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A responsabilidade civil extracontratual do estado nos casos de violência obstétrica ocorridos no serviço público de saúde: um check up jurisprudencial

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO ADMINISTRATIVO

JASMINNE FERNANDES MASCARENHAS

A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA OCORRIDOS NO SERVIÇO PÚBLICO

DE SAÚDE: UM CHECK UP JURISPRUDENCIAL

Orientadora: Prof. Msc. Catarina Cardoso Sousa França

NATAL/RN 2017

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JASMINNE FERNANDES MASCARENHAS

A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA OCORRIDOS NO SERVIÇO PÚBLICO

DE SAÚDE: UM CHECK UP JURISPRUDENCIAL

Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como pré-requisito para obtenção de título de Especialista em Direito Administrativo. Orientadora: Prof. Msc. Catarina Cardoso Sousa França

NATAL/RN 2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA.

Elaborado por Shirley de Carvalho Guedes - CRB-15 - 404

Mascarenhas, Jasminne Fernandes.

A responsabilidade civil extracontratual do estado nos casos de violência obstétrica ocorridos no serviço público de saúde: um check up jurisprudencial / Jasminne Fernandes Mascarenhas. - 2017.

65f.: il.

Monografia (Especialização em Direito Administrativo) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2017.

Orientador: Prof. Me. Catarina Cardoso Sousa França.

1. Direito administrativo – Monografia. 2. Responsabilidade civil - Monografia. 3. Violência obstétrica - Monografia. 4. Serviço Público de Saúde – Monografia. I. França, Catarina Cardoso Sousa. II. Título.

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À todas as mulheres vítimas de violência que tiveram seu parto roubado e seus corpos violados. Que suas histórias e cicatrizes não sejam ignoradas tampouco esquecidas.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, minha maior gratidão, pela oportunidade e benção de estar concluindo mais um ciclo importante da minha vida.

À minha amada mams, Bete, ao meu pai, Gilvan, às melhores irmãs, Brisa e Gigi, e aos demais familiares, pelo amor, incentivo e apoio incondicionais.

Ao Bufa, príncipe da casa, por todo o afeto felino e sincero.

Às queridas amigas e amigos que caminharam junto comigo ao longo do curso de especialização, Magno Catão, Lara Marcelino, Lorena Rêgo, Camila Gurgel, Lizandra Diniz, Raiano Tavares e Julliana Lins, por tornarem as aulas do curso de especialização tão mais leves e prazerosas. O nosso grupinho, carinhosamente chamado de “lençol freático”, sempre estará no meu coração.

Ao meu amuletinho da sorte, Isolda Amorim, por toda a força e palavras de carinho, durante a elaboração desse trabalho.

Por fim, à minha orientadora, professora Catarina França, cujas aulas me mostraram um pouco mais da realidade do setor obstétrico no país e me inspiraram a escrever sobre esse tema. Tenho muito a agradecer pelo suporte no pouco tempo que lhe coube e contribuição para a elaboração dessa monografia.

E a todas e todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação, igualmente, o meu muitíssimo obrigada!

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“Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?” “Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.” “Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.” “Na hora de fazer, você gostou, né? “Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha.” (Frases repetidamente relatadas por mulheres que deram à luz em várias cidades do Brasil, no Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor”).

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RESUMO

O presente trabalho apresenta como temática principal a responsabilidade civil extracontratual do Estado nos casos de violência obstétrica praticada no serviço público de saúde, de modo a dar uma visibilidade maior ao assunto na comunidade acadêmica, sob a perspectiva da humanização do serviço de saúde como dever estatal. Para elucidar as ideias dessa pesquisa, é realizada, inicialmente, uma breve abordagem do que consiste esse tipo de violência institucional, com destaque para a importância de se reconhecer o dever do Estado em assegurar um parto e um nascimento humanizado, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental social à saúde da mulher, salvaguardados na Constituição Federal brasileira, sendo apresentados, ainda, Projetos de Lei em tramitação atinentes ao tema. Na sequência, são vistas noções gerais a respeito da responsabilidade civil extracontratual do Estado, passando-se pela evolução de suas teorias no ordenamento jurídico do país, até os seus pressupostos, com enfoque posterior à sua aplicação em matéria de saúde pública. Mais adiante, expõem-se julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte que manifestam o entendimento da Corte sobre o assunto, a fim de se demonstrar de que modo o ente estatal tem sido responsabilizado nesses casos, e como tem sido dado o tratamento da violência obstétrica pelo Poder Judiciário de maneira geral. O objetivo, ao final, consiste em defender a responsabilização do Estado pelos danos advindos desse tipo de prestação de serviço público desumano e cruel com o corpo da mulher, em atenção à teoria do risco administrativo adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, haja a vista a ausência de reconhecimento formal da violência obstétrica, a qual acarreta dificuldades em considerá-la como fonte geradora de danos morais, patrimoniais e/ou estéticos. A metodologia empregada no estudo em apreço baseia-se na pesquisa bibliográfica e documental, baseia-sendo a abordagem eminentemente qualitativa, haja vista a finalidade de se realizar uma análise jurídica e jurisprudencial, em caráter explicativo e exploratório, acerca das problemáticas desenvolvidas.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Saúde Pública. Violência obstétrica. Humanização do Parto e Nascimento.

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ABSTRACT

This monography presents as main theme the State's extracontractual civil responsibility in cases of obstetric violence practiced in the public health service, in order to give a greater visibility to the subject in the academic community, from the perspective of the humanization of the health service as a state duty. In order to elucidate the ideas of this research, a brief analysis is initially made of what constitutes this type of institutional violence, with emphasis on the importance of recognizing the State's duty to ensure a childbirth and a humanized birth, in accordance with the principle of dignity of the human person and the fundamental social right to women's health, safeguarded in the Brazilian Federal Constitution, and two bills submitted by the National Congress and the City Council on the subject are presented. As a result, general notions regarding non-contractual civil liability of the State are observed, with the evolution of its theories in the legal system of the country, to its presuppositions, with a focus after its application in the field of public health. Subsequently, they are tried by the Court of Justice of Rio Grande do Norte, which expresses the Court's understanding of the matter, in order to demonstrate how the state entity has been held responsible in such cases, and how the treatment has been given of obstetric violence by the Judiciary in general. The purpose, in the end, is to defend the State's responsibility for the damages resulting from this kind of inhuman and cruel public service with the woman's body, in view of the administrative risk theory adopted by the Brazilian legal system, given the absence of formal recognition of obstetric violence, which entails difficulties in considering it as a source of moral, patrimonial and aesthetic damages. The methodology used in this study is based on bibliographical and documentary research. The approach is eminently qualitative, considering the purpose of carrying out a juridical and jurisprudential analysis, in an explicative and exploratory, about the problems developed.

Keywords: Administrative law. Civil Responsibility of the State. Public health. Obstetric violence. Humanization of Childbirth and Birth.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 RECONHECENDO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A RELEVÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO DO PARTO E DO NASCIMENTO ... 13

2.1 A (IN)VISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA REFLETIDA NO COTIDIANO DOS SERVIÇOS DE ATENÇÃO À SAÚDE REPRODUTIVA ... 16

2.2 A HUMANIZAÇÃO COMO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA ... 20

2.3 O DIREITO À ASSISTÊNCIA HUMANIZADA AMPARADO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ... 26

2.4 OS PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO ... 30

3 A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E SUA APLICAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE PÚBLICA ... 32

3.1 AS TEORIAS DA RESPONSABILIDADE DO PODER PÚBLICO E SUA EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO ... 35

3.2 OS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO ... 39

3.2.1 Conduta estatal ... 39

3.2.2 Dano ao administrado ... 40

3.2.3 Nexo de causalidade ... 41

3.3 O DEVER ESTATAL DE REPARAR OS DANOS ADVINDOS DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE ... 41

4 A PULVERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA E SUA ANÁLISE A PARTIR DE CASOS JULGADOS PELO TJRN À LUZ DO §6º DO ART. 36 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ... 45

4.1 CASO I: ALEXANDRA CLÍVIA V. DE SOUZA VS. ASSOCIAÇÃO HOSPITAL CENTENÁRIO DE PAU DOS FERROS E ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE ... 47

4.2 CASO II: WÉLICA MOURA DA SILVA VS. ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE ... 48

4.3 CASO III: ACELIANA OLIVEIRA VS. MUNICÍPIO DE CEARÁ-MIRIM ... 49

4.4 CASO IV: MARIA DAS DORES S. DA SILVA BARROS VS. ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE ... 50

4.5 CASO V: MARIA DAS GRAÇAS DOS SANTOS VS. MUNICÍPIO DE PARNAMIRIM ... 51

4.6 REFLEXÕES ACERCA DOS JULGADOS LEVANTADOS ... 53

5 CONCLUSÕES ... 57

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia apresenta como temática principal a responsabilidade civil extracontratual do Estado nos casos de violência obstétrica praticada no serviço público de saúde, tendo em vista que essa prática, até então, velada, é marcada pela impunidade dos agentes públicos de saúde e silêncio das violentadas, e no Brasil, acomete uma entre quatro mulheres, segundo dados estatísticos.

A escolha por esse mote foi fruto de recentes debates acontecidos esse ano, na cidade de Natal/RN, promovidos, sobretudo, pelo Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento local e pela Associação Potiguar de Doulas, em parceria com profissionais da área médica e jurídica, que chamaram a atenção ao assunto, provocando a elaboração do Projeto de Lei nº 30/2017, de autoria da vereadora Natália Bonavides, que tramita na Câmara Municipal da capital, com o objetivo de regulamentar, no âmbito público e privado, a humanização da via de nascimento, os direitos da mulher relacionados ao parto, e as medidas de proteção contra a violência em questão.

Dessa forma, além de ser um termo relativamente novo na seara jurídica, a violência obstétrica vem sendo alvo de constantes polêmicas a respeito da sua falta de regulamentação de forma específica, não havendo, no país, até o presente momento, nenhuma lei que tipifique tal conduta e facilite a busca da tutela jurisdicional de reparação dos danos advindos dessa violação, bem como a imposição de sanções aos agentes que cometam esse tipo de ato, como ocorre na Venezuela e Argentina.

A mola propulsora dessa investigação científica, portanto, é justamente o fato de que a violência obstétrica ainda é uma questão pouco debatida e compreendida na Academia, especialmente nos estudos científicos relacionados à Administração Pública, mais propriamente à responsabilidade do Estado e sua aplicação na prestação dos serviços públicos de saúde.

Nesse ínterim, é importante destacar a relevância social e jurídica do presente estudo na área do Direito Administrativo, porquanto é flagrante e preocupante a desídia dos agentes públicos no desempenho do atendimento às gestantes e parturientes, os quais, por meio de procedimentos invasivos e, por muitas vezes, desnecessários, violam princípios constitucionais e direitos fundamentais da mulher, afrontam normas e diretrizes estabelecidas pelo próprio Ministério da Saúde, e desobedecem a recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

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Sem sombra de dúvidas, essa realidade se deve à evidente impunidade e naturalização desses tipos de conduta, decorrentes da concepção de que o parto é um momento de dor necessária, a qual se pretende, com a presente pesquisa, desmitificar, reconhecendo, para tanto, a violência obstétrica como espécie de violência de gênero, decorrente de uma cultura de medicalização e patologização do parto, fomentada por interesses lucrativos e/ou falta de conscientização por parte da classe médica.

Nessa perspectiva, serão problematizadas as seguintes questões: i) Por quais motivos o Estado tem o dever de assegurar o parto e o nascimento humanizado? ii) Quais são as condutas caracterizadoras desse tipo de violência e que podem ser alvo de indenização por parte do Estado? iii) Qual o tratamento que a jurisprudência nacional tem dado a esses casos que envolvem agentes públicos?

Dito isso, ressalte-se que o objetivo geral desse trabalho é defender a responsabilização do Estado pelos danos advindos desse tipo de prestação de serviço público desumano e cruel com o corpo da mulher, em atenção à teoria do risco administrativo adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, haja a vista a ausência de reconhecimento formal da violência obstétrica, a qual acarreta dificuldades em considerá-la como fonte geradora de danos morais, patrimoniais e estéticos.

Enquanto objetivos específicos, temos: i) descortinar as práticas mais comuns da violência obstétrica, muitas vezes invisibilizada pela sociedade e pelos agentes públicos, estabelecendo o conceito de parto humanizado, bem como sua tutela pela legislação brasileira; ii) identificar os requisitos ensejadores da responsabilidade civil extracontratual do Estado, bem como sua trajetória jurídica no Direito brasileiro, partindo-se de uma abordagem histórica acerca das teorias da responsabilidade do Poder Público; iii) verificar na jurisprudência pátria o uso do termo “violência obstétrica” pelos operadores do Direito e/ou pelas partes litigantes, bem como o modo com que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) vem decidindo esses casos, quando ocorridos no sistema público de saúde.

A metodologia empregada nessa monografia baseia-se, como procedimento de obtenção de informações, na pesquisa bibliográfica, considerando-se posicionamentos e considerações dos doutrinadores mais renomados da área do Direito Administrativo, como também de pesquisadores na área jurídica e da saúde. Assim, a pesquisa tem como alicerces livros, teses de doutorado, dissertações de mestrado, e monografias, que tratam não somente da violência obstétrica e da humanização do parto em si, como também da possibilidade de compor pretensão indenizatória contra o Estado na prestação dos serviços públicos de saúde. Cumpre destacar que a pesquisa documental também papel essencial na composição desse

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trabalho, diante da existência de relevantes materiais sobre o assunto na internet, desde dados estatísticos, documentos oficiais, revistas, até documentários.

No que tange à legislação, foram consultadas as Constituições Federais brasileiras desde 1934 até a atual de 1988, o Código Civil, o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto dos Portadores de Deficiência, as Leis 8.080/1990, 11.108/2005 e 12.895/2013, as Leis da Venezuela e da Argentina que tratam da temática, bem como os Projetos de Lei que estão pendentes de aprovação no Brasil. Além disso, foram investigadas portarias do Ministério da Saúde e recomendações da OMS, que orientam o Estado brasileiro no sentido de garantir uma atenção humanizada na assistência ao processo gestacional.

Assim sendo, o estudo tem uma abordagem eminentemente qualitativa, com caráter explicativo e exploratório, com vistas a buscar respostas às problemáticas abordadas, atingindo-se, dessa forma, os objetivos específicos delineados.

Nesse sentido, o trabalho em tela buscará, no primeiro capítulo, tratar da (in)visibilidade da violência obstétrica refletida no cotidiano dos serviços de atenção à saúde reprodutiva, de modo a reconhecer suas práticas mais comuns, bem como apresentar a humanização como forma de enfrentar tais condutas, demonstrando, inclusive, o dever estatal de assegurar uma assistência humanizada ao parto e ao nascimento, e os Projetos de Lei que estão em tramitação atinentes ao tema. Mais adiante, no segundo capítulo, abordar-se-á o tema da responsabilidade civil extracontratual do Estado, trazendo-se à baila suas noções gerais, desenvolvimento histórico e pressupostos necessários à sua configuração, com fundamento nas principais correntes doutrinárias administrativistas brasileiras e enfoque na prestação dos serviços de saúde pública. Por fim, o terceiro e último capítulo tratará de realizar um check up jurisprudencial, com vistas a averiguar de que forma é reconhecida a violência obstétrica pelo Poder Judiciário, e como a Corte local tem se posicionado sobre a temática e o direito da vítima ao pagamento de indenização contra o ente estatal.

A partir das conclusões do estudo em apreço, pretende-se corroborar com os estudos já produzidos na área de Direito Administrativo, em especial sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado na prestação dos serviços públicos de saúde reprodutiva, ampliando o conhecimento produzido no que se refere ao modo como essa violência tem sido concebida no meio jurídico, o que pode influenciar na forma com que os operadores de Direito vão lidar com tais causas, uma vez que se propõe a reflexão acerca da necessidade do Estado tomar urgentemente uma nova postura frente à violência obstétrica.

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2 RECONHECENDO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A RELEVÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO DO PARTO E DO NASCIMENTO

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher1, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, no seu artigo 1º, define a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Segundo a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, essa espécie de violência é a violação de direitos humanos mais tolerada no mundo2. E na área da saúde, no que tange aos serviços de assistência obstétrica, a situação não é diferente.

Em diversas partes do planeta, a violência obstétrica, objeto de estudo desse trabalho, tem ocorrido de forma preocupante e silenciosa. Tanto é verdade que a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2014, preocupou-se em emitir uma declaração a respeito da necessidade de prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde, convocando maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização sobre esse tema de saúde pública3.

Podemos considerá-la uma violência de gênero, pois é baseada no controle da medicina e da ciência sobre o corpo da mulher, considerada como incapaz de parir de forma natural. Porém, como bem afirma RODRIGUES4, “a violência durante o ciclo gravídico-puerperal é uma das faces menos conhecidas, porém mais dramáticas dentro da violência de gênero”, que acarreta sérias consequências para saúde da gestante, bem como do nascituro.

1 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR, ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA

A MULHER, “CONVENÇÃO BELÉM DO PARÁ”. Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário de Sessões da Assembleia Geral. Disponível em: <http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm>. Acesso em 22 set. 2017.

2 ONUBR NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. ‘Violência contra a mulher é a violação de direitos humanos

mais tolerada no mundo’, afirma ONU. 25 nov. 2015. Disponível em:

<http://nacoesunidas.org/violencia-contra-a-mulher-e-a-violacao-de-direitos-humanos-mais-tolerada-no-mundo-afirma-onu/>. Acesso em: 10 set. 2017.

3 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos

durante o parto em instituições de saúde. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

4 RODRIGUES. Heloisa Correia. O direito à assistência humanizada à mulher: entre uma conquista

legislativa e a realidade das práticas de atenção ao parto no Brasil, 2016. Cacoal, Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Rondônia, p. 41. Disponível em: <http://www.ri.unir.br/jspui/bitstream/123456789/1817/1/MONOGRAFIA%20HELOISA.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

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De fato, essa violação às mulheres muitas vezes é inserida no cotidiano da assistência médica, e até pouco tempo atrás, antes do debate em relação à violência obstétrica, sequer causavam estranhamento. Não há nem mesmo lei vigente no Brasil que tipifique tal conduta.

O primeiro país latino-americano a utilizar em sua legislação o termo “violência obstétrica” foi a Venezuela, em 2007, fruto dos movimentos feministas locais e do processo de reconhecimento institucional da violência contra a mulher como um problema social, político e público5.

A Ley organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, no item 13 do artigo 15, entende por violência obstétrica a apropriação do corpo e do processo reprodutivo feminino pelos profissionais da saúde, consistente no tratamento desumanizado, uso abusivo de medicação e conversão do processo natural de nascimento em patologia, com consequente perda da autonomia feminina e impossibilidade de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, o que impactaria negativamente na qualidade de vida da mulher6.

Ressalte-se que a própria Lei estabelece, em seu artigo 517, como sanção aos profissionais que cometeram algum dos atos de violência obstétrica uma multa (entre 250 U.T. e 500 U.T., sem prejuízo de condenação pela responsabilidade civil – indenização ou reparação). Porém, a legislação, como ressalta PEREIRA8, possui uma fragilidade, pois falta a normatização sobre o que se compreende como humanização do atendimento ao parto.

5

SENA, Ligia Moreiras; TESSER, Charles Dalcanale. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: relato de duas experiências. Interface (Botucatu). 2017, vol.21. n. 60, p. 211. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n60/1807-5762-icse-1807-576220150896.pdf>. Acesso em: 15 out. 2017.

6 “Artículo 15. Se consideran formas de violencia de género em contra de las mujeres, las seguientes: [...] 13.

Violencia obstétrica: Se entiende por violencia obstétrica la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de vida de las mujeres”. (VENEZUELA. Ley organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. Disponível em: <http://www.derechos.org.ve/pw/wp-content/uploads/11.-Ley-Org%C3%A1nica-sobre-el-Derecho-de-las-Mujeres-a-una-Vida-Libre-de-Violencia.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017).

7 “Artículo 51. Se considerarán actos constitutivos de violencia obstétrica los ejecutados por el personal de salud,

consistentes en:

1. No atender oportuna y eficazmente las emergencias obstétricas. 2. Obligar a la mujer a parir en posición supina y con las piernas levantadas, existiendo los medios necesarios para la realización del parto vertical. 3. Obstaculizar el apego precoz del niño o niña con su madre, sin causa médica justificada, negándole la posibilidad de cargarlo o cargarla y amamantarlo o amamantarla inmediatamente al nacer. 4. Alterar el proceso natural del parto de bajo riesgo, mediante el uso de técnicas de aceleración, sin obtener el consentimiento voluntario, expreso e informado de la mujer. 5. Practicar el parto por vía de cesárea, existiendo condiciones para el parto natural, sin obtener el consentimiento voluntario, expreso e informado de la mujer.

En tales supuestos, el tribunal impondrá al responsable o la responsable, una multa de doscientas cincuenta (250 U.T.) a quinientas unidades tributarias (500 U.T.), debiendo remitir copia certificada de la sentencia condenatoria definitivamente firme al respectivo colegio profesional o institución gremial, a los fines del procedimiento disciplinario que corresponda”. (Idem).

8 PEREIRA, Desirée Marques. Violação ao direito à saúde das mulheres no parto: uma análise do perfil dos

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A Argentina, por sua vez, promulgou a Lei do Parto Humanizado (Lei Nacional nº 25.929 de 2004)9, garantindo vários direitos às mulheres durante a gestação, trabalho de parto, parto, pós-parto, como o direito à informação sobre as possíveis intervenções, ao tratamento com respeito, individual e personalizado ao parto natural, de modo a respeitar os tempos biológicos e psicológicos evitando práticas invasivas, entre outros. Em seguida, o país ainda sancionou a Lei nº 26.485/2009 (Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los âmbitos em que desarollen sus relaciones interpersonales)10, na qual a violência obstétrica foi tipificada como violência contra a mulher, mas não foi criminalizada, tal qual fez a lei venezuelana.

Embora as condutas violentas da assistência ao parto já estivessem sendo discutidas no Brasil desde as décadas de 1980 e 1990, por grupos de profissionais da saúde e defensores dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres, impulsionados por uma parcela do movimento feminista, foi só nos anos 2000 que o assuntou passou a ser, realmente, objeto de estudos científicos no país, ainda permanecendo, contudo, em grande invisibilidade e/ou sendo naturalizadas por grande parte das gestantes, profissionais da saúde, gestores e população em geral11.

Acerca de tal questão, SENA e TESSER12 fazem uma observação interessante, no sentido de destacar os fatores que ensejam essa invisibilidade, quais sejam, a banalização de condutas pautadas em estereótipos de classe e gênero, vistas como “uma brincadeira” pelo sujeitos envolvidos e até esperadas pela paciente; a aceitação e banalização, por parte dos profissionais, de intervenções já consideradas comprovadamente despiciendas; e a dificuldade que a maioria das usuárias têm de criticar o serviço de saúde e os profissionais que as atenderam, principalmente no que tange à assistência perinatal, onde as mulheres geralmente, após o nascimento de um bebê saudável, se sentem aliviadas e agradecidas, o que, para elas compensaria qualquer mau tratamento durante o procedimento médico.

Curso (Graduação em Saúde Coletiva) – Universidade de Brasília, p. 22. Disponível em: <http://bdm.unb.br/handle/10483/12509>. Acesso em: 23 out. 2017.

9 ARGENTINA. Ley nacional nº 25.929. de Derechos de Padres e Hijos el proceso de nacimiento. Declaración

de interes del Sistema Nacional de Información Mujer, por parte Del Senado de la Nación. Declaración sobre

difusión del Parto Humanizado. Disponível em:

<https://www.unicef.org/argentina/spanish/ley_de_parto_humanizado.pdf>. Acesso em: 24 out. 2017.

10

ARGENTINA. Ley 26. 485. Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los âmbitos em que desarollen sus relaciones interpersonales. Disponível em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/150000-154999/152155/norma.htm>. Acesso em: 24 out. 2017.

11

SENA, Ligia Moreiras; TESSER, Charles Dalcanale, op. cit., p. 209-214.

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Diante dessa constatação, faz-se imperioso, no presente trabalho, descortinar a violência obstétrica, haja vista que se encontra naturalizada como construção social. Para tanto, demonstrar-se-á, a seguir, alguns dados estatísticos e pesquisas que comprovam sua existência, bem como suas práticas mais comuns, as quais se mostram contrárias à qualidade de atenção, condição esta que assegura o respeito ao princípio da dignidade humana e do direito fundamental à saúde da mulher.

2.1 A (IN)VISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA REFLETIDA NO COTIDIANO DOS SERVIÇOS DE ATENÇÃO À SAÚDE REPRODUTIVA

A violência obstétrica está diretamente relacionada à história do parto, e se fez presente, sobretudo, após a inserção da prática obstétrica na medicina em que o parto deixou de ser um episódio natural, compartilhado apenas no seio familiar, realizado por parteiras, para se tornar uma espécie de evento no ambiente hospitalar, prática dominada pela medicina e institucionalizada nos hospitais13.

Resultado disso foi o surgimento de condutas inapropriadas praticadas pelas instituições hospitalares e pelos profissionais da saúde, que permanecem entranhadas e prevalecendo sobre a abordagem humanizada relacionada ao processo gestacional, fato que, muitas vezes, transforma uma ocasião que deveria ser um momento especial em verdadeira via crucis, porquanto a mulher se sente desrespeitada e violentada por aqueles que deveriam estar lhe prestando assistência14.

Assim, diariamente, mulheres sofrem violência no parto de diversas maneiras, podendo ocorrer durante o pré-natal, no parto e inclusive em situações de abortamento. Dessa forma, além de violência de gênero, a violência obstétrica pode ser considerada uma violência institucional, pois esta é justamente aquela exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão, a qual inclui desde a dimensão mais ampla de falta de acesso à má qualidade dos serviços, e abrange abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre

13

VELOSO, Roberto Carvalho; SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Reflexos da responsabilidade civil e penal nos casos de violência obstétrica. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais. Brasília, v.2, n.1, jan/jun. 2016. p. 259. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/1048/1043>. Acesso em: 27 set. 2017.

14

CORDINI, Sthefane Machado. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica pratica na rede

pública de saúde, 2015. Tubarão, Monografia (Bacharelado em Direito) – Universidade do Sul de Santa

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usuários e profissionais dentro das instituições, até por uma noção mais restrita de dano físico intencional, segundo Ministério da Saúde15.

Destaque-se que em 2010, uma pesquisa nacional elaborada pela Fundação Perseu Abramo demonstrou que 25% (vinte por cento) das mulheres que tiveram partos normais (nas redes pública e privada) relataram terem sofrido maus-tratos e desrespeitos durante o trabalho de parto e/ou pós-parto imediato16.

Além disso, embora a comunidade médica internacional considere que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% (dez por cento) e 15% (quinze por cento)17, a pesquisa Nascer no Brasil constatou que tal procedimento tem sido usado indiscriminadamente: no setor público, aproximadamente 52% (cinquenta e dois por cento) dos partos são cesárias, podendo chegar a 88% (oitenta e oito por cento) no setor privado, contrariando as recomendações da OMS18.

Em recente pesquisa divulgada na Revista Unesp Ciência19 , estima-se que cerca de um milhão de mulheres sejam anualmente submetidas a procedimentos cesarianos, sem indicação obstétrica adequada. Destas mulheres, aproximadamente 70% indicavam preferência pelo parto natural no início da gestação, mas desistiram de sua opção por falta de incentivo da rede de saúde. Ainda, segundo a pesquisa, mesmo em casos de gestações classificadas como de baixo risco para o parto natural, apenas 5,6% das mulheres assistiram ao nascimento de seus filhos sem qualquer intervenção institucionalizada.

Em 2013, foi lançado o documentário “O Renascimento do Parto”20

, financiado coletivamente e produzido de maneira independente pelo casal Érica de Paula, doula, e Eduardo Chauvet, diretor, que viajaram pelo Brasil entrevistando médicos, mães, parteiras,

15 BRASIL. Ministério da Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Série Cadernos

de Atenção Básica, n. 8. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 21. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd05_19.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

16

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Violência no parto: Na hora de fazer não gritou, 25 mar. 2013. Disponível em: <http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou>. Acesso em 22 mai. 2017.

17 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração da OMS sobre Taxas de Cesáreas: Os esforços devem

se concentrar em garantir que cesáreas sejam feitas nos casos em que são necessárias, em vez de buscar atingir

uma taxa específica de cesáreas. Disponível em:

<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/161442/3/WHO_RHR_15.02_por.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2017.

18 ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA. Projeto - Nascer no Brasil: Inquérito

nacional sobre parto e nascimento. Disponível em: <http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/principais-resultados2/>. Acesso em: 22 mai. 2017.

19PASTORE, Mariana; NOGUEIRA, Pablo. O parto em movimento: No país campeão mundial de cesárea,

cresce a mobilização por novos modelos de atenção à gestação e ao nascimento, que usem menos intervenções médicas e respeitem mais as escolhas das parturientes mas mudanças ainda geram debate intenso entre profissionais de saúde. Revista Unesp Ciência, out/2014, ano 6, nº 57, p. 16-23. Disponível em: <http://www.unespciencia.com.br/pdf/uc57/UC57_01_bx.pdf>. Acesso em: 21 mai. 2017.

20

O RENASCIMENTO DO PARTO. Brasil, 2013, 90 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9-dHeTrWuQ0&list=PLgEfiEkzmQjWZY_MsrYy6-socm3aKcot3>. Acesso em: 10 out. 2017.

(19)

especialistas e gestores públicos, a fim de se expor situações que fazem parte da dinâmica do parto e do nascimento, que colocam em segundo plano a autodeterminação da mulher sobre o seu corpo e forma de parir.

O filme ganhou vários prêmios pela sua inegável relevância social, ao apresentar o Brasil como o país com a maior taxa de cesarianas em todo o mundo, superando os 50% de todos os partos realizados no sistema de saúde, chegando a quase totalidade dos partos realizados nos hospitais privados, em decorrência da chamada “indústria do nascimento”, que criou diversos mitos (“circular de cordão”, “bebê grande demais”, “falta de passagem”, etc.) em relação ao processo gestacional, desencorajando, assim, mulheres que inicialmente desejavam parir de forma natural, e após ouvirem os próprios médicos, desistem, por serem levadas a acreditar que são incapazes de ter seus bebês sem uma intervenção cirúrgica.

Vários profissionais da saúde são entrevistados no documentário a fim de desmitificar tais afirmações, que não tem base em evidências científicas e, consequentemente, não são indicadores à realização de uma cirurgia cesárea, mas sim, verdadeiros mitos criados sob a intenção de fazer crer que a maioria das mulheres tem gravidezes de risco, o que, de fato, não é a realidade.

O longa-metragem é bastante sagaz ao mostrar que isso acontece por ser mais conveniente e lucrativo para os médicos e para o hospital ter uma paciente agendada para realização de uma cirurgia com hora e tempo de duração marcados, do que acompanhar mulheres em trabalho de parto que podem demorar horas e horas e não geram retornos financeiros com a utilização das tecnologias à disposição no hospital.

No ano seguinte, em 2014, foi divulgada a referida pesquisa Nascer no Brasil, realizada em 266 instituições de saúde espalhadas por 191 municípios, abrangendo as capitais dos estados e também das cidades do interior das cinco regiões do país, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz. Constatou-se, que a maioria das 23.940 mulheres entrevistadas entre os anos de 2011/2012, que buscaram a assistência médico-hospitalar no momento do parto, foram submetidas a intervenções inapropriadas não baseadas em evidências científicas, mas que são praticadas de forma abusiva tanto no âmbito da saúde pública quanto na particular.

Práticas violentas e agressivas continuam presentes na assistência obstétrica, perpetuadas como “praxe” e justificadas, também pela legitimação do conhecimento médico hegemônico, sendo necessário tirar a expressão “violência obstétrica” do véu invisibilizador que o torna presença silenciosa, o que faz com que muitas mulheres, mesmo tendo sido vítimas, não as reconhecem como violência.

(20)

Partindo dessa perspectiva, passa-se à análise das práticas mais rotineiras em nosso sistema de saúde.

Reconhecendo o dever de elucidar o assunto da violência obstétrica para as cidadãs e cidadãos, para que informadas as pessoas possam exigir seus direitos e denunciar abusos, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou a cartilha “Violência obstétrica: você sabe o que é?”21

, na qual, além das situações de violência obstétrica praticadas contra mulheres na gestação e nas ocasiões de abortamento, também estão elencadas as formas mais comuns de violência obstétrica.

Convém verificar que as ações expostas na cartilha como violentas são semelhantes aos casos e testemunhos exibidos do documentário dirigido por Chauvet.

De acordo com o documento, durante a gestação a violência obstétrica pode ser caracterizada por: negar atendimento à mulher ou ainda impor alguma dificuldade ao atendimento em postos de saúde onde são realizados o acompanhamento pré-natal; qualquer espécie de comentários constrangedores à mulher e relacionados à sua cor, raça, etnia, idade, escolaridade, religião ou crença, condição econômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, número de filhos, etc; ofender, humilhar ou xingar a mulher ou sua família; negligenciar atendimento de qualidade; agendar cesárea sem recomendação baseada em evidências científicas, atendendo simplesmente aos interesses e conveniência do médico.

Durante o parto, as formas mais comuns deste tipo de violência são: a recusa de admissão em hospital ou maternidade, gerando a chamada peregrinação por leito; impedimento da entrada do acompanhante escolhido pela mulher; aplicação de soro com ocitocina para acelerar o trabalho de parto; episiotomia de rotina; manobra de Kristeller; cesáreas eletivas; restrição da posição do parto; violência psicológica; impedir ou retardar o contato do bebê com a mulher logo após o trabalho de parto; impedir o alojamento conjunto da mãe e o neonato; impedir ou dificultar o aleitamento materno; além de outros procedimentos dolorosos, desnecessários e humilhantes, tais como: uso rotineiro de lavagem intestinal (enema), retirada dos pelos pubianos (tricotomia), posição ginecológica com portas abertas, exames de toque sucessivos e por pessoas diferentes para verificar a dilatação, privação de alimentos e água, imobilização de braços e pernas, etc.

Nos casos de abortamento, a violência caracteriza-se por: negativa ou demora no atendimento à mulher em situação de abortamento; questionamento à mulher quanto à causa

21

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Violência obstétrica: você sabe o que é?. Disponível em < http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/41/Violencia%20Obstetrica.pdf>. Acesso em: 29 out. 2017.

(21)

do abortamento (se foi intencional ou não); realização de procedimentos predominantemente invasivos, sem explicação, consentimento e frequentemente sem anestesia; ameaças, acusação e culpabilização da mulher; coação com finalidade de confissão e denúncia.

Uma prática prejudicial com características claras de violência obstétrica que deve ser ressaltada é a proibição do acompanhante, já que existe uma lei, desde 2005, que assegura tal direito às parturientes. A Lei Federal nº 11.108/200522 instituiu aos serviços de saúde do SUS, rede própria ou conveniada, obrigatoriedade em permitir a presença, junto à parturiente, de um acompanhante durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, sendo, o acompanhante, indicado pela gestante.

No ano de 2013, ainda foi publicada a Lei Federal nº 12.895/201323, que tornou obrigatória a presença de avisos em hospitais do SUS ou conveniados, comunicando às gestantes o direito previsto na mencionada Lei n° 11.108/2005, contudo, o exercício ao direito à permanência do acompanhante junto à parturiente ainda continua sendo dificultado pelas instituições hospitalares, situação que se agrava pelo comum desconhecimento das mulheres usuárias do SUS acerca dessa prerrogativa.

A mencionada pesquisa Nascer no Brasil, revelou que menos de 20% das mulheres se beneficiam da presença contínua do acompanhante durante todo o período de internação, sendo esse ainda um privilégio das mulheres com maior renda e escolaridade, brancas, usuárias do setor privado e que tiveram cesarianas como opção de parto.

2.2 A HUMANIZAÇÃO COMO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Antigamente, dar à luz era um fenômeno natural, que ocorria na casa das próprias gestantes, com a ajuda de parteiras, as quais eram pessoas de confiança da parturiente e da sua família. Contudo, a partir do século XX, o trabalho das parteiras foi sendo paulatinamente desvalorizado devido a interesses econômicos da classe médica24. Assim, viu-se a necessidade

22 BRASIL. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para

garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11108.htm>. Acesso em: 08 nov. 2017.

23

BRASIL. Lei nº 12.895, de 18 de dezembro de 2013. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, obrigando os hospitais de todo o País a manter, em local visível de suas dependências, aviso informando sobre o direito da parturiente a acompanhante. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12895.htm> Acesso em: 10 out. 2017.

24

NOGUEIRA, Beatriz Carvalho. Violência obstétrica: análise de decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste, 2015. Ribeirão Preto, Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP, p. 29. Disponível em:

(22)

de institucionalizar o parto, passando este a ocorrer comumente em hospitais, o que tirou a privacidade que a gestante tinha no momento o parto com a sua família25,

Aliado a isso, também surge a medicalização26, que não está necessariamente relacionada à melhora no atendimento no parto, e é responsável, inclusive, por danos físicos, psicológicos e sexuais às mulheres27.

Na verdade, a invenção de aparelhos e técnicas de anestesia28, como também a entrada do médico obstetra na cena do parto, foram essenciais para o surgimento do fenômeno denominado de “industrialização do parto”, no qual o corpo passou a ser visto como uma máquina, e corpo feminino visto como imperfeito, anormal, exigindo constante controle e manipulação29.

Dessa forma, o parto deixou de ser um evento natural, biológico e fisiológico, para ser um evento patológico que necessita de intervenção médica para não ter um desfecho tráfico30. A intervenção médica no nascimento foi se tornando cada vez mais excessiva, levando à crescente perda da autonomia e protagonismo da parturiente em relação ao parto, vez que esse momento se tornou desconhecido e amedrontador31 para as mulheres, e mais conveniente e asséptico para os profissionais de saúde32.

Como crítica a esse modelo intervencionista e tecnocrático de assistência ao parto, que desconsidera evidências científicas e os aspectos subjetivos concernentes à experiência do parto e nascimento, mulheres e profissionais da saúde passaram a se organizar para exigir a implementação de políticas públicas que estimulem e respeitem o parto humanizado, tanto de forma hospitalar, como domiciliar, inclusive com a valorização e com a capacitação de <http://www.tcc.sc.usp.br/tce/disponiveis/89/890010/tce-26082016-101211/?&lang=br>. Acesso em 10 out. 2017.

25 RODRIGUES, Heloisa Correia, op. cit., p. 41. 26

Sobre o assunto, NOGUEIRA ressalta que a medicalização é explicada, por muitos sociológicos médicos, como uma “crescente forma de controle social das mulheres, tornando-as dependentes de equipes médicas e da indústria farmacêutica”. (NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit., p. 28).

27 NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit., p. 26.

28 Não se nega que os avanços da tecnologia podem ajudar a salvar vidas de muitas mulheres e dos seus filhos

durante o trabalho de parto. Como afirma OLIVEIRA, “As intervenções, quando necessárias, são indispensáveis para uma assistência ao parto humanizado. O que tem se discutido são as intervenções de rotina, fundadas em um sistema de montagem e produção do parto, que violam direitos reprodutivos das mulheres”. (OLIVEIRA, Amanda Lima de. Violência obstétrica: uma análise de suas dimensões nas normativas brasileiras, 2016. Brasília, Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade de Brasília, p. 20. Disponível em: < http://bdm.unb.br/bitstream/10483/15883/1/2016_AmandaLimadeOliveira_tcc.pdf>. Acesso em: 17 out. 2017).

29

NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit., p.27-28.

30

OLIVEIRA, Amanda Lima de, op. cit., p. 19.

31 NOGUEIRA aponta que há muitos estudos que relatam a incidência do fenômeno denominado de tocofobia

nas parturientes, definida como o medo exacerbado do parto, causado pela representação midiática do parto, pela ausência de transmissão de informações baseadas em evidências pelos médicos às gestantes, bem como pela utilização de técnicas desnecessárias no parto normal. (NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit., p. 33).

(23)

parteiras profissionais e doulas nos períodos pré-parto, parto e pós-parto e com o consequente resgate do parto como atividade essencialmente da mulher33.

Nesse sentido, adota-se o conceito de parto humanizado entendido por NOGUEIRA34:

O parto humanizado possui uma vasta gama de interpretações. De modo geral, pode ser entendido como aquele realizado com a menor quantidade de intervenções médicas e farmacológicas possível, o qual respeita o tempo físico e psíquico de cada mulher para parir, ocorrido em um lugar respeitoso e aconchegante e com o consentimento informado para todos os procedimentos que possam ser realizados, sempre com observância da medicina baseada em evidências.

Ressalte-se que as discussões em torno da humanização das práticas de atenção à saúde começaram a ganhar destaque, a nível internacional, somente na década de 1970, com um evento que debateu as práticas nos serviços e tentou identificar o que seria humanização e desumanização do cuidado em saúde.

Esse encontro deu ensejo à produção e publicação do material Humanizing Health Care em 1975, organizado por Howard e Strauss, no qual foram caracterizadas práticas tidas como desumanizadoras, mencionadas por MORAIS35 como: 1) Tratar as pessoas como coisas; 2) Usar de modo inapropriado a tecnologia; 3) Usar de modo inapropriado a experimentação; 4) Ver a pessoa doente como problema; 5) Tratar certas pessoas como de menor valor; 6) Falta de interação/reciprocidade entre paciente e cuidador; 7) Cuidar subpadronizado para determinadas pessoas; 8) Visualizar as pessoas como sem escolhas, desconsiderando sua autonomia e liberdade; 9) Pessoas interagirem como icebergs; 10) Pessoas em ambientes estáticos e estéreis; 11) Desrespeito à vida.

MORAIS36 também apresenta as oito práticas tidas como humanizadoras e necessárias, que foram divididas em três dimensões: 1) A dimensão ideológica reporta-se a três práticas humanizadoras: o reconhecimento do valor da vida humana, o respeito à integralidade das pessoas e a visualização do ser humano como único e insubstituível; 2) A dimensão estrutural, na qual as interações entre cuidadores e pacientes acontecem, também com três práticas: a necessidade de liberdade para o indivíduo, a oferta de ações de forma

33

NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit.,, p. 37.

34

Idem.

35 MORAIS, Fátima Raquel Rosado. A humanização no parto e no nascimento: os saberes e as práticas no

contexto de uma maternidade pública brasileira, 2010. Natal, Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, p. 76-77. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/17585>. Acesso em: 16 out. 2017.

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igualitária, independentemente de classe e/ou de outra caracterização, e o compartilhamento do poder de decisão por todos, a fim de que possam fazer as melhores escolhas; 3) Por fim, na dimensão psicológica, estão inseridas duas práticas humanizadoras: a empatia e o afeto ao entender que na inter-relação entre paciente e cuidador é necessário que haja ao menos algum contato para favorecer a criação de vínculos positivos.

Essa discussão acerca do processo de humanização se disseminou e deu destaque para essas premissas como ideais para a saúde, inclusive no Brasil. A partir daí, outros estudos se aprofundaram nessa temática e reforçaram que a desumanização nas práticas em saúde decorre da intensificação tecnológica e burocrática na medicina37.

Foi nesse contexto que surgiu no Brasil, a partir do final do século XX, o movimento social pela humanização do parto e do nascimento, o qual tem como principal objetivo a atenção humanizada e respeitosa, com respaldo na chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE), movimento internacional surgido na década de 1980, o qual afirma que a medicina é baseada em muitas pesquisas tendenciosas que, às vezes, acabam estimulado a prática de procedimento desnecessários e danosos38.

No parto, temos, por exemplo, a prática reiterada da episiotomia sem que haja evidências sólidas de benefícios para mãe e para o bebê. Como aponta NOGUEIRA39, as pesquisas utilizadas pelos defensores do procedimento apenas eram relacionadas ao modo de realização do procedimento, e não à sua eficácia ou segurança.

Porém, segundo PEREIRA40, a adequação do modelo de atenção ao parto e nascimento a esses cuidados baseados em evidências científicas tem acontecido de forma lenta, gradual e tem encontrado grande resistência.

A Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa) surgiu em 1993 e teve como inspiração o trabalho de atenção mais humanizada ao parto realizado pelos médicos José Galba de Araújo, professor da Universidade Federal do Ceará, que implantou um sistema misto de atenção ao parto, com destaque às parteiras tradicionais, ao parto domiciliar e às casas de parto, e Moysés Paciornik e seu filho Cláudio Paciornik, que divulgaram o parto de cócoras com base nos costumes dos índios kaingangue41.

37 MORAIS, Fátima Raquel Rosado, op. cit., p. 78-79. 38

NOGUEIRA, Beatriz Carvalho, op. cit.,, p. 38.

39

Idem.

40 PEREIRA, Desirée Marques. Violação ao direito à saúde das mulheres no parto: uma análise do perfil dos

processos judiciais em obstetrícia do TJDFT sob a ótica da violência obstétrica, 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Saúde Coletiva) – Universidade de Brasília, p. 11. Disponível em: <http://bdm.unb.br/handle/10483/12509>. Acesso em: 23 out. 2017.

(25)

De acordo com o caderno do Ministério da Saúde “Humanização do parto e do nascimento” (2014), após mais de vinte anos de atuação da Rede, podem ser visualizadas diversas contribuições do movimento pelo parto humanizado, tais como a difusão de conhecimentos à sociedade, a contribuição para a formulação de políticas públicas, a resistência na imposição de procedimentos não humanizados à mulher e o estímulo na formação de profissionais para atenção humanizada ao parto.

No sentido de buscar mudança no atual modelo de atenção obstétrica, o Ministério da Saúde adotou uma série de medidas que visam resguardar o direito das mulheres à saúde e à dignidade na gestação e parto, por meio de políticas públicas de saúde como o Programa de Humanização do Parto e Nascimento (2000), a Política de Humanização (2003), sendo mais recente a criação da rede de atenção, instituída pela Portaria nº 1.459 de 2011, Rede Cegonha, a qual visa à sistematização e institucionalização de um modelo de atenção ao parto e nascimento buscando garantir as mulheres, as usuárias do SUS atendimento adequado, seguro e humanizado desde a confirmação da gravidez, durante o pré-natal, parto e puerpério, planejamento reprodutivo, indo até os dois primeiros anos de vida da criança.

Nesse sentido, destaque-se que essa Rede traz em seu art. 7º, inciso II, alínea c, que as práticas de atenção à saúde, no componente parto e nascimento devem ser baseadas em evidências científicas, de acordo com o documento da OMS de 1996: Boas Práticas de atenção ao parto e ao nascimento42.

Nesse sentido também está o conceito utilizado pela Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa)43, baseado na evidência empírica e nas novas tendências nas relações entre profissionais e pacientes, em atenção aos direitos fundamentais.

No entanto, as recomendações mencionadas não proporcionaram mudanças muito significativas. O Brasil ainda continua sendo um dos líderes do ranking mundial de cesarianas, fato que gera um efeito cascata: “mais internações, mais leitos ocupados, mais

42 Ao longo do texto, a OMS destaca que diversas técnicas frequentemente utilizadas devem ser “consideradas

desnecessárias, e somente serem realizadas a pedido da mulher”, como também, a partir de estudos desenvolvidos mundialmente com gestante e parturientes, enfatizam a necessidade de ações fundamentadas na Medicina Baseada em Evidências, o que tenderia a gerar um cuidado mais qualificado e seguro na atenção ao nascimento, a partir de práticas menos invasivas. (MORAIS, Fátima Raquel Rosado, op. cit., p.63-64)

43 “A ReHuNa - Rede pela Humanização do Parto e Nascimento - é uma organização da sociedade civil que vem

atuando desde 1993 em forma de rede de associados em todo o Brasil. Seu objetivo principal é a divulgação de assistência e cuidados perinatais com base em evidências científicas e em conformidade com as recomendações da Organização Mundial de Saúde. Esta rede desempenhou um papel fundamental na estruturação de um movimento que hoje é denominado “humanização da assistência ao parto e nascimento”, que pretende diminuir as intervenções desnecessárias e promover um cuidado ao processo de gravidez parto-nascimento-amamentação baseado compreensão do processo natural e fisiológico”. Disponível em: <http://www.rehuna.org.br/index.php/quem-somos>. Acesso em: 10 nov. 2017.

(26)

gastos e menos eficiência”44

. Sem contar que uma intervenção desnecessária ainda causa riscos à vida da mãe e da criança.

DINIZ45 acompanhou por determinado período duas maternidades, a fim de verificar todo o contexto da humanização do atendimento, pelas pacientes, acompanhantes, e profissionais envolvidos, e se surpreendeu com os resultados obtidos, indicando que “as propostas de humanização da assistência ao parto vão ao encontro das necessidades institucionais de financiamento do setor público, o que parece ser um fator decisivo para seu apoio político”, pois significa, na prática, uma economia dos custos hospitalares. Isso porque, em um dos serviços (Santa Efigênia), calculou-se que a humanização da maternidade implicou em uma redução de custos na ordem de 25%.

Em um modelo de assistência ao parto ideal, a gestante/parturiente deve ser ativa nas escolhas de quais procedimentos será submetida, deverá participar do planejamento do parto, deverá ser apoiada e ouvida pela equipe de saúde.

No Brasil, o modelo padrão ainda é distante desse modelo ideal, somente uma pequena parcela da população feminina (mulheres majoritariamente brancas e de classe média e alta) encontrou autonomia em relação aos seus direitos reprodutivos, para buscar uma alternativa à cesariana eletiva e à má qualidade de assistência ao parto vaginal. Em contrapartida, a maioria das mulheres brasileiras continuam sendo submetidas ao modelo padrão violador de direitos no atendimento obstétrico, em especial mulheres não brancas.46

Portanto, concorda-se com a conclusão de MORAIS47, no sentido de que a humanização “sugere uma transformação cultural, estrutural, política e econômica na medicina em que as mudanças pedem uma profunda transformação em toda a sociedade, inclusive na produção de teorias e práticas corriqueiras”.

44 RODRIGUES. Heloisa Correia, op. cit., p. 46.

45

DINIZ, Carmen Simone Grilo. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto, 2001. São Paulo, Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, p. 159-160. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Simone_Diniz/publication/34010137_Entre_a_tecnica_e_os_direitos_hum anos_possibilidades_e_limites_da_humanizacao_da_assitencia_ao_parto/links/0c96052438627d3e3f000000/Ent re-a-tecnica-e-os-direitos-humanos-possibilidades-e-limites-da-humanizacao-da-assitencia-ao-parto.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

46 OLIVEIRA, Amanda Lima de, op. cit., p. 33. 47 MORAIS, Fátima Raquel Rosado, op. cit., p. 118.

(27)

2.3 O DIREITO À ASSISTÊNCIA HUMANIZADA AMPARADO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Como aduz RODRIGUES48, humanizar consiste em promover assistência de qualidade à parturiente através do alívio a dor, do conforto físico e emocional, da liberdade para escolher como deseja ter o bebê, dando-lhe suporte material, pessoal e psicológico necessário, a fim de que a parturiente e o nascituro, atores principais desse momento, vivenciem todo o processo da maneira mais segura e não traumática.

Tal ideia, sem sombra de dúvida, coaduna com o que é tido como dever do Estado, de que se promova a proteção dos direitos fundamentais, no caso em específico, das parturientes, de que a ela seja dado o direito à liberdade de escolha das práticas de atenção ao parto que serão nela utilizadas, juntamente com o médico, em respeito ao direito à vida, à saúde, e à sua dignidade como pessoa humana.

Logo, a noção dos direitos inerentes às mulheres, tanto pela condição de pessoa humana quanto pelo próprio gênero, é essencial para a compreensão da assistência humanizada.

A parturiente, como sujeita de direitos, possui diversas prerrogativas: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88) como fundamento do Estado Democrático de Direito; o princípio da igualdade (art. 5º, I, CRFB/88) que a protege de todas as formas de discriminação; a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade (art. 5º, caput, CRFB/88); o princípio da legalidade (art. 5º, II, CRFB/88) que assegura autonomia à mulher; e ainda a previsão de que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III, CRFB/88)49

.

Sobre a autonomia e a integridade física da mulher, o Código Civil50 estabelece, em seus artigos 15 e 21, respectivamente, que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica” e que “a vida privada da pessoa natural é inviolável”, garantindo, ainda, em seu artigo 949, que “no caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove

48 RODRIGUES. Heloisa Correia, op. cit., p. 42.

49 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

50 BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

(28)

haver sofrido”, opção esta reforçada pelo Código Penal51, que tipifica: “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano” (art. 129) e “se resulta: II – perigo de vida; [...] IV – aceleração do parto: Pena – reclusão, de um a cinco anos” (art. 129, §1º).

Segundo a OMS52:

Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de usufruírem do mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva.

O diploma civil também assegura direitos quanto ao feto, por sua condição de nascituro, mas não lhe atribui condição de pessoa, pois, segundo seu art. 2º, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Além disso, observa-se que no ordenamento jurídico brasileiro há disposições esparsas a respeito do assunto, dentre os quais estão: a Lei nº 8.080/9053, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS); Portaria nº 569/2000 que instituiu o programa de humanização no pré-natal e nascimento54, Portaria nº 371/2014 que instituiu diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada ao recém nascido no SUS55, Portaria n°11/201556 que redefiniu as diretrizes de implantação e habilitação de centro de parto

51 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 09 out. 2017.

52

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

53 BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 22 out. 2017.

54 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000. Disponível em:

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html>. Acesso em: 09 out. 2017.

55

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 371, de 07 de maio de 2014. Institui diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada ao recém nascido (RN) no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2014/prt0371_07_05_2014.html>. Acesso em: 09 out. 2017.

56 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 11, de 7 de janeiro de 2015. Redefine as diretrizes para

implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para o atendimento à mulher e ao recém-nascido no momento do parto e do nascimento, em conformidade com o

(29)

normal, Política Nacional de Humanização, Programa Nacional de humanização da assistência hospitalar, cartilhas de recomendações, resoluções do Ministério da Saúde, entre outros.

Portanto, há dispositivos técnicos para a prestação de serviços baseados na humanização do atendimento à saúde. Porém, não há dúvidas que há diferenças entre o peso de uma lei e de portarias e resoluções para a sociedade.

Um dos principais marcos legislativos brasileiros sobre os direitos maternos foi a mencionada Lei Federal nº 11.108/2005, conhecida como a lei do acompanhante. Contudo, vale salientar que, embora a normativa preconize a livre escolha do acompanhante, ela não prevê, por exemplo, uma solução para o caso das mulheres usuárias da rede pública de saúde, que são internadas em leitos coletivos, que inviabiliza o acompanhamento noturno de acompanhantes homens.

Ainda, deve-se destacar o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90)57. Apesar de ser uma lei voltada à proteção da criança e do adolescente, expressamente prevê como direito da mulher a atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, senão vejamos:

Art. 8º. É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde. (destaques acrescidos)

[...]

§ 8º A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e o parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos. (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016) (destaques acrescidos)

O Estatuto da Primeira Infância (Lei nº 13.257/16)58, que alterou o ECA, ainda estabelece:

Componente PARTO E NASCIMENTO da Rede Cegonha, e dispõe sobre os respectivos incentivos financeiros de investimento, custeio e custeio mensal.. Disponível em: <http://www.saude.am.gov.br/docs/servicos/cp_maternidades/Portaria_2015_11.pdf>. Acesso em: 09 out. 2017.

57 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá

outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em 28 out. 2017.

58

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 13 out. 2017.

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