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Ateísmo e Religião em Ludwig Feuerbach: uma aposta na essencialidade do humano

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Academic year: 2021

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Clóvis Ecco**, José Reinaldo Felipe Martins Filho***

Resumo: através desta incursão procuramos apontar algumas chaves de leitura para

repensarmos o fenômeno do ateísmo, por ora vislumbrado a partir de uma de suas principais bases teóricas no século XIX, qual seja, a filosofia de Ludwig Feuerbach. Marcando sua distância em relação às demais críticas à religião, cujo núcleo de interesses geralmente se desenvolvia ao redor da inexistência de Deus, Feuerbach defende o reconhecimento de uma orfandade originária, única possibilidade capaz de reconduzir-nos rumo à essencialidade do huma-no. A religião é, nesse sentido, a principal forma de expressão desta essência, sendo que seu objeto não é Deus, mas o próprio homem. Toda projeção é, por-tanto, introjeção, a busca por uma interioridade perdida.

Palavras-chave: Religião. Deus; Ateísmo. Ludwig Feuerbach.

ATEÍSMO E RELIGIÃO EM LUDWIG FEUERBACH: UMA APOSTA NA ESSENCIALIDADE DO HUMANO*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 20.07.2016. Aprovado em: 09.08.2016.

** Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás, Graduação em Filosofia, Teologia e especialização em Psicopedagogia. É professor titular e coordenador do Programa stricto sensu em ciências da religião da PUC Goiás. Pesquisa sobre Antropologia da Religião e Ateísmos Contemporâneos.

*** Doutorando em Ciências da Religião pela PUC Goiás. Mestre em Filosofia (2014) e em Música (2016), ambos pela UFG. Especialista em Sociologia da Religião pelo Centro Universitário Claretiano. Graduado em Filosofia e em Teologia. Professor de Filosofia na PUC Goiás e no Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG).

Noli foras ire; in teipsum redi; In interiore homine habitat veritas: et si tuam naturam mutabilem inveneris transcende et teipsum.

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Se o fogo queima, e faz sofrer, é a própria religião que colocou fogo nos altares. Altares são lugares de grandes transformações alquímicas que só o fogo tem poder para realizar. É por isto que vale a pena atravessar este ribeiro de fogo...

(Rubem Alves)

A

o pensarmos acerca da religião, estamos diante de um fenômeno essencialmente humano, ideia defendida pelo filósofo Ludwig Feuerbach logo na abertura de seu ensaio A essência do cristianismo, publicado pela primeira vez no ano de 1841: “a religião repousa na distinção essencial entre homem e animal; os ani-mais não têm religião. É bem verdade que os ani-mais antigos naturalistas atribuíam ao elefante, entre outras louváveis qualidades, também a da religiosidade; a re-ligião dos elefantes, no entanto, pertence ao reino das fábulas” (FEUERBACH, 1988a, p. 43). Não obstante ser este um fator decisivo para a compreensão do ser humano, inclusive de sua integração à comunidade dos outros, o itinerário percorrido por Feuerbach faz ecoar um segundo elemento relativo a esta expe-riência: o caráter antropológico da religião, ao mesmo tempo em serve de fun-damento e caracterização do ente humano, também estabelece que o ponto de partida para a crença não é outro que não a própria subjetividade. Nesse sentido, o pensamento filosófico de Ludwig Feuerbach desenvolve-se em obediência a um único fio condutor, norteado por seu irrevogável interesse em desmistificar a teologia e, por ela, tudo o que pudesse se relacionar com o conceito de um Deus todo-poderoso, fundamentum inconcussum de tudo o que existe.

Em sua incursão Feuerbach visa à valorização do homem como ente real e concreto, como ponto de partida para sua própria compreensão, a despeito da existência de um Deus no céu. Seu discurso firma-se como uma das principais críticas contemporâneas à religião, servindo de base para o desenvolvimento de teses como as de Nietzsche, Marx e Freud. Contudo, o fato de apontar um princí-pio antropológico como origem de Deus não significa, a todo custo, sustentar uma leitura ateísta do mundo. Muito pelo contrário. Caso compreendamos o sentido da argumentação feuerbachiana veremos apresentada uma nova ma-neira de conceber a religião e sua contribuição. Para Feuerbach é preciso que o homem se lance na realidade, integralmente, da maneira que lhe é adequada. Para isso, a própria filosofia deve ser repensada em sua relação com a religião. É preciso que o futuro seja construído aqui e agora e não em um amanhã vin-douro, vislumbrado apenas como uma promessa. Ora, isto implica não apenas o rompimento com um modelo teológico com o qual a filosofia manteve-se ligada, mas a releitura da própria filosofia como possibilidade de exercício da religião. Conforme sugere Alice Aleixo (2009, p. 5) “não existe nisto qualquer

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paradoxo, porque a religião é aqui entendida no seu sentido originário e primitivo de experiência existencial do coração humano: para substituir a teo-logia a filosofia deverá ser religião. O segredo da religião, aquilo que constitui a sua essência é o homem; o homem deverá ser pois o objeto da filosofia”. Convém, portanto, assegurarmos que Feuerbach não nega a religião e, sequer, o seu irrecusável papel na evolução da humanidade. Ao contrário, a religião representa a objetivação do coração do homem, de sua natureza mais profunda e é justamente isso que, segundo este autor, precisa ser repensado.

A fim de compreendermos o núcleo temático deste pensamento, tomaremos em análi-se duas das principais obras nas quais Feuerbach análi-se dedica à compreensão de fenômenos como a religião e a crença. São elas A essência do cristianismo, primeiro grande texto dedicado ao assunto, e, de maneira especial, Preleções

sobre a essência da religião, este de 1851, no qual o autor retoma alguns ele-mentos já apresentados na obra anterior com o propósito de melhor elucidar os conceitos que estão em jogo, bem como dilatar o olhar para além dos li-mites da religião cristã, neste caso incluindo o fenômeno religioso como um todo. De nossa parte, pretendemos apresentar com a maior imparcialidade possível os conceitos desenvolvidos por Feuerbach, sublinhando apenas na conclusão algumas das impressões e observações críticas colhidas ao lon-go de nossa leitura. Não faz parte de nosso intuito defender quaisquer ar-gumentos levantados por Feuerbach, mas apenas torná-los conhecidos, haja vista nos seus impactos sobre as atuais reflexões sobre ateísmo e teísmo, religião, filosofia e antropologia. Notadamente, como nos advertiu Rubem Alves (1989) se, em sentido literal, Feuerbach quer dizer “rio de fogo”, poderá ser-nos impossível atravessá-lo sem que sejamos queimados. Por ora, este será o nosso desafio.

DA ESSÊNCIA DO HUMANO AO FUNDAMENTO DA RELIGIÃO

Em função de compreendermos como se origina a concepção feuerbachiana de reli-gião, nos deteremos aos dois primeiros capítulos de seu trabalho A essência

do cristianismo, de 1841. Em primeiro lugar, Feuerbach parte da necessidade de se definir em que consiste a essência do ser humano. Além da religião, mencionada de início, qual a diferença essencial entre o homem e os animais? Segundo nosso autor, no mais das vezes se responde: a consciência. O termo consciência é aqui tomado em sentido rigoroso, ou seja, referindo-se à quidi-dade, ao eidos, à essência do humano. A despeito desta articulação, o emprego deste termo adquire, ainda, os contornos de uma voz interior, consciência en-tendida como interioridade. Ao que parece, esta é, de fato, a grande diferença entre homens e animais:

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[...] por isso tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma du-pla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. [...] O homem é para si ao mesmo tempo EU e TU; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto (FEUERBA-CH, 1988a, p. 44).

Mas em que, então, consiste a essência do homem, da qual este é consciente e na qual a própria humanidade é posta em questão? Diz Feuerbach: na razão, na von-tade e no coração. A razão existe para dedicar-se ao entendimento conceitual do mundo, a vontade para desejá-lo e o amor para amá-lo. Esta é, em poucas palavras, a essência do gênero humano. Razão, amor e vontade são perfei-ções humanas, são os mais altos poderes, são, portanto, a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade radical de sua existência. Conforme Feuerbach, seguindo esta articulação é possível chegarmos ao entendimento da relação entre Deus e a essência do humano. Isso porque o ser absoluto, o Deus do homem é a projeção de tais atribuições inerentes à natureza humana, exteriorizadas e reconhecidas como objetividades detentoras de estatuto onto-lógico. Enquanto o objeto sensorial está fora do homem, “o religioso está nele, é mesmo íntimo (por isso um objeto que não o abandona como não o abando-nam a sua consciência de si mesmo e a sua consciência moral), é na verdade o mais íntimo, o mais próximo” (FEUERBACH, 1988a, p. 55). Nesta direção, talvez seja de fato possível estabelecer alguma aproximação entre Feuerbach e a filosofia agostiniana – assim como nossa epígrafe quis induzir. Afinal, em ambos os casos a divindade é descoberta como elemento essencial ao homem. No entanto, se, para Agostinho, trata-se de um reconhecimento a partir de dentro, de um mergulho no mais profundo recôndito da própria consciência, em se tratando da leitura feuerbachiana opera-se o movimento oposto. É a partir de fora, da objetividade e exteriorização, que o homem reconhece sua essencialidade. Isso porque

[...] ao ser a religião a consciência de Deus, definida como a consciência que o homem tem de si mesmo, não deve ser aqui entendido como se o homem religio-so fosse diretamente consciente de si, que a sua consciência de Deus é a cons-ciência que tem da sua própria essência, porque a falta de conscons-ciência deste fato é exatamente o que funda a essência peculiar da religião. [...] A religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si mesmo (FEUERBACH, 1988a, p. 56)

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É importante, a nosso ver, dar a devida ênfase a este aspecto: “a religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si mesmo”. Desse modo, ao estabe-lecer o nexo de causa e consequência entre o humano e Deus, Feuerbach não pretende afirmar a antecipação de qualquer reconhecimento, isto é, não intui que o homem tenha clareza deste fenômeno como relativo a sua subjetivida-de. Muito pelo contrário, pois a força da religião reside justamente em sua capacidade de atribuir à entidade divina todos os anseios pertinentes ao ser humano, forjando-a como uma fonte inesgotável de inspiração e estímulo1. Aliás, trata-se de um forte elemento psíquico: “como o homem pensar, como for intencionado, assim é o seu Deus: quanto valor tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu Deus. A consciência de Deus é a consciência que o

ho-mem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa” (FEUERBACH, 1988a, p. 55 – grifos do autor). Para Feuerbach o homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. Reconhece a Deus como a um outro, como uma outra essência distinta da sua:

A religião, pelo menos a cristã, é o relacionamento do homem consigo mesmo ou, mais corretamente: com a sua essência; mas o relacionamento com a sua essência como uma outra essência. A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das limitações do homem individual, isto é, real, corporal, objetivada, contemplada e adorada como uma outra essência própria, diversa da dele – ‘por isso todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana’ (FEUERBACH, 1988a, p. 57, grifos nossos).

Por um lado Feuerbach não quer com sua análise negar o valor positivo oriundo da reli-gião, já que se trata de um fenômeno mobilizador, com tamanho impacto sobre a vida prática dos indivíduos. Por outro, não deixa de reconhecer os efeitos negativos de uma concepção que retira do homem a sua carga de dinâmica e de vitalidade. Até mesmo o conceito de verdade é recebido como produto de uma exterioridade sobrenatural, que nada mais é que a própria essência do homem projetada sobre si mesmo. O homem, que é a referência primeira deste movi-mento, submete-se ao domínio do seu predicado2. O homem não está acima de sua contemplação original, mas o contrário: ela o anima, determina e domina. Daí que o real sentido do ateísmo para Feuerbach não é propriamente voltar-se contra o sujeito dos predicados, mas contra os próprios predicados. O verda-deiro ateu é aquele para o qual os predicados da essência divina – a bondade, o amor, a verdade, a justiça – nada significam. Isso porque tudo o que atribuímos a Deus é, na verdade, característica da própria essência do homem, embotada,

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camuflada, sob o que nada mais é senão seu mero reflexo. O Deus da teologia, portanto, desestimula que a centralidade recaia sobre o homem. Torna-se ele o centro e a referência a partir da qual cada indivíduo irá proceder: “o homem – e este é o segredo da religião – objetiva a sua essência e se faz novamente um objeto deste ser objetivado, transformado em sujeito, em pessoa; ele se pensa, é objeto para si, mas como objeto de um objeto, de um outro ser” (FEUERBA-CH, 1988a, p. 71). Noutras palavras, insiste Feuerbach,

Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e abstraí-da, e assim não pode ele agir de si, assim todo bem vem de Deus. Quanto mais subjetivo, quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exte-riorizado, mas do qual ele se apropria novamente.

[...]

Somente Deus é o ser que age de si – este é o ato da repulsão religiosa; Deus é o ser agente em mim, comigo, através de mim, sobre mim e para mim, é o princípio da minha salvação, das minhas boas intenções e ações, logo, do meu próprio bom princípio e essência – este é o ato da atração religiosa (FEUERBACH, 1988a, p. 72).

Segundo a avaliação de Feuerbach, reportando-nos à idéia de um Deus que é reflexo da essência do homem – e o que pode haver de mais sedutor que o nosso próprio reflexo? – a religião contribui para o empobrecimento de uma consciência ca-paz de colocar-se como ponto de partida para a ação. Noutras palavras, o exer-cício do bem não deveria, necessariamente, ser o efeito de uma intervenção divina no curso da história dos homens. Isso porque a idéia de bem diz respeito à essencialidade do homem. Contudo, os desafios plantados em A essência

do cristianismo fizeram eco em outros momentos da obra de Feuerbach, com especial ressalva ao texto das preleções.

ELEMENTOS DO ATEÍSMO NAS PRELEÇÕES SOBRE A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO Outras interessantes pistas sobre a relação entre Feuerbach e a religião podem ser

obtidas em sua obra titulada Preleções sobre a essência da religião, de 1851, em cujo desenvolvimento o autor constantemente se refere ao seu texto sobre a essência do cristianismo. Entre outros aspectos, merece destaque o modo como Feuerbach vai construindo sua argumentação, tomando como ponto de partida o curso de sua própria vida enquanto professor e escritor3. Aos poucos vai compondo o ambiente no qual seus principais conceitos relati-vos à religião foram gestados, desde os primeiros sintomas de sua aversão

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à teologia – sobretudo em vista da postura adotada por alguns de seus con-temporâneos – até a aberta repulsa a qualquer forma de religião como modo inautêntico de o ser humano se portar em face da natureza e dos outros. Com especial ênfase recorda os doze anos de solidão em exílio, tempo em que se ocupou unicamente com o estudo e a atividade literária. Fora um tempo de solidão e de recolhimento, singular oportunidade de voltar-se sobre si mesmo na tentativa de compreender mais profundamente os dramas que transpassam a existência humana. No fragmento em que traz à tona o seu exílio, confessa Feuerbach,

[...] despedi-me para sempre do currículo acadêmico e passei a viver no cam-po. Foi uma época tão terrível, triste e obscura, que uma tal lembrança nunca podia me voltar à mente. Foi aquela época em que todas as relações públicas estavam tão envenenadas e contagiadas, que só se podia conservar a própria liberdade de espírito e a saúde através da recusa a qualquer serviço público, a qualquer papel público, até mesmo ao de professor particular, uma época em que todas as promoções do serviço público, todas as licenças autoritá-rias, mesmo a vênia docendi, eram apenas o preço do servilismo político e do obscurantismo religioso, onde somente era livre a palavra científica escrita

(FEUERBACH, 1989, p. 12).

Noutras palavras, foi este o contexto germinal não apenas para obras como A essência

do cristianismo, mas do próprio amadurecimento da ideia de que o ateísmo se firmava como único caminho revestido de sentido racional, ao contrário da religião, aparentemente fadada ao fracasso da irracionalidade. Vale a pena recordar que Feuerbach via-se inserido no contexto de uma Alemanha for-temente abalada pelas disputas políticas, o que certamente também trazia implicações sobre o ambiente intelectual – cujos ares do idealismo hegeliano ainda pairavam entre os mais doutos. Não obstante, como relata o próprio autor, a causa de seu recolhimento não poderia ser atribuída unicamente à sua aversão à política, diz ele: “assim como eu vivia em constante oposição interna com o sistema político do governo da época, da mesma forma eu havia rompido também com os sistemas de governo espirituais, isto é, com as doutri-nas filosóficas e religiosas” (FEUERBACH, 1989, p. 13). Mais que um descanso para o corpo, uma oportunidade de revigoramento espiritual, quer dizer, do que é relativo ao espírito e, desse modo, aos ditames da razão. Se por um tempo Feuerbach considerou-se identificado entre aqueles que compartilha-vam a crença comum em um Deus único e onipotente, tendo como elemento catalizador a fé cristã, na medida em que se excluía não apenas do convívio com a comunidade política e científica de sua época, mas também – e de

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ma-neira especial – com o ideal religioso que, a partir dali, lhe parecia carecer de maior rigor argumentativo em suas fundamentações, servindo, para tanto, como ferramenta para a conservação do poder sob monopólio de uns poucos, trilhando seu caminho e rompendo com todo o mundo deísta, agora precisava justificar – para si mesmo, antes de para quaisquer outros – os motivos para tal rompimento. No caso de Feuerbach, portanto, a inicial motivação pessoal tornou-se força motriz para a construção de um discurso lógica e sistema-ticamente ordenado, no qual os motivos para a inconsistência da religião ganhavam forma e robustez.

Com esta atitude Feuerbach procurava declarar guerra contra toda a teologia conhe-cida, a qual considerava extremamente vinculada às ideologias partidárias e dominantes. Diante disso, como mencionamos de início, chama-nos a aten-ção o fato de se tratar de um confronto não com a essência da experiência religiosa, se é que assim podemos dizer, mas com uma concepção de religião entendida como instituição, como exercício de força e poder. Não é gratuito, porquanto, a identificação consequente entre religião e cristianismo – embora neste texto, de 1851, o autor tente estender a sua avaliação da religião cristã às demais formas de religião existente, ainda que as mais primitivas. Noutras palavras, a raiz do ateísmo feuerbachiano parece ser, como indicam algumas passagens de sua obra, de ordem eminentemente política. Mas isso não é tudo. Há, ainda, outro elemento que merece nossa atenção. Ao defrontar-se contra a religião, Feuerbach tem em vista um outro adversário bastante pon-tual, qual seja, a filosofia. Esta referência transparece na aberta insatisfação demonstrada em relação às filosofias de Espinosa e Leibniz – para não dizer do próprio Hegel, de quem era, em grande parte, tributário. No que se refere a Espinosa, sua dívida se devia ao fato de, na avaliação de Feuerbach, ter feito da filosofia uma ancilla da teologia. Em se tratando de Leibniz, o moti-vo era semelhante, posto que este parece ter sido o primeiro filósofo alemão a novamente depositar a filosofia aos pés da teologia, diz Feuerbach: “já na primeira edição, aparecida em 1837, tomei portanto como objeto de crítica o ponto de vista teológico de Leibniz e, por causa dele, toda a teologia em geral” (FEUERBACH, 1989, p. 15). Leibniz, desse modo, tornou-se o ícone de um movimento que em muito o ultrapassava; o movimento da religião, com traços marcadamente cristãos, como alvo para as incursões da nova an-tropologia filosófica aos moldes feuerbachianos4. De ancilla da teologia, a filosofia passou a sua maior inimiga, não medido esforços em demonstrar a inviabilidade da existência exterior de uma divindade donde tudo provém e para onde tudo se encaminha. Outra vez estamos diante do ateísmo como res-posta ao caráter antropológico da religião, como o próprio Feuerbach parece indicar a partir da segunda preleção.

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O ATEÍSMO COMO RESPOSTA AO CARÁTER ANTROPOLÓGICO DA RELIGIÃO Com o intuito de desenhar a sua crítica ao cristianismo – mesmo que, desta vez, em-botada sob o disfarce de um ataque contra todo e qualquer sistema religioso – Feuerbach novamente introduz a oposição entre os ditames da fé e da ciência. De um lado, a razão, com sua lógica amparada pelos entes materiais. De outro, a fé, aparentemente fadada ao universo das vãs abstrações:

A teologia baseia-se num princípio especial, num livro especial no qual ela crê contidas todas as verdades necessárias e salvadoras para o homem, é por isso estreita, exclusiva, intolerante, limitada; mas a filosofia e a ciência não se ba-seiam num livro especial e só encontram a verdade no todo da natureza e da história, baseiam-se na razão essencialmente universal, não na fé, que é essen-cialmente particular (FEUERBACH, 1989, p.18).

Ao que parece, Feuerbach consegue atingir o “tendão de Aquiles” da religião, já que esta está pautada sobre a perspectiva do indivíduo, isto é, num itinerário que se estende desde uma experiência, que é sempre particular, até o seu prolon-gamento na convivência social, ao contrário da ciência ou da filosofia que, partindo de deduções que, no mais das vezes, possuem caráter universal, con-firmam ou incon-firmam os resultados por meio da experimentação, da prova e da contraprova. Tal entendimento, contudo, constitui-se como uma aberta recusa a uma compreensão polissêmica da natureza do homem, um todo formado por diferentes dimensões, entre as quais a dimensão da fé encontra seu espaço en-tre as demais. O homo simbolicus é também, nalgum sentido, homo religiosus. Isto porque também nos ditames da ciência e da filosofia – como hoje podemos observar – o elemento da crença é algo que deve ser levado em consideração. Não haveria avanço no conhecimento, diriam alguns autores da contempora-neidade, caso não partíssemos, sempre e a cada vez, de algo já dado, crido, ou seja, cuja real comprovação não nos é possível – e sequer viável – confe-rir. A crença, portanto, é um dado frequentemente disponível nas searas do conhecimento científico – que não dizer do filosófico. Em segundo lugar, a julgar pelo tom utilizado pelo autor ao referir-se aos adjetivos impostos à teo-logia, não é possível tomar com precisão aonde reside, de fato, a intolerância. Ao levantar-se em militância contra a religião, Feuerbach reproduz o mesmo modelo contra o qual originariamente se rebelou. Enfim, também no que se refere à lógica de sua argumentação, encontramos algumas contradições no que toca à história do pensamento ocidental como um todo. Julgando “redu-zir a diferença entre a filosofia e a religião simplesmente em que a religião é sensorial, estética, enquanto que a filosofia é algo supra-sensível, abstrato”

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(FEUERBACH, 1989, p. 20), Feuerbach parece se esquecer que justamente o abstrato, supra-sensível e/ou imaterial no âmbito do conceito pode ser aponta-do como um aponta-dos pontos de intersecção possíveis entre a filosofia e a religião, afinal, ambas lidam com uma direta referência às categorias que ultrapassam a matéria. Desse modo, longe de se oporem uma à outra, filosofia e religião possuem muito em comum.

A problemática, entretanto, ganha maior consistência quando alguns elementos de or-dem psicológica são trazidos para a discussão. Ao falar sobre a essência da religião Feuerbach prenuncia um discurso sobre a essência da própria subje-tividade humana, segundo ele o verdadeiro elemento refletido em toda prática religiosa. Entre outros, estarão em jogo noções como o limite, o medo e a finitude, intrínsecos à humanidade em sua condição mais originária. Nesse sentido, tanto a história das religiões quanto os desígnios da divindade devem ser encarados como uma forma de manifestação da própria natureza do ho-mem, fadada, conforme Feuerbach, a projetar-se em uma “pseudo-existência” exterior, a qual contém em si mesma, como o pólo oposto de um imã, eternida-de, onipotência, vitalidade plena, atribuições que não se apresentam nos seres humanos. A despeito disso, segundo Feuerbach, uma adequada compreensão da natureza humana deveria incitar a consciência de que justamente nos limi-tes tornar-se-ia possível encontrar a chave de leitura para um comportamento saudável, qual seja, o descortinamento de um horizonte intersubjetivo, aberto à experiência dos outros reais no mundo, em relação aos quais o indivíduo estabelece profunda dependência:

O homem possui um desígnio, uma situação e um dever limitados na grande comunidade da humanidade, na história, mas exatamente com isso não se pode conciliar uma subsistência infinita. [...] Tudo aquilo que o homem ama e exerce apaixonadamente é que é a sua alma. A alma do homem é tão diversa e especí-fica quão diversos e específicos são os próprios homens (FEUERBACH, 1989, p. 22).

Conforme a avaliação de Feuerbach, apenas na relação com os demais o indivíduo poderia encontrar o pleno sentido de sua existência e não na projeção de sua essência em uma exterioridade irreal, como o faz pelas vias da religião. No fundo, no fundo, esta é a máxima que subjaz a toda a argumentação presente em suas preleções. Para Feuerbach teologia é antropologia, de modo que a úni-ca possibilidade de crença é depositada sobre o próprio homem, como origem efetiva tanto da religião, como de Deus5. Ao menos para Feuerbach, portanto, por ateísmo devemos entender uma forma de teísmo antropológico, isto é, a crença em uma divindade radicada no próprio homem, com vista à satisfação

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de seus anseios mais íntimos. Nesse sentido, caso entendamos Deus como o fruto de uma vitalidade dinâmica do homem é possível, inclusive, justificar a sua existência, por ora compreendida como a produção de uma inteligência finita:

[...] teologia é antropologia, ou seja, no objeto da religião a que chamamos theós em grego, Gott em alemão, expressa-se nada mais do que a essência do homem, ou: o deus do homem não é nada mais que a essência divinizada do ho-mem, portanto a história da religião ou, o que dá na mesma, de Deus [...] nada mais é do que a história do homem (FEUERBACH, 1989, p.23).

Em termos mais genéricos, o mesmo se aplica quer seja ao deus cristão, quer a qualquer outra forma de crença. Como ponto de partida, segundo Feuerbach, sempre iremos enxergar o homem. Nesse sentido, cristianismo e idealismo se identifi-cam, justificados, ambos, numa identidade sem natureza, um deus ou espírito capaz de criar o mundo como fruto de sua inteligência e volição. Um deus, porquanto, que assume características humanas, extrapolando-as, todas elas, com sua grandeza e onipotência. Trata-se de um ponto de vista que pode ser resumido na relação entre duas palavras: natureza e homem. Diz Feuerbach (1989, p. 27): “o ser que para mim pressupõe o homem, o ser que é a causa ou o fundamento do homem, a quem ele deve seu aparecimento e existência, não é para mim Deus – uma palavra mística, indefinida e ambígua – mas a natureza – uma coisa e uma palavra clara, sensível, indubitável”. Talvez haja aqui outro elemento sobre o qual possamos discordar da avaliação imposta pelo autor das preleções. A própria noção de natureza não pode ser considerada, de qualquer modo, como um conceito livre de controvérsias e reinterpretações por parte da tradição filosófica. Ainda que pretenda estabelecer uma ligação direta com o âmbito do sensorial, este conceito não parece, por si só, esgotar o sentido atribuído à noção de humanidade – especialmente haja vista na querela entre natureza e cultura. De outro lado, também é necessário admitir que ao falar de natureza Feuerbach parece apontar para o estreito vínculo entre a ideia de um Deus criador e a própria essência do homem, compartilhando, ambas, de uma mesma natureza. Tal intuição, na verdade, fundamenta a intenção que perpas-sa, de uma ponta à outra, o raciocínio desenvolvido pelo autor, cujo objetivo não é outro senão

[...] mostrar que o ente diante do qual o homem se coloca na religião e na te-ologia, como um ser distinto dele próprio, é sua própria essência, para que o homem uma vez que é sempre dominado inconscientemente só por sua própria essência, faça no futuro, conscientemente, de sua própria essência, isto é, da

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essência humana, ‘a lei e o fundamento, a meta e o critério de sua moral e de sua política’ (FEUERBACH, 1989, p. 28 – grifos do autor).

Em consequência a esta tomada de consciência estaria o amadurecimento de um indivíduo autônomo, fundamento e senhor de sua própria conduta moral e política. Nesse caso, assumir as rédeas da história, sem a necessidade de uma constante referência a outro plano que não a existência concreta de um mundo compartilhado com outros, requer emancipar-se da tutela de um Deus exterior, o que, noutras palavras, podemos tomar como um dos benefícios deste ateísmo concebido, paradoxalmente, a partir da aceitação de um teísmo antropológico, tal como Feuerbach parece sinalizar (MARION, 2011). Em suma, trata-se de uma “doutrina” – termo utilizado pelo próprio autor – se-gundo a qual não existe, nem jamais existiu, nenhum deus ou força cósmica diversos da natureza e do homem, cuja presente negação expressa-se apenas como uma “consequência do conhecimento da essência de Deus, do conhe-cimento de que esse ser nada mais expressa do que, por um lado, a essência da natureza, do outro lado, a essência do homem” (FEUERBACH, 1989, p. 29). Não há, desse modo, qualquer intenção de tornar ilegítima a religião como tal, desde que, para tanto, sejam esclarecidos os pressupostos segundo os quais não há diferença entre a essência de Deus e a essência do homem. Entendida como produto do homem a religião pode, inclusive, contribuir para a saúde mental de uma sociedade – aspecto que não é negado por Feu-erbach – afinal, “o que importa é o que cada um entende por Deus” e não, propriamente, o que este conceito representa por si mesmo – neste caso, nada senão a consolidação de todo o vigor do homem, a força para o enfrentamen-to de seus medos mais profundos, do reconhecimenenfrentamen-to da finitude como único modo possível de ser6 (FEUERBACH, 1989, p. 29).

MEDO E FINITUDE: EXPERIÊNCIAS ORIGINÁRIAS DA RELIGIÃO

Ainda no que concerne ao ateísmo, Feuerbach toma parte numa antiga corrente de in-terpretação da religião segundo a qual o medo7 está na origem da crença em um Deus onipotente: “os antigos ateus e mesmo muitos deístas tanto antigos quanto recentes declararam ser o medo, que nada mais é do que o aspecto mais popular e mais evidente do sentimento de dependência, a mola-mestra da religião” (FEUERBACH, 1989, p. 30). De fato, alguns autores da fenomeno-logia da religião identificaram o medo como uma das primeiras experiências suscitadas pela experiência do sagrado, entre os quais poderíamos destacar o trabalho de Rudolf Otto, que entre outras definições, toma-o como mysterium

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[...], aquilo que nos é estranho e nos surpreende, o que está fora do domínio das coisas habituais, compreensíveis, bem conhecidas e, portanto, familiares” (OTTO, 1985, p. 30, grifo do autor). De fato, já em filosofias anteriores o sentimento do medo era considerado como fundamento da religião. Note-se o exemplo de Thomas Hobbes, citado por Feuerbach em sua argumentação:

Este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das causas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um objeto. Quando portanto não há nada que possa ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou agente invisível. Foi talvez neste sentido que alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios) é muito verdadeiro (HOBBES, 1997, I, XII).

Nesse sentido, ao se refugiar sob a égide de uma religião o homem procura, na verdade, uma forma de vencer o medo que lhe aflige; almeja encontrar um porto seguro no qual esteja protegido, um refúgio que o acalente. Apenas nesse ambiente de conforto “espiritual” converte o antigo sentimento de medo em algo novo, por ora, a “libertação do perigo, do medo e da angústia, [...] o sentimento do ar-rebatamento, da alegria, do amor e da gratidão” (FEUERBACH, 1989, p.33). Isso, entretanto, de forma alguma significa estar consciente de sua essência, pois, ao contrário do que parece, não é a ausência do medo, mas a sua presen-ça, que incute a dependência em relação ao grande Outro – o que faz tremer. Medo de que?, poderíamos perguntar. Ao que responde Feuerbach: medo da natureza9. A religião é a resposta ao sentimento de dependência frente à natu-reza, cujas forças avassaladoras atemorizam o homem. “Para escapar do domí-nio da natureza, o homem inventou Deus, ou seja, um Ser cujo aniquilamento é impossível. Deus é, portanto, a representação fantástica do domínio da von-tade humana sobre a natureza e da completa satisfação dos desejos humanos” (MONDIN, 1997, p. 145). Trata-se justamente do medo o sentimento que im-pele a buscar segurança, neste caso a construção de um Deus todo-poderoso, do qual apartar-se é motivo para novamente entrar em estado de fragilidade e impotência. Este sentimento de dependência, segundo Feuerbach, é o único nome e conceito universalmente certo para designar e explicar o fundamento psicológico e subjetivo da religião. Vale a pena repetir: apenas um homem fraco necessita de um Deus forte10.

Não obstante ser o medo, contudo, o impulso originário para a criação de uma divin-dade à qual se reportar (note-se a mudança de eixo, neste caso o Criador tem sua origem na criatura), trata-se de um movimento que simultaneamente co-loca outro aspecto em jogo, desta vez relativo à morte, isto é, a dimensão da

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finitude. A esse respeito encontramos uma frase de bastante impacto no texto da quinta preleção: “somente o túmulo do homem é o berço dos deuses” (FEU-ERBACH, 1989, p. 36). Tal sentença vem ao encontro do que já mencionamos acerca do que Feuerbach entende como a auto projeção do homem em Deus. Por assim dizer, a religião torna-se apenas uma característica ou qualidade de um ente cuja constituição mais elementar aponta para a necessidade de transcendência rumo a um outro que, contudo, não precisa, necessariamente, ser um deus, autosuficiente, independente e infinito. Nesse caso, o sentimento de dependência equivale à recusa da finitude11, intrínseca à natureza humana: “[...] o sentimento de finitude mais delicado, mais doloroso para o homem é o sentimento ou a consciência de que ele um dia certamente acaba, de que ele morre. Se o homem não morresse, se vivesse eternamente, não existiria reli-gião” (FEUERBACH, 1989, p. 36). Se, em termos religiosos, a morte é com-preendida como a libertação deste vale de angústias e sofrimentos, a perspec-tiva adotada por Feuerbach parece apontar para um caminho absolutamente inverso. Para este autor, justamente essa crença em uma realidade além dessa, realidade como promessa cujo cumprimento deve ser esperado, encarcera o ser humano numa visão infantilizada de mundo, impedindo-o de reconhecer a sua essência e condição de ente finito. Por finitude, nesse caso, devemos compreender “não uma substância ou essência ‘fora’ do tempo que passa, que morre, ‘que devora seus filhos’, mas como um poder-ser, aberto e livre para possibilidades finitas, porque é, em si mesmo, esse modo de ser finito, isto é, circunstancial, segundo limites” (PISETTA, 2007, p. 233). A nosso ver, trata-se de uma interpretação positiva da finitude, o que, no entanto, não impede que a filosofia feuerbachiana esbarre em alguns problemas alusivos à ordem interna de sua argumentação, e este será o último ponto de nossa análise.

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS: ELEMENTOS PARA UMA LEITURA CRÍTICA

Após termos percorrido alguns dos principais aspectos da interpretação que Feuerbach dedica à religião, talvez seja oportuno indicarmos elementos que, em nosso entendimento, podem contribuir para uma leitura crítica desse sistema filosó-fico. Ao propor-se reduzir a teologia à antropologia, Feuerbach introduz uma nova maneira de conceber a religião. Tal redução, contudo, não inviabiliza o discurso teológico como uma válida fonte de conhecimento, haja vista que uma compreensão mais aprofundada da natureza do homem apenas poderá se originar do intercruzamento de perspectivas, do dilatamento dos limites que separam as ciências umas das outras. Isso, notadamente, também não significa de forma alguma diminuir a profundidade e o alcance da reflexão

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feuerbachia-na, que certamente deixou suas marcas na história do ocidente, sobretudo em seu modo de enxergar a relação entre homem e religião. Este reconhecimen-to, no entanreconhecimen-to, não impede que também a impostação adotada por Feuerbach careça de maior esclarecimento. Ao propor o materialismo como resposta ao fenômeno religioso que, esquecendo-se da realidade projeta em outra vida a plena realização da essência humana, o autor parece incorrer em uma pequena contradição. Isso porque o ponto de referência para o aspecto material e objeti-vo da existência continua sendo a essência do homem, um conceito fortemente influenciado pelo contexto semântico da metafísica. Talvez esteja aqui a indi-cação de que há no homem algo de não somente material, frente a que também a sua abertura ao totalmente outro dá testemunho. Ainda que voltado para a projeção de sua subjetividade, há no homem o desejo de abrir-se rumo a uma transcendência – que, neste caso, efetiva-se por meio de uma redundância, já que o objeto para o qual se volta é si mesmo – uma afetação exterior que lhe dá sentido à vida. O mesmo poderíamos dizer a respeito do conceito de Deus. Embora Feuerbach o renegue em na tentativa de fundamentar todas as respos-tas na existência do homem, trata-se, este homem de um ser também espiri-tual, dotado de uma essência a qual compartilha com todo o gênero humano. Se o homem não pode encontrar todo o significado para sua vida apelando para a metafísica, o mesmo pode-se afirmar com relação à simples materia-lidade. Concordando ou não com a crítica feuerbachiana, devemos admitir a sua atualidade. Nela os demais ateísmos contemporâneos continuam buscando argumentos. De um lado, fundamentando suas novas teses. De outro, tentando superar os seus equívocos. Hoje, olhando do futuro, vemos que nem todas as previsões de Feuerbach se concretizaram. Também o ateísmo entrou em crise. Acaso religião, política, teologia, Bíblia, trabalho, oração, céu e terra são ele-mentos realmente irreconciliáveis? A esta demanda, nem mesmo Feuerbach conseguiu responder com precisão. Seus tramas, contudo, certamente vão ao encontro do homem contemporâneo, cuja relação com o sagrado manifesta-se como simultâneo movimento de aproximação e repulsa. Afinal, como diria Urbano Zilles: “onde se interpreta mal a Deus, interpreta-se mal o humano”. ATHEISM AND RELIGION IN LUDWIG FEUERBACH: A FOCUS ON HUMAN

ESSENTIALITY

Abstract: through this incursion try to point out some reading keys to rethink the

phe-nomenon of atheism, for now glimpsed from one of its main theoretical foun-dations in the nineteenth century, that is, the philosophy of Ludwig Feuerbach. Marking its distance from the other criticism of religion, whose core interests generally developed around the nonexistence of God, Feuerbach advocates

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the recognition of an orphanhood original, unique possibility able to lead us towards the essentiality of the human. Religion is, in this sense, the main form of expression of this essence, and its object is not God but man himself. Every projection is thus internalization, the search for a lost interiority.

Keywords: Religion. God. Atheism. Ludwig Feuerbach. Notas

1 Cf. Zilles (1991, p. 112), “em resumo Feuerbach tenta uma nova hermenêutica da religião. Pergunta: por que o homem produz religião? O que ela significa? [...] Diz que os símbolos religiosos não são vazios, nem se referem a Deus, mas ao próprio homem. Religião é an-tropologia. Tudo o que o homem fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que confissão de seus desejos, projetos e aspirações”.

2 Em outro lugar Feuerbach desenvolve que “a verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento é o predicado. O pensamento provém do ser, mas não o ser do pensamento” (FEUERBACH, 1988b, p. 31). Trata-se da mesma relação entre o estatuto ontológico do sujeito humano e a noção de Deus como sua predicação. 3 Urbano Zilles nos oferece uma interessante descrição desse movimento: “o jovem

Feu-erbach queria ser teólogo. Seu primeiro pensamento foi Deus. Desejava tornar-se pastor luterano. Desde 1823 estudou teologia em Heidelberg. Através dos professores de dogmá-tica interessou-se por Hegel e foi a Berlin. Num segundo momento voltou-se para a razão. [...] Num terceiro momento Feuerbach distanciou-se de Hegel e dedicou-se ao homem. De hegeliano transformou-se em ateu. [...] Quando Hegel afirma que a consciência do homem sobre Deus é autoconsciência de Deus, Feuerbach responde que o ser absoluto, o Deus dos homens, é seu próprio ser” (ZILLES, 1991, p. 103-104).

4 Cf. MERWE, Ludwig Feuerbach die antropoloog, 2011. Ver também CHAGAS, A religião em Feuerbach: Deus não é Deus, mas o homem e/ou a natureza divinizados, 2014. 5 Há quem aponte os limites dessa avaliação: “nas suas afirmações sobre o cristianismo,

Feuerbach ignora totalmente as afirmações sobre a alteridade de Deus que, por isso, não se sujeita simplesmente ao esquema da projeção do desejo. Ignora também que a teologia sempre acentuou que, em seu discurso analógico sobre Deus, há mais diferenças que semelhanças. Mas nem por isso deve-se menosprezar a crítica que ele faz da religião e do cristianismo. Apesar das unilateralidades, propõe problemas ainda não resolvidos” (ZILLES, 1991, p. 117).

6 “Deus, nesta perspectiva é a autoconsciência do homem. O si mesmo: a essência de Deus é a autoconsciência do homem. O homem afirma em Deus o que nega em si. O ateísmo é, então, o caminho necessário para o homem redescobrir sua dignidade, reconquistando sua essência perdida” (ZILLES, 1991, p. 106).

7 Cf. FEUERBACH (1989, p. 30), por exemplo, “muito conhecida é a expressão do poeta romano: Primus in orbe Deos fecit Timor, o medo foi o primeiro que criou deuses no mundo. Entre os romanos tem até mesmo a palavra medo, metus, o sentido de religião, e inversamente tem a palavra religio, às vezes, o sentido de medo; por isso é para eles um dies

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religiosus, um dia religioso, o mesmo que um dia infeliz, um dia que se teme. Até mesmo a nossa Ehrfurcht alemã (a expressão da mais elevada adoração, da adoração religiosa) é composta, como a própria palavra demonstra, de Ehre (honra, dignidade) e Furcht (medo).” 8 Vale, no entanto, recordar que Otto fez opção por uma consideração do sagrado pelas vias

da dimensão não racional (irracional) do homem, o que insere sua abordagem na contra mão do que pretende Feuerbach.

9 “Embora a concepção de natureza de Feuerbach não seja atomístico-mecânica, - já que para ele a natureza não e nenhuma máquina, nenhuma pura ‘res extensa’, sem vida, nenhuma grandeza lógico-matemática, isto é, nenhum universo que se movimenta necessariamente segundo leis mecânicas -, toca a ele ‘sensibilidade’, ‘vivacidade’, ‘vitalidade’, ‘fisicalidade’, ‘exterioridade’ conceitos similares para a existência material da natureza, pois a natureza que existe real, objetivamente, expressa sua existência material através de efeitos físicos, fenômenos naturais, que existem não apenas idealmente no entendimento, mas constituem também para o homem efeitos sensíveis, observados sensivelmente” (CHAGAS, 2009, p. 39).

10 Nomeadamente nos séculos XIX e XX a mesma intuição também serviu de mote para algumas outras abordagens críticas da religião, tais como as de Freud e Marx – para não dizer também a de Nietzsche. Identificando-se com Feuerbach, para estes autores o aspecto negativo derivado da dependência originária da criatura em relação ao Criador deve-se, sobretudo, à ausência de uma postura encarnada frente à realidade circundante. Depositando toda a sua expectativa em um ente de outra ordem o indivíduo despreocupa-se com o hoje da história – na avaliação de Marx – e, ao mesmo tempo, sucumbe à própria neurose com-pulsiva – nos termos de Freud – ambos comportamentos responsáveis pela frigidez social e pela estagnação infantil à qual a sociedade contemporânea se vê submetida. Cf. VIEIRA, 1996, Filosofia marxiana: uma análise de Marx das teses de Feuerbach; cf. ASSUMPÇÃO, 2014, Sobre a fé: confrontando Kant e Feuerbach; cf. também PAULA, 2007, O futuro de uma ilusão: algumas reflexões entre Feuerbach e Freud.

11 Cf. GAYTAN (2014), “en el fondo, en estas reacciones a la crítica a la filosofía idealista, resuenan todavía los acentos kantianos y sobre todo, hegelianos de los conceptos de límite,

finitud-infinitud como relaciones recíprocas. La conciencia de límite y de finitud no puede

no exigir el paso al no límite o la no finitud”.

Referências

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