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O Rio de Janeiro e o Teatro Experimental do Negro ( ) 1

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O Rio de Janeiro e o Teatro Experimental do

Negro (1944-1945)

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2.1 – O Rio de Janeiro e a sua magia2

De ex-presidiário a personalidade do mundo teatral carioca. Está é a trajetória realizada por Nascimento em pouco mais de dois anos. O mesmo homem que, com 29 anos, estava encarcerado no presídio do Carandiru, condenado por supostos crimes cometidos durante sua passagem pelo Exército (1930–1936), em 1946 é tido com personalidade respeitada no mundo artístico, intelectual e político da capital do país aquela época. É possível constatar este fato pela leitura de um artigo de sua autoria publicado na revista Vamos Ler3 em outubro do referido ano. Com o título de “No teatro brasileiro”, Nascimento faz uma espécie de resenha de uma peça em cartaz no Rio de Janeiro, citando atrizes, atores e diretores brasileiros e estrangeiros. Nesse mesmo ano, ele começa a escrever no recém aberto jornal

Diário Trabalhista, onde era responsável por uma coluna voltada somente para

assuntos relacionados à comunidade afro-brasileira. Para entendermos a ascensão de nosso autor é necessário que dediquemos atenção especial aos anos de 1944 e 1945, quando se dão acontecimentos decisivos para a trajetória do jovem francano.

Por sinal, esses dois anos são tidos como momentos significativos na história intelectual brasileira. Em 1944, é lançado o livro Testamento de uma

1 Esse texto é o segundo capítulo faz parte da dissertação de Mestrado em Sociologia de Márcio

Macedo intitulada “Abdias do Nascimento: a trajetória de um negro revoltado (1914 – 1968)” defendido em 03/02/2006 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo tendo como orientador o professor doutor Antonio Sérgio Alfredo Guimarães.

2 Foto de Abdias do Nascimento e Cacilda Becker em cena de Otelo (Shakespeare) no 2º

aniversário do TEN, Rio de Janeiro, 1946.

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geração,4 uma reunião de depoimentos de intelectuais e artistas renomados como

Afonso Arinos de Melo e Franco, Sérgio Milliet, João Alphonsus, Luiz da Câmara Cascudo, Emílio Di Cavalcanti entre outros. Como afirma Mota (1978) “apesar de muitos desses intelectuais continuarem produzindo por mais de trinta anos e terem participado, em anos posteriores, da vida política ou posições de destaque, o sentimento que perpassa os depoimentos é o de fim de período, de decadência da cultura” (1978:84). Contrapondo-se ao Testamento, Mota apresenta Plataforma da

Nova Geração,5 conjunto de depoimentos lançado em 1945 publicados

primeiramente no jornal O Estado de São Paulo e organizados por Mário Neme. De acordo com este autor, “os depoimentos de Edgar de Godói da Mata-Machado, Paulo Emílio de Sales Gomes, Antonio Candido e Mário Schenberg trazem consigo alguns elementos teóricos novos para se estabelecer parâmetros diferenciados dos anteriores na história da cultura no Brasil: tais participações, sem serem propriamente revolucionárias, inscrevem-se na vertente radical das ideologias do período da Segunda Guerra Mundial” (Mota, 1978:111). Em meio a essas transformações na cena cultural e intelectual brasileira, é significativo o fato de o TEN ter surgido em fins de 1944 e montar sua primeira peça em maio de 1945.

Ao sair da prisão, no início de 1944, Nascimento estava decidido a implementar sua idéia de fundar um teatro negro. Sendo assim, ele tenta viabilizar sua proposta em São Paulo, estabelecendo contato com Mário de Andrade, a quem chega por intermédio do escritor Fernando Góes. A proposta, segundo nosso autor, teve pouca receptividade da parte do modernista, fato que o desanima. Não coincidentemente, Mota (1978) elege Andrade como “ponto de referência”, “consciência limite” da geração desgastada de 1944. As palavras ácidas no depoimento registrado no Testamento fornecem uma noção da situação revisionista do autor. Diz ele que:

4 O Testamento de uma Geração (1944). Introdução e organização de Edgard Cavalheiro. Editora

Globo, Porto Alegre.

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Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muita coisa! E, no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivam duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem mas é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou

repisando o que já disse a um moço... (Andrade apud Mota, 1978: 107)6.

Mesmo diante do desânimo do poeta modernista, Nascimento afirma que “sentiu um clima no ar” ao ler um artigo do jornalista, poeta e escritor Galeão Coutinho7 em que comentava a necessidade da existência de companhias de

teatro composta só por negros. Decide então se mudar para o Distrito Federal. Essa mudança para o Rio de Janeiro tem claramente um sentido estratégico. O título deste tópico faz referência a um texto clássico do antropólogo Lévi-Strauss (1958), Le sorcie et sa magie. A idéia básica do autor francês é a de que “Il n’y a

donc pas de raison pour mettre em doute l’ efficacité de certaines pratiques magiques. Mais on voit, en même temps, que l’ efficacité de la magie, implique la croyance en la magie” (Lévi-Strauss, 1958:184). Situando a analogia sugerida,

diria que Nascimento muda-se para a capital do país estrategicamente, pois existia a crença de sua parte de que o projeto do teatro seria mais bem recebido no Rio de Janeiro, por conta de certo deslumbramento do autor com a capital do país, informado por um imaginário que via a “Cidade Maravilhosa” como mais cosmopolita do que a ainda bastante caipira, “Terra da Garoa”.8 Isso se dava

6 Conferência-depoimento de Mário de Andrade realizada no Itamaraty em 30 de abril de 1942 e

parcialmente transcrita no livro O Testamento de uma Geração (1944).

7 Galeão Coutinho (1897 – 1951) foi redator–chefe do jornal A Gazeta, escritor e tradutor. Escreveu

Parque Antigo (poesia, 1920), Confidências de Dona Marcolina (novela, 1949) e Memória de Simão, o caolho (novela, 1953).

8 Discorrendo sobre as transformações ocorridas no centro da capital paulista, Frúgoli Jr. (1995)

acaba por evidenciar que, nos anos 1950, São Paulo ainda se encontrava num processo de se transformar uma metrópole cultural. Afirma ele que: “Uma década mais tarde [1950], já mais integrado a vários grupos intelectuais, José Paulo Paes destaca a abertura de grandes livrarias como a Monteiro Lobato, na Avenida São João, ou o Palácio do Livro, na Praça da República, a circulação de artistas plásticos, escritores e outros intelectuais pela Barão de Itapetininga, e o rebuliço causado pelo pintor Flávio de Carvalho, que desfilou com uma saia curta pelas ruas do centro, numa São Paulo que se alçava também como metrópole cultural, mas que matinha hábitos

bastante provincianos” (Frúgoli Jr, 1995:28) [grifo meu]. Um momento anterior a esse, mas que de

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devido, por um lado, à posição central do Rio de Janeiro, do ponto de vista político e cultural nessa época, e de outro, à inexistência de um campo teatral já bem estabelecido na capital paulista. São Paulo poderia ser considerada uma cidade estrangeira, devido ao alto número de imigrantes que constituía sua população, contudo, sua vida cultural ainda era efêmera se comparada ao Distrito Federal. O desenvolvimento do teatro paulista daria seus primeiros passos justamente nessa década, como nos ensina Arruda (2001). O ciclo analisado pela autora tem como marco de início 1942, com a fundação do Grupo de Teatro Experimental por Alfredo Mesquita e se fecha em 1964 com o Golpe Militar. Assim afirma a autora:

No meio do século XX, o teatro em São Paulo celebra a sua estréia no cenário das linguagens modernas. Diferentemente da ficção, da poesia, mesmo do ensaísmo, que havia assentado as bases da renovação expressiva há pelo menos trinta anos, o gênero teatral parecia sofrer de uma espécie de paralisia, a despeito de existirem peças escritas pelos modernistas. O tempo de espera terminaria com o aparecimento das casas de espetáculos. Um novo teatro nascia na capital (Arruda, 2001:135).

A inexistência de um teatro de vanguarda, afinado com as transformações ocorridas nas outras artes, também é constatada por Pereira (1988), com a diferença de que este último se refere ao Distrito Federal daquela época. Até certo ponto, sua análise pode ser generalizada para o contexto nacional. O projeto de renovação cultural trazido pelo movimento modernista na década de 20 havia sido apropriado e implementado de maneira oficial pelo Estado Novo com relativo sucesso, no que diz respeito à literatura e a música.9 Era anseio de uma

intelectualidade, afinada com as tendências modernistas, de que isso viesse a ocorrer nas artes cênicas também.

Pereira (1988) elenca três tipos de teatros existentes no Rio de Janeiro até início dos 1940, a saber: o teatro de revista, o teatro sério e o que chamarei aqui de “teatro de luxo”. O teatro de revista atingia o grande público e era utilizado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) para a divulgação da imagem oficial do país, ao mesmo tempo em que esse órgão coibia o “excesso” de críticas empreitada de jovens ligados a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como por exemplo, daqueles que lançaram nos anos quarenta a revista Clima: Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho, Gilda de Mello e Souza, Lourival Gomes Machado entre outros (Ver Pontes, 1998).

9 Parte deste processo, relacionado à música, é descrito por Vianna (1995). Para uma discussão

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políticas nas peças. O teatro sério, cuja denominação mais apropriada seria “chato”, sofria o controle do Serviço Nacional de Teatro (SNT), criado em 1937, e buscava montar peças que contassem a história do Brasil em moldes tradicionais e convencionais. Por fim, o “teatro de luxo” atendia a um público mais refinado e se diferenciava dos demais por meio de uma “roupagem” moderna baseada no apuro dos guarda-roupas e da cenografia sem, contudo, abandonar o “estrelismo” ou ter uma visão inovadora do espetáculo, de acordo com Pereira. Era o teatro de bom gosto (Pereira, 1988).

O teatro brasileiro não apresentava as influências das vanguardas européias que já haviam se difundido nos grandes centros internacionais, e apenas uma pequena parcela da população tinha oportunidade de visitar as metrópoles do exterior. Uma amostragem das tendências modernas no teatro era, no entanto, as temporadas promovidas no Rio de Janeiro por companhias teatrais prestigiadas, como foi o caso do conjunto do famoso ator francês Louis Janet que apresentou um repertório variado no Teatro Municipal em duas ocasiões (1941 e 1942) (Pereira, 1988:69).

Na interpretação de Pereira, faltava, “portanto, às artes cênicas, manifestações que pudessem ser apoiadas como parte do projeto de criação da cultura brasileira moderna que se impunha na gestão do ministro Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde” (Pereira, 1988:69). O processo de modernização do teatro teria início com a deflagração da II Guerra Mundial, de acordo com Campedelli (1995), que faria com que vários profissionais do ramo, sintonizados com as técnicas de montagem mais contemporâneas, aportassem no Brasil, fugindo do conflito e do nazismo no chamado Velho Mundo. Alguns exemplos são os casos de Giani Rato, Adollfo Celi e Maurice Vaneau.

A mudança nas artes cênicas brasileiras viria de fato em 1943, através da montagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues. A peça teve a direção do polonês Zbigniew Ziembinski que trabalhou com o grupo Os Comediantes. Zimba, como passou a ser chamado no Brasil, era expert em iluminação e encenação com formação expressionista. Como nos ensina Pereira (1988) e Magaldi (1999), é justamente na encenação da peça de Rodrigues que nasce a moderna dramaturgia brasileira, na qual a figura do diretor passa a ter destaque e centralidade. O cosmopolitismo do Rio de Janeiro, nos anos 1940, somado as mudanças que começam a ocorrer na cena teatral carioca a partir de 1943, mais o

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carisma e a habilidade de Abdias do Nascimento em estabelecer contatos, como veremos adiante, parecem ser os grandes responsáveis pelo estabelecimento de um teatro negro nesta cidade em 1944.

2.2 – Um teatro negro na “Cidade Maravilhosa”

É necessário ressaltar, neste momento, um ponto central nos estudos sobe o surgimento do teatro negro no Brasil que, muitas vezes, passa despercebido. A novidade trazida pelo TEN não diz respeito ao fato de ser uma companhia formada somente por negros e mestiços. Este contingente da população tinha lugar nesta manifestação artística desde o século XVIII, momento em que o teatro começa a se afastar das temáticas religiosas, já que havia sido introduzido no país no século XVI como ferramenta no processo de cristianização dos indígenas. De acordo com Rosa, “muitas companhias possuíam elencos formados exclusivamente por negros, tornando comum o uso de pintura no corpo para interpretar personagens brancos. No entanto, se uma primeira leitura desta situação nos entusiasma, devemos nos lembrar que esta larga presença negra nas companhias do período se deve exclusivamente ao fato do teatro ser considerado indigno de receber em seus elencos membros das camadas considerados superiores, nesta época, os brancos” (Rosa, 2002:24).

Ainda de acordo com esta autora, o status do teatro muda a partir da vinda da corte portuguesa para o Brasil, no século XIX, tornando-se um tipo de arte mais elitizada. Neste momento, o negro passa a representar no teatro a mesma personagem que incorporava na sociedade, ou seja, o lugar de escravizado. No início do século XX, essa situação sofreria uma pequena mudança, como nos mostra a autora:

A sociedade não havia assimilado uma outra visão possível para o negro, o fim do cativeiro impõe também ao personagem negro no teatro um vazio à medida que uma garantia da aparição destes personagens, a condição de escravo, deixa de existir. O que parece ter se resolvido, porém com a readaptação de alguns estereótipos, no início do século XX, com o renascimento da comédia em 1916, povoadas das empregadinhas maliciosas, moleques de recado e realizadores de pequenos serviços, e o escravo fiel, geralmente um negro velho e absolutamente prestativo.

As personagens negras são aparentemente delineadas para a comprovação e legitimação da tese de inferioridade atribuída pela sociedade branca. Dessa forma vemos uma série de personagens-figurantes negros, com pouca ou nenhuma caracterização humana, comuns

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aos demais personagens os dramas e conflitos pessoais são pouco expressivos e muitas vezes se concretizam através da ação maléfica aos personagens centrais, leia-se brancos. Muitos são originados na condição de escravo ou descendente, o que impõe a esses indivíduos a compulsória inferioridade, sendo o teatro fiel ao retratá-los como indivíduos sem subjetividade e ricos de características e estereótipos depreciativos e vagos quanto a delineação de uma personalidade. Isso deixa grande parte desses personagens negros à mercê das determinações dos personagens brancos em todos os sentidos, principalmente em relação aos valores (Rosa, 2002: 35-36).

Desse modo, percebe-se que o grande problema não era a presença ou não em si de personagens ou atores negros no teatro, mas a representação que se tinha dos mesmos e os papéis que lhes eram reservados. Neste sentido, é possível até mesmo relativizar a história contada por Nascimento para explicitar o momento que lhe teria surgido o insight da necessidade de um teatro negro. O

black face praticado pelo ator peruano e presenciado por Nascimento em 1941

não era prática comum no Brasil, mas a representação e os papéis reservados aos negros eram grotescos ou de submissão.

Logo ao se estabelecer no Rio de Janeiro, Nascimento busca colocar em prática seu empreendimento artístico. Com isso em mente vai à busca de amizades antigas como a de Aguinaldo Camargo, que havia realizado, juntamente com ele, o Congresso Afro-Campineiro, em 1938. Além de Camargo, envolvem-se com o projeto Teodorico dos Santos, José Herbel e Tibério, este último pintor e escultor. O local de encontro é o Café Vermelhinho, localizado na região central do Distrito Federal, àquela época freqüentado pela classe artística e intelectual carioca. A atriz Ruth de Souza, que começaria sua carreira aos 17 anos de idade, na montagem de O Imperador Jones, realizada pelo TEN, fala dessa época com nostalgia:

Tínhamos contato com todo mundo, com outros grupos de teatro. O Café Vermelhinho – defronte a ABI [Associação Brasileira de Imprensa] – era o ponto de encontro de artistas e intelectuais da época. Era uma coisa tão linda que hoje eu fico pensando no documento incrível que teríamos se contássemos com um vídeo naquela época. À tarde, das quatro em diante, você encontrava todo mundo ali – o pessoal do TEN, do Teatro do Estudante, e ali a gente batia papo com Portinari, Nelson Rodrigues e eu bebia o que eles diziam... Ali conheci Santa Rosa, Sérgio Cardoso, Sérgio Brito, Di Cavalcanti, Aldemir Martins. E dali saíamos muitas vezes para a casa de Aníbal Machado, onde havia reuniões todas as quintas-feiras. A casa dele estava sempre aberta. Era uma época lindíssima (Souza, 1988:124-125).

A circulação de Nascimento por esse espaço, majoritariamente branco e intelectualizado, rende vários contatos que irão auxiliá-lo, de uma maneira ou de

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outra, no estabelecimento do teatro negro. Nas suas palavras: “Aí, a gente se reunia no Vermelhinho, para arquitetar os planos, entrar em contato com as pessoas que poderiam nos ajudar – como o Aníbal Machado,10 uma espécie de ‘papa’ dos intelectuais da época. Ele, por sua vez, nos apresentou a Carlos Lacerda,11 secretário de O Jornal, onde demos uma entrevista. Finalmente a 13de maio de 1944, fundamos o TEN" (Nascimento, 1988:108-109). A inserção de nosso autor nesse meio também era facilitada em função de seu trabalho como revisor em jornais, mas devemos considerar em muito o talento de Nascimento em constituir redes pessoais de contato, algo que começara já na sua passagem pelo integralismo, como vimos no capítulo anterior.

É importante frisar a conjuntura em que o TEN dá início às suas atividades para que possamos analisá-lo de maneira crítica. O final do Estado Novo, durante o qual o protesto negro havia sido silenciado, e o processo de redemocratização, trazem consigo novamente as temáticas da identidade nacional e de um projeto de nação. Volta à baila a pergunta: o que vem a ser o Brasil? Como nos mostra Tavares (1988), os agentes que retomam essa questão são responsáveis pela “constituição de um pensamento crítico que questiona a produção intelectual realizada até aquele momento dentro e fora da academia brasileira” (Tavares, 1988:83). Analisando a partir desta perspectiva, a intelectualidade que observa com bons olhos a experiência de Nascimento e o auxilia no estabelecimento do seu projeto de teatro, assim o faz porque estaria envolvida numa tentativa de modernização ou renovação cultural do país. Contudo, a recepção da idéia de um teatro negro se dava de maneira negativa em parte da imprensa e intelectualidade

10 Aníbal Machado (1894 – 1964) nasceu em Sabará (MG). Foi escritor e crítico literário influente

em círculos intelectuais, tanto no Rio de Janeiro, como de São Paulo, entre as décadas de 1940 e 50. Presidente da Associação Brasileira de Escritores (1944), organizou o seu I Congresso em São Paulo (1945) e foi um dos fundadores dos grupos teatrais Os Comediantes, do Teatro Popular Brasileiro e do Tablado.

11 Carlos Lacerda (1914 – 1977) foi jornalista, empresário de comunicação, poeta, escritor e um

dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), partido criado em 1945 e opositor do governo de Getúlio Vargas. Político bastante influente nos anos 1950 e 60 chegou ao cargo de governador do antigo estado da Guanabara entre os anos de 1964 – 1968.

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cariocas. É o que se pode apreender de um artigo publicado no jornal O Globo e intitulado “Teatro de Negros”. Vejamos:

Uma corrente defensora da cultura nacional e do desenvolvimento da cena brasileira está propagando e sagrando a idéia de formação de um teatro de negros, na ilusão de que nos advenham daí maiores vantagens para a arte e desenvolvimento do espírito nacional. É evidente que semelhante lembrança não deve merecer o aplauso das figuras de responsabilidade, no encaminhamento dessas questões, visto não haver nada entre nós que justifique essas distinções entre cena de brancos e cenas de negros, por muito que as mesmas sejam estabelecidas em nome de supostos interesses da cultura. Que nos Estados Unidos, onde é por assim dizer absoluto o princípio da separação das cores e especial a formação histórica, bem se compreende se dividam uns e outros no domínio da arte como se compreende que o anseio da originalidade dos países em que todas as artes evoluíram até o máximo, como na França, por exemplo, seus pintores e escultores fossem procurar inspirações no negro, ou nas ilhas exóticas.

Mas, a verdade, aliás ainda por ser largamente explanada, é que entre nós nem sequer historicamente essas distinções se fundamentaram, e, aparte dos brados da consciência universal contra a escravatura, o drama humano da abolição e a voz do poeta dos escravos, seriam artificiais quase todas as obras de arte que exploram o tempo das senzalas porquanto, via de regra, os negros escravos, em todo o país, eram mais bem tratados do que muitos que hoje vivem desamparados. Os crimes, os tormentos, eram exceções, porquanto a regra foi sempre a doçura brasileira, o fenômeno da mãe preta, dos escravos que, mesmo sobrevinda a Abolição, ficaram por quase toda a parte a serviço dos seus senhores, morreram acarinhados de todos.

Sem preconceitos, sem estigmas, misturados e em fusão nos cadinhos de todos os sangues, estamos construindo a nacionalidade e afirmando a raça de amanhã. Falar em defender teatro de negros entre nós, é o mesmo que estimular o esporte dos negros, quando os quadros das nossas olimpíadas, mesmo no estrangeiro, misturam todos, acabar criando as escolas e universidades dos negros, os regimentos de negros e assim por diante. E no caso em apreço, a criação artificial do teatro que se propaga e tanto mais lamentável quanto é certo que a distinção estabelecida iria viver, aliás, falsamente, nas esferas sugestivas e impressionantes do teatro, que só deve ser um reflexo da vida dos nossos costumes, tendências, sentimentos e paixões”. Coluna “Ecos e Comentários (página editorial). O Globo, 17 de outubro de 1944.

Como primeira atividade, o TEN participou da montagem da peça Palmares, de Stela Leonardos, realizada pelo Teatro do Estudante do Brasil, em 21 de dezembro de 1944. Essa atividade se tornou possível, devido ao contato de Nascimento com Pascoal Carlos Magno.12 Comentando o primeiro encontro com Magno Nascimento afirma:

Agora, eu sei que Pascoal Carlos Magno gostava de inverter as coisas, afirmando que ele fundou o TEN. Não é bem assim. Um dia, Pascoal estava dando uma conferência no Ministério da Educação e abordou a questão do teatro negro, comentando a necessidade

12 Pascoal Carlos Magno (1906 – 1980) nasceu e viveu no Rio de Janeiro. Foi poeta, romancista,

teatrólogo, diplomata de carreira, vereador pelo Distrito Federal e chefe de gabinete do governo de Juscelino Kubistscheck (1956 – 1961). Fundou, em 1938, o Teatro do Estudante do Brasil com o qual viajou por várias localidades do país. Em 1952 fundou em sua casa, no bairro de Santa Tereza, o Teatro Duse.

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de sua criação no Brasil. E eu, que estava na platéia, assistindo, ao lado de meus amigos, me levantei e falei: “Pascoal, você não tem mais que advogar, não, porque nós já fundamos o Teatro Negro, já existe o Teatro Experimental do Negro”. Ele então anunciou lá do palco, fez aquela baderna , aquele carnaval. Ele era muito carnavalesco. Só que costumava fazer essa inversão (Nascimento, 1988:109).

O TEN foi muito mais do que um grupo teatral composto só por negros. Além da parte artística – com várias peças centradas na temática racial –, organizou concursos de beleza e artes plásticas, promoveu intensa atuação político-social através de convenções, conferências, congressos, seminários, cursos de alfabetização e iniciação artístico cultural para negros, editou um jornal intitulado Quilombo e alguns livros. Entre 1944 e 1968, período de existência do grupo, consta em torno de cinqüenta e uma atividades realizadas.13 Configura-se, assim, a segunda fase dos movimentos negros brasileiros (Guimarães, 1999 e 2002). Alguns o vêem como um momento menor, se comparado a FNB, nos anos 1930, e ao MNU, na virada dos anos 1970 para os 1980. Assim, por exemplo, afirma Santos, que, durante o TEN, “o movimento parecia acumular energia, para o salto que daria depois...” (Santos, 1985:289).

As peças encenadas pelo TEN foram oito, a saber: Imperador Jones (1945, 1946 e 1953), Todos os filhos de Deus têm asas (1946), de Eugene O’Neill; O filho

pródigo (1947, 1953 e 1955), de Lúcio Cardoso; Aruanda (1948 e 1950) de

Joaquim Ribeiro; Filhos de Santo (1949) de José de Morais Pinho; Calígula (1949) de Albert Camus (na verdade um ensaio aberto em homenagem à visita de Camus ao Brasil em missão cultural); Rapsódia negra (1952) e Sortilégio (1957), de Abdias do Nascimento.14 O teatro negro ainda participou de outras cinco

montagens com outros grupos teatrais: Palmares (1944), de Stela Leonardos;

Terras do sem fim (1947), de Jorge Amado; A família e a festa na roça (1948), de

Martins Pena; Orfeu da Conceição (1956), de Vinícius de Morais; e Perdoa-me por

me traíres (1957), de Nelson Rodrigues.15 Por fim, mais sete peças foram

ensaiadas, mas não chegaram a ser montadas e encenadas. São elas: A história

de Carlitos (1946), de Henrique Pongetti (ensaiada em frente ao Ministério de

13 Ver edição especial sobre o TEN da revista de teatro Dionysos, número 28 (1988).

14 Fonte: Dionysos, número 28 (1988), pg. 239-249.

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Educação como forma de protesto pela expulsão do TEN do Teatro Fênix);

Amores de Dom Perlimplim por Belisa em seu jardim (1948), de Frederico Garcia

Lorca; O caminho da Cruz (sem data), de Henri Gheon; Mulato (sem data), de Langston Hughes; Auto da Noiva (sem data), de Rosário Fusco; Martin Pescador (1956), de Augusto Boal e Além do Rio (sem data), de Agostinho Olavo.16

Cinco eventos de cunho eminentemente político-ideológico aconteceram: a Convenção Nacional do Negro Brasileiro (São Paulo, 1945, e Rio de Janeiro, 1946); a Conferência Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949); o I Congresso do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950) e a Semana de Estudos sobre Relações de Raça (Rio de Janeiro, 1955).17

As outras realizações do teatro foram de caráter assistencial, social, cultural e científico. Cursos de alfabetização e iniciação cultural (1944 e 1946), concurso “Rainha das Mulatas” e “Boneca de Pixe” (1947 a 1950), concurso de artes plásticas (pintura) “Cristo Negro” (1955). A fundação do Instituto Nacional do Negro (INN), em 1949, o qual, segundo Nascimento (1988:113), teria um caráter científico e seria dirigido pelo sociólogo Guerreiro Ramos. A organização do Departamento Feminino do TEN e instalação do Conselho Nacional das Mulheres Negras (1950). O curso de “Introdução ao Teatro Negro e às Artes Negras” (1964). A instalação do Museu de Arte Negra e do curso de arte negra (1968).18

Por fim, foram editados um jornal e mais quatro livros. O periódico

Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, teve dez números e circulou

entre os anos de 1948 e 1950.19 Os livros são Relações de raça (1950), Drama para negros e prólogo para brancos (1961), TEN – testemunhos (1966) e O negro revoltado (1968).20

16 Fonte: Dionysos, número 28 (1988), pg. 239-249.

17 Ver Müller (1988:35).

18 Fonte: Dionysos, número 28 (1988), pg. 239-249.

19 Os dez números do jornal foram organizados e editados em forma de livro. Ver: Quilombo: vida,

problemas e aspirações do negro (2003).

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2.3 – O Imperador Jones e Eugene O’Neill

A primeira peça montada exclusivamente pelo TEN foi O Imperador Jones, de autoria do dramaturgo americano Eugene O’Neill, interpretada pela primeira vez em 08 de maio de 1945 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Para que isso fosse possível, Nascimento fez uso de todos os seus contatos pessoais com intelectuais, pessoas influentes na sociedade carioca, políticos e até mesmo com o então Presidente da República, Getúlio Vargas, com quem esteve graças a uma reunião organizada por Pascoal Carlos Magno entre a autoridade e personalidades do mundo teatral carioca. Convém, contudo, dar um passo atrás e nos questionarmos a respeito do porquê da escolha do teatro como meio de expressão, assim como a interpretação de uma peça de O’Neill, em específico.

Como já afirmei anteriormente, baseando-me em Pereira (1988), a cena teatral da capital federal àquela época estava dividida entre vários grupos que podiam ser classificados de acordo com a sua proposta, fosse ela comercial, histórica ou de vanguarda, sendo que esta última, na maior parte das vezes, era realizada por amadores, como é o caso do grupo Os Comediantes. A busca de reconhecimento e de marcar o surgimento de um novo tipo de negro, estabelecendo um rompimento com aspectos que ligavam os negros ao passado, parece estar na base da opção de Nascimento pelo teatro e por certos autores a serem encenados. De certo modo, é isso o que se pode depreender de uma fala sua:

Agora, imaginem: gente que nunca pisou em um palco – no sentido de fazer alguma coisa própria, autônoma – monta “de cara” um espetáculo da complexidade de O Imperador Jones!

Mesmo sendo um texto difícil, a peça é uma grande denúncia da cultura branca na cabeça dos negros. É uma coisa que acontece também no Brasil. Era fundamental encená-la. Além do mais, havia uma descrença geral em torno do Teatro Negro. Precisávamos pegar um autor como O’Neill – que, aliás, nunca tinha sido encenado no Brasil – e calar a boca dessa gente! Ninguém acreditava que negro pudesse fazer teatro: o que se esperava dos negros eram as macacadas do Grande Otelo ou os rebolados da Pérola Negra (Nascimento, 1988:110).

A afirmação de Nascimento pode ser complementada pela observação de Pereira (1988):

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O fundador do TEN acreditava, então, ser necessário comprovar perante o conjunto da sociedade, o potencial da raça negra. Em alguns momentos de suas atividades teatrais, o fato de montar um espetáculo com negros e conseguir boa repercussão para ele valia por si só como uma consecução dos objetivos do movimento. No entanto, apesar de seu alcance limitado para suscitar transformações sociais mais profundas, a repercussão de um movimento cultural promovido por negros era um dado inovador na vida intelectual brasileira, mesmo se levarmos em conta o caminho aberto em direção semelhante pelo modernismo (Pereira, 67:1988).

Desse modo, vê-se que a escolha de uma peça de O’Neill para a primeira encenação se dá no sentido de reconhecimento e legitimação do grupo perante a sociedade carioca da época (Muller, 1988:49). Naquele momento, Eugene Gladstone O’Neill era reconhecido como o maior dramaturgo estadunidense, pois havia ganhado o prêmio Nobel de literatura em 1936. Tido como modernizador do teatro norte-americano, suas peças encarnavam boa parte dos paradoxos e da complexidade que a modernidade e a situação de ascensão econômica traziam para o país no começo do século XX, mais especificamente no pós-guerra (1918), época em que o jovem católico, filho de um proeminente ator da Broadway, James O’Neill, começara a escrever. Gassner (1996), comentando a figura do dramaturgo americano afirma:

O’Neill é um dos mais imperfeitos dentre os grandes homens do teatro. Mas é estupidez ignorar sua grandeza por causa de uma imperfeição. O débito e o crédito da sua contribuição estão inter-relacionados, são inerentes a luta de um nobre espírito atormentado num mundo anárquico. Se há anarquia em sua obra, é derivada da anarquia maior da vida no início do século XX que talvez apenas um filósofo – da variedade “absoluta” ou “social” – poderia pretender resolver (Gassner, 1996:341).

Nascimento vangloria-se de ser o fundador do primeiro grupo teatral a encenar O’Neill no Brasil. Tanto é verdade que em dezembro de 1948, quase quatro anos após a peça ir ao palco pela primeira vez, ele publica no primeiro número do jornal Quilombo uma correspondência trocada com o dramaturgo da Broadway em fins de 1944. O’Neill cumprimentava Nascimento pela iniciativa do TEN e abria mão do pagamento de seus direitos autorais. Assim escreveria o teatrólogo americano:

Dou-lhe minha permissão para montar “O Imperador Jones” sem nenhum pagamento a mim, e quero desejar-lhe todo o sucesso. Conheço muito bem as condições que você descreve do teatro brasileiro. Tivemos as mesmas condições no nosso teatro antes que “O Imperador Jones” fosse representado em New York em 1920 – qualquer parte de responsabilidade era desempenhada por atores brancos pintados de preto. (Isto, naturalmente, não se aplicava a comédia musical ou ao teatro de variedades, onde uns

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poucos negros conseguiram alcançar algum sucesso). Depois de “O Imperador Jones”, representado originalmente por Charles Gilpin e mais tarde por Paul Robeson, fazer um grande sucesso, o caminho estava aberto para o negro representar drama sério em nossos teatros. O que dificulta agora é a falta de peças. Mas acho que bem cedo haverá dramaturgos negros de real mérito para suprir essa falta (O’Neill, 2003 [1948]:25).

A peça de O’Neill conta a história de Brutus Jones, um negro norte-americano que viveu boa parte de sua vida trabalhando como cobrador nos trens das companhias ferroviárias americanas. Nesse meio, ele conviveria com os mais diversos tipos sociais, desde bandidos, trapaceiros e prostitutas até os magnatas que cruzavam o país para cuidar de negócios. Após um tempo encarcerado numa prisão americana, o negro se refugia numa pequena ilha das Antilhas, onde, fazendo uso de truques e da esperteza obtidos no meio ferroviário e na marginalidade em que vivia anteriormente, consegue chegar ao poder e se autodeclarar imperador. Depois de algum tempo no poder, uma revolta é deflagrada pelos nativos e Jones, com vistas a deixar a ilha, se refugia na floresta tropical. Tentando implementar seu plano de fuga, mas perdido e imaginando-se perseguido pelos que havia governado, ele revive temores primitivos da raça humana mediante o retumbar ritualístico dos tambores indígenas. É sugestiva uma das qualificações dadas por Gassner à peça, ao afirmar que a mesma é “um panorama social fornecido pela rememoração feita por Jones das experiências e sofrimentos de sua raça” (Gassner, 1996:355). Martins (1995), comentando a peça de O’Neill, coloca elementos históricos dignos de nota, afirmando:

Eugene O’Neill é um dos poucos teatrólogos que, já na década de vinte, buscam alternativas para a ficcionalização do negro, em peças como The Emperor Jones, Dreamy

Kid e All God’s Chillum Got Wings. (...)

Encenando inicialmente em 1920, The Emperor Jones foi produzida inúmeras vezes nas décadas seguintes. A figura do negro Brutus Jones, protagonista da peça, criou controvérsias quanto à eficácia de O’Neill em moldar novos traços de caracterização para o negro. A mesma polêmica foi, na década de 60, provocada, em Nova York, pela montagem de Les Négres, de Jean Genet. Assim como este, O’Neill procurou situar, conceitualmente, o negro através de um contraponto comum, o branco, como se ambos fizessem parte de uma dualidade ontológica, imagens duplas e intercambiáveis de um mesmo fenômeno universal. Muitos intelectuais e críticos viram, na peça, um estereótipo às avessas, por meio do qual O’Neill deixava implícito que, na posição de poder, o negro agiria como o branco, estabelecendo um império e marginalizando o outro: (...) “O’Neill implicitamente sugere que não há necessidade de buscar-se a libertação do povo negro, pois, uma vez livres, eles farão o mesmo que os brancos”. Apesar de todas as objeções, as críticas reconheciam o caráter de excepcionalidade da peça, que oferecia um dos mais ricos e desafiadores papéis para o artista negro, através do qual atores como Charles Gilpin e

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Paul Robeson puderam exercer, com maestria, seu talento dramático (Martins, 1995:47-48).

A citação acima lança outra luz sobre a obra do dramaturgo norte-americano, ao mesmo tempo em que traz o contexto histórico no qual ela foi gestada. Pode-se afirmar que a gênese de uma “cultura-negra” ocorre justamente nessa época, a partir do momento em que negros americanos e caribenhos, fixados, respectivamente, em Nova Iorque e Paris, passam a fazer uma auto-representação positiva de seu grupo racial (Guimarães, 2003). Contribuem para isso vários movimentos que, de uma maneira ou de outra, se relacionam com o pan-africanismo, o New Negro Movement, o Harlem Renaissance, a negrophilie e a disseminação de idéias elaboradas durante o romantismo alemão que serão todos melhor explorados no próximo tópico.

2.4 – Modernidade negra na Diáspora Africana: EUA, Caribe e Brasil

As peças de um teatro realmente negro devem ser: 1. Sobre nós. Isto é, elas devem ter enredos que revelam a vida dos negros como realmente é. 2. Por nós. Isto é, elas devem ser escritas por autores negros que entendam, de nascimento e contínua associação, o que significa ser um negro hoje. 3. Para nós. O teatro deve dirigir-se primordialmente às platéias negras, sendo apoiado e mantido para seu entretenimento e aprovação. 4. Perto de nós. O teatro deve localizar-se num subúrbio negro, próximo à massa de pessoas comuns.

W.E.B. Du Bois (1926)21

A definição de teatro dada acima é do sociólogo norte-americano negro W.E.B. Du Bois, talvez a maior figura do pensamento afro-americano até hoje. Sua proposta de teatro está enraizada num esforço que se travava no início do século passado nos EUA, por parte de intelectuais negros, de repensar e dar novos rumos à comunidade negra. Incluem-se nesse processo as idéias de formulação de uma “cultura negra”, de retorno da população negra ao continente africano, ou ainda a ideologia do pan-africanismo, formulada por lideranças negras norte-americanas e caribenhas. Essas propostas tiveram muito mais eco entre os negros da América anglófona do que entre os de fala portuguesa e espanhola, como veremos. Contudo, a atuação de Abdias do Nascimento no Rio de Janeiro

21 Citação retirada de Martins (1995:70) e publicada originalmente no periódico Crisis em julho de

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dos anos 1940 delineia os primeiros contornos do que viríamos a chamar nos anos 1970 de “cultura negra brasileira”. Para evidenciar a peculiaridade dos negros tupiniquins, vale a pena trabalhar melhor a maneira como essas idéias surgem na diáspora africana ou negra e que correspondem ao que Guimarães (2003) chamou de “modernidade negra”.

O termo “diáspora” foi tomado emprestado da história dos judeus, no que diz respeito à dispersão pelo mundo deste grupo étnico. O termo, recentemente, vem sendo adaptado para a análise histórica, antropológica e sociológica dos povos originários da África Negra, que foram espalhados ao redor do mundo após a implementação do sistema escravista no século XVI. A região geográfica contemplada pelo termo “diáspora africana” varia na utilização de autor para autor. Contudo, pode-se ter em mente que algumas áreas são sempre incluídas como os países que tiveram um sistema escravista e receberam escravos africanos por meio de suas antigas metrópoles, como é o caso de várias localidades nas três Américas.22

Podemos dizer que a gênese de uma “cultura negra” se dá a partir do momento em que os negros, norte-americanos e caribenhos, fixados, respectivamente, em New York e Paris, passam a fazer uma nova auto-representação, no começo do século passado (Guimarães, 2003 e 2004). Contribuem para isso vários movimentos que, de uma maneira ou de outra, se relacionam como o pan-africanismo, o New Negro Movement, o Harlem

Renaissance, a negrophilie e a disseminação de idéias elaboradas durante o

romantismo alemão.23

O Harlem Renaissance se configurou num movimento cultural e artístico de intelectuais e artistas afro-americanos que deram início a uma auto-representação do mundo negro através das mais diversas formas de artes. Ele teve como

22 O sociólogo britânico Paul Gilroy, em seu livro O Atlântico Negro (2001: 351-416), faz uma

discussão sobre o uso do conceito de “diáspora africana”. Nas palavras de este autor: “Á luz desses problemas, este capítulo tenta integrar o foco espacial na idéia de diáspora que dominou as seções anteriores deste livro com a temporalidade e a historicidade da diáspora, da memória e da narratividade, os princípios articuladores das contraculturas políticas negras que crescem dentro da modernidade em uma relação distintiva de endividamento antagônico” (359).

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epicentro à literatura e a poesia, passou pela música – que nesse período vê o nascimento do jazz – e chegou à pintura numa proporção menor. Várias figuras intelectuais que se tornariam influentes no mundo negro americano estavam envolvidas nesse movimento, como Langston Hughes (1902-1967), Zora Neale Hurston (1891-1960), James Weldon Jhoson (1871-1938), o jamaicano Claude McKay (1890-1948), entre outros.24

A Primeira Guerra Mundial cria um mal estar na civilização ocidental, por ter exibido uma violência exacerbada, potencializada por novas armas, e pelas modernas técnicas de guerra. Nas palavras de Walter Benjamin, a experiência de horror dos soldados foi tamanha, que eles voltaram para casa sem palavras para descrevê-la. Antes disso, entre o final do século XIX e início do XX, o romantismo alemão passaria a influenciar o pensamento europeu, no que diz respeito ao alargamento da representação da cultura européia para além do panteão greco-romano e permitindo a infiltração de elementos “bárbaros” (Munanga, 1986 e Guimarães, 2003). Mais do que a simples incorporação de uma simbologia e manifestações artísticas de origem africana pelo Ocidente, as culturas negras e africanas passam a ser vistas como uma saída, uma injeção inovadora de esperança e revitalização da cultura européia ocidental. O ápice desse pensamento se dá entre os anos 1910 e 1930 na França, com a organização de exposições de arte africana, concertos de jazz com músicos negros norte americanos e apresentações como a realizada pela dançarina negra norte americana Josephine Baker no Théâtre des Champs Élisees, em 1925. Esse movimento, impulsionado e festejado pela vanguarda intelectual e artística francesa, ficaria conhecido pelo nome de negrophilie. Nas palavras de Archer Straw esse movimento seria...

(...) uma inversão que refletia a mudança de status dos negros em relação dos brancos, a qual sugeria que eles poderiam recuperar e revitalizar a cultura européia. Havia também uma preocupação particular com a autenticidade cultural negra. De modo turvo e ingênuo, achava-se que quanto mais próximo estivesse de uma origem Africana, maior o seu poder

24 Ver Franklin (1989) “A Renascença do Harlem” in Da escravidão à liberdade: a história do negro

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e sua força. Assim, no interior mesmo do pensamento branco liberal, os mitos racistas se perpetuavam (Archer – Straw, 2000:94 apud Guimarães: 2003:46).

Paralelo a negrophilie francesa nos anos 1910, nos Estados Unidos, mais especificamente no Harlem, New York, o Harlem Renaissance dava seu primeiros suspiros, pari passu a movimentos mais políticos como o New Negro Movement. Talvez seja exagerado falar em movement, já que não houve uma organização ou manifesto que usasse deliberadamente esse nome. O new negro fazia referência ao negro comum americano do período pós Primeira Guerra Mundial, que vivia uma nova fase política, social e econômica.25 É o negro já integrado à sociedade moderna de classes e que passa a buscar os confortos do american way of life, mesmo que para a maioria deles isso não passasse de uma grande utopia.26 Há uma relação de aproximação e distanciamento que se dá de maneira simultânea entre esses dois movimentos. Early (1999) evidencia a aproximação entre os dois movimentos ao mesmo tempo em que contrasta o Harlem Renaissancie com outros movimentos artísticos/políticos contemporâneos como o hip-hop. De acordo com este autor, o que o hip-hop e o Harlem Renaissance possuem em comum é o fato de ambos criarem uma nova estética que passa a permear as mais diversas linguagens artísticas, como as expressões musicais, plásticas e a escrita.

A emergência do pan-africanismo também faz parte do contexto histórico do começo do século, momento caracterizado por vários movimentos nacionalistas internacionalizados como o arabismo, o eslavismo e o pan-americanismo.27 Decraene (1962) dá uma sucinta definição do movimento:

O têrmo pan-africanismo constitui, por si só, um programa, como o constituem os têrmos pan-americanismo e pan-germanismo. De fato, porém, designa correntes muito diversas conforme a época em que se considera, pois ocorreu uma evolução a partir do movimento de origem anglo-saxã – nascido do Sul dos Estados Unidos e nas Antilhas Britânicas – até

25 Florestan Fernandes (1965) usa o termo “novo negro” para se referir ao negro brasileiro do

pós-abolição, urbano e fruto de uma “ressocialização” que o contrapõe ao negro ainda social e psicologicamente vinculado à escravidão. No caso da cidade de São Paulo são os negros vinculados aos jornais da Imprensa Negra, associações recreativas e políticas como a Frente Negra Brasileira.

26 Ver Franklin (1989) “A Renascença do Harlem” in Da escravidão à liberdade: a história do negro

americano.

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o movimento mais essencialmente africano que se desenvolveu, há alguns anos, às margens do Gôlfo da Guiné (Decraene, 1962: 09-10).

Outro ponto importante a ser destacado é que esta conjuntura histórica é caracterizada pelo auge do colonialismo europeu na África, fato que influenciaria e conduziria os posicionamentos dos principais teóricos desse movimento: W.E.B. Du Bois (1868-1963) e Marcus Garvey (1887-1940).28 Centrar-me-ei um pouco

mais no primeiro. Du Bois tinha lido Johann von Herder (1744-1803),29 pois havia

estudado na Universidade de Berlim, onde começara um doutoramento. Essa influência pode ser notada no título de seu livro seminal, The souls of black folk (1982 [1903]). Percebe-se no nome do livro a sugestão da existência de uma “alma negra”. Contudo, essas idéias foram mais bem trabalhadas em outros dois textos, concebidos a partir de conferências na American Negro Academy em 1897: The conservation of Races e Strivings of the Negro People.30 Nelas, sob a influência de Franz Boas, Du Bois procura dar um sentido não biológico a noção de raça e mostrar que o vínculo entre os negros, não só norte-americanos, mas da diáspora africana como um todo, se daria a partir de uma coesão espiritual.31

28 Decraene (1962) faz uma sucinta comparação entre Garvey e Du Bois no seu livro. Du Bois é

considerado até hoje o mais importante intelectual afro-americano, foi responsável pela organização de vários congressos pan-africanos, fundador da revista acadêmica The Crisis e co-fundador da National Association for Advancement to the Colored People (NAACP). Decraene tende a ver Du Bois como a grande figura do pan-africanismo, e não é por menos que é dele o título de “Pai do Africanismo”. Os cinco congressos pan-africanos organizados por Du Bois foram: Paris, 1919; Londres, Bruxelas e Paris, 1921; Londres e Lisboa, 1923; New York, 1927 e Manchester, 1945. Garvey foi um ativista jamaicano radicado em New York, Estados Unidos, na década de 1910 e que divulgava idéias de retorno à África e de um imperialismo negro por meio de um continente africano armado. Recriou instituições da sociedade branca americana em moldes negros, por exemplo: uma “Casa Negra” para contrastar com a Casa Branca ou uma igreja denominada African Orthodox Church na qual os anjos eram negros e Satánas ou o demônio era branco. Early (1999) afirma que Garvey é o precursor do nacionalismo negro nos Estados Unidos, o grande modelo de inspiração para lideranças negras mais contemporâneas como Malcolm X e Louis Farrakhan. Em sua autobiografia Malcolm X afirma que seu pai era seguidor de Marcus Garvey.

29 Johann Gottfried von Herder era alemão e foi poeta, crítico literário, teólogo e filósofo. É mais

conhecido devido a sua influência sobre autores como Goethe e por sua importância no movimento cultural que ficaria mundialmente conhecido como romantismo.

30 Para uma discussão mais pormenorizada ver Guimarães (2003).

31 Para uma discussão sobre a influência de Johann von Herder sobre Du Bois ver Helbling (2000).

Appiah (1997) irá argumentar que, por mais que tenha tentado, Du Bois não conseguiu no início do século se desvincular de uma noção biológica de raça.

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É difícil definir o pan-africanismo, já que o mesmo não se caracterizava por um movimento coeso e único. Há várias fases, nas quais as propostas de atuação vão mudando. Appiah (1997) evidencia isto ao mostrar que o pan-africanismo foi primeiramente elaborado por intelectuais negros da diáspora africana, mais especificamente caribenhos e norte-americanos, e que tinha como elemento de coesão entre os indivíduos à noção, comum a todos, de raça. Em outras palavras, o pan-africanismo, como programa de ação política conjunta de povos negros de nacionalidades e línguas diferentes, era possível porque levava a idéia implícita de que todos, primeiramente, eram “negros” e só depois jamaicanos, martiniquenses ou norte-americanos. Quando os ideais pan-africanos são levados para o continente africano, nos anos 1950/60, por meio de líderes como o ganense Kwame Nkrumah (1909-1972), são reelaborados a partir de ideais políticos e não mais raciais.

Questionando os motivos da ausência de representantes brasileiros nos primeiros congressos pan-africanos, organizados por Du Bois, Larkin Nascimento (1981) recorre a uma explicação que não me parece muito convincente:

Os negros após a abolição, foram deixados expostos a todas as espécies de agentes de destruição e sem recursos suficientes para se manter. (...) É fácil compreender, nessa perspectiva, a ausência na conferência Pan-Africana e nos congressos seguintes de representantes dessa classe condenada à marginalização e à extinção. Deve ser considerado também que a aparente falta de consideração e compreensão dessa situação nos círculos dos organizadores dos eventos foi resultado tanto do controle de informações como da propaganda utópica da ”democracia racial” proveniente das camadas dirigentes brasileiras como também de uma visão limitada deles próprios (Nascimento, 1981:91). Penso que a afirmação acima se configura em anacronismo, já que existem vários outros elementos que tiveram papel importante nessa ausência. A ideologia que embasava os jornais da Imprensa Negra e a maior entidade do protesto negro do começo do século, a Frente Negra Brasileira, era nacionalista de integração e assimilação. Em outras palavras, visava à incorporação dos negros à sociedade brasileira que se constituía naquele momento histórico e objetivava a assimilação dos valores da sociedade dominante. Eis o motivo pelo qual estes negros, dirigentes do protesto negro, em condições sociais um pouco melhores, não se

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apropriavam de sua herança cultural32 e ficam inteligíveis afirmações do tipo da

que reproduzo abaixo:

A África é para os africanos, meu nego. Foi para o teu bisavô cujos ossos, a est’hora a terra reverteram e em pó se tornaram. A África é para quem não teve o trabalho de cultivar e dar vitalidade a um immenso paiz como este (...).

A África é para quem quizer, menos para nós, isto é, para os negros do Brasil que no Brasil nasceram, crearam e multiplicaram. Nem por brincadeira, se pense que negro brasileiro, faça alguma cousa que preste em África (...). O que faria em África essa minoria alphabetisada em meio a esse colosso de gente sem intrucção? O que faria em Áffrica essa gente sem dinheiro? O que faria em Áffrica esse povo que passa a vida inteira a saracotear ao som de rouquenhas sanfonas ou de desafinado jazz-band?

(...). Não seria melhor que tu fosses mais brasileiro, isto é, que tu fosses patriota em benefício d’esta terra bemdicta que te viu nascer, que te acolhe como mãe carinhosa, esta terra que é nossa (...), é nossa já ouviu? Nossa porque fomos nós que a edeficamos, nós que lhe demos tudo até o sangue, para lhe garantir a integridade das invasões de estrangeiros.

O Brasil é para os brasileiros, que quer dizer é para os negros, já ouviu? (...) nós estamos em casa (Getulino, 1924, ano II, n. 64: 20/12 apud Ferrara, 1981: 180. Também reproduzido em Guimarães, 2004).

Ironicamente, naquele momento, parte de uma elite intelectual local nascente passou a ver, de acordo com Vianna (1995), as manifestações culturais negras como expressões dos regionalismos brasileiros, informada pelos movimentos modernistas europeus (Vianna, 1995). Intrigava a Vianna de onde teria surgido o interesse de intelectuais modernistas como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral por elementos de origem popular negro/mestiça. A pista é fornecida por Gilberto Freyre, segundo o qual, o poeta francês Blaise Cendrars teria sido o responsável pela curiosidade dos jovens intelectuais brasileiros por essas manifestações. Cendrars era a figura mais festejada do modernismo francês

32 Contudo, é preciso registrar que a quase totalidade de estudos referentes ao protesto negro

dessa época ainda se limitou a analisar a experiência dos afro-paulistas ou, para ser mais preciso, de uma parte dos afro-paulistas, a saber, aqueles comprometidos com valores ou aspirações de ascensão à classe média e ligados a associações recreativas e políticas. A experiência de negros paulistas ligados a manifestações culturais como o samba, os cordões (que deram origem às escolas de samba de São Paulo) e a tiririca (espécie de capoeira paulista) ou religiosas têm sido poucas vezes buscadas como objeto de análise. Pode-se dizer o mesmo a respeito do que foi a organização política dos negros desse período em outras localidades do país. Os estudos de Butler (1998) e Britto (1986), mais o artigo de Bacelar (1996), fazem grandes contribuições nesse sentido. Butler faz uma comparação da situação de negros soteropolitanos e paulistanos no período pós-abolição, Bacelar mostra o que foi a Frente Negra na Bahia e Britto pesquisou o samba em São Paulo entre 1900 e 1930.

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devido as suas amizades, influência e produção artística. O poeta tinha um interesse especial pelas manifestações culturais negras e fora um dos grandes entusiastas da negrophilie. Ele freqüentava a casa de Oswald e Tarsila em Paris, comendo e bebendo coisas tipicamente brasileiras, como feijoada e cachaça. Quando esteve no Brasil, foi recebido pelo grupo modernista e fizeram programas culturais que envolviam basicamente espaços relacionados com a cultura popular negro/mestiça. Apesar dos modernistas darem o crédito a Cendrars em lhes ter suscitado o interesse pelas coisas nacionais, Vianna irá demonstrar que essa afirmação é uma meia verdade. O poeta francês fez com que os intelectuais modernistas realizassem um estranhamento ou tomada de consciência em relação aos elementos culturais nacionais. Contudo, já haveria uma onda de regionalismo em São Paulo desde os anos 1910, após a estréia da peça de Afonso Arinos de Melo e Franco O Contratador de Diamantes (1914). Por outro lado, a influência do poeta francês foi fundamental para a retomada dessa onda regionalista de forma crítica.

Bastide (1983), em seu estudo sobre os jornais da Imprensa Negra, coloca como um dos fatores explicativos centrais da situação dos negros àquela época o complexo de inferioridade racial introjetado pelo grupo por meio do preconceito e por conta da disputa no mercado de trabalho com os imigrantes. Para este autor, a submissão aos padrões nacionais e o repúdio às antigas tradições por parte dos negros são sintomáticos do complexo de inferioridade racial que este grupo vivia nas primeiras décadas do século XX. Sem querer diminuir a importância do complexo de inferioridade, mas relativizando-o, penso que há outras variáveis, também levantadas pelo sociólogo francês, que têm fundamental importância na explicação da atitude política deste contingente de negros.

Guimarães (2003) argumenta que as várias modernidades negras, ou seja, o processo de organização política e auto-representação dos negros por si próprios, estão diretamente relacionados com os padrões de identidade nacional de cada região específica. O padrão latino-americano é o da mestiçagem, o anglo-saxão propicia o surgimento de subculturas negras enquanto o padrão

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antilhano situa-se num meio caminho entre os dois anteriores. O caso específico da América Latina fica mais evidente na citação seguinte:

De um modo geral, o projeto que vingou nesses países (Brasil, México, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai etc.) foi de recriação da nação incorporando como popular, as subculturas étnicas e raciais. José Vasconcelos, no México, e Gilberto Freyre, no Brasil, representam bem tal projeto nacional de mestiçagem, superando a visão pessimista e racista do século XIX. Uma boa parte das classes médias e das elites intelectuais desses países já eram mestiças e viviam o que Guerreiro Ramos chamará, mais tarde, de “patologia social do branco brasileiro”. A modernidade negra, nesses países, será, pois, em grande parte confundida e subsumida à modernidade nacional (Guimarães, 2003:51).

Concluindo, deve-se ter em mente, assim como nos mostra Bastide (1983), que há uma relação íntima entre conjuntura política nacional e os posicionamentos do protesto negro. Evidenciando a estratégia de integração dos negros brasileiros à sociedade moderna dos anos 1930, o sociólogo francês afirma “que a política do negro tem variado conforme as grandes correntes gerais da política nacional e que a imprensa tem refletido essas variações. Mas, não obstante é isso que nos interessa, não se tratava na realidade, senão de estratégia” (Bastide, 1983:134). É verdade que esse processo de construção e afirmação de nacionalidade brasileira toma muito mais força nos anos 1930 com o estabelecimento da ditadura getulista. Contudo, parte dos negros brasileiros nos anos 1910, entendia que uma das vias de integração à sociedade que se estabelecia era através da não preservação da sua herança cultural.

Outro fator importante que deve ser considerado para esse afastamento refere-se à perseguição policial a que estas manifestações culturais e religiosas estavam submetidas, no final do século XIX e início do XX. A associação do samba com a vadiagem e marginalidade e das religiões com a magia fez com que muitos pandeiros, cavaquinhos e tambores de terreiros fossem quebrados pela polícia nessa época. Dentro dessa lógica se tornam inteligíveis afirmações como a do ativista negro Correia Leite, a saber:

A religiosidade de raiz africana tinha muito pouca manifestação. No começo não havia terreiro. Praticava-se o que se conhecia com o nome de feitiçaria, em lugares muito distantes. Tudo era feito com muito sigilo. Alguns até supunham que eles estivessem sambando. Na época o samba era dança de terreiro, com batida de bumbo. Não se conheciam essas palavras “candomblé” e “umbanda”. Não se falava em orixá, pelo menos eu não ouvi, até por volta de 1943 quando se liberou o funcionamento dos centros de

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umbanda e candomblé. Certas influências do negro o branco não aceitava, com raras exceções. Eu nunca tive nenhum contato direto com essas manifestações. Até então os negros, sobretudo os baianos, sabiam que era proibido. Se praticasse ia preso (Leite, 1992:57).

Esses vários fatores reunidos explicam em parte o não surgimento de uma “cultura negra” no Brasil como ocorreu nos Estados Unidos, no Caribe e na França, como nos ensina Guimarães (2003), ou a filiação dos negros brasileiros a movimentos como o pan-africanismo ou a idéias de retorno à África. Nos capítulos quatro e cinco deste trabalho, tentarei evidenciar como o processo de etnogênese da “cultura negra” no Brasil dá os seus primeiros passos, ainda que de maneira inconsciente, através das iniciativas de Abdias do Nascimento e seu grupo intelectual no Rio de Janeiro em fins dos anos 1940 e início dos 1950.

2.5 – Resenhando a produção estética acerca do TEN33

A produção acadêmica que busca analisar o TEN divide-se em uma parte que se volta para o seu aspecto estético e cênico e outra que privilegia os eventos e propostas políticas da companhia. Divisões e sistematizações analíticas são sempre arbitrárias e nunca dão conta da realidade efetiva, que é muito mais complexa. Contudo, elas se fazem necessárias, no sentido de facilitar o entendimento dessa mesma realidade, manifestações e instituições ao leitor, seja ele leigo ou especializado. Para os objetivos deste trabalho, optei por apresentar os dois blocos de interpretações do teatro negro em diferentes momentos. Assim sendo, nessa parte do texto resenharei obras que privilegiaram o aspecto estético. No capítulo cinco, debruçarei-me sobre as obras que se voltaram para uma abordagem mais política do teatro.

33 Na imagem acima encenação da peça O Filho Pródigo no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro,

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Do ponto de vista estético, talvez a melhor (e primeira) análise realizada tenha sido feita por Bastide (1983 [1974]) em seu texto “Sociologia do teatro negro brasileiro”.34 O autor dá início ao texto com uma caracterização bastante ampla do teatro e relacionando as mudanças ocorridas nessa linguagem artística com as transformações da sociedade européia do renascimento até a contemporaneidade. Desse modo, afirma o sociólogo que “o teatro negro só pode ser compreendido se integrado a crise mundial do teatro e como tentativa de superar essa crise. (...) E sob duas formas, a de teatro espontâneo e tradicional e o de teatro negro erudito e engajado” (Bastide, 1983:139).

Todos os tipos de teatro negro existente, tanto no continente africano como na diáspora, poderiam, de acordo com Bastide, ser classificados dentro deste dois grupos. A partir dessa divisão, o autor busca inserir os vários tipos de “teatros negros” existentes no Brasil. Haveria, de início, o teatro folclórico negro, que se dividiria em teatro popular, trazido de Portugal pela Igreja Católica, teatro popular Bumba-Meu-Boi e o teatro africano banto e nagô das religiões afro-brasileiras. As representações dos negros nesse diversos tipos de teatro variam. Contudo, no geral, ela é negativa e não problematiza as relações entre negros e brancos, apesar de possuir, muitas vezes, uma dialética inter-racial.

Contrapondo-se a esse teatro tradicional surgiria o teatro negro engajado, fomentado e elaborado por intelectuais negros. O TEN seria a versão brasileira deste tipo de teatro. Afirma Bastide que “só restava aos novos intelectuais negros uma saída: retomar dos brancos o “discurso” sobre os negros para inverter seus termos e instituir assim o único diálogo que poderia se tornar autêntico; em suma, era preciso criar o teatro negro no mesmo tipo que o teatro branco, quer dizer, como linguagem vocal e voltado a uma práxis política” (Bastide, 1983:146).

O aparecimento do teatro negro engajado estaria relacionado à transição, no Brasil, da sociedade tradicional para a moderna. Na primeira, prevaleceria um teatro negro popular de base litúrgica, festiva e valor recreativo. Já na sociedade moderna, o teatro popular se folclorizaria, dando lugar a um teatro erudito de

34 O artigo é produto de uma conferência realizada pelo autor em 1973 na XXV Reunião Anual da

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foi publicado primeiramente em

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negros para brancos, com ênfase no discurso e valor pedagógico. Na opinião de Bastide, isso se explicaria pelo fato da industrialização favorecer uma maior heterogeneidade de classes e grupos sociais, além de proporcionar uma maior secularização, na qual prevalece uma visão de mundo mais prometéica e, conseqüentemente, mais ocidental do que africana. Para diferenciar o teatro negro engajado do Brasil, em relação a outras experiências diaspóricas, Bastide afirma:

O teatro negro brasileiro aceita o ideal de democracia racial, que é a ideologia própria do Brasil, mas há sempre uma defasagem possível entre a realidade e o ideal, que provem de curtos-circuitos na imagem que uns formulam dos outros. Portanto, é preciso ir, a cada momento, adaptando as respectivas estratégias dos jogadores, porém aceitando, ao mesmo tempo, as regras racionais do jogo. Na medida em que o teatro negro optou pelo discurso com vistas a uma práxis, ele é, antes de mais nada, do tipo estratégico – e não, como nos Estados Unidos (ou na França, com Genet), do tipo revolucionário (Bastide: 1983:149).

Visando esses objetivos, “o teatro experimental do negro do Rio de Janeiro seria levado a definir uma “alteridade” negra e a impô-la a consciência do branco como realidade que se teria que levar em conta” (Bastide, 1983:149). Por outro lado, o projeto do TEN viria perturbar a harmonia racial vigente no Brasil, baseada numa relação assimétrica entre negros e brancos, ao buscar substituí-la por uma nova forma de equilíbrio, baseada na igualdade concreta e não meramente jurídica. O confronto entre essas duas perspectivas raciais traria uma tensão que desembocaria na ambigüidade muitas vezes vista nos posicionamentos do teatro negro em relação à política racial vigente no país àquela época.

Ao analisar as peças encenadas pelo TEN, Bastide afirma que a existência de poucos intelectuais negros, aliada a vigência do ideal de democracia racial no Brasil, fez com que muitas peças escritas para o teatro negro e chamadas de “negras”, fossem escritas por autores brancos. A partir disso, o autor estabelece uma classificação das peças em dois grupos. Os textos escritos por autores brancos poderiam ser subdivididos em três subgrupos, de acordo com a proposta. No primeiro subgrupo estariam peças que se ligam a uma perspectiva embranquecedora, ou seja, valorizam o negro não como “negro”, mas como homem, a partir de referências de uma tradição ocidental. São exemplos Orfeu

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negro, de Vinícius de Moraes, e O filho pródigo, de Lúcio Cardoso. O segundo

subgrupo é composto por peças que valorizam o negro como raça ou cultura, transformando o ritual e cerimonial religioso afro-brasileiro em teatro. O negro aqui é interpretado na chave do exotismo e a negritude transforma-se em espetáculo, o que levaria a folclorização e a reificação da cultura de origem afro-brasileira. As peças que exemplificam esse grupo são Aruanda, de Joaquim Ribeiro, Castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé e As três mulheres de Xangô, de Zora Seljan. Por fim, haveria um terceiro subgrupo, no qual as peças estariam no caminho de um teatro autenticamente negro. Nele, haveria uma recusa a folclorização e o negro seria retratado no seu cotidiano, enfrentando os impasses colocados pelo sistema de relações raciais vigente em nossa sociedade. O texto que sugere esses posicionamentos é o de Nelson Rodrigues, Anjo negro.

O outro grupo de peças seria composto por textos de autores negros, que apresentariam posicionamentos político-raciais claros de oposição aos projetos de nação baseados numa lógica de “embranquecimento” ou “mulatização”. Aqui haveria o surgimento de um teatro negro. As peças que exemplificam esse grupo seriam as de Rosário Fusco, Auto da noiva, e Abdias do Nascimento, Sortilégio.

Bastide finda sua análise apresentando os resultados estéticos alcançados pelo TEN. De acordo com o autor, o teatro comandando por Nascimento teria conseguido realizar uma inversão na representação do negro no teatro. Este teria passado de personagem a pessoa; de símbolo a ser; e de negatividade para a positividade, criando espaço para a afirmação dos valores da negritude e para a possibilidade do negro ser brasileiro sem precisar rejeitar sua herança cultural (Bastide, 1983:154).

Por outro lado, Müller (1988) analisou três peças montadas pelo TEN. As peças eram: Auto da Noiva, de Rosário Fusco; Sortilégio, de Abdias do Nascimento e O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso. As preocupações que conduziram a leitura do analista foram de quatro ordens: 1) os conflitos básicos que movem as peças; 2) o caráter dos personagens; 3) os valores ideológicos que permeiam as tramas e 4) o discurso que faz a organização da trama. As críticas do analista vão no sentido de que as peças estão inseridas numa realidade

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