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Animação sociocultural e abordagem literária da tradição: o exemplo de Miguel Torga

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Academic year: 2021

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ANIMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ABORDAGEM

LITERÁRIA DA TRADIÇÃO:

O EXEMPLO DE MIGUEL TORGA

MARIA CÂNDIDA DE SOUSA MOREIRA VENTUZELOS

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro para a obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação – Especiali-zação em Animação Sociocultural – pela licenciada Maria Cândida de Sousa Moreira Ventuzelos e orien-tada pelo Professor Doutor Carlos Maia, de acordo com o disposto legal em vigor (alínea b) do nº 1 do ar-tigo 20º do DL 74/2006, de 24 de Março).

VILA REAL 2012

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ii O que é verdadeiramente tradicional

é a invenção do futuro.

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Ao Vítor o meu tesouro mais precioso!

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Agradecimentos

Em mais uma etapa da minha carreira académica – e da vida! –, gostaria de agradecer a todos quantos, de um modo mais ou menos presente, contribuíram para a sua concretização:

A Deus, por aquilo que sou.

Ao Professor Doutor Carlos Maia, meu sensato orientador, pela disponi-bilidade e paciência, pelos ensinamentos e incentivo e pelas orien-tações e exigências.

À Dra. Manuela Maia, colega e amiga, pela paciência, encorajamento e colaboração constantes.

Ao Vítor, ao Mário, à Rita, à Céu, à Helena e à Manuela, pela colabora-ção possível.

Ao Manuel, pela paciência e pelo silêncio tão precioso e oportuno.

À minha família, pelo tempo e atenção que não lhe dediquei.

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v

Resumo

A animação sociocultural ganha sentido inserida no conteúdo cultural de um grupo social, comunidade regional ou mesmo país. Com ela é possível disponibilizar modelos de perceção e de ação que marcaram o modo de interpretar o mundo e a sociedade e o modo das pessoas se relacionarem; e com esses modelos é mais fácil desenvolver o sentido crítico sobre paradigmas concetuais e sociológicos e fundamentar alterações no sentido da maior dignificação humana.

A abordagem da cultura ao nível educativo, essencialmente como educação escolar e como educação não formal, tem na animação sociocultural um veículo privilegiado. Juntando essa possibilidade de dinamização à interdisciplinaridade, pode reconhecer-se de grande valor o estudo da visão cultural de um poeta como Miguel Torga.

Este trabalho parte das tradições narradas e valorizadas por esse autor e procura manifestar modos de tratamento dessa forma cultural pela animação sociocultural. Mas procura também tomar consciência do modelo axiológico presente na tradição narrada sem esquecer alguma da dimensão literária que uma professora (de letras) deve trabalhar.

Palavras-chave: animação sociocultural, identidade, tradição, cultura, dinamização axiológica, dimensão literária.

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Abstrat

Sociocultural Animation makes sense when integrated in the culture of a social group, community, regional or even country. It provides models of perception and action that marked the way of interpreting the world and society and the way people relate. These models make it easier to develop a critical sense about conceptual and sociological paradigms and support changes towards greater human dignity.

At educational level, essentially as part of formal and non-formal education, this cul-tural approach is a fundamental tool for socio-culcul-tural activities. As an example of the inter-disciplinary project, this paper presents the study of the cultural vision of a poet as Miguel Torga.

This paper stems from the traditions Torga valued and wrote about in his books. It intends to show how this cultural form can be approached by socio-cultural activities. It also takes on the axiological model within narratology. Besides, it takes into consideration the lit-erary dimension that a teacher must work upon.

Keywords: sociocultural animation, identity, tradition, culture, axiological dyna-mism, literary dimension.

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Abreviaturas

ASC – Animação Sociocultural

CEF – Curso de Educação e Formação CM – Contos da Montanha

CTPP – Centro de Tradições Populares Portuguesas NCM – Novos Contos da Montanha

PCA – Percurso Curricular Alternativo

PIEF – Programa Integrado de Educação e Formação PNL – Plano Nacional de Leitura

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Índice

Agradecimentos ... iv Resumo ... v Abstrat... vi Introdução ... 1

1. Cultura, Identidade e Animação Sociocultural ... 4

1.1. Homem: ser naturalmente cultural ... 5

1.2. Âmbito e dimensões da cultura ... 11

1.3. Cultura e identidade ... 15

1.4. Animação sociocultural e dinamização axiológica ... 20

1.4.1. Animação sociocultural ... 20

1.4.2. Origens da Animação Sociocultural ... 22

1.4.3. Animação sociocultural e transmissão de valores... 24

2. As Tradições na Obra de Miguel Torga ... 26

2.1. Da tradição à modernidade ... 28

2.2. As tradições gerais e regionais ... 31

2.2.1. Festas, procissões e romarias... 32

2.2.2. A tourada ... 33

2.2.3. A chega dos bois ... 34

2.2.4. A matança do porco ... 36

2.2.5. A vindima ... 37

2.2.6. Para além do ‘folclore’ ... 42

2.3. Paradoxos da visão torguiana... 43

2.3.1. O classicismo e a modernidade ... 43

2.3.2. O sagrado e o profano... 48

2.3.3. A vida e a morte... 52

2.3.4. A terra e o céu ... 56

2.4. A identidade cultural e a antropologia torguiana ... 60

3. Ensaios de Animação Sociocultural na Escola e na Comunidade ... 63

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3.1.1. Educação e Animação sociocultural... 65

3.2. Tipos de Animação sociocultural ... 67

3.3. Valor formativo da técnica cénica ... 69

3.3.1. Escola e animação de tempos livres ... 73

3.3.2. Artes cénicas em contexto escolar ... 76

3.3.3. O professor-ator ... 78

3.3.4. O animador sociocultural em contexto escolar ... 80

3.4. Os arquétipos torguianos de axiologia cultural ... 86

3.5. Os valores presentes na tradição ... 88

3.6. Distinção paradigmática das relações com a natureza e a vida... 90

3.7. Distinção paradigmática de representações familiares ... 92

4. Projeto de dramatização: ser pessoa em contexto comunitário ... 102

4.1. Dramatização do texto para eficácia de aprendizagem e da formação ... 103

4.2. A técnica utilizada ... 104

4.3. Arranjo literário dos contos Maio Moço e Natal, de Miguel Torga, para utilização cénica escolar ... 105 Conclusão ... 112 ANEXOS ... 115 Anexo I - A ... 116 Anexo I - B ... 117 Anexo II - A ... 119 Anexo II - B ... 120 Anexo II - C ... 121 APÊNDICES ... 122 Apêndice I ... 123 Apêndice II ... 126 Apêndice III ... 128 Fontes de Consulta ... 129 Bibliografia... 130 Webgrafia ... 132

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Esquema 1. Aceções do termo cultura, segundo Amilburu... 12

Esquema 2. O Vocábulo da vindima em duas obras de Miguel Torga ... 40

Esquema 3. Triângulo contratual da animação ... 83

Quadro 1. Definição de ASC, pela negativa, segundo Serrano ... 21

Quadro 2. Direitos e deveres da comunidade educativa (do Agrupamento de Escolas Nadir Afonso, de Chaves) ... 84

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A obra de Miguel é um manancial de ensinamentos que abrangem todas as áreas do saber e todos os domínios da formação do ser homem. Com efeito, sendo demasiado extensa, em número, para caber num estudo como o que aqui se apresenta, não o será menos em ideias e ideais, o que dificulta muito a bordagem do tema proposto, ficando aquém do aprofunda-mento que seria desejável.

Dividido entre a medicina e a escrita, Torga dedicou parte da sua vida à procura da identidade do povo português, transmitindo, essencialmente, hábitos e modos de viver, sen-timentos e valores, perspetivando sempre a exemplaridade. É sobretudo no Diário, onde dá a conhecer as suas viagens por Portugal (de lés a lés), e em Portugal, que ele retrata não só o que os olhos lhe permitem ver, mas também o que o coração lhe permite sentir, isto é, retra-tando quer as paisagens e vivências observadas, quer os sentimentos deste povo de gente for-te, vigorosa e corajosa.

A identidade de Miguel Torga começou a formar-se no seio familiar, desenvolven-do-se depois na escola e fora dela, ao longo da vida, em interação com todos os que com ele conviveram, nos muitos lugares que ele percorreu: espaços rurais ou urbanos, dentro ou fora do país. Na sua obra há referências às suas vivências/aprendizagens familiares, vivên-cias/aprendizagens escolares e vivênvivên-cias/aprendizagens sociais, sejam estas no meio urbano – literário, político, artístico –, sejam no meio rural – considerado popular. Mas é sobretudo com o último que o autor mais se identifica, referindo-se variadíssimas vezes a representa-ções tradicionais como forma de educar os homens, envolvendo-os nessas atividades e trans-mitindo-lhes, assim, os valores presentes na tradição, o que nos permite concordar com Lopes (2008, 395): “A educação informal considera a família e a comunidade como agentes educa-tivos. Há também que ter presente a estreita ligação fundada numa relação de filiação entre a Animação Sociocultural e a Educação Popular”.

Torga é um escritor/viajante que aborda, de uma forma muito abrangente, as tradi-ções do povo que ele ama, não esquecendo o relevo que dá às que se situam no seu Reino Maravilhoso – Trás-os-Montes, e que lhe conferem a identidade, não só ibérica e portuguesa, mas sobretudo transmontana. A marcar a sua identidade, está a cultura que o formou e o acompanhou, assim como o sentimento telúrico que o liga a esta terra e aos seus habitantes

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2 que ele descreve e caracteriza de um modo muito particular, refletindo o sentimentalismo que lhe é próprio e simbolizando na tradição desse povo o ideal de uma humanidade ‘comunitá-ria’.

A importância identitária desta relação ao meio (não só social mas também físico) é reconhecida por Maia (2002, 242): “No conhecer-se a si e à realidade e, sobretudo, na parti-cipação social ou socio-profissional estará simultaneamente a revelação do grau de identidade conseguido e o apoio ao seu desenvolvimento”. Efetivamente, na base da construção da idtidade pessoal e/ou social estará, forçosamente, o conhecimento que se tem da realidade en-volvente, bem como a participação ativa na vida social e comunitária. O reconhecimento e valoração da cultura (material e imaterial) de um povo, nela incluída a tradição, distingue cada indivíduo, uma vez que lhe confere características peculiares e identitárias. É por isso que não se deve deixar morrer a tradição e que, atualmente, se aproveitam muitos momentos para divulgar e reviver tradições locais.

Neste estudo, procurou-se fazer uma leitura da obra de Miguel Torga, de modo a ne-la encontrar rene-lações possíveis entre a identidade cultural do povo português e as suas tradi-ções, bem como a forma como estas contribuem para a formação daquela; procurou-se, tam-bém, encontrar uma forma de integrar a tradição na educação não formal ou até formal, com a intervenção da Animação Sociocultural.

Como objetivos formais, este trabalho destina-se a satisfazer os requisitos académi-cos associados à dissertação para a obtenção do grau de mestre, pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, contribuindo também para o percurso profissional e para a realiza-ção pessoal da candidata.

Este estudo encontra-se organizado em quatro capítulos:

No primeiro – Cultura, Identidade e Animação – tentou-se abordar a definição an-tropológica de homem, como ser naturalmente cultural e identificar de que modo a cultura em que ele se encontra inserido pode influenciar a sua identidade; tentou-se também definir Animação Sociocultural e descobrir de que modo ela pode transmitir os valores exigidos pelo viver em sociedade.

No segundo capítulo – As Tradições na Obra de Miguel Torga – procurou-se fazer uma leitura da obra do autor, na tentativa de encontrar aspetos peculiares tais como: algumas das tradições regionais e/ou gerais, com as quais ele se identifica, e de que forma elas são

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3 abordadas na sua obra; alguns paradoxos na forma como ele vê e aborda conceitos ligados à vida do homem; e ainda, marcas da sua ligação à terra, da sua identidade e da maneira como ele define o próprio homem. Para tal tornou-se necessário fazer uma reflexão sobre as noções de tradição e modernidade e aquilo que as aproxima e as afasta.

No terceiro capítulo – Ensaios de Animação Sociocultural na Escola e na Comuni-dade – pretendeu-se compreender de que modo as tradições podem ser aproveitadas pela Animação Sociocultural e como se pode justificar a influência que os valores exercem no meio envolvente, em especial na família e na escola, principalmente aqueles que se podem encontrar nas tradições e os que são preconizados na obra do autor em estudo.

O capítulo quarto – Ser Pessoa em Contexto Comunitário – é a proposta de aborda-gem cénica, com cariz pedagógico, de uma adaptação de dois contos muito significativos da tradição nacional e regional: os contos Natal e Maio Moço representam os valores da digni-dade humana individual, bem como o sentido ético da existência coletiva. Na adaptação, a autora limitou ao mínimo a introdução de elementos linguísticos próprios.

Por motivos de entrada em vigor do novo acordo ortográfico, o texto da autora segue a nova ortografia, mas as citações respeitam a original.

As obras de Miguel Torga referidas e constantes da bibliografia têm a data da última edição que não sofreu mais alterações. Por isso, a edição consultada é a desse ano, mesmo não sendo a última edição da obra impressa.

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1. Cultura, Identidade e Animação Sociocultural

Homem

Inútil definir este animal aflito. Nem palavras,

nem cinzéis, nem acordes, nem pincéis

são gargantas deste grito. Universo em expansão. Pincelada de zarcão

desde mais infinito a menos infinito. (António Gedeão – Movimento Perpétuo)

O poema de António Gedeão inicia-se com o verso “Inútil definir este animal aflito”, sintetizando a ideia de que o homem é um ser indefinível pois, sendo um animal fisicamente com semelhanças a outros mamíferos, é muito mais complexo dado que é provido de características intelectuais, emocionais e relacionais que o distinguem deles, tornando-o um ser único e sempre necessitado de se apresentar como completo.

A anáfora, presente em quatros versos consecutivos, reforça a ideia de que nenhum domínio do saber, nenhuma arte, poderá definir esse ser que vai “desde mais infinito a menos infinito”, embora sempre com caráter transitório e de suporte para algo mais definitivo, como é a “pincelada de zarcão”. Esta inexistência de limites só se verifica porque o homem possui espírito, pode amar, admirar, contemplar, ao passo que os outros animais não dispõem dessas faculdades comandadas pelas reflexão e pela vontade. O homem conta com a razão e os outros animais apenas podem contar com o instinto, mais limitador. – Se, infelizmente, para inovarem no bem, tantas vezes felizmente para não inovarem no mal.

Constituída não só pela natureza biológica e psicológica, mas também pela transformação cultural dessas componentes, a identidade do homem engloba ainda o dinamismo de transformação de si mesmo por referência a um ideal, que reorienta o passado e inventa o futuro. À Animação Sociocultural competirá a consciência dessa forma histórica

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5 de ser homem e a participação pessoal na construção de ser diferente, para melhor. De algum modo, a Animação Sociocultural procura responder à caracterização da atividade de cada um, segundo uma identidade da comunidade, com vista à construção de uma identidade pessoal renovadora e comunitária.

1.1. Homem: ser naturalmente cultural

Apesar da ideia traduzida pelos versos da epígrafe, qualquer dicionário nega tal afirmação dado que, de modo mais ou menos preciso, todos os dicionários apresentam uma definição de homem. No Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Machado define-o como “Cada um dos representantes da espécie humana; animal racional; mamífero; bípede; bímano; moral; social; capaz de linguagem articulada, de rir emitindo som, cuja posição normal é a vertical e que ocupa o primeiro lugar na escala zoológica”.

Cabanas (2002, 15) escreve que “El hombre es un ser del universo, pero distinto a todos los demás. Es un ser singular: es persona.” Com efeito, o que torna o homem diferente de todos os outros animais, como um ser singular, é o facto de ser pessoa, enquanto animal racional e desde logo dotado de inteligência e outras características e capacidades distintivas, especialmente a vontade e a capacidade de idealização ou utopia. O mesmo autor salienta que se já “es gran problema conocer la naturaleza de los seres físicos, conocer la naturaleza del ser humano es cosa todavía más difícil. Y, no obstante, ha de intentarse, pues sin conocer bien al hombre no puede determinarse el tipo de educación que deba dársele” (idem, 15).

Ao longo dos tempos, o Homem tem-se revelado um ótimo estudioso de si próprio, ao mesmo tempo que se constitui como uma fonte inesgotável de estudo. Quem primeiro se deu conta da importância do homem se conhecer foi Sócrates, tendo ficado célebre a sua admiração (e correspondente consequência) pela frase que viu inscrita no oráculo de Delfos – que ele foi consultar para saber quem seria o mais sábio dos homens e com o qual aprenderia a ser melhor – “Conhece-te a ti mesmo”. O seu discípulo, Platão, continuou o estudo do mestre, levando-o ao extremo. Platão preconiza o dualismo da natureza humana: racionalismo e espiritualismo. O racionalismo está associado ao corpo, constituindo uma realidade inferior e só aparente, é uma “sombra” da alma, esta sim, parte superior e a mais

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6 notável da pessoa, associada ao espiritualismo. Nesta ordem de ideias, o homem define-se pela sua alma, a qual habita o corpo, sua morada neste mundo e, uma vez morto, ela reencarnará, começando um novo ciclo neste mundo.

Esta teoria foi aproveitada pelo pensamento cristão, dado que confirma a ideia de que o homem é um ser espiritual, criado por Deus à sua imagem e semelhança e que, vivendo num mundo material, é muito mais do que simples matéria. Segundo a Bíblia, o homem deve preocupar-se com as coisas do espírito, preparando-se para habitar uma morada eterna, no Céu, uma vez que, chegado o fim da vida terrena, será julgado por Deus como digno ou indigno dessa morada. Este duplo habitat da cidade (ou Jerusalém) terrestre e celeste será muito referido por Santo Agostinho, no século V, mas já na 2ª Carta de São Paulo aos Coríntios (4, 16-18) podemos ler:

“Por isso, não desfalecemos, e mesmo se, em nós, o homem exterior vai caminhando para a ruína, o homem interior renova-se, dia após dia. Com efeito, a nossa momentânea e leve tribulação proporciona-nos um peso eterno de glória, além de toda e qualquer medida. Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas”.

Séneca apresenta-nos uma conceção do homem como ser que deve viver segundo a natureza, ou seja, a razão. O homem é razão e alma, por isso deve procurar a virtude, que é de caráter intelectual. Mas, viver na virtude não exclui Deus, pois, tal como nos mandamentos d’Este, viver na virtude implica fazer o bem, desvalorizar os bens materiais e valorizar uma alma sã. É este o conselho de Séneca, na Carta X a Lucílio: “Vive com los hombres como si Dios te viese; habla a Dios como si los hombres te oyeran”, acrescentando que “La naturaleza me manda hacer bien a los hombres. Que sean esclavos o libres, ingénuos o libertos, libertos por la ley o por la libertad dada entre amigos, que importa? Dondequiera haya un hombre, allí hay lugar para una buena acción” (cit. Cabanas, 2002, 26).

Por outro lado, viver na virtude só se consegue através da educação, com espírito de sacrifício e superação das paixões, que são coisas furtuitas, como refere Séneca:

“Preguntas qué es el hombre – dice Séneca. Es el alma y, en el alma, la perfecta razón, animal racional es el hombre y, por ende, el bien suyo llega a la perfección

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cuando cumple aquello para lo cual nació. Qué es, pues, lo que esta razón le pide? Cosa facilísima: vivir según su naturaleza; pero la locura común la torna difícil. (…) Preguntasme cual sea el verdadero bien y de donde dimana. Te lo diré: de la buena conciencia, de las intenciones honestas, de las buenas acciones, del menosprecio de las cosas fortuitas, del tenor plácido y constante de la vida que huella siempre el mismo camino” (cit. Cabanas, 2002, 24).

Então, o homem deve usar a sua característica de ser perfetível para justificar o esforço em alcançar a perfeição. O homem, quando nasce, traz como destino viver de acordo com a sua natureza de ser humano, o que implica que pratique o que o seu grupo social considere bem, lutando sempre contra o que o possa afastar desse objetivo. E o objetivo perseguido sem limites tem de ser realizado a cada momento no esforço do homem por se tornar naquilo que deve ser, isto é, ser homem cada vez em melhor dimensão. Reafirma-se, aqui, a semelhança entre a definição bíblica de homem e a que nos pretende dar Séneca: ambas aludem à necessidade de respeitar um conjunto de mandamentos que orientem a sua conduta neste mundo, com vista a cuidar da alma que viverá no outro, segundo o que merecer.

O mesmo autor refere, mais adiante, que, para Séneca, sendo a virtude um ato do conhecimento ou de sabedoria, só poderá ensiná-la quem a possuir; daí a necessidade de um educador que “sirva de ejemplo o sea testigo de su conducta, la cual, de este modo, se verá estimulada a mejor” Cabanas (2002, 25). E recorre, mais uma vez, a uma passagem da Carta XI de Séneca a Lucílio, onde se lê “escoge a aquel cuya vida, cuya palabra, cuyo rostro, espejo de su alma, te enamoren: propontelo a toda hora como custodio o como dechado”(cit. Cabanas, 2002, 25). Apela-se, então, à educação como forma de alcançar a virtude, mas uma educação empenhada, trabalhosa – “vivir es guerrear” – por isso, deve facultar-se ao homem uma educação dura e áspera que deverá ser dada, em primeiro plano, por cada um a si mesmo, numa espécie de autoeducação. Com efeito, faz-se já referência à necessidade de motivação para ser educado, à vontade de procurar um modelo exímio de educação a seguir e deixar-se orientar por ele, sendo este o único meio de alcançar a tão desejada virtude – derivada da verdade.1

1

A dependência da virtude, ou da prática do bem, em relação à verdade faz com que para Sócrates o homem que faça o mal não seja mau mas ignorante; e que o objetivo do homem seja procurar a verdade, que o conduzirá à prática do bem.

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8 A mesma virtude é considerada como fonte da verdadeira felicidade: “En la virtud se halla la verdadeira felicidad. Esta virtud, qué te aconsejará? Que no tengas por bien ni por mal aquello que no acontece ni por virtud ni por malicia. Demás de esto, que seas incomovible a los embates del mal a los halagos del bien” (cit. Cabanas, 2002, 28). Daqui se pode deduzir que o sábio pode ser feliz, mas por si mesmo, valorizando as coisas que o levam à virtude, as coisas da alma, “porque las virtudes deberán estar allí donde hubiere consenso y unidad; la disidencia es propria de los vicios” (cit. Cabanas, 2002, 29). Como refere o mesmo autor, esta forma de viver permite ao homem viver sem que nada o consiga perturbar, dado que se encontra fechado a qualquer ameaça ou rumor, e, apesar disso, vivendo como homem livre: “Preguntas qué es la libertad? No ser esclavo de ninguna cosa, de ninguna necesidad, de ningún azar, reducir la Fortuna a términos de equidad; el día que yo entendiere que puedo más que ella, no podrá ya nada” (cit. Cabanas, 2002, 29).

Destas três conceções antropológicas, com as suas diferenças e semelhanças, resulta a ideia do homem como animal racional de natureza dualista, no qual se contrapoem os instintos básicos de natureza animal aos ideais de um ser socializado: ideal, o de Platão, racional, o de Séneca e espiritual, o da Bíblia. Esta visão dualista do homem nunca deixou de ser considerada, na medida em que, qualquer que seja a corrente filosófica que se aplique ao seu estudo, os dois polos estão presentes, quer se atribua maior peso ao polo racional quer ao espiritual. A presença de Deus como criador e, simultaneamente, destino do homem nunca deixou de ter a sua importância, ainda que seja para lhe retirar protagonismo, para pôr em causa essa mesma existência e/ou domínio que alguns lhe atribuem.

Cabanas refere que, para Voltaire, a moral se conhece através de uma reflexão lógica, citando uma passagem da sua obra O Filósofo Ignorante, onde se pode ler que

“Quem nos há dado el sentimiento de lo justo y de lo injusto? Dios, que nos há dado un cérebro y un coraçón. Y cuándo vuestra razón os ensena que hay vicio o hay virtud? Cuando nos ensena que dos y dos son cuatro. No hay conocimiento innato, por la razón de que no hay árbol que lleve ya hojas y frutos cuando sale de la tierra” (cit. Cabanas, 2002,31).

E conclui, então, que, para Voltaire, não há moral sem razão. Esta está na base daquela, usando o homem a inteligência para resolver todos os problemas morais. O homem deve tomar consciência de que a moral não procede da religião mas sim da discussão das suas

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9 teorias, procedendo, assim, da razão. Cabanas acrescenta que “Voltaire quiere “libertar” al cristiano para obtener al hombre razonable, al hombre sensato” (Cabanas, 2002, 30).

Voltaire acredita na existência de um Deus único, que tudo pode e tudo conhece, mesmo a língua de cada um, que tudo criou e ao qual os homens devem prestar culto. Um deus que não criou o homem para ser mau, para degolar o próximo ou para ser infeliz, mas sim para que todos se considerem irmãos, tolerando-se nas suas diferenças e semelhanças. Isto mesmo afirma na sua oração ao Deus de todos os seres, imensamente superior às fracas criaturas perdidas na imensidão:

“Ce n’est donc plus aux hommes que je m’adresse ; c’est à toi, Dieu de tous les êtres, de tous les mondes et de tous les temps : s’il est permis à de faibles créatures perdues dans l’immensité, et imperceptibles au reste de l’univers, d’oser te demander quelque chose, à toi qui as tout donné, à toi dont les décrets sont immuables comme éternels, daigne regarder en pitié les erreurs attachées à notre nature ; que ces erreurs ne fassent point nos calamités. Tu ne nous as point donné un cœur pour nous haïr, et des mains pour nous égorger ; fais que nous nous aidions mutuellement à supporter le fardeau d’une vie pénible et passagère ; que les petites différences entre les vêtements qui couvrent nos débiles corps, entre tous nos langages insuffisants, entre tous nos usages ridicules, entre toutes nos lois imparfaites, entre toutes nos opinions insensées, entre toutes nos conditions si disproportionnées à nos yeux, et si égales devant toi ; (…) Puissent tous les hommes se souvenir qu’ils sont frères ! Qu’ils aient en horreur la tyrannie exercée sur les âmes, (…)” (Voltaire, 1763, 1)2

Neste excerto, Voltaire clarifica a sua visão do homem, fraco e imperfeito, e daquilo que o distingue de Deus, através das oposições : «fracas criaturas perdidas na imensidão, e impercetíveis», «erros presos à nossa natureza», «calamidades», «fardo de uma vida penosa e passageira», «débeis corpos», «usos ridículos», «leis imperfeitas», «átomos chamados homens», quando se refere ao primeiro; e «Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos», «a ti cujos decretos são imutáveis como eternos», para se referir ao segundo. Pede-lhe, ainda, que ajude o homem a ser solidário e tolerante: «faz com que nós nos ajudemos mutuamente», «que aqueles que (…) apoiem os que (…) não detestem aqueles que (…)».

Também Miguel Torga, escritor, poeta e pensador, que constitui motivo deste

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10 trabalho, nos mostra a sua visão acerca da relação Homem/Deus, registada em vários dos seus textos. Mas, ao contrário de Voltaire, estes mostram-nos um homem forte e corajoso, lutador e defensor das suas riquezas: a sua vida, a sua família e a sua terra. A este propósito na Wikipedia3 encontramos a seguinte passagem:

“Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e enquanto ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a natureza – mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à natureza, como os trabalhadores rurais trasmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a natureza, malgrado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, no ver de Torga, fazem do homem único ser digno de adoração”.

Ilustrando estas palavras, transcreve-se aqui o poema “Cântico de Humanidade”, onde se pode verificar a crença num Deus, mas não o todo-poderoso, não o único digno de louvor. Será antes o homem, como ser que trabalha, que luta pela sua sobrevivência, que lavra a terra tirando dela o seu sustento, sendo natural – “sem disfarce que o mude” –, esse sim deve ser dignificado num hino.

Cântico de Humanidade

Hinos aos deuses, não. Os homens é que merecem Que se lhes cante a virtude. Bichos que lavram no chão, Actuam como parecem, Sem um disfarce que os mude. Apenas se os deuses querem Ser homens, nós os cantemos. E à soga do mesmo carro, Com os aguilhões que nos ferem, Nós também lhes demonstremos Que são mortais e de barro.

(Torga, 1956, 67)

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1.2. Âmbito e dimensões da cultura

Podemos dizer que a cultura é o conjunto dos conhecimentos adquiridos, é a instrução ou o saber que o homem possui, ou ainda, o conjunto de aprendizagens que uma pessoa realiza ao longo da sua vida. Estas aprendizagens variam desde a língua à religião, passando pela arte e pelo modo de ver o mundo – ou seja, todos os padrões de comportamento que uma pessoa aprende durante a sua vida. A cultura inclui ainda os paradigmas de interpretação e de relação social, que condicionam os valores e as disposições para ordenar a vontade na prossecução de uns objetivos e na fuga de outros.

A cultura está associada à memória e à criação. A cultura não é amnésica, ela mantém vivos os conhecimentos adquiridos e recria-os, procurando aperfeiçoá-los. Em cada geração, o homem recebe um conjunto de valores e atitudes das gerações precedentes, sendo educado de acordo com eles. Uma vez assimilados, não se conforma, mas, pelo contrário, transforma, inova, muda, acrescenta algo à sua herança, procurando deixar, também ele, o seu contributo para os vindouros.

Etimologicamente, a palavra cultura deriva do latim cultura, e tem uma pluralidade de sentidos: um físico, relacionado com o cultivo da terra; um ético, referente à educação; e um religioso que se prende com o culto a Deus, como se pode verificar no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa: “cultura, em geral; a agricultura; fig., cultura (do espírito, da alma); acto de cultivar alguém, de lhe fazer corte; acto de honrar, de venerar, culto”. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira podemos ler que a palavra cultura, para além do significado referente ao cultivo da terra, “trabalho que se faz na terra para que produza vegetais” e ao cultivo do corpo, “desenvolvimento, exercício dos órgãos, da musculatura, da agilidade”, tem ainda outros, relacionados com o cultivo do espírito:

“Aplicação às coisas do espírito; estudo que delas se faz: a cultura das artes, a cultura das letras. / Exercício, aperfeiçoamento das faculdades intelectuais: a cultura da memória. / Conjunto dos conhecimentos de alguém; instrução. / Civilização. / Preciosidade do estilo, o mesmo que cultismo.”

Procurando clarificar este conceito, encontramos outras definições que, confirmando as anteriores, a complementam, alargando a conotação que lhe é atribuída. Machado (1991,

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12 324) define cultura como “Estudo, aplicação do espírito a uma coisa. / Aplicação às coisas do espírito; estudo que delas se faz. / Exercício, aperfeiçoamento das faculdades intelectuais. / Estado de quem tem desenvolvimento intelectual. / Conjunto dos conhecimentos de alguém; instrução. / Civilização; adiantamento. / Apuro, esmero, elegância. / Preciosidade de estilo; o m. q. cultismo, culteranismo.” – sendo este entendido como “Qualidade ou estado do que é culto, instruído; prática, manifestação da cultura intelectual; civilização. / Preciosismo, afectação de estilo.”

Partindo destas definições, podemos dizer que a cultura acompanha a evolução do homem, dado que existem provas de manifestações culturais relativas a cada fase da sua evolução, registadas por utensílios de trabalho, esculturas, desenhos ou documentos/registos, orais e/ou escritos. Com efeito, a evolução das formas de cultivar a terra, acompanhada da invenção de novos utensílios e novas técnicas auxiliares quer da sua subsistência alimentar quer das formas de comunicação, provam que, desde sempre, o homem construiu a sua própria cultura, marcando as várias etapas da sua vida pela procura de um aperfeiçoamento de tudo o que lhe permitisse viver com maior qualidade. (Mischa, 1979, 98) escreve que “É certamente seguro afirmar que os mais primitivos homens e mulheres estavam, pelo menos, no limiar da cultura”.

Podemos representar no esquema seguinte as cinco aceções mais usuais da palavra cultura, segundo Amilburu:

Cultura entende-se como Oposições a esta aceção

Conjunto de conhecimentos: cultura

geral que deve possuir qualquer pessoa. Incultura. Participação do sujeito no

conhecimento que possui: capacidade crítica e assimilação interior.

Pedantismo, erudição.

Formas de expressão artística: atividades complementares à

sobrevivência biológica.

Vulgaridade. Falta de sensibilidade estética.

Âmbito sociocultural: artefactos que

caracterizam e distinguem os grupos. Estado selvagem próprio dos animais. Resultado de uma ação livre: resulta

dos procedimentos de cada pessoa. O congénito. Esquema 1. Aceções do termo cultura, segundo Amilburu (2002, 89 - adaptado)

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13 Assim, fala-se de cultura geral como sendo o “tipo de información básica que debería poseer cualquier persona que pertenece a un grupo social” (Amilburu, 2002, 89), distinguindo-se entre as pessoas cultas ou incultas de acordo com o domínio de certos conhecimentos considerados fulcrais na formação social da pessoa. Numa sociedade rural, uma pessoa culta será aquela que possui um vasto conhecimento da forma como viveram e vivem os membros da sua comunidade bem como do conjunto de objetos e informações recebidos como herança; mas, numa sociedade citadina, culto será aquele que possui conhecimentos no domínio dos valores, das artes e das ciências sociais e humanas, não só locais mas nacionais e até internacionais.

Fala-se, também, no homem culto enquanto participante na construção de conhecimentos e não apenas em termos quantitativos, salientando que tal “supone un cierto grado de capacidade crítica de asimilación interior” (Amilburu, 2002, 89). Neste sentido, culto será aquele que não só assimilou o conjunto de conhecimentos recebidos, mas procurou estudá-los, interpretá-los e criticá-los, construindo, assim, novos conhecimentos.

Por outro lado, usa-se o termo cultura para referir um tipo de conhecimentos que não são necessários à sobrevivência do homem mas que lhe conferem um toque de distinção “Son como un adorno, un pequeno lujo intelectual que alguien se puede permitir cuando sus necessidades más elementales están cubiertas” (Amilburu, 2002, 89). Quando falamos de um homem culto nesta aceção “lo oponemos al hombre vulgar, poco sensible para las cuestiones estéticas” (idem, 90).

Mas o homem não vive isolado, por isso se pode falar da cultura de âmbito sociocultural, sendo aquela que define como “la situación social concreta en la que está inmerso un individuo. (…) La cultura así entendida engloba el conjunto de conocimientos, creencias, leyes, costumbres, técnicas y representaciones simbólicas que caracteriza a un determinado grupo humano y lo distingue de los demás” (Amilburu, 2002, 90).

Mas, o sentido mais específico do termo cultura é-nos dado pela antropologia filosófica, uma vez que “Así, se dice que cultura es todo aquello que resulta de la acción humana, en cuanto diferente e irreductible a lo que resulta de los procesos embriológicos. La cultura es pues el resultado de la acción libre” (Amilburu, 2002, 90). Entenda-se, no entanto, que não há lugar a uma dimensão cultural da ação individual se essa ação não for integrada no modo de pensar e sentir de um grupo e, a partir daí, condicionar o grupo e vir a poder ser

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14 transmissível a novos elementos sociais.

A cultura, no contexto da antropologia da educação em especial, mas no contexto de uma análise histórico-cultural ampla, abarca duas dimensões: uma objetiva e outra subjetiva.

A dimensão objetiva é a que respeita à materialidade da atividade do homem, comportando os instrumentos, os símbolos, os códigos de valores, as crenças, os costumes e os modos de comportamento. “Este mundo de la cultura objetiva tiene alguna consistencia en sí mismo porque los productos culturales – artefactos, lenguaje, costumbres, etc. –, una vez creados por el hombre, gozan de un cierto grado de autonomía respecto del sujeto o grupo humano a quien deben su origen” (Amilburu, 2002, 94).

A dimensão subjetiva, por outro lado, respeita “la asimilación o interiorización vital por parte del individuo de los objetos culturales propios del ámbito social en el que vive” (idem, ibidem). Deste modo, a cultura é a evolução do homem, a sua educação, aquilo que faz com que ele vá sendo cada vez mais humano e adquira maior perfeição. A cultura subjetiva engloba, então, os conhecimentos e os hábitos que o homem vai adquirindo ao longo da sua vida. Não coincidindo com a divisão em cultura material e espiritual, esta divisão salienta a dimensão estática e a dimensão dinâmica da cultura. Se bem que a dimensão construída da cultura seja indispensável à função pedagógica ou educativa, o que nos interessa de modo especial neste trabalho é salientar o papel dessa dimensão objetiva, construída ou constituída para a tarefa de constituição de cada individualidade. Da relação entre a cultura constituída e a capacidade constituinte gerada por ela em cada um através da educação resulta a identidade de um grupo social e a base da própria identidade pessoal.

Estas duas dimensões da cultura são complementares já que o mundo cultural tem como finalidade a busca da perfeição nos modos de criação do bem-estar humano, sem deixar de aproveitar a dimensão natural da componente física, emotiva e criativa inerente ao ser homem.

A cultura vai muito para além dos que a criaram, uma vez que ela vai crescendo com os contributos que cada homem, ao longo da sua vida, lhe vai dando. Sempre que alguém quer criar alguma coisa, não o faz a partir do nada mas sim a partir de um legado cultural pré-existente. Nenhum objeto ou conhecimento é inventado de raiz, mas apenas trabalhado de modo a melhorar ou pelo menos alterar um já existente. O homem primitivo tinha ao seu dispor apenas as suas capacidades para sobreviver; mas, graças ao desenvolvimento da sua

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15 atividade, ele pôde, a partir daí, contar com a cultura herdada para a desenvolver e melhorar, tornando a sua vida cada mais fácil e operacional. Assim, podemos dizer que a cultura é um bem adquirido mas inacabado, cabendo a cada homem que a recebe, interpretá-la e aperfeiçoá-la.

A transmissão da cultura “se lleva a cabo por la enseñanza – entendida en sentido amplio y no solo la institucionalizada –, y su adquisición se corresponde com el aprendizaje” (Almiburu, 2002, 95). Tomando a educação como a necessidade de ser educado e a capacidade para educar, inerentes ao homem e como condição cultural da natureza humana, ao educador compete satisfazer a necessidade natural de cultura e promover como natural a necessidade de cultura.

1.3. Cultura e identidade

A identidade pessoal é a consciência psicoafectiva que temos daquilo que nos é próprio e daquilo que nos distingue. É saber o que somos e saber o que nos distingue dos outros. Ela está sempre ligada à noção de diferença (dentro e fora de uma comunidade), e reforça-se na ligação com os outros.

Amilburu considera que a identidade pessoal se constrói em interação com a sociedade. Esta autora dá o exemplo de uma criança que, à nascença, é pouco diferente de qualquer outro animal; no entanto, à medida que cresce, vai adquirindo e desenvolvendo competências que a vão distinguir e identificar. De facto, tomando esse exemplo, facilmente verificamos que há certas aprendizagens que o animal desenvolve mais rapidamente do que o menino, como sejam a capacidade de andar, de procurar alimento, de possuir autonomia. No ser humano, pelo contrário, essas capacidades são de aquisição muito mais lenta e dependentes do fator social. Outro aspeto que, a longo prazo, distinguirá estes dois seres é a aquisição e o desenvolvimento de certas habilidades, capacidades e conhecimentos, que só o ser humano possui, caracterizando-o e distinguindo-o dos demais seres, as quais só se concretizam graças à intervenção de familiares e outros intervenientes sociais que vão ajudar esse ser no seu crescimento. A este processo de aquisição e desenvolvimento cultural a autora chama “inculturação” e define-o como “o processo pelo qual um indivíduo assume os modos

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16 de vida próprios da cultura a que pertence ou a que deseja pertencer” (Almiburu, 2002, 98).

Este processo de “inculturação” leva à identidade cultural, considerando-se “ como uma forma de identidade coletiva característica de um grupo social que partilha as mesmas atitudes” (Lustosa, 2009)4. Assim, o grupo vai educar a criança, transmitindo-lhe essas atitudes que lhe são próprias e levando-o a reconhecê-las como suas. Segundo este texto, a identidade cultural é a “responsável pela identificação e diferenciação dos diversos indivíduos de uma sociedade”, na medida em que cada criança vai ser educada segundo os princípios do grupo, permitindo assim que cada indivíduo se sinta unido emocionalmente e afetivamente ao grupo, sentindo pertencer-lhe, ao mesmo tempo que reconhece outros grupos como estranhos, afastados ou incompatíveis com a sua maneira de estar e de ser, ou de ver o mundo que o rodeia.

Para que um indivíduo se sinta culturalmente integrado num grupo, será preciso que tenha construído a sua identidade pessoal sob a influência da sociedade, sem no entanto se subjugar completamente a ela, mas interagindo com ela a todos os níveis, uma vez que

“la identidad personal – que es el elemento clave de de la realidad subjetiva – se forma por un proceso de interacción social en el seno de una cultura particular. Y una vez que ha cristalizado, se mantiene, puede ser modificada o incluso reestructurada de nuevo mediante relaciones interpersonales” (Amilburu, 2002, 105).

Assim, temos que a identidade cultural – incluindo em si a identidade individual, grupal e até nacional – tem subjacente a educação no conjunto de valores e instrumentos característicos de cada grupo e que constituem as duas dimensões da cultura supracitadas: a dimensão objetiva e a subjetiva. A identidade cultural poderá, assim, ser vista como a perceção que os cidadãos têm de formarem uma coletividade humana, seja ela num grupo restrito ou mais alargado – conforme se refira a uma família, a uma etnia, a uma região ou a um país.

Em vários dos seus escritos, Miguel Torga fala do seu apego à terra que o viu nascer, “o lugar de onde” (Torga, 1995, 22), com a qual se identifica plenamente, porque dela e nela aprendeu a valorizar o que realmente é importante: o Homem e a Natureza (pura e dura). A

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17 sua identidade é fruto dos ensinamentos que recebeu dos seus pais, dos seus vizinhos, dos seus amigos, dos seus colegas de infância, da aldeia onde formou o seu caráter, onde aprendeu os valores morais que guiaram, marcaram e condicionaram os seus comportamentos futuros – porque a identidade é também fruto da aprendizagem recebida, do referido ‘proceso de interacción social en el seno de una cultura particular’. Em A Criação do Mundo e no Diário faz Torga várias referências aos pais, camponeses pobres, que o marcaram decisivamente. Do pai, salienta com grande admiração a grandeza de caráter, a tenacidade, o sentido de justiça e o amor à terra; da mãe, salienta uma relação de grande afetividade e cumplicidade na defesa do seu valor.

Apesar de ter passado grande parte da vida fora da sua terra natal, o escritor sente uma forte ligação a ela e um chamamento constante, como se os genes dessa terra integrassem os seus próprios genes: “não tenho fronteiras espirituais, mas trago gravados nos cromossomas os marcos da minha freguesia e a fisionomia dos meus conterrâneos” (Torga, 1993, 22). O poeta/escritor ama de tal modo a sua terra que não se cansa de a descrever e, por muito que o faça, nunca fica satisfeito com o seu trabalho, pois sente-se incapaz de o fazer com o devido rigor e respeito que ela – a sua e toda a terra – lhe merece. Isto mesmo ele reconhece quando escreve: “Tantas páginas e tantos poemas que aqui tenho escrito, e morro na convicção de que nada disse de significativo da minha ligação à terra onde nasci e de onde verdadeiramente nunca saí ” (Torga, 1990, 66). Torga refere-se metaforicamente à terra que o viu nascer, S. Martinho de Anta, como sendo “um marco de orientação” que lhe indica o caminho a seguir: “Mesmo a cair aos bocados, teimei em passar por aqui. E que nenhuma hora da minha vida tem significação sem esta referência. S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo” (Torga, 1990, 36). Este marco não está isolado, surge antes como o centro de Trás-os-Montes, o que ele designa metaforicamente por “Reino Maravilhoso”, como um paraíso: “Este Trás-os-Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso!” (Torga, 1989, 76) ao qual se refere, ainda, dizendo que é um “ninho alto e agreste que transmite a elevação e a aspereza à casca e ao sabugo de quem ali nasce” (Torga, 1969, 65). A sua identificação com a terra natal provocou nele um apego tal que é nela que ele sente o conforto de uma progenitora como se pode constatar nesta passagem de Traço de União “Lá, naquela rudeza sem conforto, é que sentimos a cama macia, a alma aconchegada!

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18 De lá, daqueles agressivos penhascos, é que nos vem ternura e calor!” (Torga, 1969, 71). É tão intenso esse apego que, ainda pequenina, é lá que se dirige para “enraizar” a sua filha, para lhe transmitir e garantir a aquisição de “cromossomas honrados e obstinados”, tal como escreve numa página do seu diário: “Aqui estou a enraizar a filha, a mergulhá-la na terra como meu Pai fazia às pernadas dum rododendro de estimação. Quero dela também o prolongamento da rubra vitalidade de alguns cromossomas honrados e obstinados” (Torga, 1976, 53).

Torga ama inegavelmente a sua terra, S. Martino de Anta e a região que a envolve, mas não se fica por aí. Ele ama a sua pátria, dela se orgulha e dá testemunho, saboreando cada pedacinho de paisagem:

“De tanto amar esta pátria já nem sei às vezes distinguir nela o grande do pequeno, o belo do feio, as fragas do húmus. Aconchego os olhos num largo panorama de carrascos como se os deitasse num leito de feno. E graças a Deus que assim acontece, que do Minho ao Algarve toda a paisagem me sabe bem. Sou dos poucos portugueses que se podem gabar de, sempre que como tal se identificam, o serem de Portugal inteiro” (Torga, 1987, 8).

Na sua obra encontramos vários testemunhos das suas viagens, atentas e interessadas ao mais ínfimo pormenor, pelo país, desde a capital até às terras mais pequenas e isoladas e, por isso, menos prováveis de serem visitadas por um homem que estudou e viajou pelo mundo. As referências a Lisboa, Coimbra e Porto são sobejamente conhecidas. Mas, quem se lembraria de deixar registada a sua passagem por terras ou simples lugares transmontanos como Pitões das Júnias, Cimo de Vila e S. Caetano (Diário XIII); Castelo de Monforte, Castelões, Santo Estêvão e Granginha (Diário XIV), Travassos, de Montalegre, as penedias de Calcedónia, no Gerez (Diário II). A isto se refere Chorão quando, na tentativa de definir Torga, afirma:

“muito poucos percorreram como ele Portugal de lés a lés, para admirar, sim, as grandes fábricas, os monumentos de merecida fama, os painéis que, prouvera a Deus, Nuno Gonçalves tenha pintado para maior glória nossa, mas para admirar igualmente a capelinha modesta, o retábulo ingénuo, a estatuária popular, a fraga e a árvore esculpidas por mão de mestre desconhecido” (Chorão, 1987, 20)5.

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19 Ou poder-se-ia completar, pela mão da natureza, que dá seiva à urze da fraga no verão e aconchego ao pardal no inverno.

Torga identifica-se plenamente com o seu “Reino Maravilhoso” embora dê provas de um profundo conhecimento da cultura local mas também mundial, moderna mas também clássica. No entanto, é à paisagem desse mundo maravilhoso que ele deve tudo o que o alegra e o alimenta e não a troca por nada, mesmo pelas coisas mais belas que conheceu nas suas várias viagens e às quais reconhece grande valor. E nessa dimensão de valoração do natural da paisagem Torga não deixa de revelar o que realmente lhe interessa salientar: a dimensão das qualidades dos homens, que ele por personificação literária ou mesmo em referência explícita aponta. No excerto do Diário II, uma “alma branca” é condição do apreço da beleza de uma encosta de neve; mas esta parece ser o estímulo a esse valor humano. No mesmo excerto, Torga faz uma jura de apreço terminando com o vocativo Mãe:

“Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!” (Torga, 1977, 71-73).

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1.4. Animação sociocultural e dinamização axiológica

1.4.1. Animação sociocultural

No Dicionário da Língua Portuguesa, encontramos as seguintes definições:

animação: (do latim animatione) é o ato ou efeito de animar, é vivacidade e entusiasmo; animar: (do latim animare) é dar alma a, dar vida a, dar animação a, alentar, encorajar; animador: (do latim animatorem) é aquele que ou o que anima, que faz alimentar

esperanças; e sociocultural: (do latim socius+cultura) o que, simultaneamente, diz respeito a determinado grupo de pessoas e suas relações, e ao nível de representações mentais e realizações humanas dos indivíduos que constituem esse grupo. Podemos então concluir que o conceito de animação sociocultural está diretamente relacionado com vida, movimento, atividade; é o ato de dar vida e calor – embora não diretamente no plano biológico, mas com o qual pode ser beneficiado. Esta ideia é corroborada por Serrano (2007, 199) acrescentando que a animação, enquanto transmissão de vida, significa “dar ímpeto, dar alma a lo que no la tiene, o bien, la tenía pero la há perdido, o está latente. Se trata de vitalizar, dinamizar, estimular”. Sendo assim, a animação é uma ação deliberada que visa a qualidade de vida dos indivíduos ou grupos de indivíduos, contribuindo para a sua própria promoção e para a criação de representações mentais e axiológicas com repercussões na transformação social. Ela procede metodicamente de modo a alcançar um objetivo preciso: “el desarollo pleno de las potencialidades y capacidades tanto personales, como de comunidades y grupos” (Serrano, 2007, 204) – implicando os agentes na promoção de valores sociais (relacionais, atitudinais, valorativos, cosmovisivos, etc.) e culturais (arte, ciência, religião, folclore, etc.) e na tomada de decisões, através da sua participação ativa.

O conceito de Animação Sociocultural pode ser entendido como um projeto que pretende desenvolver um conjunto de atividades, orientadas para um grupo específico da sociedade, visando uma participação comprometida com o processo de transformação da mesma e com implicações nos seus vários domínios. Este é o nosso entendimento de Animação Sociocultural, e que, tal como refere Lopes (2007, 2), está de acordo com a conceção definida pela UNESCO (1977) que a toma por “ um conjunto de práticas sociais que visam estimular a iniciativa e a participação das populações no processo do seu

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21 próprio desenvolvimento, e na dinâmica global da vida sociopolítica em que estão integradas”.

Ventosa (2007, 2) escreve que “Al conjunto de prácticas, métodos y técnicas com intencionalidade educativa, contenido cultural y continente social, dirigido a conseguir dicha meta, es a lo que llamamos Animación Sociocultural”. Serrano (2007, 204) salienta que definir ASC é uma tarefa difícil; no entanto, entende-a como “una metodologia de intervención, de carácter intencional y prepositivo, que promueve la participación, el desarrollo de valores sociales y culturales, orientada a la promoción individual y a la transformación comunitária”. De modo a clarificar este conceito, o referido autor faz uma reflexão sobre o que não é a ASC, segundo os seguintes pontos:

“- uma educação diretiva; - consumo cultural; - um entretenimento;

- a utilização de técnicas assépticas; - apenas uma ação de generosidade; - apenas uma súmula de atividades; - uma política institucional asfixiante; - importação de modelos;

- um negócio”

Quadro 1. Definição de ASC, pela negativa, segundo Serrano (2007, 20-204)

Com esta reflexão pretende-se alertar para alguns aspetos que, vistos de modo errado, poderão transformar a animação sociocultural em algo que, em vez de animar, venha desanimar os intervenientes. A ASC, entendida nos moldes acima referidos, opõe-se às características que são negadas neste quadro. Com efeito, se consideramos que a animação se orienta para a promoção do indivíduo e a transformação da sociedade, que ela deve promover valores sociais e culturais, não poderemos praticá-la com seres passivos e meros observadores; não poderemos dirigir a ação para o consumo cultural que se limite a divulgar modelos. Concluindo esta reflexão, o autor salienta que a ASC é “la acción de impeler a individuos y grupos a que espontáneamente participen en la cultura social dentro del contexto en le que están inmersos, a fin de hacer que ésta, – y con ella los sujetos –, se oriente a la consecución de los verdaderos intereses de la comunidad” (Serrano, 2007, 204).

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1.4.2. Origens da Animação Sociocultural

A ASC, tal como a definimos, é um conceito recente, cujas origens são de difícil situação temporal e/ou espacial. Como forma de animar ou de se animar, podemos considerar que sempre existiu a ASC; mas, com a conotação atual, é mais recente. Nas palavras de Lopes:

“não é possível identificar, de uma forma precisa, a origem, menos ainda atribuir uma cronologia àquilo que hoje designamos como Animação Sociocultural. Sabemos, isso sim, que sempre houve diferentes tempos na vida das pessoas. Um tempo para o trabalho e um tempo para o não trabalho, que inclui diferentes espaços e tempos como a festa, o recreio, aquilo que, em sentido lato, podemos chamar Animação” (Lopes, 2008, 135).

Também Ventosa afirma que é muito difícil situar as origens espaciotemporais da ASC, admitindo, no entanto, que, de algum modo, ela tem estado sempre presente na vida do homem. Para reforçar esta ideia recorre a uma passagem de Delorme, onde se lê que

“es muy difícil determinar en qué fechas concretas comenzó (la animación). Indudablemente, siempre existieron fenómenos de animación. A partir del momento en que unas personas viven en grupos, en barrios urbanos, en aldeas, en instituciones diversas, se produce la animación en el sentido de que se organizan y desarrollan unos mecanismos de intercambio y de comunicación y en que unos individuos se convierten especialmente en facilitadores de las manifestaciones sociales de esta comunicación” (Ventosa, 2002, 44).

Citando mais uma vez Lopes (2008, 95), “ Animação Sociocultural é uma forma de intervenção relativamente nova”, com origem em França e nos países francófonos, tendo atingido, em Portugal, a sua “máxima expressão na segunda metade da década de 70, depois da revolução do 25 de abril”. Apesar destas afirmações, este autor reconhece que as origens da animação se perdem no tempo, abrangendo uma enorme variedade de situações e/ou processos de interação, uma vez que surgem motivadas

“… pela necessidade histórica e social da vivência corresponder à convivência e a participação não ser reduzida a um ritual calendarizado, mas antes a uma prática comprometida com o desenvolvimento rumo à autonomia das pessoas e à auto-organização; pela necessidade de o tempo livre não ser ocupado, mas sim

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animado; de se privilegiar a comunicação interpessoal, em vez da distanciação mediatizada; de se promover a criatividade e expressividade humanas e não a robotização; de se favorecer a partilha de saberes em vez de se proclamar um saber unívoco; de se estimular o actor/pessoa em vez do espectador/pessoa, bem como de se valorizar as práticas e as experiências nas dimensões da educação não formal e informal” (Lopes, 2008, 136-137).

Apesar da referida dificuldade em situar cronologicamente a origem da ASC em Portugal, muitos autores concordam que, de forma mais ou menos precisa, mais ou menos concreta, o homem procurou e encontrou sempre formas de se animar e de animar os outros, criando momentos de interação para ocupar os tempos livres, ou os menos ocupados na luta pela sobrevivência ou no auxílio aos outros. Com efeito, entendendo a ASC desta forma, encontramos, ao longo da nossa história, vários registos de atividades/momentos de ocupação e animação dos tempos livres e mesmo dos tempos de trabalho. Não será de somenos importância também a inserção das atividades não ‘trabalho’ no contexto ideológico e cultural das sociedades como forma de poder social. De facto, sobretudo a arte esteve muito associada à vontade de alguém em impor-se socialmente, bem como à afirmação da sua necessidade de ‘trabalhar’. Não será, no entanto, de desprezar outras ‘justificações’ para esta forma de atividade e expressão humana. Na verdade, desde a dimensão gratuita de expressão de ‘dotes’ ou ‘habilidades’ pessoais em favor da comunidade à ‘ridicularização’ ou simples “crítica” de pseudo formas de valorização humana, podem encontrar-se diversas manifestações de ASC. Mas também como modo de publicitar um evento religioso ou político, ou mesmo social, a ASC pode encontrar antecedentes históricos. A pedagogia do agradável, que caracteriza muito da teoria moderna de educação não deixará de socorrer-se das técnicas de ASC para conseguir os seus objetivos. E, de algum modo, tudo o que for incisivo, de fácil ou imediata apreensão, sem esforço imediato especial e que traduza uma perceção globalizante da situação pessoal ou da relação social tenderá a ser melhor aceite e de repreensão mais duradoira.

Em Gil Vicente encontramos um vasto espólio de textos que alegraram e enriqueceram os tempos livres da corte. Este dramaturgo, que muito contribuiu para animar a vida de todos quantos tiveram o privilégio de assistir às suas representações, considerado o “pai do teatro português”, acredita-se que tenha organizado uma companhia de teatro ainda que, como escreve Saraiva (1992, 194), “Nada comprova a existência de uma companhia

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24 profissional de atores, embora períodos de intensa atividade cénica, como os de 1523-24 e 1526-26, requeressem uma certa permanência e treino do elenco.” O mesmo autor (1992, 190) acrescenta que Gil Vicente “desempenhou na corte a importante função de organizador das festas palacianas, por exemplo, da receção em Lisboa à terceira mulher de D. Manuel” e que as suas peças foram divulgadas, por ele, que “publicou em vida alguns dos seus autos, em folhetos de cordel que depois foram reeditados”; acrescentando mais adiante, Saraiva

“Ainda que representado nos salões do Paço, Gil Vicente fez sentir a sua influência num círculo muito mais amplo que o da corte. As suas peças (…) corriam impressas pelo autor, em folhetos “de cordel”, e a sua Compilação de 1562 contava sem dúvida com um grande apreço público. É certo, portanto, que se popularizaram; e não se deve excluir a hipótese de terem sido representadas também fora do Paço (hipótese perfeitamente viável, visto que o texto impresso estava ao alcance de muitos) ” (Saraiva, 1992, 214).

1.4.3. Animação sociocultural e transmissão de valores

Na medida em que a ASC procura envolver os participantes na promoção de uma sociedade melhor, partilhando saberes, conhecimentos e valores, podemos considerar que a Animação Educativa é uma dimensão básica da Animação Sociocultural. Ventosa afirma que é “através de três modalidades básicas: a cultural (animação cultural), a social (animação social) e a educativa (animação educativa) que a Animação Sociocultural leva a cabo a sua missão, que é a de se ligar intimamente ao desenvolvimento do indivíduo e da comunidade em que este se insere” (Ventosa, 1997, 44).

Neste início do século XXI, a ASC está presente em todos os setores da sociedade, seja nas instituições de ensino, seja nas de apoio à terceira idade, passando pelas associações culturais e recreativas. Atendendo a esta ideia e à definição acima referida, não será difícil concordar que, sempre que se fala de ASC não se fala só de “animação cultural” mas também de “animação social” e de “animação educativa”. De facto, se consideramos que a ASC visa a participação ativa da população na (trans)formação da sociedade, teremos de respeitar a cultura existente, a identidade dessa mesma sociedade, de modo a (re)educá-la, revitalizando os valores essenciais que se estão a perder. A sociedade do século XXI vive em constante transformação, verificando-se que a noção de certo/errado, adequado/inadequado e outras se alteram rapidamente, perdendo o sentido inicial e adquirindo novas conotações, o que faz

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Referências

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