, em 1498, a terceira peça natalina foi representada em Salamanca, embora Encina já não se encontrasse mais a serviço do duque e de sua esposa, D. Isabel Pimentel29.

Essas peças, também escritas em versos de arte menor, via de regra heptassílabos30, partem, como a de Gómez Manrique, da tradição do Officium

Pastorum, sendo que na primeira delas, embora colocando em cena pastores com

nomes dos evangelistas Juan e Mateus, Encina afasta-se da tradição religiosa para fazer o elogio dos duques seus amos e a defesa de si próprio, de sua obra.

Na segunda égloga feita para o Natal, esses personagens, aos quais são acrescentados Lucas e Marco, cujos nomes são também os dos evangelistas, assumem o papel doutrinador condizente com os seus nomes. Assim, arrazoam sobre os mistérios da Concepção e da Encarnação, principalmente através de Lucas, de quem são os discursos poéticos mais longos sobre esse tema. Mateo enfatiza o suave jugo do Redentor, Juan a sua sucessão por Pedro no pastoreio religioso e Marco o papel de João Batista na preparação do caminho para o Messias. Passam, ainda, alguns ensinamentos aos cristãos, como o de Juan quanto ao condenável consumo abusivo de carnes na alimentação31; ou de práticas

recomendáveis como, através do discurso de Lucas, a da humildade diante do Senhor: Muy humildes le seamos, / que si bien nos umillamos, / bien ensalçados

seremos 32; e também da pobreza: en su muy pobre nacencia / a ser pobres nos

aveza 33.

Vale destacar o singelo e extenso villancico que finaliza a representação, cujos versos heptassílabos são entremeados de versos mais curtos que fazem eco às rimas anteriores: Gran gasajo siento yo / ¡Huy ho! / Yo también, soncas, ¿qué

29. Cf., a propósito, estudo introdutório de Pérez Priego em J. ENCINA, op. cit, p. 24-25. 30 Pela contagem portuguesa, que estamos seguindo.

31 J. ENCINA, op. cit., p. 112. 32 IDEM, ibidem, p. 111. 33 IDEM, ibidem, p. 113.

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há? / ¡Huy, ha!34. O mesmo acontece no refrão: Pues Aquel que nos crió / por

salvarnos nació ya. / ¡Huy, ha! ¡Huy ho! / Que aquesta noche nació35. Nele se retoma

o episódio do nascimento do Salvador em Belém anunciado pela estrela de Jacó, bem como o tema da virgindade de Maria antes e após o parto e sua beleza incomparável, traduzida para o universo pastoril e seus valores: Una virgen de

quinze años, / morenica, de tal gala / que tan chapada zagala / no se halla en mil rebaños 36. Aí se indica ainda que os pastores partam para Belém à busca do

Redentor, de dos en dos 37.

Já na sua terceira égloga para o Natal − composta igualmente em versos heptassílabos, entremeados de quebrados de três sílabas38 −, intitulada Égloga de

las grandes lluvias, de 1498, Encina põe em cena quatro pastores: Juan, Miguellejo,

Rodrigacho e Antón. Estes discorrem sobre a grande e destruidora tormenta que ocorreu na região à época, bem como sobre a morte de um sacristão da catedral salmantina, que aliás deixara vago o posto de cantor pretendido mas não alcançado por Encina. Só ao final da peça, após os jogos pastoris, aparece um Anjo que lhes anuncia o nascimento do Salvador, partindo eles então para a adoração do presépio em Belém, com os presentes que cada um pode oferecer ao recém-nado.

Lucas Fernández (c. 1474-1542), procedente de família ligada ao mundo da música e nomeado em 1499 para o posto almejado por Encina, de cantor da catedral de Salamanca, é autor de seis peças, dentre elas duas églogas natalinas39. E

desde o título de suas peças − églogas ao modo y estilo pastoril y castellano 40– já

indica o magistério do seu coevo salmantino, que, se não foi o primeiro a colocar

34 IDEM, ibidem, p. 114. 35 IDEM, ibidem, p. 116. 36 IDEM, ibidem, p. 115. 37 IDEM, ibidem, p. 116.

38Com alguma exceção de oito sílabas, como do verso poco cuidado, se nos pega na edição por nós utilizada, p. , que na execução poderia talvez apresentar a síncope da última sílaba de cuidado , como nos sugere o ritmo.

39 As outras são um Auto de la Pasión e três farsas.

40 Suas obras foram reunidas e impressas pela primeira vez em 1514, em Salamanca, sob o título

Farsas y églogas al modo y estilo pastoril y castellano [...]. Usamos a seguinte edição: L. FERNÁNDEZ. Farsas y églogas. II. Sacras. Edición de Juan Miguel Valero Moreno. Salamanca: Ediciones

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pastores em cena, deu-lhes o destaque e as características que redundaram na afirmação mesma de um estilo pastoril .

Como na terceira e mais famosa égloga de Encina, faz anteceder o episódio do Nascimento de uma cena profana e contemporânea em suas duas peças. Assim, na primeira delas os pastores Gil e Bonifácio discutem e se vangloriam de suas qualidades, posses e linhagem, fazendo lembrar as tenções do Trovadorismo, em que cada contendor busca para si a superioridade. A eles se junta um ermitão, Macário, de habla mesurada 41, que fala das profecias bíblicas sobre a Encarnação.

Por último, entra em cena o pastor Marcelo, que lhes dá a Boa Nova do nascimento do Messias anunciada por um anjo e discorre sobre aspectos doutrinários e dogmas42− aliás, o conceptualismo teológico é considerado uma marca das peças

de Fernández. Após louvar a beleza, luminosidade e pureza de Maria, partem todos para a adoração do presépio em Belém, terminando a peça com um villancico, que resume o mistério da Encarnação redentora a partir do mote litúrgico, em latim, retomado na estrofe inicial: Verbum caro factum est / alleluya, / et habitauit in

nobis / alleluya, alleluya 43.

O mesmo recurso, de começar a peça com um tom de discórdia, se apresenta na segunda égloga de Fernández, como a primeira também vasada em versos de arte menor44. Inicia-se com a conversa entre os pastores Llorente e

Pascual sobre o mal tempo, o frio descomunal, após este conseguir acordar com muito custo àquele. Mas, em meio às reclamações, observam que a natureza se apresenta estranhamente em festa45 e, após jogarem para se distraírem, aparece o

pastor Juan, que lhes anuncia o nascimento do Salvador, a concretização das profecias bíblicas. Então, juntos com outro pastor que aparece ao final, Pedro Picado, partem para Belém com presentes, exaltando Maria, a flor de las flores , a

41 IDEM, ibidem, p. 40.

42 Como os mistérios da Encarnação e da virgindade de Maria, bem como sobre a lei da Graça que substituiu as da Natureza e da Escritura, o dogma da Trindade e a genealogia do Messias.

43 IDEM, ibidem, p. 53.

44Via de regra em heptassílabos, pela portuguesa que estamos seguindo, entremeados de verso mais curtos. São raras as exceções, como os versos ¿Rezáis em esse calendario? e y toma a mano, y deja a mano IDEM, ibidem, p. 40 e 66), que extrapolam os pressupostos da arte menor.

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clara luz , a fuente viva 46. Dois villancicos47, para serem cantados e bailados

como se indica, resumem o acontecimento e a adoração no presépio.

Estas teriam sido as principais precedências ou concomitâncias, da dramaturgia natalina feita e representada na Península Ibérica, ao considerado

criador do teatro português, Gil Vicente48. Três autos natalinos De Gil Vicente

Garcia de Resende (c. 1470- − poeta, cronista e organizador das festas palacianas ao tempo de Gil Vicente − coligiu algumas peças dramáticas no

Cancioneiro Geral49, como por exemplo as obras de Henrique da Mota, em uma das

quais o próprio Gil Vicente aparece como personagem ou colaborador50. Mas o

próprio Resende, nos sempre lembrados versos da Miscelânea, crônica rimada da época, a este atribuiu o papel de inventor do teatro em Portugal: Ele foi o que inventou / isto cá, e o usou / com mais graça e mais doutrina, / posto que Juan del Encina / o pastoril começou 51.

De Gil Vicente, as datas e locais de nascimento − à roda de , possivelmente em Guimarães − e morte − em ou após − são imprecisas, como se sabe. O certo é que pertenceu à geração de D. João II e abrilhantou com seus autos a corte de D. Manuel, sob a proteção da Rainha Velha, D. Leonor − irmã de D. Manuel e viúva de D. João II −, estendendo ainda a sua atividade à corte de D. João

46 IDEM, ibidem, p. 76.

47Composição de origem popular, correspondente ao vilancete português. O primeiro deles segue a métrica heptassilábica, e o segundo a pentassílaba.

48 Ainda da cena ibérica coeva podem ser citados outros autores com: Pedro Manuel de Urrea (1486-1529), aragonês de possível ascendência judaica que, entre outras, compôs uma égloga dramática Sobre el nacimiento de Nuestro Salvador Jesu Christo; e Torres Naharro (c. 1475-1530), que viveu e escreveu na Itália, nas cortes de Roma e Nápoles, portanto em contato com a herança da comédia clássica, autor de um Diálogo de Nacimiento com clara influência da escola salmantina de Encina e Fernández. Cf., a propósito, RUIZ RAMON, op. cit., p. 73. Por hora, acreditamos ser suficiente a amostragem feita, dos antecedentes ou coevos ibéricos ao dramaturgo português na produção de autos natalinos.

49 Cf. G. RESENDE. Cancioneiro Geral. 5 volumes. Fixação do texto e estudo de Aída Fernanda Dias. Lisboa: IN-CM, 1990.

50 Cf., a propósito, Obras de Henrique da Mota. Apresentação e estudo de N. T. MILLER. Lisboa: Sá da Costa, 1982, p. 442-443. Aí, em O processo de Vasco Abul, Gil Vicente atua como parecerista diante da Rainha D. Leonor.

51 G. RESENDE, Crónica de D. João II e Miscelânea. Reimpressão fac-similada da nova edição conforme a de 1798. Prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão. Lisboa: IN-CM, 1973, p. 363.

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III52. Assistiu, pois, à formação e apogeu do império português no além-mar, bem

como ao início do seu declínio, tendo como principal mecenas a franciscana rainha53.

Sabe-se que a sua extensa obra, perto de cinquenta peças representadas entre os anos de 1502 e 153654, foi compilada com algumas imprecisões pelos seus

filhos Luís e Paula Vicente, e somente publicada, postumamente, em − à exceção de algumas peças divulgadas em folhas volantes pelo autor. Nessa coletânea os autos de devoção 55 ocupam lugar de destaque, sendo em sua

maioria destinados ao Natal. Assim, dos dezesseis autos devocionais vicentinos, nove incluíram-se indubitavelmente nos festejos natalinos: Autos Pastoril

Castelhano (1502), dos Reis Magos (1503), da Fé (1510?), dos Quatro Tempos

(1511?), da Sibila Cassandra (1513?), do Purgatório (1518), Pastoril Português (1523), da Feira (1527) e da Mofina Mendes (1534)56. São, portanto, nove autos,

escritos, afora alguns trechos alatinados, em castelhano57 os primeiros e em

português os quatro últimos, sendo bilíngue o da Fé. Gil Vicente escreveu, também relativamente ao Natal, uma farsa de folgar que trata como um Clérigo da Beira béspora de Natal determinou de ir aos coelhos, e indo pera a caça com um filho seu

52 Como se sabe, foi não apenas autor de peças teatrais, mas ator, ensaiador, músico, talvez cenógrafo e organizador das festas públicas e palacianas. Também tem sido identificado como ourives, autor da famosa Custódia de Belém, Mestre da Balança, representante da Casa dos 24 na Câmara de Lisboa, e, ainda, como mestre de retórica de D. Manuel e como alfaiate. Tais atribuições são questionáveis, até pelo caráter popular do seu nome, designativo também de um carpinteiro do século XV, dentre outros. Estudamos estas e outras questões vicentinas em M. A. T. MALEVAL, Gil Vicente, In MOISÉS, Masaud (Dir.). A literatura portuguesa em perspectiva. Trovadorismo. Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992, p. 170-190.

53 A ideologia franciscana, que prepondera no teatro devocional vicentino, estendendo-se também aos episódios cômicos neles por vezes inseridos e a outras peças de temas profanos, se explica até por ser a orientadora de sua principal mecenas. O autor, inclusive, dialoga com tratados de edificação da sua época, como vimos em M. A. T. MALEVAL, Revisitando o Boosco Deleitoso na companhia de Gil Vicente, Colóquio Letras, n. 182, janeiro-março de 2013, p. 9-20.

54 Sua obra compõe-se de autos e mais de uma dezena de obras miúdas , dentre as quais o

Pranto de Maria Parda, o Sermão de Abrantes, a Carta a D. João II, romances, trovas, seu Epitáfio etc.

55Gil Vicente dividira suas peças em comédias , moralidades e farsas , divisão que não foi seguida pelos seus filhos, que as reuniram sob as rubricas autos de devoção , farsas , comédias e

tragicomédias . Tais classificações têm sido questionadas no correr dos séculos.

56 Com respeito à cronologia dos autos, consulte-se, dentre outros, A. J. SARAIVA. Gil Vicente e o fim

do teatro medieval. Lisboa: Europa-América, 1970, p. 89-100.

57 O uso do castelhano pode ser explicado pelo contexto cortesão de suas representações, em que eram espanholas as mulheres do rei D. Manuel, sucessivamente viúvo de rainhas de origem castelhana, muito mais que pela influência dos dramaturgos espanhóis.

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rezam as matinas etc.58 Representada a D. João III em 1526, afasta-se dos citados

autos de devoção já desde o espaço em que estes foram encenados: em capelas e outros locais considerados sagrados. Da mesma forma que essa farsa, o Auto da

festa, ausente das primeiras compilações vicentinas, possivelmente se inscreveria

em festejos natalinos profanos à volta de 152059.

Escolhemos os três primeiros autos que aparecem na Copilaçam60 para

observar-lhes as particularidades na retomada dos temas litúrgicos da tradição medieval: Pastoril Castelhano, Reis Magos e Sibila Cassandra. Feitos a pedido da franciscana Rainha Velha D. Leonor e representados em capelas ou congêneres61

no âmbito da corte de D. Manuel, seu irmão, abrangem não apenas a tradição do

Officium pastorum, como também a do Ordo Stellae e a do Ordo Prophetarum,

incluindo-se, nesta, o Canto da Sibila. Este já seria um dado suficiente para demonstrar a riqueza de temas do teatro vicentino devocional, que extrapola os explorados pelos seus predecessores e coevos.

O Auto Pastoril Castelhano atualiza a tradição do Officium pastorum, também desenvolvida, como vimos, por Gómez Manrique, Juan del Encina e Lucas Fernández, dentre outros. É inegável que os aspectos formais utilizados por esses autores espanhóis são aproveitados por Gil Vicente − por exemplo a composição da peça em versos de arte menor62, a utilização de música e de cânticos de extração

58 VICENTE, 2002, vol. II, p. 35.

59 Esse auto se documentou em folha volante, pertença da biblioteca do conde de Sabugosa. Cf., dentre outros, J. CAMÕES. Festa. Lisboa: Quimera, 1992, p. 3-4.

60 Para a ordenação dos autos a partir da Copilação de 1562, podem ser consultadas as edições da obra vicentina, como as editadas por J. Camões (G. VICENTE. As obras de Gil Vicente. 5 vols., p. 23-74) ou M. L. C. Buescu (G. VICENTE. Copilaçam de todalas obras. Lisboa: IN – CM, 2 vols., 1984, vol. I, p. 23-71).

61 Por exemplo, o último deles foi encenado no mosteiro de Xabregas ou da Madre de Deus, cuja igreja não estaria concluída antes de 1509, como indica A. B. FREIRE. Vida e obras de Gil Vicente

Trovador, Mestre de Balança . Lisboa: Ocidente, 1944, p. 155. Isto indica uma época mais tardia

para a representação do auto, possivelmente 1513, data da expedição a Azamor, à qual poderia estar se referindo o vilancete final como acredita I. S. RÉVAH. L Auto de La Sybylle Cassandre de Gil Vicente, Hispanic Review, vol. XXVII, 1959, p. 192. Cf., ainda, a propósito: M. V. MENDES. Cassandra. Lisboa, Quimera, 1992, p. 3.

62 Em geral, como os espanhóis, utiliza-se, pela contagem portuguesa, de versos de sete sílabas, entremeados de versos de três ou quatro sílabas; algumas poucas exceções de oito sílabas podem ser observadas. Cf. VICENTE, op. cit., p. 26 e 38.

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popular como o villancico ou vilancete – neste auto uma chançoneta 63− e até

mesmo o uso da língua castelhana e do saiaguês. Isto não significa que, mesmo em relação aos elementos musicais e de versificação, o dramaturgo português não tenha conseguido inovar, mas não temos espaço para nos ater a esses aspectos por agora.

Também como os dramaturgos espanhóis, Vicente lançou mão de alguns elementos correntes na retórica religiosa, inclusive o destaque à genealogia; e, ainda, práticas costumeiras no universo pastoril, como os jogos. Mas vemos que, mesmo nessa peça em que desde o título o dramaturgo português indica a ascendência castelhana, dado ser um Pastoril Castelhano, há um aprofundamento em certas questões, como a da precariedade dos gozos e bens materiais, de orientação neoplatônica, abraçada por S. Agostinho e pelos franciscanos64,

mentores constantes na obra vicentina.

Assim, nesse auto, a fala inicial não é a da discórdia entre pastores por cuidados materiais, via de regra presentes nos autos dos autores que comentamos, mas a do pastor Gil, inclinado à vida contemplativa 65, esperançoso em melhores

tempos, que canta para afastar o pesar66 e que se contrapõe a Brás pela sua

espiritualidade. Nenhuma pastora lhe é mais bela do que as visões celestiais apreendidas por meio da contemplação. E demonstra que riqueza e poder são passageiros, dando o exemplo de Juan Domado − isto é, D. João II, que como sabemos foi o mais poderoso rei de Portugal, o Zambem-Apongo ou Senhor do Mundo para alguns povos africanos conquistados67, cujas iniciativas foram fulcrais

para a formação do império português de além-mar, que se completou no reinado

63 Composta, como o texto, por versos heptassílabos que desenvolvem em uma estrofe o mote inicial, retomado como refrão. Cf. VICENTE, op. cit., p. 34-35.

64 Cf., a propósito, M. DELGADO MORALES. Gil Vicente y Juan del Encina: cara y cruz del neoplatonismo. In: M. J. BRILHANTE, J. CAMÕES, H. R. SILVA, C. A. RIBEIRO (Orgs.). Gil Vicente 500

anos depois. Actas do Congresso Internacional realizado pelo Centro de Estudos de Teatro da

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: IN-CM, 2003, Vol II, p. 31-43. Esse estudo insere a religiosidade vicentina no neoplatonismo veiculado na Europa principalmente através de S. Agostinho, do Pseudo-Dionísio, do pensamento ibero-judaico e dos franciscanos.

65 G. VICENTE, op. cit., 2002, p. 23. 66 IDEM, ibidem, p. 23.

67 Cf., a propósito, estudo de minha autoria: M. A. T. MALEVAL. A construção da imagem de Príncipe

Perfeito: D. João II . In: ____. Rastros de Eva no imaginário ibérico. Santiago de Compostela:

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de seu cunhado e sucessor D. Manuel. Quanto a Brás, argumenta a favor do carpem

die diante da fugacidade da vida, não conseguindo, no entanto, desvirtuar Gil da

sua opção pela vida solitária e contemplativa68.

Outros pastores se juntam a estes primeiros, desenvolvendo conversas, inclusive sobre genealogias, e jogos costumeiros. Mas vale observar que dois deles possuem nomes bíblicos, dos evangelistas que escreveram sobre o nascimento de Jesus – Lucas e Mateus −, e um se chama Silvestre. Nesta nomeação de pastores já poderíamos ver indicado o significado do Natal: a substituição das Leis da Natureza e da Escritura pela Lei da Graça. Quanto a Gil, homônimo do autor, é quem ouve a Boa Nova enunciada melodiosamente pelo Anjo e conclama os companheiros para a adoração da Virgem-Mãe e seu Divino Filho no presépio com os presentes que pudessem levar, acentuando a humildade do rey de los señores 69 em se fazer anunciar a pastores.

A cena do presépio se alonga, com tangeres e bailos 70 na despedida,

seguidos de diálogos em que se enaltece a Maria, sua beleza e pureza, observando Silvestre que apenas ela foi mujer y estrella e reportando-se, o pastor Gil, aos cantares de Salomão e a vários profetas bíblicos que prenunciaram o acontecimento. E, diante dos elogios dos companheiros pelo conhecimento das Escrituras que demonstra possuir, conclui: Dios hace estas maravilhas 71,

indicando, agostinianamente, ser o seu saber procedente da Graça, visto ser um serrano sem instrução. Com novos cânticos, o auto se encerra. Mas deixa-nos a impressão não apenas do humilde e singelo nascimento do Salvador, como também da humildade e religiosidade do autor, ao qual somos levados pelo seu personagem homônimo, Gil, que se afasta diametralmente de Juan del Encina, ao utilizar-se este da sua primeira égloga representada no Natal, encomiasta dos duques seus amos, para valorizar-se a si e a sua obra, y porque no se pensassen

68Este assegura que, sem querer mal aos companheiros, aprisca mejor / apartado en la montaña , sem distrações que o façam descurar-se do rebanho que tem a sua guarda (G. VICENTE, op. cit., 2002, p. 26).

69 IDEM, ibidem, p. 32. 70 IDEM, ibidem, p. 34. 71 IDEM, ibidem, p. 37.

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que toda su obra era pastoril, según algunos dezían, mas antes conociessen que a más se estendia su saber , como afirma na rubrica inicial da peça72.

Poder-se-ia argumentar que também o dramaturgo português, em seu primeiro auto, da Visitação73, procedeu ao panegírico dos seus senhores. De fato,

isto não poderia deixar de ser feito, dado que o auto se destinava a saudar o nascimento do futuro D. João III diante da sua mãe D. Maria, de D. Manuel, seu pai, da duquesa de Bragança, sua avó, etc. Ocorre que Gil Vicente, enaltecendo o príncipe recém-nado e sua árvore genealógica, não aproveitou a ocasião para se auto-elogiar. Mas a Rainha-Velha, admirada com essa representação, pediu-lhe que a repetisse nas matinas do Natal para saudar outro nascimento, o do Redentor; e então Gil Vicente, porque a substância era mui desviada 74, fez ao invés disto o

auto Pastoril Castelhano, que acabamos de comentar.

Novamente a Rainha D. Leonor gostou tanto da peça vicentina, tida como pobre cousa pelo autor, como atesta a rubrica do auto seguinte75, que lhe

solicitou fizesse outra para o dia dos Reis, na Epifania, daí a 13 dias. Nesse pouco tempo foi feito Reis Magos76, também em versos via de regra heptassílabos com

quebrados de três ou quatro sílabas77.

Inicia-se com um pastor, de nome Gregório, que, abandonado seu gado – isto é, os bens materiais −, busca, desnorteado com a Boa Nova, o caminho de Belém para visitar o Redentor há treze dias nascido. Em seguida aparecem outro pastor, Valério, e um ermitão por este encontrado no deserto, padre fray Alberto 78, que,

diante da situação, enuncia versos de louvação ao Senhor, nascido da Virgem flor de las flores , que quis por pobres labradores / y pastores ser oferecido / adorado y conocido / y servido / con cantares y loores 79.

Através do diálogo prosaico entre esse frade e os pastores, que o interrogam sobre o que seria ou não pecado em suas ações costumeiras, é estabelecida uma

72 J. ENCINA, op. cit, p. 97. 73 G. VICENTE, op. cit., p. 17-21. 74 IDEM, ibidem, p. 38.

75 IDEM, ibidem, p. 39. 76 IDEM, ibidem, p. 39-50.

77 Com algumas exceções de oito sílabas. Cf. G. VICENTE, op. cit., p. 41, 46 e 49. 78 IDEM, ibidem, p. 41.

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reflexão sobre a definição dos pecados, aliás uma das preocupações dos Guias de costumes ou catecismos da época. Uma dessas ações seria cortejar as jovens pastoras, considerada pelos rústicos como algo natural. Então o ermitão contrapõe-lhes a mesma lição neoplatônica entrevista no auto anterior, da imperfeição do mundo sensível: Este mundo peligroso / sin reposo / nos trae a todos burlados / ciegos mal aconsejados / desviados / daquel reino glorioso 80. Na

sequência, aponta para a lição de pobreza e humildade que se pode retirar da contemplação do nascimento de Jesus: Cuán contento / lo verá desnudo echado / de los frios trespassado / y adorado / de los brutos animales 81. No entanto, o

pastor Valério contra-argumenta, como na refutatio da retórica clássica, a partir da pergunta sofística que retoma a questão do amor pelas belas donzelas: Creó Dios por la ventura / hermosura / para nunca ser amada? 82.

Um novo personagem entra em cena, atraindo o foco da atenção para outro ponto: um cavaleiro, recebido com grosseira descortesia pelos pastores83.

Indagado sobre sua origem, diz ter vindo da Arábia na companhia de una gran caballería / que venia / a tino trás duna estrella 84, com a finalidade de os três reis

adorarem o señor de todas greis 85 recém-nascido. Estamos, pois, diante da

tradição do Ordo Stellae, rememorando o cavaleiro e o ermitão as várias profecias – de Balão, Isaías e David − segundo as quais reis de Tarsis y Sabá / y de Arabia verná / con humildad / muy gran compaña sin cuenta 86 adorar o Deus Menino,

trazendo-lhe presentes – ouro, incenso e mirra. Diante disto, Gregório se arrepende das ofensas feitas ao cavaleiro, que o perdoa87.

A presença dos três reis magos é indicada pela rubrica, que os apresenta cantando um delicado vilancete88− que exalta o nascimento do Redentor, nascido

80 IDEM, ibidem, p. 45. 81 Loc. cit.

82 Loc. cit.

83 Opõe-se-lhes o ermitão, para quem Toda la descortesia / es villania G. VICENTE, op. cit, p. 47). 84 IDEM, ibidem, p. 48.

85 Loc. cit.

86 IDEM, ibidem, p. 49.

87 Na Espanha, como vimos, essa tradição foi retomada no auto anônimo já referido, mas não pelos autores que muitos consideram modelos para Gil Vicente.

88 Composição de origem popular composta, como o villancico, de uma estrofe (mote ou cabeça) em geral de três versos, a partir da qual se desenvolvem as estrofes seguintes (voltas ou pés ou glosas),

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da virgem bendita −, e oferecendo os seus presentes. Após isto, todos alegremente cantando se vão, sendo que o autor se justifica pela brevidade da representação porque nam houve espaço pera mais 89. Isto, é, em menos de treze

dias compôs essa bela peça, na qual a humildade, virtude tão apregoada pelos franciscanos, apresenta-se como a grande lição, ao lado da compreensão da precariedade e imperfeição do mundo material. Diante do Deus-Menino, tão pobremente nascido, e da sua Virgem-Mãe, devem se ajoelhar os pobres e os poderosos deste mundo.

Mas em nenhuma dessas três primeiras peças da Copilaçam a distância entre o dramaturgo português e seus predecessores ou coevos ibéricos se faz tão grande como no Auto da Sibila Cassandra. Também composto em versos de arte menor90 e

embora colocando em cena sibilas e personagens bíblicos travestidos de pastores, como já assinalara Margarida Vieira Mendes91 os seus pastores nada têm de

rústicos. Principalmente Cassandra, que inicia o auto defendendo o seu direito de recusa ao casamento, argumentando com os sofrimentos que a vida conjugal reserva à mulher − desde os maus tratos e traições ou indiferença dos maridos às dores do parto e ao incômodo choro das crianças que tem de suportar.

Fiel aos princípios que defende, rejeita Salomão, um bom partido , como tal considerado pelo senso comum. Aliás, o nome desse seu pretendente remete ao bíblico personagem Salomão que, além de sábio e poderoso, compusera cânticos em louvor da beleza incomparável da simbólica Amada. E o nome de Cassandra, a sua homônima da mitologia greco-romana, que se negara a unir-se a Apolo, o qual lhe dera o dom da profecia mas que, com a sua recusa de unir-se a ele, retirou-lhe o dom da persuasão, fazendo com que ficasse desacreditada para sempre92. A

Cassandra vicentina também não persuade nem convence ninguém das suas idéias anti-matrimoniais e descamba para a arrogância, considerando-se superior a todos

de número variável, geralmente de cinco a oito versos, via de regra heptassílabos. No caso, apresenta apenas uma volta e versos de sete e três sílabas.

89 VICENTE, op. cit., p. 50.

90 Na maioria de sete e três ou quatro sílabas, com poucas exceções de oito sílabas, que podem ser conferidas em VICENTE, op. cit., p. 59, 61, 68, 69, 71e 72.

91 Op. cit., p. 13.

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os pretendentes e chegando ao cúmulo de identificar-se com a Virgem que daria à luz o Redentor, como anunciaram várias profecias.

O auto é de uma riqueza extraordinária. Aos poucos, os personagens − as tias e tios de Cassandra, trazidos pelo seu pretendente Salomão para tentar demovê-la da sua recusa − vão assumindo o papel de profetas, bíblicos e pagãos, indiciado pelos seus nomes: Erutea, Peresica e Ciméria, Isaías, Moisém e Abraão. Na impossibilidade de explorar-lhes por agora as falas com a atenção que merecem, destacamos o modo particular como o auto vicentino retoma e reapresenta a profecia da sibila Eritréia sobre o Juízo Final, documentada por Santo Agostinho em A cidade de Deus. Não sem antes destacar a conclusão, enunciada por Isaías, sobre a pretensão de Cassandra em ser a Virgem; a ela se dirigindo, sentencia: Tú eres della al revés / si bien vês / porque tu eres humosa / soberbia y presumptuosa [...] 93. Portanto, na condenação desses vícios, novo elogio da

humildade, virtude franciscana por excelência94.

Antes de Gil Vicente, desconheço a existência de outro dramaturgo ibérico que tenha encenado em língua-romance o Canto da Sibila, prenunciador do final dos tempos e que como vimos se apresentava no Natal separadamente ou associado ao Ordo Prophetarum – isto é, o desfile dos profetas que auguraram a vinda do Messias. Sei que existe, sim, uma cantiga mariana de Afonso X, que no século XIII retoma essa tradição para conclamar Maria a assumir o papel de advogada dos seus fiéis no Juízo Final.

Santo Agostinho nos apresenta o Iudici Signum augurado pela sibila Eritréia, não sem antes justificar que de fato a sibila Eritréia havia escrito algumas coisas muito claras acerca de Cristo 95, sendo que ele próprio lera alguns versos em latim,

segundo sua avaliação mal traduzidos do grego , dessa profetiza pagã.

93 G. VICENTE, op. cit, p. 66. Também no Auto dos Mistérios da Virgem ou da Mofina Mendes existe uma personagem que é Maria ao revés : a tresloucada e descuidada pastora Mofina, que, no entanto, ao final se aproxima de Maria na condenação ao humano deleite . Cf. VICENTE, op. cit., p. 126.

94 No Elogio das Virtudes, S. Francisco, enaltece a simplicidade (irmã da sabedoria), a humildade (irmã da pobreza), bem como a obediência, irmã da caridade. . Cf. FRANCISCO DE ASSIS. Escritos (seguidos de biografias, crónicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano), Petrópolis: Vozes, 1988, p. 166.

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Conversando sobre Cristo com o exímio procônsul Flaciano, homem de palavra fácil e de muito saber , este lhe mostrara um códice grego, com os poemas da sibila Eritréia, que teria sido contemporânea da guerra entre a Grécia e Troia ocorrida por volta de 1250 a. C.96. Nesse texto, em determinadas passagens as letras iniciais

dos versos compunham, por ordem, as seguintes palavras: Iesoús Khreistós Theoú

Hyiós Sotér, quer dizer, Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador 97.

Passemos à trancrição da profecia sibilina do fim do mundo:

A Terra cobrir-se-á de suor frio. Será o sinal do juízo. O Rei imortal dos séculos baixará do céu e apresentar-se-á em carne para julgar a terra. E, quando o mundo decline para seu ocaso, o fiel e o infiel verão a Deus, acompanhado de seus santos. As almas apresentar-se-ão ao juiz com os respectivos corpos e na terra já não haverá beleza nem verdura. Os homens deixarão os ídolos e as riquezas. O fogo abrasará as terras e, ganhando céu e mar, quebrará as portas do sombrio Averno. Já libertos da |carne, os corpos dos santos gozarão da luz e os pecadores serão abrasados por eterna chama. Então, revelando seus atos ocultos, cada qual descobrirá os próprios segredos e Deus fará luz nos corações. Tudo então será choro e ranger de dentes. O Sol escurecerá e o coro dos astros perderá o tom. Girará o céu e a Lua apagar-se-á como lâmpada; abater-se-ão as colinas, altear-se-ão os vales e nas coisas humanas não haverá culminâncias nem alturas. Os montes nivelarão com os campos e o mar será inavegável. A Terra far-se-á em pedaços, as fontes e os rios serão torrados ao fogo. Mas no alto soará então o triste som da trombeta e tudo se cobrirá de gritos e de pranto. Abrir-se-á a Terra e deixará ver seu profundo e caótico abismo. Perante o tribunal do Senhor comparecerão os reis e os céus verterão torrentes de fogo e de enxofre98.

O bispo de Hipona refere-se ainda a outras profecias de sibilas sobre o Messias, com base em Lactâncio. Reunindo os testemunhos dispersos em sua obra, nos apresenta um texto sobre a não acolhida do Cristo pelos judeus, sua Paixão, morte e ressurreição:

Virá, diz a sibila, às mãos iníquas dos infiéis, darão, com as mãos sacrílegas, bofetadas em Deus e com a boca impura cuspir-lhe-ão no

96 Cf. LARROUSSE Cultuarl (Enciclopédia), São Paulo, Nova Cultural, 1998, p. 5771.

97 AGOSTINHO, op. cit, p. 337. Acrescenta o bispo de Hipona que as letras iniciais desses termos gregos unidas compõem Ikhthys, que significa Peixe: Esse nome místico simboliza Cristo, porque apenas Ele foi capaz de viver vivo, quer dizer, sem pecado, no abismo de nossa mortalidade, semelhante às profundezas do mar . E, como se sabe, o desenho de um peixe se tornou símbolo do cristianismo nos primórdios da seita.

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rosto. E Ele entregará aos golpes, sem resistência, as costas inocentes. Ao ser esbofeteado, silenciará, a fim de ninguém saber que ele é o Verbo ou donde vem, para falar aos infernos e ser coroado de espinhos. Deram-lhe fel para comer e, contra a sede, vinagre. E tu, néscia, não reconheceste teu Deus sob o disfarce com que se apresentou aos mortais, mas coroaste-o de espinhos e deste-lhe a beber amargo fel. Rasgar-se-á o véu do templo e ao meio-dia escura noite cobrirá a terra inteira durante três horas. Morrerá, é certo, dormirá três dias e então, surgindo do sepulcro, volverá à luz. E mostrará aos eleitos as primícias da ressurreição.99

O texto sobre o final dos tempos e a segunda vinda de Cristo ganharia destaque nas matinas de Natal no medievo, lembrando aos assistentes, no momento de comemoração do nascimento do Messias, a necessidade de terem uma vida santificada para o alcance da salvação. Na Península Ibérica, além de indicado em calendário de comemorações litúrgicas de 1356 a 1360 da Catedral de Gerona100 e da Catedral de Maiorca no século XV101, foi documentado em um

breviário da catedral de Santiago de Compostela, impresso em 1497, e em Lisboa como sermão contra os judeus, atribuído a Santo Agostinho − Sermo Sancti

Augustin episcope contra iudeos102.

Inicia-se pelo tropo Inter pressuras atque angustias... , indicativo do momento maior de sofrimentos e angústias. Segue-lhe um Responsório, que incita todos a ouvirem a profecia da Sibila: Audite quid dixerit [Sibilla] 103. Então

inicia-se o canto sibilino por um verso que inicia-servirá de estribilho a todos os treze dísticos que o compõem, frisando o sinal do Juízo – a terra se cobrirá de suor: Iudicii

signum: tellus sudore madescet .

O primeiro dístico fala da Parúsia, do rei que virá do céu, apresentando-se em carne mortal para julgar o mundo:

99 IDEM, ibidem, loc. cit.

100 No qual o Ordo Prophetarum seria pela primeira vez citado em documentos hispânicos, segundo E. CASTRO, op. cit., p. 287.

101 E. CASTRO, loc. cit., destaca a detalhada forma com que esse documento registra vários modos de interpretação do sermão, sendo que na mais espetaculosa delas Santo Agostinho se apresentava como personagem.

102 Essa versão procedente de Santiago de Compostela, antologiada por E. CASTRO, op. cit, p.288-293, com base na publicação de Lisboa já referida, continua atribuindo a peça-sermão a Santo Agostinho, e não a Quoduuldeus.

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E celo rex adueniet per secula futurus, Scilicet in carne praesens, ut iudicet orbem. Pr.104: Iudicii [signum: tellus sudore madescet]105.

E os demais falam do julgamento, das recompensas aos justos e das penas implacáveis aos pecadores em meio a sofrimentos extremos e ao pavoroso extertor da terra.

Tem essa peça, portanto, o mesmo teor do texto agostiniano que transcrevemos, sendo, pois, dele uma versão. E a sua composição, em estrofes de dois versos mais refrão, indica que a sua interpretação se fazia da forma costumeira, responsorial, entre solistas e coro ou entre dois semicoros.

A cantiga de Afonso X, não referida por Eva Castro, é uma sua variante em vernáculo do século XIII, apresentando análoga estrutura – dísticos seguidos de refrão − mas acrescentando-lhe um sentido novo: a possibilidade da intermediação de Santa Maria, decorrente da sua condição de mãe de Deus, para a salvação dos fiéis. Mais ainda: na cantiga são unidas as duas profecias sibilinas documentadas por S. Agostinho e por nós transcritas anteriormente − a do Juízo por vir e a que já se concretizou, do martírio de Jesus Cristo nas mãos dos seus algozes.

Afonso X (1221-1284), como se sabe, foi rei de Leão e Castela a partir de 1252. Seu reinado foi marcado por grande instabilidade política, mas que não o impediu de promover fecundamente o saber e a cultura em várias vertentes, daí o cognome Sábio que lhe foi imputado. Dentre as muitas obras de sua lavra ou feitas a seu mando − poéticas, legislativas etc. −, destaca-se o monumental cancioneiro das Cantigas de Santa Maria106. Ricamente iluminado e com notações musicais,

encontráveis em pelo menos dois dos quatro manuscritos existentes, é composto por um conjunto de cantigas que, descontadas sete repetições internas, se reduzem a , na minuciosa observação de Ângela Vaz Leão107. São cantigas de

louvor e milagres de Santa Maria, a que se acrescentam, no final do cancioneiro,

104 Abreviatura de pressa, repetição, que indica o incipit do estribilho. 105 E. CASTRO, op. cit., p. 288.

106 Este cancioneiro mariano é de longe a maior e mais rica coleção produzida nos vernáculos românicos da Idade Média sobre esse tema (A. V. LEÃO, Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o

Sábio. Aspectos culturais e literários, São Paulo: Linear; Belo Horizonte, Veredas & Cenários, 2007, p.

21).

(23)

154

cantigas de festas marianas e outras do calendário cristão. Dentre estas cantigas comemorativas, se encontra a já aludida versão do Canto da Sibila, onde a profecia apocalíptica é mesclada com invocações à Virgem, esperança de salvação para os que nela crêem, e com rememorações de episódios sofridos da vida de Maria com seu Filho, cuja Paixão também fora alvo de profecia sibilina, como vimos.

Trata-se da cantiga de número 422, indicada no título como a décima segunda de comemorações do calendário litúrgico: Esta .XII. é de como Santa Maria rogue por nos a seu Fillo eno dia do juyzio 108.

O estribilho, que aparece no início da cantiga e no final de cada um dos seus vinte dísticos, é uma invocação a Maria, ao seu auxílio no Juízo Final109: Madre de

Deus, ora / por nos teu Fill essa ora . E o primeiro dístico retoma a profecia da

segunda vinda de Cristo:

U verrá na carne / que quis fillar de ty, Madre, joyga-lo mundo / cono poder de seu Padre

Madre de Deus, ora / por nos teu Fill essa ora.110

As estrofes seguintes, todas compostas por dois versos seguidos do referido refrão, apresentam, no primeiro verso, as palavras dessa profecia; e no segundo, em voz imperativa, a indicação a Maria dos argumentos a serem evocados para a defesa dos pecadores que a ela recorrem, relacionados à primeira vinda de Jesus Cristo, a sua Paixão também profetizada e às dores que por ele ela sofreu. Por exemplo:

E u el a todos / pareçerá mui sannudo

enton faz-ll enmente / de como foi conçebudo

Madre de Deus, ora / por nos teu Fill essa ora).111

... U será o ayre / de fog e de suffr aceso dill a mui gran coita / que ouviste pois foi preso

108 AFONSO X, op. cit., p. 408-410.

109 Não é esta a única cantiga em que evoca a intermediação de Maria no Juízo Final. A cantiga comemorativa XI (421 no geral), que aparece no Cancioneiro imediatamente antes desta, também o faz. Mas apenas a XII (422) retoma os horrores apresentados pela profecia da sibila. Cf. AFONSO X,

Op. cit, p.407.

110 IDEM, ibidem, p. 408. 111 Loc. cit.

(24)

155

Madre de Deus, (...). 112

... E u mostrar ele / tod estes grandes pavores, faz com avogada, / tem voz de nos pecadores

Madre de Deus,(...) 113

Trabalhando com oposições, contrasta a dureza do Juiz celestial com a humanidade de Sua mãe. Assim, a primeira estrofe apresenta o caráter dual do Deus Filho, que recebeu do Pai o poder, mas de Maria a carne. E a partir da segunda estrofe, diante da ira divina no dia do Juízo opõe a lembrança do modo como foi concebido, fruto de amorosa e humilde aceitação por parte da Virgem; bem como a proteção que esta lhe proporcionou quando pequeno e as dores que sentiu durante o seu martírio. Na penúltima estrofe, o trovador indica que, diante de tais pavores, ela se torne advogada dos que a ela recorrem; e na final, que por seus rogos ao Filho sejam levados ao Paraíso, à alegria eterna114. Quanto aos

refrães, insistem no pedido de intervenção mariana, poderosa pelo seu estatuto de Mãe de Deus.

Trata-se de um procedimento retórico assentado na seguinte premissa: o poder é de Deus, mas ele muito deve à humanidade de Maria, participou dessa humanidade conosco, sofreu as agruras da nossa condição. Maria, enquanto nossa advogada, teria os elementos persuasórios para levar o Filho à misericórdia para com os pecadores, rememorando o sofrimento que com Ele padeceu, a proteção que sempre Lhe dispensou, a vida material que Lhe proporcionou.

Em última instância, o que o Rei Sábio intenta é demonstrar os benefícios do culto a Santa Maria, cuja intercessão junto ao Juiz poderia assegurar a salvação dos réus115. Nesse intento, coloca-se como suplicante no refrão e conselheiro no corpo

da cantiga, indicando à mãe de Jesus Cristo os elementos comprobatórios da Sua dívida para com ela, a ser paga através do perdão aos seus fiéis cultores. Dentre

112 IDEM, ibidem, p. 409. 113 IDEM, ibidem, p. 410.

114 Loc. cit: Que polos teus rogos / nos lev ao parayso / seu, u alegria / ajamos por senpr e riso. 115 Isto pode ser observado também na cultura popular do Nordeste do Brasil, por exemplo, revisitada por Ariano Suassuna no Auto da Compadecida. Cf.. a propósito, M. A. T. MALEVAL, Do Grande Milagre jacobeu ao Auto da Compadecida de Ariano Suassuna: aspectos da transculturação ocorrida, Madrygal - Revista de Estudios Gallegos, Vol. 20 (Núm. Especial), Madrid, 2017, p. 157-164.

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