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Concepções de atendimento humanizado para os estudantes de medicina da Universidade Federal da Bahia

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Concepções de atendimento humanizado para os estudantes de medicina

da Universidade Federal da Bahia

Vitória Passos¹, Renata Veras¹, Clara Fernandez¹, Odonilton Lemos¹, Gustavo Cardoso² e Marcelo Rocha¹ ¹Universidade Federal da Bahia, Brasil, vitoria.passos17@gmail.com; renatameiraveras@gmail.com;

claracfz@gmail.com; odonilton1256@gmail.com; mndrocha@gmail.com

²Faculdade Nobre de Feira de Santana, Brasil; gustavo.cardoso@enova.educacao.ba.gov.br Resumo. Este estudo objetivou analisar as concepções de atendimento humanizado dos estudantes de medicina da UFBA. Para tanto, realizou-se uma investigação qualitativa, utilizando-se para coleta de dados um questionário com questões abertas aplicado a 451 estudantes matriculados entre o primeiro e o oitavo semestre do curso de medicina. A análise de conteúdo identificou que alguns estudantes conceituam o atendimento humanizado orientando-se apenas pelos aspectos gerais da Política Nacional de Humanização; outros superaram essa percepção ao relatarem aspectos de sensibilidade e empatia; outros ainda, apresentaram concepções pouco coerentes com a humanização, ao contrário, reforçando discursos de superioridade médica. É fundamental, portanto, investigar que outras influências atuam na construção das concepções de humanização dos estudantes para proporcionar essas diferenças.

Palavras-chave: Atendimento humanizado; Política Nacional de Humanização; Diretrizes Curriculares Nacionais; Educação médica; Universidade.

Conceptions of humanized care for medical students at Universidade Federal da Bahia

Abstract.This study aimed analyze the conceptions of humanized care of UFBA medical students. A qualitative investigation was carried out, using a survey applied to 451 students enrolled between first and eighth semester of UFBA medical school. The content analysis identified that some students conceptualize the humanized care oriented only by general aspects of the National Policy of Humanization; other students overcome this perception by relating aspects of sensitivity and empathy; still others presented concepts that were not coherent with humanization, rather, reforcing discourses of medical superiority. Therefore, it is essential to investigate which other influences can help to build medical students’ humanized conceptions in order to provide differences in health care.

Keywords: Humanized care; National Policy of Humanization; National Curricular Guidelines; Medical Education; University.

1 Introdução

A falta de empatia, de atenção, de escuta, por parte dos médicos e demais profissionais, é uma das queixas frequentes de usuários dos serviços de saúde. Essa realidade expõe um paradoxo existente entre a concepção de cuidado desse campo e tais reclamações dos usuários de “falta de cuidado” por parte dos profissionais (Barros & Gomes, 2011). Tal paradoxo, por sua vez, aponta para um denominador comum, bastante real nessa área, que é a desumanização do setor saúde.

No Brasil, as reflexões acerca do tema humanização obtiveram maior destaque a partir de 1970 com o apoio do movimento sanitário e do movimento feminista às pautas de direitos sexuais e reprodutivos em uma perspectiva crítica ao modelo médico hegemônico (Deslandes, 2006). Entretanto, o debate em torno da humanização só entraria na agenda política no ano 2000, a partir de iniciativas de algumas secretarias municipais e estaduais de saúde e somente passou a ter uma abrangência nacional extensiva à toda atenção hospitalar, com o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (Brasil, 2001).

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Em 2003, através de uma expansão do PNHAH, a Política Nacional de Humanização (PNH) foi consolidada, possuindo como princípios teóricos-metodológicos: o protagonismo dos sujeitos coletivos, a indissociabilidade entre atenção e gestão e a transversalidade (Heckert, Passos & Barros, 2009), ampliando-se assim o campo da assistência hospitalar aos serviços suplementares de atenção à saúde. Estes princípios dão vazão à discussão sobre o acolhimento, à importância do diálogo, da conversa, ganhando enquadramentos teóricos à luz da filosofia, sociologia médica, psicologia e psicanálise e sendo vistos como estratégicos na produção de cuidados em saúde (Campos, 2000; Deslandes, 2006; Filgueiras, 2006; Teixeira, 2006).

Visando a adoção dessas práticas de cuidado em saúde mais humanizadas, a PNH surgiu principalmente com o objetivo de promover uma mudança no cenário vigente de hipervalorização do modelo técnico-científico da saúde, e desde então tem atuado incentivando o desenvolvimento de atitudes humanísticas entre os profissionais, nos eixos da gestão, da atenção em saúde e da formação. Essa política se fundamenta, portanto, na superação do reducionismo ao qual a racionalidade biomédica está aprisionada, tornando o encontro com o outro imprescindível (Brasil, 2004).

No entanto, para Deslandes (2006), embora o conceito de humanização se constitua num alicerce para diversos programas e políticas, ele carece de uma definição mais clara, já que se conforma mais como uma diretriz de trabalho do que como um aporte teórico-prático. Como não existe uma única definição teórica e operacional para o termo humanização, ele se tornou polissêmico. Consequentemente, essa polissemia tem como resultado a falta de demarcação de sua abrangência e aplicabilidade. Assim, alguns autores têm destacado a necessidade de discutir os conceitos de humanização desde a formação acadêmica (Caprara & Franco, 2006; Rios, 2009).

Medeiros & Batista (2016) investigaram os conceitos de humanização comumente empregados na literatura nos últimos anos. As autoras identificaram que os principais sentidos aos quais esse termo é atribuído são o de ética dos relacionamentos, do cuidado e da comunicação com o outro, o de pensar sobre o tema como um conceito que orienta práticas; e de reflexões a respeito do que a humanização produz. Heckert, Passos & Barros (2009) também encontraram em pesquisa os sentidos relacionados à empatia, diálogo, respeito às diferenças para definição de humanização. Já Benevides & Passos (2005) identificaram a definição de humanização como ‘bom humano’ orientado pelas exigências de mercado para garantia de qualidade do serviço. Esses diferentes direcionamentos, contudo, reforçam também a importância dos estudantes de saúde, enfatizando-se os de medicina, entenderem a ideia de atendimento humanizado sob múltiplas perspectivas, para atuar de maneira mais efetiva no Sistema Único de Saúde (SUS).

Reconhece-se que humanizar a atenção à saúde é um processo a longo prazo que está intimamente ligado a contextos que se apresentam dinâmicos e complexos. Nesse processo ocorrem resistências por parte dos atores envolvidos, pois a humanização requer mudanças de comportamentos historicamente construídos, principalmente em ambientes conservadores como o curso médico. Isso desperta insegurança e redefine padrões culturais e institucionais já conhecidos que se revelam mais seguros, mesmo porque por ter caráter subjetivo, o termo humanização é de árdua conceituação, o que causa uma sensação de estranhamento (Nogueira-Martins & Bógus, 2004).

Assim, coloca-se um desafio para o Estado brasileiro: orientar a formação destes médicos, desde o momento inicial até a educação permanente, estimulando que o cuidado à população seja de maneira humanizada, valorizando a integralidade e a promoção da saúde, como preconizado nos documentos oficiais. (Haddad et al., 2010; González & Almeida, 2010).

É com base nessa constatação que Campos (1997) considera que para que os estudantes de medicina possam favorecer o processo de autonomia do paciente, através de uma relação humanizada, é necessária uma formação que contemple os aspectos psicossociais, filosóficos e éticos, além dos técnicos. Traverso-Yépez (2001) também aponta o médico como o agente principal nos cuidados à

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saúde em função do modelo hegemônico vigente em detrimento de outros profissionais que deveriam ter participação mais ativa. Dessa maneira, como documento oficial que norteia essa mudança de postura, destaca-se a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de medicina, publicadas em 2001 e revisadas em 2014, que contribuíram para um investimento maior na formação médica adequando-a ao modelo de saúde público vigente, o Sistema Único de Saúde (SUS). Diante disso, no ensino médico, várias escolas têm inserido componentes curriculares ou eixos de formação ética humanística. A Universidade Federal da Bahia (UFBA), visando atender às orientações das DCN, criou o eixo ético-humanístico que perpassa os primeiros oito semestres de formação médica e tem como objetivo desenvolver atitudes éticas e humanas, integrando todas as práticas curriculares (Formigli et al., 2010).

Dessa forma, são evidenciadas várias atribuições que compreendem práticas humanizadas de cuidado, tais quais a responsabilidade social, respeito e defesa da dignidade humana e da saúde integral do ser humano. Funghetto e colaboradores (2015), realizando um estudo a respeito dos perfis dos profissionais de saúde tendo as DCN como base, revelam que para a construção de um conceito ampliado da saúde na formação dos profissionais desse campo, é necessário também, uma permanente articulação entre as necessidades sociais do SUS e a educação, buscando suprir as reais necessidades de atendimento da população. A humanização, nesse contexto, se demonstra um dos mais importantes fatores a ser contemplados por esse processo. Em consonância com essa necessidade, a análise das concepções de atendimento médico humanizado dos estudantes de medicina da UFBA é necessária para se perceber como esses futuros profissionais pretendem atuar à luz da ideia de Humanização do cuidado.

Portanto, em que pese as várias dimensões do conceito de humanização, as reformas curriculares nacionalmente implantadas e a inserção do eixo ético humanístico na UFBA, essa pesquisa objetivou analisar as concepções dos estudantes de medicina da UFBA acerca do atendimento humanizado.

2 Metodologia

Esta investigação é parte de uma pesquisa mais ampla em andamento na UFBA intitulada “O eixo ético-humanístico na Faculdade de Medicina da Bahia: percepções dos estudantes”. Para este estudo foi realizado um recorte transversal com abordagem qualitativa de caráter exploratório, buscando compreender as concepções dos estudantes da graduação em medicina da UFBA a respeito da humanização das práticas de saúde. Atrelado a isso, discute-se também sobre a contribuição da educação médica para a construção desses sentidos e a consonância com a Política Nacional de Humanização.

A pesquisa qualitativa permite o estudo de aspectos e fatores da vida humana e a análise dos processos sociais ao longo do tempo. Ela é apropriada para a investigação de problemas/questões pouco conhecidas e que necessitam de compreensão, o que a torna fundamental no processo investigativo. Nas investigações acerca da saúde, é bastante empregada, principalmente porque tem a capacidade de reconhecimento de contextos em que os objetos de estudo estão situados (Kerr & Kendall, 2013). Já a pesquisa do tipo exploratória, de acordo com Gil (2008) visa proporcionar familiaridade com o objeto estudado, de modo a construir hipóteses sobre ele e tornar mais claros os problemas que o envolvem. No estudo transversal, uma especificidade da pesquisa exploratória, “[...] os dados são coletados em um ponto no tempo, com base em uma amostra selecionada para descrever uma população nesse determinado momento” (Augusto et al. 2013, p. 749). Por essas razões, acredita-se ser esse percurso metodológico o mais adequado a essa investigação.

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2.1 Cenário e participantes

Os dados da pesquisa foram produzidos a partir da aplicação de um questionário semi-estruturado construído a partir de revisão bibliográfica prévia. O questionário foi aplicado aos estudantes do 1º ao 8º semestres do curso de medicina da UFBA por 4 examinadores, em sala de aula, durante os encontros das disciplinas de Ética que integra o eixo ético-humanístico do curso. O instrumento foi organizado em três partes. A primeira, com dados referentes às características dos participantes, o que permitiu a análise por idade, gênero, raça, renda familiar,etc. A segunda, com uma escala do tipo

Likert sobre as percepções dos estudantes acerca do eixo ético-humanístico. Por fim, a terceira,

constituída por duas questões abertas, de modo que fosse possível analisar as contribuições do eixo ético-humanístico para a formação em medicina e qual a concepção de atendimento humanizado para os estudantes.

Como a aplicação do questionário foi realizada em sala de aula, todos os 1023 estudantes regularmente matriculados entre o primeiro e oitavo semestre puderam participar do estudo, mediante consentimento dado pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após aplicação e exclusão dos questionários que não haviam sido respondidos completamente, participaram da pesquisa 451 estudantes, representando aproximadamente 44% do total de matriculados.

Especificamente neste estudo, o foco de análise foi a última questão aberta da terceira parte do questionário: “O que é um atendimento médico humanizado para você?”. Kronberger e Wagner (2010, p. 416) ressaltam que as respostas abertas permitem “fácil acesso à compreensão espontânea dos respondentes com relação ao objeto em questão”. Acredita-se, portanto, que a análise das respostas dessa questão, alinhada com as informações da literatura científica sobre os conceitos de humanização, permite vislumbrar os sentidos construídos pelos estudantes de medicina da UFBA a respeito da humanização do atendimento.

2.2 Procedimentos

Adotou-se a análise de conteúdo temática como método de análise do material coletado. Segundo Bardin (1977), a análise de conteúdo consiste em:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. (p.42)

No plano operacional os procedimentos envolveram três etapas distintas, porém articuladas. A primeira delas foi a fase de pré-exploração do corpus selecionado para análise. Nesta etapa sucederam-se várias leituras do material a fim de organizar informações importantes para as demais etapas (Campos, 2004). Na segunda etapa ocorreu a seleção das unidades de análise a fim de realizar a análise temática das respostas dos estudantes e o processo de categorização não-apriorística dos elementos identificados nessas unidades. Para tanto, buscou-se evidenciar tais elementos através de um processo dinâmico e indutivo tanto para os aspectos explícitos quanto implícitos dos discursos, de acordo com os objetivos da investigação. Ainda nessa fase, a partir da leitura do material selecionado, foram agrupadas aquelas unidades que apresentavam a temática similar (Campos, 2004). Dessa maneira, as temáticas similares permitiram a construção de três categorias, a saber: a) Concepção de atendimento médico humanizado de acordo com aspectos gerais que norteiam a PNH; b) Compreensão ampliada do conceito de Humanização; e, c) Conhecimento superficial do tema e tendência à valorização do modelo técnico-científico de atenção e da ideia de superioridade médica.

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Finalmente, na terceira e última etapa ocorreu o processo de análise propriamente dito, onde se deu o tratamento e interpretação dos dados categorizados à luz do referencial teórico construído durante a investigação (Campos, 2004). Terminados os processos de categorização e análise, foram selecionadas algumas falas representativas das demais para elucidar a discussão de cada categoria. Vale ressaltar que todos os processos metodológicos só foram possíveis de se realizar com um corpus textual tão grande devido a participação de todos os autores nas etapas de categorização e análise.

2.3 Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFBA (CAAE: 87862917.8.0000.5531 – Parecer n.2.769.003). Todos os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que lhes garantiu o anonimato quanto às respostas, mas que autorizou as citações delas no decorrer da investigação. Neste trabalho a identificação dos estudantes se deu através do número atribuído em cada questionário respondido.

3 Resultados e Discussão

O perfil dos 451 estudantes respondentes apresentou as seguintes características: a média de idade é de 23 anos; 193 (50,7%) se identificaram como do sexo feminino; a maioria (52,8%) se autodeclarou parda, seguidos de brancos (32%); 212 (55,6%) estudaram em escolas privadas; 31,2% afirmam que a família possui renda entre 10 e 30 salários mínimos; 98,4% declararam pretender fazer especialização após a graduação, sendo clínica médica e cirurgia as áreas mais desejadas. Observou-se na primeira categoria que as falas analisadas demonstraram concepções de humanização considerando aspectos gerais da PNH, ao apontar conceitos como ética profissional e dignidade humana. Segundo essa política, humanização é “um modo de fazer inclusão, como uma prática social ampliadora dos vínculos de solidariedade e co-responsabilidade” (Brasil, 2010, p. 7). Nesse sentido, tal inclusão se refere essencialmente a viabilizar a participação dos sujeitos e coletivos, sejam usuários ou profissionais, nos diversos cenários em que se organiza a saúde: a gestão, o cuidado e a formação. Essa integração, então, conduz a criação de bons vínculos e estimula a autonomia dos envolvidos (Brasil, 2010). Contudo, tendo isso em vista, chamou atenção o fato destes estudantes não transcenderam o que a PNH propõe, porque eles não demonstraram reflexão a respeito do conceito e não expuseram visões ampliadas do mesmo, apenas reproduziram as afirmações gerais e superficiais da política, como no destaque a seguir:

“Qualquer relação humana é humanizada. É importante que quaisquer profissionais se façam sensíveis”. (Estudante 30, 4º semestre)

“Um atendimento que, no mínimo, respeite a dignidade humana do paciente e os princípios éticos da profissão”. (Estudante 369, 2º semestre)

“Que siga o exposto na PNH”. (Estudante 428, 5º semestre)

É importante afirmar que entender a PNH e o conceito de humanização que ela propõe é fundamental para todos os profissionais de saúde, sobretudo aqueles que estão em formação. Entretanto, ir além do que está exposto na política indica que os estudantes que o fazem, futuros trabalhadores da saúde, compreendem a essência do que ela propõe e apresentam ainda uma criticidade maior quanto ao sentido de humanizar o atendimento. Vale ressaltar que para a PNH, a formação na humanização, em muitos casos, adota um sentido de “[...] correção (no sentido ortopédico do termo) daqueles trabalhadores de saúde supostamente desumanos: formar na

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humanização teria este sentido de “humanizar os desumanos” (Brasil, 2010, p. 7). A humanidade enquanto característica assumiria, então, um sentido de respeito, valorização do outro, empatia. Humanizar a saúde, por sua vez, seria estimular o desenvolvimento dessas características nos profissionais. Corroborando com isso, Pereira (2005) explica que existem diversos conhecimentos, atitudes e habilidades, em múltiplos sentidos, que podem se configurar “traços humanísticos”. Dessa forma, um atendimento humanizado seria aquele que considerasse esses múltiplos fatores - que estão expostos na política - mas que também valorizasse as subjetividades dos profissionais e dos pacientes nesse processo.

As falas analisadas classificadas na segunda categoria apontaram essas concepções ampliadas de humanização, especialmente, por demonstrarem além do entendimento dos aspectos preconizados pela PNH, a capacidade de empatia pelos usuários dos serviços e compreensão a respeito de aspectos sensíveis do processo de atendimento.

“Médico que ouve o paciente, não interrompe, não é arrogante, se importa além da doença, respeita a autonomia (não faz procedimentos sem consentimento), não trata o paciente como mero cliente e que não impõe uma relação de superioridade.” (Estudante 444, 5º semestre) “Um atendimento sem pressa, que o médico olha no olho do paciente. Que o médico passa a mensagem que o mais importante é o bem estar do paciente, e que este tem liberdade para falar de tudo, dúvidas, medos e sonhos. Atendimento que o médico não se empolga com doenças raras porque isso cresce o ego dele”. (Estudante 437, 5º semestre)

Compreender, portanto, os múltiplos sentidos e significados que o conceito de humanização pode assumir permite que, ao longo da formação, os estudantes possam vivenciar experiências que estejam pautadas no princípio da integralidade do cuidado e da valorização do trabalho em equipe (Medeiros & Batista, 2016). Dessa maneira, acredita-se que esse entendimento ampliado dos estudantes viabiliza a efetivação do que as Diretrizes Curriculares Nacionais propõem como perfil desejável de médico, conciliando os saberes técnico-científicos, com habilidade de diálogo e capacidade de empatia com os outros. Algo também evidenciado nas seguintes falas:

“Um atendimento que acolha o paciente com as suas singularidades, que adeque o tratamento a cada caso particular e num ambiente que exista uma boa relação entre toda a equipe e pacientes”. (Estudante 225, 3º semestre)

“Atendimento humanizado é um atendimento integral, sob a luz de um conceito ampliado de saúde e processo de adoecimento, considerando os DSS e olhando o paciente de forma holística considerando seus aspectos de vida macro e micro sociais e individuais (genéticos e estilo de vida)”. (Estudante 352, 2º semestre)

Traverso-Yépez & Morais (2004) explicam, ainda, que é essencial reconhecer e valorizar as dimensões subjetivas dos usuários no atendimento. Não somente devido aos princípios éticos da profissão, mas porque essas pessoas são agentes sociais da própria mudança que deve ser alcançada através de reflexão consciente e compartilhada dos problemas entre eles e os profissionais e do compartilhamento também dos saberes, em busca da melhor estratégia de solução das suas necessidades, o que na saúde é conhecido como empowerment. Uma percepção ampliada que também pôde ser percebida entre os estudantes:

“Anamnese bem feita, procurando saber do contexto social, cultural, religioso, econômico e entendendo acerca das desigualdades existentes, conhecendo o SUS e suas formas de acesso e que a terapêutica seja conversada, justa e beneficente, utilizando a ética”. (Estudante 86, 1º semestre)

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“Um atendimento que considera um paciente em níveis complexos de saúde, não apenas biologicista ou reducionista, que empodera, ouve, intervém, auxilia e que promove uma relação horizontal de co-participação”. (Estudante 442, 5º semestre)

A PNH afirma, também, que humanizar é “ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais” (Brasil, 2004, p. 6). Corroborando com essa definição, Pereira (2005) evidencia que no modelo Humanista do cuidado em saúde, a competência profissional valoriza a técnica, contudo precisa ir além dela, porque o bom profissional exibe “traços humanísticos”, além da “competência técnico-científica”.

Por sua vez, a terceira categoria reuniu aquelas respostas que demonstraram concepções de humanização que, apesar de em alguns casos apresentarem aspectos que corroboram em parte com os princípios da PNH, transmitiram também uma ideia de superioridade médica e valorização de habilidades e conceitos técnicos em detrimento da boa relação médico-paciente, expondo uma contradição importante.

“Um atendimento com excelência técnica e ao mesmo tempo, centrado no paciente, com o intuito de criar vínculos, empatia e todos os processos que facilitem a recuperação do paciente e visando diminuir taxa de desistências de tratamento/abandono de terapêutica”. (Estudante 435, 5º semestre)

“Respeitar a autonomia do paciente; Anamnese completa; Respeitar o Código de Ética Médica”. (Estudante 152, 1º semestre)

No estudo realizado por Rios & Schraiber (2012) com estudantes do curso de medicina, os próprios alunos elegeram algumas características que seriam comuns entre os colegas, sendo elas a imaturidade emocional, os preconceitos (de raça, de sexualidade, de classe...), a alienação (quanto à noção de quem se é), competitividade, superficialidade e individualismo, e a falta de profissionalismo. Esse perfil gera preocupação não só por ter sido informado pelos próprios estudantes, mas, também, por se afastar completamente do perfil de médico preconizado pelas DCN e pela PNH. Essas autoras identificaram que o sentimento de superioridade é uma das características dos estudantes de medicina, apontada pelos próprios alunos, e para eles, isto seria uma conquista histórica, que demanda esforço para ser mantida. Algo que ficou explícito em relatos:

“É o que tem formação de vínculo e cuidado baseado nas evidências científicas como preconiza a medicina”. (Estudante 231, 1º semestre)

“É não achar que o paciente vai te processar e fazer uma medicina defensiva. E sim, ter uma boa comunicação e um olhar de cuidado, e se possível, atingir a “cura”, no caso o paciente, ele se cura”. (Estudante 174, 6º semestre)

Pereira, Stadler & Uchimura (2018), em um estudo a respeito do olhar do estudante de medicina sobre o SUS, analisou discursos de estudantes de vários semestres de 12 Instituições de Ensino Superior (IES). Um dado alarmante exposto nesta investigação foi o descontentamento da maioria dos estudantes com a ideia de atuar no SUS. A valorização do modelo biomédico tecnicista, percebida nas falas anteriores, aliada a atual e persistente ideologia mercantilista da saúde contribui para essa realidade. Reconhece-se que as práticas relacionadas ao processo saúde-doença, como afirma Traverso-Yépez & Morais (2004), estão “diretamente relacionadas com o contexto sócio-cultural e também com a forma como cada pessoa experimenta subjetivamente esses estados”. Portanto, esses aspectos não podem ser negligenciados durante o atendimento médico.

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Além disso, outro questionamento levantado diz respeito a quais razões explicariam essas diferentes concepções de atendimento humanizado entre os estudantes, visto que todos vivenciam o mesmo curso. Sobre isso, Andrade et al. (2011) explicam que “a atitude (humanística) pode ser ensinada e aprendida. Este processo é único para cada indivíduo e depende de influência cognitiva, motivacional e emocional”. Dado o exposto, fica evidente a necessidade de se investigar que outros fatores contribuem para o desenvolvimento dessas atitudes e a construção dessas concepções.

4 Conclusões

Esta investigação demonstrou a importância de se compreender o que pensam os estudantes de medicina da UFBA acerca da humanização visto que serão futuros profissionais de saúde, considerando as particularidades dos usuários dos serviços e respeitando a dignidade humana. Sendo assim, observou-se que a partir das falas analisadas foram evidenciadas características em comum, que fizeram emergir a posteriori as categorias da investigação. A primeira categoria contemplou os estudantes que conceberam o que seria um atendimento médico humanizado de acordo com os aspectos gerais que norteiam a PNH; a segunda categoria incluiu o grupo que demonstrou compreender o conceito de maneira mais complexa, incluindo além das noções da política, aspectos subjetivos em suas respostas; finalmente, a terceira categoria agrupou as falas que apontaram um conhecimento superficial a respeito do tema, além de uma tendência à valorização do modelo técnico-científico de atenção e da ideia de superioridade médica.

A metodologia de análise de conteúdo contribuiu significativamente para a compreensão dessas concepções visto que permitiu a reflexão qualitativa e embasada teoricamente a respeito do que essas considerações pontuadas pelos estudantes significam diante da proposta de humanização e das estratégias de humanização da saúde existentes no país, além de apontar a necessidade de se investigar que outras influências contribuem para a construção desses significados pelos estudantes. Ao tempo em que a utilização de questionário possibilitou o alcance de uma amostra representativa dos estudantes, por outro lado também representou uma possível limitação para o estudo. A utilização de entrevistas talvez permitisse um aprofundamento maior sobre a questão analisada. Conclui-se, portanto, que a formação do profissional de medicina faz parte de um debate maior que inclui a mudança no modelo assistencial à saúde como também a formação de sujeitos comprometidos com um projeto de nação. Ademais, entende-se que a discussão sobre a formação deste profissional precisa passar pela incorporação de novos conteúdos e espaços de ensino-aprendizagem, no qual a inclusão das humanidades, no processo histórico da educação médica brasileira, tem sido tensionada como uma estratégia efetiva de mudança na prática.

Agradecimentos. Ao CNPq pelas bolsas de Iniciação Científica e pela bolsa de produtividade em pesquisa da

segunda autora.

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