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Uma teoria da colecção

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Academic year: 2021

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ÍNDICE

Agradecimentos 5

Palavras-Chave/Keywords 7

Resumo/Abstract 9

Resumo dos capítulos 11

Introdução: as nossas coisas preferidas 19

1. Contexto de origem, colecções e museus 35

1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa 35

1.2 Contexto museológico versus contexto de origem 42

2. História, memória, colecções e museus 75

2.1 O histórico e o panorâmico 75

2.2 Ruínas e fragmentos: John Soane e Hubert Robert 94

3. O privado e o público; o imaterial e o material 113

3.1 Genealogia das colecções 113

3.2 Casas-Museus e ocupação de um espaço: o Museu Gardner 129

4. Coleccionadores e outras pessoas 149

4.1 Intersubjectividade, partilha e participação: a Fundação Menil 149

(4)

5. Intenção e valor 187 5.1 Pré-História das colecções e problemas da taxonomia 187

5.2 Oscilações de valor 206

6. Relações entre pessoas e coisas 225

6.1 Confusões e distinções 225

6.2 Contiguidades e consideração 241

Bibliografia citada 257

(5)

AGRADECIMENTOS

A redacção desta tese foi possível graças a uma bolsa de doutoramento (SFRH/BD/68278/2010) da Fundação para a Ciência e Tecnologia pela qual estou grata.

Aos meus orientadores, Prof. Miguel Tamen e Prof. João Figueiredo, agradeço a disponibilidade, o rigor e a paciência com que acompanharam e discutiram este projecto do início até ao fim.

O ambiente do Programa em Teoria da Literatura e as pessoas que conheci durante o mestrado e o doutoramento neste contexto foram decisivos para o meu interesse e para o meu empenhamento nestas actividades académicas tão pouco valorizadas nos dias que correm.

Esta tese está associada ao projecto Intention, Action and the Philosophy

of Art: New Boundaries in a Theory of Action, financiado pela Fundação para a

Ciência e a Tecnologia (PTDC/FIL-FIL/116733/2010), e beneficiou grandemente de todas as actividades e discussões realizadas neste âmbito. Graças a este projecto tive a possibilidade de apresentar e discutir ideias com Humberto Brito, Ana Almeida, Alberto Arruda, Sara Eckerson, Nuno Amado e Pedro Serras. Ana Almeida e Humberto Brito são inspirações para mim.

Estou grata ao Prof. António Marques, director do IFILNOVA, pelo bom acolhimento do instituto. Muito obrigada também ao Nuno Mora por toda a disponibilidade e eficiência.

(6)

Agradeço a Victoria Harrison, Anna Berqvist e Gary Kemp, organizadores da Royal Institute of Philosophy Annual Conference 2013: Philosophy and Museums: Ethics, Aesthetics and Ontology, por me ajudarem a acreditar na possibilidade de esta tese interessar a mais do que duas ou três pessoas quando seleccionaram para apresentação nessa conferência e posterior publicação um ensaio que corresponde à primeira versão do primeiro capítulo. Estou também grata a Constantine Sandis, Ivan Gaskell, Eileen John, Graham Oddie e Beth Lord pelo feedback relativo à minha apresentação.

Aos meus colegas de seminário de orientação, agradeço o companheirismo, as perguntas que fizeram e o interesse que demonstraram pelo tópico desta tese. Além dos já citados Alberto Arruda e Sara Eckerson, foram eles: Carlo Arrigoni, Carlos Alves Pereira, Frederico Pedreira, Joana Cordovil Cardoso, José Maria Veira Mendes, Miguel Almeida, Pawel Augustyniak, Susana Janic e Telmo Rodrigues.

Às seguintes pessoas agradeço a amizade, as sugestões e a compreensão pela minha falta de entusiasmo em relação ao convívo social durante este doutoramento: Carla Quevedo, Maria Sequeira Mendes, Cristina Fernandes, David Luz, Helena Ramos, Teresa Gonçalves, Jean Pierre de Roo, Maria Rita Furtado e Madalena Alfaia.

Por último, ao meu marido, Alexandre Andrade, agradeço o apoio constante e incondicional.

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Palavras-Chave

Coleccionadores, colecções, museus, casas-museus, ruínas, memória, intersubjectividade.

Keywords

Collectors, collections, museums, house museums, ruins, memory, intersubjectivity.

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Resumo

Nesta tese tenta-se rever alguns lugares-comuns associados aos tópicos dos coleccionadores, das colecções e da actividade de coleccionar, nomeadamente as ideias de que as colecções se situam numa dimensão desligada da vida e de que os coleccionadores são criaturas bizarras e perigosas. A abordagem privilegiada procura, pelo contrário, avaliar a integração das colecções na vida dos coleccionadores e perceber em que medida o estudo da actividade de coleccionar nos pode ajudar a descrever e compreender melhor outras actividades humanas.

Abstract

This dissertation looks into some clichés commonly associated with the topics of collectors, collections, and collecting, namely the ideas that collections are located in a dimension disconnected from life, and that collectors are bizarre and dangerous creatures. Instead, it aims both to assess the integration of collections in collectors’ lives, and to understand the ways in which the study of collecting activities helps us to describe and clarify other human activities.

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Resumo dos capítulos

1. No primeiro capítulo, um ensaio de Quatremère de Quincy sobre os problemas associados às colecções e aos museus, juntamente com uma reflexão sobre os Mármores de Elgin ou Mármores do Parténon, uma das colecções mais controversas de sempre, levam-nos à consideração da descrição de colecção enquanto descontextualização. Segundo Quatremère de Quincy, as colecções e os museus geram «ruínas artificiais». Chegamos, no entanto, à conclusão de que a passagem do tempo, a mortalidade das pessoas e o desgaste das culturas e das civilizações têm efeitos inevitáveis que produzem não só ruínas mas também a desintegração e o desaparecimento tanto dos contextos originais dos objectos como de objectos que não sejam afastados destes contextos e preservados em museus e colecções. Ao mesmo tempo, notamos que a apropriação destes objectos por coleccionadores ou responsáveis por museus acarreta frequentemente uma mudança de função e/ou de estatuto ontológico. Esta situação chama a atenção tanto para as actividades de apropriação dos coleccionadores como para a existência dos objectos ao longo do tempo e para o modo como o estatuto destes vai variando em articulação com estas actividades de apropriação. Uma das constatações mais importantes deste capítulo relaciona-se com a ideia de que a identidade tanto das pessoas como dos objectos não é totalmente predeterminada mas depende, no caso das pessoas, das acções que realizam, no caso dos objectos, das actividades e práticas em que são integrados.

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2. Os Mármores do Parténon da colecção de lorde Elgin, a associação que Quatremère de Quincy propõe entre ruínas e objectos de colecção ou museu, assim como a ideia de mudanças ontológicas do estatuto dos objectos ao longo do tempo suscitam no segundo capítulo uma reflexão sobre a memória e a História. Em contraposição à posição de Quatremère, que defende uma perspectiva histórica que recusa qualquer desconexão dos objectos relativamente ao seu contexto original, propomos uma abordagem mais próxima da memória e das relações de sentido que esta constrói. A casa-museu de John Soane relaciona-se com os Mármores do Parténon por via das ruínas, dos fragmentos e das relações que encena entre memória e História, propondo um ponto de vista panorâmico, capaz de estabelecer conexões entre objectos e pessoas de tempos e espaços diferentes, em vez de insistir na reconstituição fiel dos contextos originais. Esta casa-museu chama a atenção para a inseparabilidade das vertentes privadas ou subjectivas das colecções, por um lado, e das suas vertentes públicas, por outro. Traduz um ponto de vista anti-histórico que se articula com o desejo dos coleccionadores de superação da morte e de permanência na memória cultural. Ao mesmo tempo, concretiza a ideia de que as pessoas se definem situando-se num lugar material com que interagem conceptualmente. A casa-museu de John Soane é vista como metacolecção na medida em que concentra as conexões – ruínas, fragmentos, túmulos, peregrinações ou turismo – em jogo não só em relação aos Mármores do Parténon – o nosso ponto de partida, o paradigma das colecções –, mas também na tradição ensaística sobre colecções e museus inaugurada por Quatremère de Quincy. O carácter público da colecção de John Soane, sublinhado pelas semelhanças de família entre objectos de colecção e arquitectura funerária, aponta para a vertente intersubjectiva das colecções –

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uma dimensão frequentemente ignorada na literatura sobre o tópico, mas abordada nos capítulos seguintes desta tese.

3. No terceiro capítulo procuramos aprofundar a associação entre uma subjectividade (ou um ponto de vista pessoal) e a constituição, organização e exposição de uma colecção num determinado espaço. Sugerimos primeiro que um conjunto de objectos pode expressar, definir, expor e preservar um conjunto de relações entre uma pessoa e o universo material que esta percorre. Constatamos que a definição da subjectividade se processa em articulação com dimensões intersubjectivas e objectivas. Cada pessoa tem uma dimensão colectiva e pública sem a qual não é possível definir-se. Verificamos isto não só em relação às colecções, mas também relativamente a práticas relacionadas com túmulos e outros monumentos de homenagem a mortos, santuários, relíquias e relicários, gabinetes de curiosidades, arte da memória e casas-museus. A propósito deste conjunto de práticas baseadas na associação entre objectos e pessoas e, portanto, susceptíveis de serem consideradas na genealogia das colecções, chamamos a atenção para a interacção do privado e do público, do individual e do colectivo, tanto na definição de um ponto de vista pessoal como na sua preservação depois do desaparecimento de uma pessoa.

4. No quarto capítulo, a partir das actividades da Fundação Menil, aprofundamos a relação entre o individual e o colectivo, tentando perceber em que medida o individual é partilhável e inteligível colectivamente. Constatamos que partilhamos um conjunto de práticas culturais que nos distinguem como seres humanos. Verificamos que para sermos inteligíveis a nós mesmos temos de nos interessar pela inteligibilidade dos outros. Nesta partilha de

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inteligibilidades e no interesse que cultivamos pelos interesses dos outros reside a possibilidade de nos autodefinirmos através de proximidades e distâncias em relação às pessoas e coisas com que partilhamos um espaço físico e conceptual.

5. No quinto capítulo prestamos mais atenção à noção de colecção. Depois de considerarmos várias abordagens ao tópico, concluímos que precisamos de uma noção mais ampla e abrangente do que aquela proposta pela maior parte dos autores que escreveram sobre o assunto. Neste ponto, em associação com alguns passos do romance La Peau de chagrin de Honoré de Balzac, constatamos que o método, os critérios e as regras da ciência podem não ser as estratégias mais adequadas para descrever sensatamente alguns assuntos. Para abordar alguns tópicos que implicam dimensões gerais da natureza humana, talvez seja mais importante obter uma visão ampla e panorâmica, em vez de se tentar especificar os termos sem tomar em consideração as suas conexões. Insistir em especificações, distinções e oposições na delimitação da noção de colecção tem produzido resultados artificiais, demasiado vulneráveis a excepções e insuficientemente abrangentes. Por este motivo, descrevemos simplesmente «colecção» como um conjunto de coisas (objectos ou experiências) e de ideias. Destaca-se como ponto principal a noção de que não há colecção sem pessoas, pois só os seres humanos têm preocupações de construção de sentido. Visto que ninguém faz sentido sozinho, uma colecção é um empreendimento necessariamente público, por mais secreta ou privada que o coleccionador a considere. O romance Le Cousin Pons, de Balzac, ajuda-nos a apresentar este ponto de vista.

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6. No sexto capítulo, pensamos sobre a relação entre as pessoas e as coisas, tentando clarificar algumas confusões habituais. Assinalamos os modos como a integração da noção de colecção na noção de vida nos ajuda a perceber o que é «estar vivo». A distinção entre coisas e pessoas é relacionada com uma distinção entre «ser» e «fazer». Enquanto os objectos são incapazes de agir e de pensar, as pessoas têm de fazer para poderem ser e são o que fazem com o que está sua disposição. Neste processo, a liberdade de identificação, desenvolvimento e partilha de interesses e de interpretações pessoais é essencial não só para a autodefinição de cada pessoa mas também para a expansão da cultura. Ao mesmo tempo, salienta-se a ideia de que é necessário um empenhamento activo na preservação do património cultural.

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«Tornámo-nos coleccionadores sem culpa» Dominique de Menil

«Não foi Goethe quem disse: ‘Os coleccionadores são criaturas felizes?’» Stefan Zweig

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Introdução: as nossas coisas preferidas

«Tentar articular alguns dos momentos no desenvolvimento de um gosto autorizado afinal não é senão fazermos um relato das nossas vidas e do nosso viver como uma aventura no e do gosto.»

Charles Wegener1

Os coleccionadores são pessoas felizes?

Dir-se-ia que os coleccionadores, na medida que estão em contacto com os próprios interesses e com as suas coisas favoritas, partilham a vida com o que os faz felizes. No entanto, de acordo com a maior parte da literatura sobre o tópico, os coleccionadores são criaturas infelizes, alienadas, presas num percurso autodestrutivo de permanente insatisfação.

Não sei se ser ou não feliz é a pergunta mais importante que podemos fazer sobre a vida de alguém. É possível que para algumas pessoas haja coisas mais importantes do que a felicidade. É possível também que algumas coisas ou circunstâncias nos façam felizes ao mesmo tempo que outras nos deixam infelizes. Em vez disso, talvez a pergunta mais importante que podemos fazer aos outros e a nós mesmos nos peça para identificarmos o que traz sentido à nossa vida – o que nos faz ter vontade de continuar a viver. Visto que somos felizes quando as nossas vidas fazem sentido – isto é, quando os diversos elementos da nossa vida se esclarecem uns aos outros ou se articulam uns com os outros sem atritos destrutivos –, talvez «fazer sentido» seja uma condição de «ser feliz» e «sentido» um sinónimo de «felicidade».

      

1  Wegener, Charles. 1992. The Discipline of Taste and Feeling. Chicago e Londres: The 

University  of  Chicago  Press,  174.  (Salvo  indicação  em  contrário,  todas  as  traduções  para português integradas nesta tese são da minha responsabilidade.) 

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De qualquer maneira, se perguntássemos a um coleccionador o que o faz feliz, penso que este responderia sem qualquer dificuldade. Os coleccionadores têm coisas a dizer sobre o que traz sentido à vida.

Ao longo desta tese, o tópico das colecções será sempre pensado na sua relação com a vida das pessoas, em vez de, como habitualmente sucede na bibliografia sobre o tema, ser tratado como isolado desta. Nesta tese descrevemos não só coleccionadores e colecções, mas também o que os não-coleccionadores podem perceber graças aos não-coleccionadores. Trata-se de uma opção infinitamente discutível, que implica secundarizar particularidades, excepções e casos problemáticos. Em contrapartida, por ser uma opção pouco comum na literatura sobre o tópico, permite abordar questões mal exploradas.

Com esta opção pretende-se libertar a actividade de coleccionar dos lugares-comuns recorrentes em quase todas as abordagens do tópico. Estes lugares-comuns viciam à partida qualquer descrição de coleccionador relacionando-a com tendências obsessivas e compulsivas quase inumanas. Nesta tese, pelo contrário, partimos das noções de que – evidência habitualmente esquecida – os coleccionadores são pessoas como nós e as colecções são uma parte importante da vida deles – portanto, também da vida de todos nós.

Retirando as colecções de uma espécie de universo alternativo em que o tempo e a humanidade estão suspensos, a abordagem privilegiada nesta tese relocaliza-as na existência quotidiana como elementos de construção de sentido e de inteligibilidade. Visto que os nossos interesses trazem sentido e felicidade às nossas vidas, queremos perceber, por um lado, de que modos os coleccionadores são felizes e, por outro, como os não-coleccionadores participam nessa felicidade. Prestando atenção aos modos como os

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coleccionadores se relacionam com os próprios interesses participamos na humanidade que partilhamos e no que dá significado às nossas vidas.

Em 2011 o Museu Cooper-Hewitt convidou a artista gráfica Maira Kalman para organizar uma exposição a partir dos objectos da colecção do museu de que mais gostasse. Em articulação com este projecto, Maira Kalman criou também dois livros sobre a colecção: um para adultos2, outro mais

orientado para o público infantil3. Em entrevista4, Kalman revelou que esta

tarefa desencadeou uma reflexão sobre os seus objectos preferidos em geral – não só na colecção do museu. Kalman constatou que o processo de selecção de peças de uma colecção convocava outras dimensões da sua vida. O livro My

Favorite Things demonstra em acto os processos que procuro clarificar nesta

tese e reforça uma grande parte das ideias que aqui defendo em oposição a certas perspectivas mais comuns sobre o tópico das colecções5.

My Favorite Things divide-se em três partes. A selecção de objectos do

museu («Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My Favorite Things from the Cooper-Hewitt») situa-se entre «Part I: There was a simple and grand life», secção em que Kalman ilustra episódios da história da sua família,

       2  Kalman,  Maira. 2014. My Favorite Things.  Nova Iorque: Harper Design.    3  Kalman, Maira. 2014. Ah‐Ha to Zig‐Zag: 31 Objects from Cooper‐Hewitt, Smithsonian  Design Museum. Nova Iorque: Cooper‐Hewitt, Smithsonian Design Museum.   

4  Disponível  no  site  do  podcast  da  Publisher’s  Weekly  Radio  (episódio  93): 

http://www.publishersweekly.com/pw/podcasts/index.html?channel=8&podcast=330   

5  Nesta  tese,  tomo  em  consideração  colecções,  descrições  de  colecções,  ensaios  e 

depoimentos  sobre  colecções,  biografias  de  coleccionadores,  ficção  e  cinema  relacionados  com  o  tópico,  assim  como  ensaios  de  filosofia  relevantes  para  o  tema.  Talvez  o  livro  de  Maira  Kalman  concretize  a  abordagem  mais  livre  e  mais  desinteressada  sobre  o  tópico  na  medida  em  que  a  autora  não  tem  qualquer  preocupação de demonstrar um argumento, limitando‐se a reagir a um desafio que lhe  foi proposto pelos responsáveis de um museu.  

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incluindo fotografias não só da família mas também de objectos e obras de arte associados a estas recordações e «Part III: Coda, Or Some Other Things the Author Collects And/Or Likes», que clarifica alguns dos temas principais do livro.

Associada à ideia de escolha de objectos e de constituição de uma colecção pessoal a partir da colecção maior do museu encontramos a necessidade de se explicar quem se é. Na última frase da introdução do livro, Kalman anuncia: «Mas antes, um pouco sobre as raízes da pessoa resposnsável por esta escolha.»6

A autodescrição de Kalman começa com a evocação de um passado em família. A noção de identidade é inseparável da noção de memória. Memória assume aqui o seu sentido mais amplo – não apenas como recordação do passado, mas também enquanto mecanismo essencial à definição de uma identidade individual e colectiva no espaço e no tempo. A memória permiteà autora perceber de onde vem e projectar a sua existência no presente e no futuro. A identidade individual de Kalman relaciona-se com as histórias da sua família, constituindo portanto uma apropriação individual de uma identidade colectiva.

Esta História individual e familiar é contada não só através dos objectos específicos que dela restaram, mas também por recurso a referências que incluem obras de arte e outros objectos não directamente relacionados com a história particular que Kalman está a contar. Recorrendo a referências culturais facilmente identificáveis, conhecidas e apreciadas por muita gente, esta artista facilita a compreensão do que pretende transmitir, trabalhando um terreno humano comum.

      

6

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A primeira imagem desta secção, representando dois casais a fazer um piquenique nas margens de um rio7, não tem como ponto de partida uma

fotografia de um álbum de família de Maira Kalman, mas sim uma fotografia de Henri Cartier-Bresson habitualmente identificada como Domingo nas

Margens do Marne8 (1938), ela própria por sua vez inspirada na famosa tela

Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte (1884), de Georges-Pierre Seurat9. O que Maira Kalman faz com a fotografia de Cartier-Bresson ilustra

bem o processo de apropriação pessoal em questão. Cartier-Bresson fotografou quatro camponeses a fazer um piquenique junto a um rio. Kalman produziu uma ilustração desta fotografia, usando-a neste livro como usaria uma fotografia retirada do seu álbum de família. Na fotografia de Cartier-Bresson, os camponeses naquele piquenique são vistos na particularidade do contexto daquele dia. Ao mesmo tempo, nós e Maira Kalman somos sensíveis à sua universalidade, isto é, à possibilidade de aqueles camponeses serem se não como nós, pelo menos como algumas pessoas da nossa família sem as quais não seríamos como somos. No livro de Kalman, estes camponeses representam e são vistos como seus familiares. Também Cartier-Bresson é integrado na família de Maira Kalman. A circunstância de, assim como Kalman recorreu a Cartier-Bresson, o próprio Cartier-Bresson ter como referência uma tela de Seurat chama a atenção para a partilha de um património cultural.

      

7  Esta  tese  inclui  um  CD  com  imagens  que  ilustram  os  termos  do  texto  antecedidos 

pelo símbolo .   

8 Cartier‐Bresson não definia títulos descritivos para as suas fotografias. 

 

9  No  canto  superior  direito  desta  ilustração,  Kalman  inclui  uma  lista  de  coisas 

associadas à vida familiar no exterior (comida de piquenique, roupa a secar). No canto  inferior  esquerdo  vemos  uma  lista  de  coisas  associadas  à  vida  familiar no  interior  de  uma casa (mobília, cartas, roupa, documentos, etc.). 

(24)

Nas páginas seguintes desta secção Kalman identifica e ilustra episódios do passado e do anedotário da sua família recorrendo não só a objectos ou fotografias relacionados directamente com esta história, mas também apresentando ilustrações e fotografias inspiradas na obra ou na vida de artistas como Bonnard, Chagall, Yves Klein ou Joseph Beuys. (Por exemplo, inclui uma fotografia do fato cinzento de Joseph Beuys para recordar o fato cinzento que o pai veste numa ilustração, a qual, por sua vez, representa uma queda deste do terceiro andar, mas recorda uma fotografia de Yves Klein.)

Kalman integra as suas coisas favoritas na própria família. Descrevermos as nossas coisas favoritas é como descrevermos a nossa família? Sim, na medida em que somos quem somos graças tanto aos nossos progenitores e antepassados como às coisas importantes na nossa vida. Para percebermos e descrevermos quem somos precisamos de compreender as nossas relações com ambos.

Descrever a nossa família biológica ajuda-nos a descrever o que em nós é herdado. Descrever as nossas coisas favoritas ajuda a descrever o que em nós é individualizado – as nossas escolhas. As nossas coisas favoritas ajudam-nos a descrever-nos individual e colectivamente. Através delas, conseguimos articular o que valorizamos e quisemos preservar do que herdamos, mas também o que preferimos rejeitar e o que quisemos acrescentar.

Fazer uma colecção é como escolher uma família? No terceiro capítulo desta tese vemos como a coleccionadora Isabella Stewart Gardner, à semelhança de outros coleccionadores americanos seus contemporâneos10, constrói uma

casa em que se pode rodear dos objectos que gostaria de ter herdado da família

      

10

  Alguns  exemplos:  Andrew  Mellon  (1855‐1937),  Henry  Clay  Frick  (1849‐1919),  J.  P.  Morgan (1837‐1913), William Randolph Hearst (1863‐1951). 

(25)

aristocrática europeia que nunca teve11. Não podemos escolher os nossos

antepassados, nem a nossa herança biológica e material, tal como não podemos escolher o local e o período histórico em que nascemos, mas, como lembra Kant no quarto capítulo desta tese, somos livres em certa medida para fazer algumas opções que nos distinguem destas heranças.

Como concluiremos no sexto capítulo, a possibilidade de tomarmos estas opções, a liberdade de mudarmos, a capacidade de escolhermos o que queremos fazer, de tomarmos as nossas próprias decisões, a possibilidade de sermos avaliados pelas nossas acções e pelas nossas escolhas, em vez de sermos avaliados apenas por aquilo que herdámos e pela família biológica a que pertencemos, a liberdade de assim definirmos quem somos e de escolhermos o que nos faz felizes são alguns dos pontos mais importantes a estudar em conexão com o tópico das colecções e são também os tópicos mais importantes da nossa vida – individual e colectiva.

Interessante é também o facto de Kalman colocar lado a lado obras de arte e objectos de todos os dias, à semelhança, aliás, do que se verifica na própria colecção do Museu Cooper-Hewitt. Estes dois factores aliam-se à noção

      

11

 No fim do séc. XIX, princípio do séc. XX, foram muitos os milionários americanos que  usaram  fortunas  acumuladas  em  actividades  profissionais    para  construir  uma  casa  capaz de mostrar aos outros o seu sucesso. Em alguns casos estes milionários também  reuniram  uma  colecção  através  da  qual  pudessem  ser  recordados.  O  modelo  parece  ter  sido  fornecido  pelas  famílias  da  aristocracia  europeia,  em  cujas  casas  todos  os  objectos  (quadros,  peças  de  família,  jóias,  louça,  talheres,  objectos  decorativos,  mobília, etc.) eram conservados como marca de uma identidade que os descendentes  herdavam.  Em  geral,  as  colecções  dos  milionários  americanos  revelam  uma  diversidade  de  objectos  equivalente.  Um  dos  objectivos  destes  milionários  seria  conferir  uma  aura  de  respeitabilidade  aristocrática  ao  dinheiro  adquirido  profissionalmente (isto é,  não‐aristocraticamente).  Aliados ao  desejo  individual  de se  demonstrar  quem  se  é  através  do  que  se  consegue  fazer,  encontramos  também  objectivos relacionados com questões de identidade colectiva e de filantropia, como o  desejo de tornar acessíveis aos americanos tesouros artísticos da Europa e de outros  continentes. 

(26)

de que as fronteiras entre a arte e a vida são menos importantes do que alguns críticos e especialistas fazem crer, como defenderemos no quarto capítulo em articulação com o filósofo John Dewey.

Dedicada à colecção do Museu Cooper-Hewitt, a segunda secção de My

Favorite Things, «Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My

Favorite Things from the Cooper-Hewitt», abre com o retrato das duas irmãs – Nellie e Sally Hewitt – cuja colecção foi a base do espólio do museu. Antes de os objectos serem descritos, são identificadas as pessoas que os coleccionaram. Por ter sido inspirada pelas visitas destas irmãs ao Museu de Artes Decorativas de Paris, a colecção deste museu inclui um grande número de objectos admirados não só pelas suas qualidades estéticas mas também com possível desempenho utilitário12. Os critérios da escolha de Maira Kalman relacionam-se

tanto com a beleza como com a utilidade destas peças. Esta situação torna claro que não só alguns objectos da vida podem vir a fazer parte do universo da arte como as obras de arte podem ou situar-se no contexto da existência quotidiana ou organizar as percepções da vida de todos os dias. O que é valorizado na arte e nas colecções também pode ser valorizado na vida13.

Apesar de nesta segunda parte Kalman ter o objectivo de seleccionar objectos da colecção do museu, a sua abordagem continua tão pessoal como na primeira secção deste volume. Entre ilustrações e referências a objectos do

      

12  Entre  estes,  Kalman  destaca  tenazes,  tesouras,  bules,  chávenas,  colheres  de  sopa, 

chapéus,  cadeiras,  sapatos,  peças  de  roupa,  relógios,  candeeiros,  livros  e  até  portas.  Além de objectos, a colecção inclui ilustrações de alguns destes objectos (por exemplo,  sapatos e ilustrações de sapatos). 

 

13  A  última  frase  deste  livro  de  Maira  Kalman  é,  aliás,  «Tudo  faz  parte  de  tudo.» 

(Kalman  2014b,  145.)  Exploraremos  adiante  tanto  esta  frase  como  a  secção  final  do  livro. 

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museu, Kalman insere ilustrações de objectos que ela própria colecciona (ver por exemplo, uma ilustração da colecção de bilhetes e senhas nas páginas 78-79), ou comentários referentes a evocações pessoais, suscitadas pelas peças da colecção14.

Simultaneamente, Kalman demonstra e explora a complexidade da memória através do carácter inesperado de certas associações, mostrando como esta pode ser investida em certos objectos – artísticos ou não – independentemente do significado definido no contexto (físico e conceptual) na origem destes. Na primeira parte de My Favorite Things, alguns objectos concentram recordações e significados que mais ninguém lhes associaria. Como veremos no segundo capítulo desta tese, trata-se de um processo semelhante ao descrito em relação a algumas personagens de Proust, que associam certos objectos e obras de arte a acontecimentos ou a outras personagens, ainda que esta associação possa ser considerada idiossincrática ou até enganadora e perigosa15. Deste modo, Kalman mostra como alguém pode apropriar-se

idiossincraticamente de certos objectos, associando-lhes conteúdos e recordações que treslêem a função original ou as intenções na origem destes, perdendo ou acrescentando informação importante a respeito destes, ou fixando-se em pormenores aparentemente insignificantes.

Em paralelo com as idiossincrasias da memória, temos as variações dos usos das coisas. Uma das ideias de que mais gosto nesta tese é a de que

      

14 Uma ilustração que representa um embrulho com uma misteriosa caixa de pulseiras 

que nunca mais ninguém abrirá é convocada por um álbum de ilustrações atado com  fitas pertencente ao museu e ilustrado na página ao lado. A fotografia de uma porta na  colecção  do  museu  evoca  uma  citação  de  Wittgenstein  e  a  imagem  do  quarto  da  artista Charlotte Salomon. (Kalman 2014b, 87‐89.) 

 

15

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interpretações (de objectos, de textos, de imagens, etc.) que resultam de mal-entendidos ou de distorção ou desrespeito da intenção original – isto é, interpretações que alguns descrevem como erradas ou descontextualizadas – podem não só funcionar como também chamar a atenção para facetas inesperadas do que é interpretado, dando por vezes origem a novas vidas dos objectos. Muitas vezes os objectos ou as obras de arte sobrevivem no tempo precisamente porque são mal entendidos, mal usados e reinventados. Nalguns casos, a preservação de alguns objectos depende da possibilidade de se autonomizarem relativamente ao seu contexto de origem e da possibilidade de se integrarem em novos usos particulares. Se o objecto ou a obra permitem essa apropriação – e por «permitir essa apropriação» quero dizer integrar-se nos usos e nas práticas com que esta interpretação se relaciona –, é porque de algum modo esta possibilidade existe no objecto ou na obra.

Bill Brown propôs uma distinção entre «coisas» e «objectos»16. Segundo

Brown, as «coisas» são objectos que deixaram de funcionar ou objectos que não percebemos para o que servem – por exemplo, uma caneta que não escreve. Esta distinção talvez não seja tão nítida. Para usar a terminologia de Bill Brown, em certa medida todos os objectos são «coisas» quando a sua descrição não os articula com acções humanas. Como defendemos no primeiro capítulo, o estatuto ontológico dos objectos depende da sua integração nas acções das pessoas. Não se trata apenas de os objectos estarem disponíveis para serem «o que receamos fazer», como Frank O’Hara escreve no poema «Interior (with

      

16

 Ver Brown, Bill. 2003. «The Secret Life of Things: Virginia Woolf and the Matter of  Modernism»  in  Matthews,  Pamela  R.  e  David  McWhirter  (ed.).  Aesthetic  Subjects.  Minnesota:  University  of  Minnesota  Press,  397‐430  e  Brown,  Bill.  2001b.  «Thing  Theory» in Critical Inquiry, Vol. 28, No. 1, Things. (Outono), 1‐22. 

(29)

Jane)», que abordaremos no sexto capítulo. É mais do que isso: os objectos são o que as pessoas fazem deles. Ao mesmo tempo, as pessoas são o que fazem com as coisas à sua disposição.

Ao longo desta tese tento demonstrar que as pessoas se situam no espaço e no tempo em relação a si mesmas, aos objectos e às outras pessoas deste modo infiel à origem histórica. Os objectos artísticos e não-artísticos são encarados como coordenadas subjectivas e intersubjectivas através das quais as pessoas se definem individual e colectivamente, partilhando informações e valores ou apropriando-se individualmente destes, entendendo-os mal.

Como John Soane celebra através da sua casa-museu, considerada no segundo capítulo, e como Quatremère de Quincy afirma contra as colecções e os museus num ensaio que comentamos no primeiro capítulo, os objectos de colecção funcionam como fragmentos ou ruínas na medida em que são usados – pelas pessoas em geral e pelos coleccionadores em particular – de modos que ignoram ou secundarizam o seu contexto conceptual e físico de origem. Considerados no primeiro capítulo, os Mármores do Parténon, com a sua História atribulada, são o exemplo mais famoso dos mal-entendidos que caracterizam as relações entre as pessoas e os objectos. As colecções chamam a atenção não só para o carácter individual de qualquer interpretação ou descrição, mas também para a possibilidade de estas variações interpretativas assegurarem a preservação dos objectos coleccionados.

As últimas imagens da segunda parte de My Favorite Things relacionam-se com os temas da ausência, da perda, do luto e da morte, tópicos que, como constataremos ao longo desta tese, principalmente no segundo capítulo, são recorrentes quando se pensa sobre colecções. Entre as peças referidas em articulação com este tema destacam-se, pela quantidade e pela expressividade,

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os «mourning samplers»17 da colecção do museu. Estes são acompanhados de

fotografias dos «mourning samplers» bordados por Maira Kalman por altura da morte da mãe.

A recorrência dos tópicos do luto e da morte quando se pensa sobre a relação entre pessoas e objectos aponta para vários elementos importantes desta relação. Numa situação de perda, parece necessário às pessoas não só dedicarem-se a uma actividade prática, mas também socorrerem-se de um objecto material capaz de preservar a memória de alguém. A dor privada adquire deste modo uma dimensão concreta e pública que a torna inteligível e partilhável. Esta possibilidade de partilha revela-se uma noção essencial tanto para compreendermos uma colecção como para compreendermos as pessoas.

Os objectos e as colecções são usados como elo de ligação entre pessoas vivas e mortas. São um elemento essencial das relações que estabelecemos não só com os que viveram antes de nós e com os que virão depois, mas também com aqueles com que vivemos. Os objectos coleccionados asseguram uma ligação entre os seus utilizadores no presente e os seus utilizadores no passado. Ao mesmo tempo, instalam os coleccionadores no seu presente na medida em que a associação destes numa colecção concretiza para os outros a interpretação pessoal ou o modo de ver do coleccionador. (Neste sentido, como constataremos nos capítulos quatro e cinco, qualquer colecção articula uma vertente imaterial e subjectiva que se desenvolve com ela.) À nossa mercê por serem inanimados, os objectos lembram-nos também que, nós, em contraste, estamos vivos e

      

17  Bordados  realizados  depois  da  morte  de  alguém,  geralmente  emoldurados  e 

expostos numa sala comum, de modo a preservar e honrar a memória desta pessoa.  Trata‐se de uma prática comum durante o século XIX nos Estados Unidos que adquiriu  popularidade sobretudo depois da morte de George Washington (1799). 

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podemos agir e afectar o modo como os outros vêem esses objectos e nos vêem a nós.

Indicarmos as nossas coisas favoritas ou identificarmos as coisas que nos interessam18, como defenderemos no sexto capítulo, são actividades através das

quais participamos no espaço social e cultural. São actividades por meio das quais nos descrevemos através das relações que conseguimos estabelecer com outras pessoas e outras coisas. São actividades através das quais podemos, em maior ou menor escala, afectar as percepções dos outros, apresentando e defendendo o que nos incentiva a continuar a viver.

Ao mesmo tempo, mudarmos de interesses é um sinal de que estamos vivos. Como observamos no quinto capítulo, a evolução das colecções frequentemente ilustra esta susceptibilidade de mudança: alguns coleccionadores vendem parte de uma colecção para a tornar mais refinada; outros deixam de coleccionar uma coisa para passar a coleccionar outra; outros ainda vendem objectos que continuam a valorizar para poderem comprar outros que valorizam mais. Estas opções são semelhantes às que tomamos ao longo da vida. Umas vezes deixamos de valorizar coisas que nos eram caras. Outras sacrificamos umas em favor de outras que consideramos mais importantes. Outras ainda, deixamos para trás coisas de modo a simplificar ou a melhorar a nossa vida.

Como Wegener assinala em epígrafe, as nossas vidas são aventuras nos domínios do gosto e do valor. Visto que as nossas oportunidades estéticas e existenciais são sempre condicionadas pelo contexto historico-cultural em que nascemos, percebermos quem somos, isto é, distinguirmo-nos individualmente,

      

18  Estas  duas  expressões  não  são  necessariamente  equivalentes.  Podemos  achar 

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implica sempre uma apropriação individual das coisas e experiências ao nosso dispor e esta apropriação articula-se com a definição de uma hierarquia da importância das coisas. A história dos modos como vamos definindo esta hierarquia e as opções que fazemos a partir desta é a história das nossas vidas. Assim como My Favorite Things é um livro sobre os processos através dos quais tentamos construir uma vida em que haja felicidade19, falar sobre colecções

implica discutir o que é mais importante na vida.

Na terceira parte de My Favorite Things, intitulada «Coda, Or Some Other Things the Author Collects And/Or Likes», Kalman ilustra e comenta um conjunto de coisas heterogéneas que aprecia e/ou colecciona, entre as quais camas, escadotes, sestas debaixo de árvores, pensamentos nebulosos, fotografias de bailarinos, fotografias de pessoas a fazer alguma coisa, banheiras, botões, livros, listas, postais de um hotel tunisino. O retrato de uma condessa cansada suscita algumas considerações (incluindo rasuras) sobre a felicidade e a tristeza, terminando com a frase: «Estamos vivos e isso é glorioso tudo o que temos.»20 A ideia de posse como relação entre pessoas e objectos é

secundarizada nestas páginas pela noção de que a única coisa realmente nossa é a vida. Os objectos são importantes porque nos ajudam a organizar a percepção da nossa vida. Só a nossa vida, no entanto, nos pertence.

Nas duas páginas seguintes, Kalman escreve sobre «os sapatos que abrandam o tempo», uns sapatos encontrados numa loja de artigos usados,

      

19  Na  introdução,  sobre  as  escolhas  que  fez,  Maira  Kalman  diz:  «A  minha  escolha 

baseou‐se apenas numa coisa – um suspiro de prazer [a gasp of delight]. Não será essa  a única maneira de organizar uma vida? Viver entre as coisas que nos fazem suspirar  de prazer?» (Kalman 2014b, 9.)    20 Kalman 2014b, 141.   

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«perfeitos em tudo excepto no facto de serem dois tamanhos acima». Segundo Kalman, estes sapatos ajudam-na a estar presente na própria vida, a possuir a própria vida: «Quando os uso, tenho de andar devagar e com cuidado, atenta a cada passo. Deste modo, sou incentivada a estar presente no momento. Ainda assim, o tempo é efémero e fugaz.»21

Na segunda secção do livro, comentando uma ilustração de uns sapatos amarelos da colecção do museu, Kalman tinha observado: «A capacidade de andar de um ponto para o outro é meio caminho andado [half the battle won].»22 Estar presente no momento, possuir a própria vida está implicado na

possibilidade de estabelecer activamente relações entre coisas e pessoas, coisas e coisas, pessoas e pessoas23. A última frase gramaticalmente correcta desta

secção é: «Tudo faz parte de tudo.» Em todos estes momentos do livro, a noção de relação desempenha um papel fundamental. As colecções são um recurso fundamental para a reflexão sobre o estabelecimento das relações entre as diversas dimensões da vida na medida que concretizam processos de outro modo muito difíceis de analisar. As colecções mostram-nos como fazer sentido.

Ao longo desta tese, vou dizer que ser feliz depende da liberdade de identificar, interpretar e partilhar as nossas coisas favoritas e que esta liberdade tem impacto político na medida em que nos permite participar na definição do que é mais importante na nossa cultura. Por outras palavras, falando sobre coleccionadores e colecções, vou falar sobre coisas que dão sentido à vida.

       21 Kalman 2014b, 143.    22 Kalman 2014b, 59.    23 O último objecto da colecção do museu que Kalman apresenta na segunda secção 

deste  livro  é  um  «mourning  sampler»  mexicano  que,  como  Kalman  destaca,  inclui  a  frase «O amor une‐nos». (Kalman 2014b, 101.) 

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1. Contexto de origem, colecções e museus

1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa

Devido à intensidade e à longevidade da controvérsia, na discussão em torno da colecção de Elgin, agora mais conhecida pela designação Mármores do

Parténon, são trocados argumentos e acusações que revelam tópicos com que a

cultura das colecções se tem confrontado e definido ao longo dos tempos. Entre estes tópicos incluem-se a imagem negativa dos coleccionadores como saqueadores e/ou vítimas descontroladas da própria cobiça, a imagem negativa das colecções e dos museus como vazios contextuais e/ou mausoléus da arte e do património, as relações mais ou menos difíceis entre colecções e museus, por um lado, e as vertentes públicas e privadas, colectivas e individuais, estáveis e vulneráveis, tanto das pessoas como das coisas.

Coleccionador mal-amado de uma das colecções mais discutidas de todos os tempos, figura infeliz, lorde Elgin parece ilustrar nos seus actos também os malefícios principais da cultura das colecções: ganância, ambições imperialistas, vandalização do património, corrupção e actos ilegítimos, descontextualização cultural e sobrevalorização de objectos em detrimento de valores imateriais mais importantes. Lorde Elgin converteu-se no paradigma do coleccionador como pessoa indesejável e geralmente mal-intencionada que se torna perigosa pela sua incapacidade de resistir às paixões materiais.

Atacados por uns e por outros, pelo facto de afectarem tantos interesses diferentes, lorde Elgin e a sua colecção, na medida em que lembram que a arte

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não está desligada da vida das pessoas, são os melhores pontos de partida para a nossa investigação24.

Thomas Bruce (1766-1841), sétimo duque de Elgin, o coleccionador responsável pela presença dos Mármores do Parténon no British Museum, tem sido uma das figuras mais atacadas em toda a História deste museu. Tanto os partidários da restituição dos Mármores de Elgin à Grécia como os defensores da retenção destas peças no British Museum descrevem as acções de Elgin como actos de legitimidade contestável. Além de ter ordenado a remoção de elementos essenciais do Parténon, causando, para tal, danos graves na estrutura do edifício, de ter sujeitado estas peças aos riscos do seu transporte para Inglaterra (afundamento, roubo, danos, perda, destruição) e às vicissitudes da sua instalação em diversos espaços antes da sua aquisição pelo British Museum, lorde Elgin só por meios duvidosos (como suborno e tráfico de influências) terá obtido uma autorização pouco clara para estes actos.

Na versão mais caridosa da história do coleccionador e da colecção, no entanto, quando, em 1798, lorde Elgin foi nomeado embaixador britânico no império otomano, o arquitecto Thomas Harrison (1744-1829)25 sugeriu-lhe que

aproveitasse a oportunidade para estudar e documentar a arquitectura e a escultura grega através de desenhos e moldes de gesso, de modo a melhorar o conhecimento desta em Inglaterra. Lorde Elgin encarou este projecto como contributo filantrópico para o desenvolvimento do gosto e da arte na

Grã-      

24  Três  livros  essenciais  para  compreender  a  História  do  Parténon  são:  St.  Clair, 

William.  1967.  Lord  Elgin  and  the  Marbles.  Londres:  Oxford  University  Press  ;  Beard,  Mary. 2010. The Parthenon. Londres: Profile Books; e Hitchens, Christopher. 2008. The 

Parthenon Marbles: The Case for Reunification. Londres e Nova Iorque: Verso. 

 

25  Muito  interessado  na  arquitectura  clássica,  é  considerado  um  dos  grandes 

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Bretanha. Os impulsos filantrópicos de Elgin ampliaram-se quando a equipa que trabalhava na Acrópole o informou de que o trabalho era perturbado por turistas e habitantes locais que não hesitavam em retirar fragmentos dos edifícios. Elgin concluiu que era importante não só documentar mas também preservar partes importantes do edifício.

Neste ponto, no entanto, o coleccionador fez algumas opções contestáveis. No seu entendimento, as peças só poderiam ser preservadas se fossem protegidas dos gestos selvagens de remoção a que estavam expostas naquele sítio. Visto que nem os Gregos nem as autoridades turcas mostravam compreensão da gravidade do problema, Elgin pensou que uma civilização supostamente mais avançada como a inglesa compreenderia mais facilmente a necessidade de conservar aquelas peças. Assim, obteve uma autorização que, não sendo totalmente clara, permitiu à sua equipa remover fragmentos do Parténon sem ser incomodada.

À semelhança de outros exploradores e coleccionadores que vendiam aos museus britânicos os objectos que reuniam nas suas viagens por vezes realizadas em missão oficial ou política, Elgin planeava oferecer esta colecção ao British Museum. Esperando ser reembolsado, não se preocupou com as despesas que, devido aos diversos infortúnios (desde a prisão em França ao divórcio, passando pela contestação da autenticidade e do valor das peças por Richard Payne Knight e pelos ataques pessoais de Byron) que perturbaram a transferência pacífica e rápida da colecção para o British Museum, acabariam por o colocar numa situação económica próxima da ruína, sem perspectivas de carreira, obrigado a transferir a colecção de um lugar para o outro, à mercê da disponibilidade de espaços e da boa-vontade de conhecidos. O dinheiro que acabou por receber no fim do prolongado processo de venda ao British Museum

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ficou muito aquém dos fundos investidos pelo próprio coleccionador neste projecto.

Nas versões menos caridosas da história, os defensores da restituição das peças ao seu contexto de partida tentam esmiuçar as intenções mais obscuras de Elgin. Investigando a sua correspondência pessoal, alegam que, a dada altura, em duas linhas de uma carta, Elgin teria admitido a hipótese de usar as peças para decorar a sua residência privada26. De acordo com esta perspectiva, tendo

usado a sua posição oficial com objectivos egoístas e gratuitos, nem pelas suas intenções supostamente altruístas poderia o coleccionador de algum modo ser redimido.

Para os defensores da retenção dos Mármores no British Museum tornou-se importante desvanecer o mais possível a ligação entre coleccionador e colecção, como se actos e intenções de legitimidade discutível pudessem ficar com o coleccionador, mantendo o museu só as peças da colecção, desligadas das vertentes mais problemáticas da sua História. Visitando os Mármores do Parténon no British Museum27, só a custo se encontra alguma referência a lorde

Elgin. O coleccionador é referido numa salinha pequena e escura, onde se conta de modo breve o percurso das peças desde Atenas até Londres, mas que facilmente passa despercebida a quem não estiver familiarizado com esta controvérsia. É enorme o contraste entre esta sala e a galeria Duveen, onde a luz e o espaço mostram em toda a sua glória as peças principais da colecção de Elgin – como se não fosse preciso qualquer referência ao mundo exterior para perceber a beleza e o valor destas obras de arte.

       26  Ver Hitchens 2008, 31‐32.    27  Em Março de 2013. 

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Na galeria Duveen do British Museum, não são acidentais nem o obscurecimento da história do coleccionador e da colecção, nem a sugestão de auto-suficiência destas peças. Além de o British Museum não querer associar-se aos episódios mais dúbios da história da remoção, do transporte e da aquisição das peças do Parténon, visto que as autoridades gregas insistem na restituição das peças à Grécia, tendo construído um museu com um lugar reservado para estas numa sala com uma janela panorâmica com vista para o Parténon, é importante para o museu britânico que as peças possam valer por si, desligadas do seu contexto original, produzindo um impacto artístico supostamente independente do seu percurso no espaço e no tempo. A instalação dos Mármores na galeria Duveen possibilita que os visitantes os vejam antes de mais como obras de arte cuja beleza sobrevive não só ao tempo mas também às diferenças culturais. Que estas peças sejam parte do Parténon é quase secundário nesta galeria, parecendo apenas uma informação adicional.

À sugestão de autonomia das peças alia-se a integração conceptual destas na colecção maior do museu. Autodescrevendo-se como instituição que expõe e dá a conhecer o melhor da cultura universal, o British Museum propõe, por um lado, que nenhuma nação pode reclamar como seus objectos importantes para todas as culturas, e, por outro, que o próprio Parténon e a cultura grega saem a ganhar com a integração das suas peças num contexto tão enriquecedor.

Enquanto o British Museum e os partidários da retenção dos Mármores procuram expandir o contexto dos Mármores até os converterem em algo quase abstracto (arte, espécimes da cultura universal), no lado oposto da discussão, os argumentos mais importantes dos partidários da restituição das peças do Parténon restringem o contexto das peças. Para estes, não faz sentido que os Mármores estejam em algum outro lado que não a Grécia, mais especificamente

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junto ao Parténon, porque este é o seu contexto de origem. Vendo o Parténon como parte essencial da História da Grécia e da identidade cultural grega, os defensores da restituição alegam que nem a identidade dos Gregos, nem o Parténon, nem os Mármores poderão alguma vez estar «completos» se não forem associados materialmente no espaço grego.

Em toda a controvérsia em torno do Parténon e das suas peças, portanto, um dos elementos mais interessantes é a facilidade com que se produz descrições diferentes dos elementos em questão. Estes são descritos, à vez, como arte, como objectos pedagógicos capazes de educar o gosto e a competência artística, como parte da História e da cultura universais, como parte de uma cultura clássica que em muito transcende, ou não, as fronteiras espaciotemporais da Grécia, como parte essencial de uma identidade nacional e como fragmentos indevidamente removidos de um edifício antigo.

As descrições variam de acordo com os contextos materiais e imateriais a partir dos quais estas peças são encaradas, mas embora nem todas estas descrições pareçam imediatamente compatíveis, todas são afectadas umas pelas outras. O valor tanto dos Mármores do Parténon como do próprio edifício passa a ser definido pela interacção de todas as descrições. É por serem tão universalmente valorizadas que as peças são importantes do ponto de vista nacional e vice-versa. É por terem valor artístico e histórico que têm valor pedagógico e vice-versa. Pelo facto de as suas peças serem tão valorizadas e discutidas é que o Parténon continua a destacar-se como símbolo de uma civilização, de uma nação e de toda uma cultura; por terem feito parte do Parténon é que estas peças recebem tanta atenção.

Devido à incompatibilidade dos interesses envolvidos, a que não são alheias dimensões turísticas, económicas e políticas, as instituições que

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acolhem e protegem quer as peças do Parténon, quer o próprio edifício, acentuam artificialmente a incompatibilidade entre os diversos entendimentos possíveis do edifício e das suas peças, em vez de tentarem integrar as várias possibilidades descritivas em questão. Entre as duas principais instituições envolvidas na discussão, nem o British Museum, insistindo na autonomia artística e cultural das peças, nem o Museu da Acrópole, enfatizando a sua identidade especificamente nacional, produzem descrições completas do que está em questão.

Em Dezembro de 2014, a notícia do empréstimo ao Hermitage de Sampetersbursgo de uma peça do Parténon incluída na colecção do British Museum – a estátua do deus Ilissos – reacendeu a discussão em torno desta colecção. O centro da controvérsia foi outra vez a propriedade das peças: a quem pertencem os Mármores do Parténon?

Apesar de o problema da propriedade destas peças ser pertinente, tomar em consideração apenas esta questão é simplificar uma questão muito mais complexa, como, por si só, a própria História das peças indica. Quando vemos os responsáveis gregos afirmarem que as peças lhes pertencem e não as querem emprestar28, lembramo-nos de discussões entre crianças. As peças do Parténon

pertencem exclusivamente ao seu país de origem? As fronteiras geográficas serão a questão decisiva nesta discussão? Ao longo desta tese defendemos que a questão da preservação (no sentido heideggeriano do termo, aliado às noções de consideração, partilha e respeito pelos objectos) é mais importante do que as questões da propriedade e da posse.

      

28

  Ver  http://www.theguardian.com/artanddesign/2014/dec/05/parthenon‐marbles‐ greece‐furious‐british‐museum‐loan‐russia‐elgin.  (Consultado  em  9  de  Janeiro  de  2015.) 

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Neste capítulo argumenta-se que tanto os contextos maiores como os mais específicos são importantes para a descrição quer do Parténon, quer dos Mármores do Parténon actualmente expostos no British Museum. Trata-se de defender que a identidade das coisas – e, mais especificamente, dos Mármores do Parténon – depende da sua integração na vida e nas actividades das pessoas, e não só de conceitos abstractos ou institucionais a que possam ser associadas. Assim como a identidade das pessoas se define a partir dos contextos que estas percorrem, em interacção com outras pessoas, seres vivos e coisas, também a identidade das coisas deve ser descrita tomando em consideração os contextos que estas vão ocupando e afectando. Tal como não é possível descrever lorde Elgin sem referir esta colecção, também não é possível descrever os Mármores do Parténon e o próprio Parténon sem mencionar Elgin, a sua colecção e a presença desta no British Museum.

A reflexão sobre a cultura das colecções desencadeada pela controvérsia em torno dos Mármores do Parténon articular-se-á com uma reflexão sobre a relação entre as pessoas e as coisas, com o objectivo de se tentar perceber até que ponto o privado, o específico, o individual e o vulnerável se definem em conexão com o público, o geral, o colectivo e o estável. Argumentar-se-á paralelamente que tomar em consideração as diversas possibilidades de contextualização e de integração das coisas na vida das pessoas é o melhor modo de descrever quer as coisas, quer as pessoas

1.2 Contexto museológico versus contexto original

Desde o início, a cultura das colecções desenvolveu-se em articulação com a guerra, a conquista e a expansão do poder político e económico. Entre os

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antepassados das colecções modernas, os tesouros reais, os tesouros das igrejas e os gabinetes de curiosidades reuniam objectos obtidos em viagens relacionadas com confrontos bélicos ou evangelizadores, aliados ao objectivo de confiscar riqueza. A oposição entre contexto da colecção ou contexto museológico, por um lado, e contexto de origem dos objectos, por outro, tem, assim, uma longa história. A fundação dos primeiros museus públicos, tantas vezes relacionada com apropriação de objectos de proprietários privados ou de culturas dominadas pela guerra, pode ser encarada como episódio desta História.

Ainda que actualmente se reconheça o papel das colecções e dos museus na preservação do património cultural e as colecções e os museus já não sejam vistos simplesmente como usurpadores de objectos e manipuladores ideológicos, nos séculos XIX e XX com facilidade encontramos ensaios baseados no contraste entre colecções ou museus, por um lado, e o contexto original dos objectos, por outro, em que os primeiros são descritos com estranheza e algum ressentimento.

Por descreverem o estranhamento inicial dos visitantes em relação aos museus, ensaios como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de

Arte29 (1815), de Quatremère de Quincy e «O Problema dos Museus»30 (1923),

de Paul Valéry são importantes porque apontam para as especificidades mais distintivas da organização destes espaços relativamente ao contexto inicial dos objectos e obras de arte. Na medida em que também tocam em pontos comuns à

      

29  Quatremère  de  Quincy,  A.  C.  1815.  Considérations  Morales  sur  la  Destination  des 

Ouvrages d’Art. Paris: L’Imprimerie de Crapelet.    30  Valéry, Paul. 1923. «Le Problème des Musées», Valéry, Paul. 1960. OEuvres, vol. II,  Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, Bibl. de la Pléiade, 1290‐1293.   

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discussão em torno da colecção de Elgin, designadamente no que diz respeito à valorização do contexto original em detrimento de outros e à associação da noção de desenraizamento aos objectos expostos nos museus, estes ensaios ajudam-nos a reflectir sobre esta discussão. Além disso, a circunstância de estes textos terem sido escritos com pouco mais de um século de intervalo comprova a persistência da importância dos problemas referidos inicialmente por Quatremère de Quincy e retomados posteriormente por Paul Valéry.

Os pontos de vista expressos no ensaio de Valéry, na medida em que sublinham de modo breve alguns dos pontos de vista defendidos mais aprofundadamente por Quatremère de Quincy cerca de um século antes a propósito do mesmo tema, são úteis como introdução às questões que nos ocupam. Em «O Problema dos Museus», Paul Valéry salienta tanto os constrangimentos impostos aos visitantes dos museus como o desconforto causado pela organização característica destes espaços. Valéry fala da incompatibilidade entre, por um lado, os princípios de classificação, conservação e utilidade pública do museu e, por outro, as noções de liberdade e de prazer que mais naturalmente prefiriria associar à apreciação das obras de arte. Para ele, estes princípios museológicos, por serem rígidos e artificiais, não impõem a ordem transparente e pedagógica que visam. Em vez disso, instalam uma «estranha desordem organizada» que transmite a sensação de superabundância, desorientação e descontextualização.

Para Valéry, enquanto no contexto original as obras de arte se distinguem como objectos «raros» e «únicos», no museu anulam-se umas às outras pelo facto de serem associadas em conjuntos organizados sob a égide de princípios abstractos. Valéry descreve a arquitectura como mãe da pintura e da escultura, sugerindo que o contexto original da arte exposta no museu é o das casas para

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as quais estas obras de arte teriam sido encomendadas. Neste contexto original, pintura e escultura teriam «o seu lugar, a sua função, os seus constrangimentos [naturais]», «o seu espaço, a sua iluminação bem definida, os seus assuntos, as suas alianças». Fora deste contexto estariam «mortas». Por esse motivo, Valéry descreve o museu como mausoléu da arte, «entre o templo e o salão, o cemitério e a escola».

Quatremère de Quincy pode ser descrito como um dos fundadores deste tipo de reflexão sobre o espaço museológico. Vivendo nos tempos marcados pela Revolução Francesa, pela recolha de despojos de guerra posteriormente instalados em contexto museológico e pela definição de novas noções de direitos individuais e democracia, Quatremère de Quincy (1755-1849) aborda estas questões em textos como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de

Arte (1815), Cartas a Miranda31 (1796) ou Cartas a Canova32 (1818),

documentos hoje considerados essenciais para a reflexão sobre património artístico e cultural.

No ensaio Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte, Quatremère não só aborda de modo mais extenso e aprofundado as questões que um século depois continuariam a suscitar o estranhamento de Valéry e de outros, como reflecte sobre a importância do contexto das obras de arte, abordando noções de propriedade, pertença, apropriação e identidade que são centrais tanto na fundação dos museus de acesso público como para a compreensão da cultura das colecções. O facto de em Cartas a Canova

       31 Quatremère de Quincy, A. C. [1796] 1989. Lettres à Miranda sur le déplacement des  monuments de l'art de l'Italie. Introdução e notas de Edouard Pommier. Paris:  Macula.    32  Quatremère de Quincy, A. C. 1818. Lettres écrites de Londres à Rome, et adressées à  M. Canova sur les Marbres d'Elgin, ou les sculptures du temple de Minerve à Athènes.  Roma: S. I. 

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Quatremère reformular alguns dos pontos de vista que defendera anteriormente reforça e prolonga a amplitude desta reflexão.

Atento às questões mais importantes relacionadas com estes assuntos, Quatremère não passou ao lado da discussão em torno dos Mármores de Elgin. A sua atenção a esta colecção faz notar que a discussão em seu torno toca pontos fundamentais no que diz respeito não só ao contexto museológico mas também à cultura das colecções. Tanto no século XIX como no século XXI, reflectir sobre a colecção de Elgin é importante para uma reflexão mais geral sobre as relações entre colecção, museu e contexto, por um lado, e as relações entre as pessoas e as coisas, por outro.

As contradições que alguns apontam entre as posições defendidas por Quatremère nos textos referidos sinalizam a dificuldade destas questões. Enquanto em Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte e

Cartas a Miranda Quatremère defende o valor do contexto original das obras

de arte por oposição ao espaço supostamente descontextualizado dos museus, em Cartas a Canova, um conjunto de cartas que o ensaísta endereçou ao escultor italiano Antonio Canova (1757-1822) a propósito das suas visitas aos Mármores de Elgin no British Museum, Quatremère mostra-se sensível às vantagens do espaço museológico para a apreciação das obras de arte, reconhecendo que este cria possibilidades de observação e de compreensão inexistentes no contexto original destas peças. Estas duas posições, no entanto, não são necessariamente contraditórias.

Ainda que as observações de Valéry em «O Problema dos Museus» relativamente à importância do contexto original das obras de arte pareçam próximas das de Quatremère – que, em Considerações Morais sobre o Destino

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peças se vêem desprovidas de qualquer função útil, pelo que, desligadas da vida real, só podem suscitar apreciações críticas estéreis33 –, a reflexão mais

aprofundada de Quatremère sobre o papel do contexto na recepção das obras de arte torna-o mais sensível às possibilidades do contexto museológico.

Noutros momentos, Quatremère demonstra reconhecer a importância dos conceitos de «colecção» e «museu» no conhecimento, avaliação e criação da arte. Em Cartas a Miranda, o volume de correspondência que dirigiu ao general Francisco de Miranda, o ensaísta explora estes conceitos tanto através da descrição de Roma como arquétipo dos museus e das colecções, como descrevendo a importância das actividades em torno de uma colecção.

Um tanto ironicamente, a descrição que Quatremère faz de Roma («Roma em si própria já é, para o verdadeiro curioso, um mundo inteiro a percorrer, uma espécie de mappa mundi em relevo em que é possível encontrar representados de modo abreviado o Egipto e a Ásia, a Grécia, o Império Romano e os mundos antigos e modernos; [...] ter visto Roma é ter feito várias viagens numa só»34) poderia ser usada para publicitar museus como o Louvre

ou o British Museum, apesar de Quatremère estar a argumentar contra o deslocamento de peças de Roma para este tipo de instituição. À semelhança de Roma, estes museus integram objectos de todo o mundo, de períodos históricos diferentes e de diversas culturas. Ver todos estes objectos no seu contexto de

      

33 «Obras que, deslocadas e retiradas das suas origens antigas, se convertem em meros 

assuntos  de  crítica,  em  simples  objectos  de  observação  para  o  espírito.  O  público  perde  de  vista,  no  meio  dessas  colecções,  as  causas  que  fizeram  nascer  as  obras,  as  relações a que se submetiam, as afeições com que deveriam ser consideradas e essa  multiplicidade  de  ideias  morais,  de  harmonias  intelectuais  que  lhes  davam  tantos  meios diversos de agir sobre a nossa alma.» (Quatremère 1815, 50.) 

 

34 Quatremère 1796, 86 (Cartas a Miranda, Carta VII.) 

Referências

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