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O PENTECOSTALISMO ENTRE OS ÍNDIOS DA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS, DA DÉCADA DE 1980 AOS DIAS ATUAIS

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O PENTECOSTALISMO ENTRE OS ÍNDIOS DA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS, DA DÉCADA DE 1980 AOS DIAS ATUAIS

JOSÉ AUGUSTO SANTOS MORAES*

RESUMO: A história indígena ficou à margem da historiografia nacional até o início da

década de 1990. De forma semelhante, há pouco tempo a conversão de índios ao pentecostalismo passou a ganhar mais visibilidade nas pesquisas com recorte histórico, mais comumente este era um assunto reservado aos estudos antropológicos. Pesquisas já realizadas por historiadores e antropólogos, como Antônio Brand, Katya Vietta, Levi Marques Pereira e Graciela Chamorro têm demonstrado um rápido crescimento de igrejas pentecostais em comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul, somente na Reserva Indígena de Dourados são quase oitenta igrejas em atuação. Essa fragmentação tem resultado em um novo desdobramento deste fenômeno religioso, o surgimento de igrejas autóctones – lideradas e dirigidas exclusivamente por índios. Com foco nos processos históricos que envolvem esses eventos, esse texto pretende abordar algumas transformações de identidade cultural, religiosas e sociais que têm ocorrido na Reserva Indígena de Dourados desde a inserção do pentecostalismo em seu interior, no início da década de 1980. Para tanto, foi utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica, onde foi privilegiado as pesquisas de historiadores, etnógrafos, antropólogos e teólogos sobre o processo de conversão e o avanço do pentecostalismo entre os indígenas.

* Bacharel e especialista em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo – RS, mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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Palavras-chave: religião, identidade cultural, sociedades tradicionais.

Considerações inciais

No Brasil, mesmo com a relevante importância que os indígenas tiveram na sua formação socioeconômica, o protagonismo desses povos foi mantido à margem da historiografia, por vezes ocultado pela primazia dada a escravidão de africanos e africanas (MONTEIRO, 1994, p. 8,18). Essa situação permaneceu com poucas mudanças até 1992, momento em que a história indígena passou a ganhar mais visibilidade na produção historiográfica brasileira (EREMITES DE OLIVEIRA, 2012, p. 190).

Mesmo com o aumento do interesse pela história indígena, o processo de conversão de índios ao cristianismo e suas implicações recebeu um tratamento discreto nas pesquisas com recorte histórico. Esse assunto foi mais comumente investigado pela Antropologia. E, mesmo no campo da Antropologia “o estudo do cristianismo em populações não ocidentais ocupa ainda um espaço pequeno dentro da disciplina” (CAPIBERIBE, 2006, p. 305). As tensões existentes entre historiadores, antropólogos e missionários contribuíram, em parte, para esse pouco interesse pela análise dos diversos significados da conversão de índios (CHAMORRO, 2009; PEREIRA, 2012), bem como as reflexos que ela tem promovido em vários âmbitos das sociedades tradicionais.

Neste sentido, considerar questões que envolvem o pentecostalismo entre os índios da Reserva Indígena de Dourados (RID)1 é uma forma de contribuir para os estudos sobre esse

1 Neste texto o termo Reserva Indígena refere-se as áreas reservadas pelo Estado Nacional através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre os anos de 1915 e 1928, para acomodação de indígenas. O termo reserva é utilizado como proposto por Antonio Brand, que considerou impositiva, por vezes com utilização de força, a

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fenômeno religioso e seus desdobramentos. Estudos que, mais recentemente, antropólogos e historiadores tem se lançado a realizar entre os indígenas das várias etnias presentes no Brasil (WRIGHT, 1999, 2004; MONTERO, 2006; CHAMORRO, 2009; SUESS, et. al., 2009; PEREIRA, 2009; WILDE, 2011; BARROS, 2011). Assim, passarei a tratar de alguns aspectos do pentecostalismo na RID com o intuito de oferecer uma melhor aproximação dessa discussão.

Confinamento, conversão e transformações socioculturais

Após quase três séculos da chegada do jesuítas nas terras que hoje dão contorno a América do Sul, os missionários protestantes que se estabeleceram em Dourados no final da década de 1920 ainda permaneciam com um pensamento similar ao de seus pares católicos. Ao seu modo, a forma como os missionários da Missão Evangélica Caiuá2 se relacionavam com os índios da RID contribuiu para dar sustentação a hipótese da antropologia que propõe uma “[...] linha de continuidade na prática missionária que, porquanto sutil e quebradiça, dos jesuítas do século XVI chega até os nossos dias” (POMPA, 2006, p. 112).

Segundo Barros, o objetivo inicial dos protestantes da Missão Caiuá “[...] foi o de transformar o indígena num indivíduo considerado civilizado e apto à vida fora da floresta” (2011, p. 233). Além da evangelização, os missionários atuavam como agentes para “aldear,

forma com a qual várias etnias foram confinadas em áreas reservadas (Cf. BRAND; ALMEIDA, 2007, p. 4). Portanto, os critérios antropológicos de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, conforme proposto no 1º parágrafo do Artigo 231 da Constituição Federal não foram assumidos neste txto. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) também se refere a estas áreas pela categoria técnico-administrativa de Terra

Indígena. A partir daqui o termo RID será utilizado para se referir a Reserva Indígena de Dourados.

2 A Missão Evangélica Caiuá (Missão Caiuá) era a base através da qual os missionários protestantes atuavam na RID. Ela era mantida pela Associação Evangélica de Catequese dos Índios (AECI), uma agência missionária brasileira (ecumênica) criada em 1928 e dirigida por igrejas protestantes. Ela foi criada para promover ações direcionadas aos indígenas (BARROS, 2011, p. 12-13).

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civilizar e educar” os índios3, fazendo-os adotar novas práticas e novos costumes, principalmente no âmbito das crenças (BARROS, 2011, p. 233ss).

Ainda que a Missão Caiuá tenha trazido benefícios aos índios da RID, destacam-se a assistência educacional e em saúde, as ações promovidas por ela estavam estabelecidas a partir do objetivo descrito acima. Além disso, o discurso missionário também condicionava-se pela ideia de que “[...] sua inserção na civilização como condição plena de humanidade é a passagem obrigatória para sua cristianização completa” (POMPA, 2006, p. 120). Em outras palavras, para gozarem da plena humanidade e serem reconhecidos como “civilizados” os indígenas precisavam ser completamente cristianizado.

Todavia, esta “civilização” pretendida não concorria diretamente com a realidade vivenciada pelos indígenas. Na primeira metade do século XX, as notícias que eram veiculadas nos jornais ligados a mantenedora da Missão Caiuá, bem como nas cartas enviadas pelos missionários – a partir de Dourados – apresentavam os índios como miseráveis social e espiritualmente. Descreviam, ainda, o sofrimento e a exploração que os indígenas sofriam, sem que tivessem uma intervenção adequada do Serviço de Proteção ao Índio – SPI.

No que se refere aos indígenas, o relato dos missionários contribuiu para a criação da imagem do índio pobre, miserável e pecador, constantemente explorado por indivíduos ditos civilizados. Frente aos “civilizados”, os indígenas eram apresentados como pobres patrícios que se acham numa condição tristíssima. Os

homens civilizados não têm misericórdia deles, desprezam-nos, tratam com eles como se tratassem com qualquer animal selvagem e irracional. O selvícola não tem a proteção que deveria ter e vive maltratado e desprezado por todos [...] (BARROS,

2011, p. 198-199).

Barros registra um contexto onde é possível analisar que as intervenções religiosas não foram as únicas a produzir transformações socioculturais entre os índios da RID. Antes, foi um coletivo de ações que, muitas vezes, resultaram em grandes prejuízos para os índios. O

3 O Estado brasileiro, ainda que laico, considerava conveniente a atuação dos missionários entre os indígenas. Pensavam eles que a religião tornaria os índios mais receptivos aos processos de incorporação à sociedade “civilizada”. O que atendia aos propósitos do Estado.

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modo de ser e viver dos Guarani, dos Kaiowá e dos Terena4 vêm, sistematicamente, sendo afetado pelo contado com a sociedade envolvente desde a criação da reserva pelo SPI, em 1917 (PEREIRA, 2013a, p. 1). Constitui-se com um exemplo desse tipo de intervenção o fato da administração da RID ter sido exercida por um não-índio designado pelo SPI, o chefe do Posto Indígena. Ele era responsável por manter a boa “ordem” na reserva e suas ações, via de regra, eram apoiadas por outra figura “criada” pelo SPI: o “capitão”5 da aldeia (CHAMORRO; PEREIRA, 2013, p. 3). Uma liderança nativa instituída para amenizar os conflitos entre os índios e os “brancos”. Tem-se, ainda, a política assimilacionista6 promovida pelo Estado no século XX e o confinamento7 indígena (BRAND, 2000, p. 109-127).

A partir da década de 1950, mesmo com as terras demarcadas, muitos indígenas permaneceram nas matas periféricas das fazendas de gado e de lavoura que se instalaram na região de Dourados. Alguns trabalhavam nestas propriedades, mas com a chegada da tecnologia a partir de 1970 a mão de obra indígena foi sendo dispensada (VIETTA; BRAND, 2004, p. 224-225). Grande parte dos índios que se sentiam inseguros ou ameaçados nas matas procuraram abrigo nas reservas, o que fez com que elas tivessem um significativo aumento populacional. Isso repercutiu em transformações complexas, como a “[...] sobreposição de parentelas e lideranças” (VIETTA; BRAND, 2004, p. 225). A fragmentação das parentelas foi uma consequência direta do maciço confinamento ocorrido nas décadas de 1970 e 1980.

De acordo com Pereira (2013a), a complexidade nas relações sociais na RID também espelhavam as diferenças que cada grupo étnico percebia no outro. Ele afirma que a

4 Os índios Terena também tiveram sua cultura influenciada pelas ações dos missionários protestantes da Missão Evangélica Caiuá, todavia, a maioria dos índios desta etnia chegou na RID transferida de outras áreas. Desde o final do século XIX os Terena se autodenominam como cristãos, sendo que os contatos sistemáticos entre índios Terena e missionários protestantes datam de 1912 (MOURA, 2009, p. 162, 178), ou seja, antes da criação da RID. Isso nos permite pensar que, neste período, o impacto sobre eles foi um pouco menos intenso em relação aos Kaiowá e Guarani.

5 O “capitão” é uma liderança indígena que, nomeada pelo SPI, visava a concretização do projeto do Estado. 6 A política assimilacionista tinha como princípio que os indígenas fossem integrados à sociedade e

convergissem a cultura ocidentalizada.

7 De acordo com o IBGE (2010) são mais de 11 mil indígenas vivendo em pouco mais de 3400 hectares de terras. A RID possui o maior contingente populacional, em área contígua, no Estado do Mato Grosso do Sul.

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permanência:

[...] da identidade étnica implica no sentimento de pertencimento a um segmento humano exclusivo, o que é muito forte entre as três etnias que vivem na terra indígena de Dourados. Cada uma dessas etnias se percebe e é percebida pelas outras como diferente, já que o convívio próximo e contínuo não dilui as diferenças. A convivência próxima, e mesmo os casamentos interétnicos parecem ter muitas vezes o efeito oposto, o de despertar a sensibilidade para os contrastes étnicos (p. 9). Foi neste conturbado contexto, entre o final da década de 1970 e início de 1980, que o pentecostalismo passou a fazer parte do dia a dia dos índios da RID. Nesta época, os missionários da Missão Caiuá tentaram resistir a inserção dos pentecostais, mas sem sucesso. De certa forma, foram as ações dos próprios protestantes que construíram o ambiente propício para a expansão pentecostal. A evangelização promovida através da Missão Caiuá, que em 1980 já completava mais de meio século de atuação entre os índios reserva, foi um facilitador para a aceitação desse “novo” discurso religioso, já que havia similaridade no seu conteúdo.

Com isso, o avanço do pentecostalismo se deu rapidamente (PEREIRA, 2012, p. 135). Inicialmente as igrejas se estabeleceram na periferia da reserva (final de 1970) e, em seguida, no seu interior (início de 1980). Inúmeras famílias extensas se converteram ao pentecostalismo e passaram a assumir uma postura bastante diferenciada dos indígenas não convertidos. As novas doutrinas trouxeram consigo novos problemas. Destacam-se as posições de intolerância religiosa da Igreja Deus é Amor, presente na RID desde 1985.

Contudo, há um importante contraponto nesse processo. Para Pereira (2013b) os missionários pentecostais, assim como foram os protestantes, erroneamente acreditavam que a conversão vinculasse o indígena ao sistema organizacional do não-índio de maneira definitiva. Em virtude disso, e com o passar do tempo, começaram a ter que lidar com a multiplicação do número de igrejas, já que cada uma assumia o formato da família extensa ou grupo de parentesco. Essa realidade passou a exigir a criação de novos espaços religiosos para abrigar as diversidades étnicas e as novas perspectivas do pentecostalismo indígena.

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feito nas duas aldeias da RID por Gustavo Soldati Reis em 2010. Dentre os dados estão relacionados doze casas de famílias extensas ou grupo de parentesco que também funcionam como “sedes” de igrejas protestantes, evangélicas ou pentecostais (REIS, 2010, p. 229-233). Segundo Chamorro e Pereira (2013) essa característica não é apenas uma similaridade, ela:

[...] remete à organização das parentelas egocentradas; na sua ausência, a congregação assume as feições de um grupo extenso de parentesco. De fato, é muito comum uma proporção significativa dos membros terem relações de parentesco ou aliança com o líder (p. 10-11).

Este cenário tem contribuído diretamente para o expressivo “crescimento” das igrejas na reserva. Se a Missão Caiuá demorou quase noventa anos para constituir 16 igrejas e/ou congregação na RID, em 2013 ela já “dividia” a reserva com outros 60 espaços religiosos, em sua maioria pentecostais. Algo como uma igreja para cada grupo de 150 índios, sem excluir os indígenas que mantém a religião tradicional. Para Brand, a principal preocupação com a expansão das igrejas pentecostais e neopentecostais estava no pouco comprometimento “[...] com as demandas concretas dos povos indígenas, e mais centrada nas demandas de ordem religiosa, contribuindo, em muitos casos, para aprofundar as fragmentações e disputas internas às comunidades” (COELHO, F.; GONÇALVES, C.; OLIVEIRA, 2009, p. 12-13).

As diferenciações socioculturas provocadas pela conversão ao pentecostalismo são, por si só, conflitantes. Mas elas se ampliam dependendo da compreensão doutrinária que se tem em relação a religião tradicional. Destaco as tensões que ocorreram entre índios pentecostais e as lideranças tradicionais em 2008 e que ganharam repercussão nacional. Na época o antropólogo Levi Marques Pereira afirmou que “até nas escolas, as crianças de pais pentecostais tendem a excluir e demonizar os filhos de rezadores indígenas” (ARRUDA, 2008). Ele demonstrava sua preocupação com a expansão do pentecostalismo na reserva:

Esse avanço ocorre diante de uma população fragilizada e encurralada em termos culturais, lingüísticos [sic], geográficos. Por suas práticas demonizantes, pela intolerância e a desproporção de forças, o pentecostalismo pode ser o golpe de misericórdia no etnocídio a que estamos assistindo (ARRUDA, 2008).

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Sobre este conjunto de transformações de identidade cultural, religiosas e sociais, Chamorro (2013a) sugere a possibilidade de que a ausência de xamãs dentro das comunidades indígenas tem se tornado uma terreno fértil para o pentecostalismo. De certa forma, as lideranças das igrejas pentecostais tendem a se tornar os neo-xamãs, já que através dos rituais que promovem, ainda que não tradicionais, são capazes de manter o índio ligado ao sagrado.

Situação semelhante é observada por Vietta na Reserva Indígena de Caarapó8. Ela diz que muitos veem os pastores pentecostais como mediadores de conflitos, como conselheiros e curadores. Isso denuncia, em parte, as transformações por que passam as comunidades indígenas, já que “[...] dar conselhos e garantir a intermediação com o sobrenatural era parte integrante dos antigos ñanderu […]. Porém, parece que para um significativo segmento da população, esta expectativa, hoje, recai sobre os pastores” (2003, p. 127). Há, todavia,

rezadores da mesma reserva que rebatem a ideia de que os pastores possuem poderes

curativos, bem como questionam o discurso sobre Deus promovido por eles. Para os

rezadores os pastores convertem índios baseados em mentiras (VIETTA, 2003, p. 131).

Outro exemplo das tensões existentes entre índios convertidos e tradicionais é dado por Melo e Souza (2012, p. 122ss). Ela argumenta que a instalação de igrejas pentecostais na Aldeia Panambizinho9 foi um dos fatores que contribuíram para a ausência do mais importante ritual Kaiowá, o Kunumi Pepy10. Em 2008, essas tensões fizeram com que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) proibisse a instalação de igrejas na referida aldeia e que as já existentes fossem retiradas do interior da Aldeia.

As considerações apresentadas até aqui demonstram que o fenômeno pentecostal entre os indígenas não está limitado a uma única Reserva ou Aldeia (WRIGHT, 2004; MONTERO,

8 A Reserva Indígena de Caarapó foi criada pelo SPI em 1924 para a acomodação de índios das etnias Kaiowá e Guarani (BRAND; ALMEIDA, 2007, p. 4).

9 Localizada a 18 km do município de Dourados, conta com uma população de 1101 indígenas (IBGE, 2010) e é considerada a aldeia que melhor preserva a espiritualidade tradicional dos Guarani e Kaiowá.

10 Cerimônia ritual onde “os meninos têm o lábio inferior perfurado e ornamentado pelo adorno tembeta, que deverão usar como prova de que já estão prontos para tornar-se um ʻverdadeiro homem kaiowáʼ” (MELO E SOUZA, 2009, p. 5)

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2006). Por outro lado, o grande contingente populacional da RID, o avanço da sociedade envolvente e o expressivo aumento do número de igrejas pentecostais já fariam deste local um importante estudo de caso. Contudo, o surgimento de igrejas autóctones11, a mais recente dimensão do pentecostalismo entre os índios da reserva, e os conflitos dos líderes dessas igrejas com os de igrejas filiais12 ampliam o interesse por este recorte espacial.

A Terceira Onda Missionária, as igrejas e os missionários autóctones na RID

Entre o final do século XIX e início do século XX, as ações missionárias protestantes entre os índios foram majoritariamente lideradas por agências internacionais. Este panorama começou a mudar com a organização de agências nacionais, no final da década de 1920. Entre os protestantes e pentecostais estes dois momentos são definidos como a Primeira e a

Segunda Onda Missionária, respectivamente.

Há pouco tempo, um novo movimento de evangelização tem envolvido indígenas de várias etnias do Brasil. Denominada de Terceira Onda Missionária13, seu enfoque está na formação de missionários nativos para atuar entre as nações indígenas. Apesar do destaque ao protagonismo indígena, isso ainda não significa que todo o processo é exclusivamente deles. O Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei), um dos responsáveis pelo movimento, considera que ainda há necessidade de auxílio de não-índios na formação teológica, profissional e técnica dos futuros missionários (CONPLEI, 2012).

No caso da RID, que também possui uma representação do Conplei, a organização de

11 Para fins desse texto considero como igreja autóctone aquelas que não possuem influência da sociedade envolvente, ou seja, os padrões e perspectivas nelas existentes são característicos dos indígenas.

12 A expressão filial, termo utilizado por Chamorro e Pereira (2013, p. 3), especifica que a igreja é uma extensão e/ou depende de uma igreja não-indígena.

13 Este movimento, encabeçado pelo Conplei e apoiado por várias agências missionárias nacionais e internacionais, foi uma reação a retirada dos missionários estrangeiros e brasileiros não-indígenas que atuavam no interior de diversas aldeias

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igrejas autóctones é mais constante entre os pentecostais. Mesmo que com ressalvas, essa nova realidade demonstra que eles já não são meros receptores e reprodutores do discurso do missionário ocidental. Antes, eles passaram a ressignificar e indianizar o cristianismo (CHAMORRO; PEREIRA, 2013, p. 11-12; MOURA, 2009) e, hoje, representam os principais disseminadores do pentecostalismo entre os povos indígenas.

Como mencionado acima, a atualidade da presença e forma do pentecostalismo entre os índios da RID é um fenômeno que requer atenção especial. Chamorro e Pereira (2013, p. 3-7) informam que das 35 denominações14 religiosas que atuavam na reserva até 2013, 20 se autodenominavam como pentecostais. As ações dessas missões religiosas se desdobraram em 74 igrejas/congregações, onde 59 são filiais e as outras 15 são autóctones15. Todavia, mesmo com os indígenas representando quase 90% dos dirigentes de todas as igrejas, 41,28% deles atuam sob a supervisão de um pastor não-índio. O que na prática não lhes confere autonomia.

Em contrapartida, temos o exemplo da Igreja do Evangelho Pentecostal Indígena de Jesus (IEPIJ), autóctone. Fundada na RID em 199316, atualmente esta igreja possui representação em quatro reservas (inclusive entre os Kadiwéu) e a sua liderança denomina a igreja como “sementeira”, já que vários líderes que organizaram outras igrejas na reserva saíram da IEPIJ. Outra marca distintiva no discurso das lideranças autóctones é o interesse pelos direitos indígenas, o que entre os indígenas vinculados às igrejas filiais é mais pontual.

Esses fatos realçam as diferenças que emergem entre o pentecostalismo autóctone e aquele praticado nas igrejas filiais. Tanto que líderes de igrejas autóctones articulam a limitação ou até mesmo a proibição da criação de novas igrejas filiais no interior da RID. Essa

14 Por denominação nos referimos as distintas vertentes religiosas que tempo como base o cristianismo e que, podem ou não possuir doutrinas e/ou dogmas em comum.

15 Apesar da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) ter transformado suas igrejas em “Igreja Indígena Presbiteriana” (IIP), neste texto não as consideramos como autóctones pelo fato de ainda manterem significativa dependência da IPB. Conforme Reis, a organização da IIP “[…] foi a concretização de um projeto de décadas da Missão Caiuá de regulamentar a posição de indígenas pastores como agentes religiosos autóctones” (2010, p. 126).

16 Esta informação foi colhida com o interlocutor Odair Morales em conversa realizada no dia 19 de set. 2013, na Aldeia Jaguapirú (RID).

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é outra situação que intensifica os conflitos e a fragmentação religiosa, já que líderes de igrejas filiais acusam aqueles que organizaram igrejas autóctones de querer “dominar” sobre as demais. Tais ocorrências denotam que a conversão ao pentecostalismo, em muitos momentos, também se apresenta como um instrumento de afirmação sociopolítico. É a partir deste evento que muitos indígenas se projetam como líderes da comunidade indígena.

Outro fator importante foi apresentado por Édina Silva de Souza em 2011. Filha do líder indígena Marçal de Souza, assassinado em 1983, ela fala sobre conflitos entre a religião cristã e a “crença do índio”. Guarani “criada” na fé cristã, atualmente Édina assume sua identidade indígena e acredita que muitos índios transitam entre a religião tradicional e a dos “crentes”. Contudo, ela também existem índios que, de fato, são convertidos ao cristianismo (SANTOS, 2012, p. 212).

Essa perspectiva, ainda que não represente a totalidade do pensamento indígena presente na RID, aponta para a existência de uma difusão de identidades e pensamentos sobre a religiosidade e reconhecida por eles mesmo. Édina ainda menciona o que acredita ser um ponto de convergência para uma boa convivência entre índios convertidos e tradicionais: o respeito mútuo. É preciso marcar, todavia, que isso não significa a ausência de lutas pela prioridade das práticas tradicionais, tampouco pela retomada de terras.

Mesmo após quase cinco gerações de índios nascidos e criados entrementes a tradição indígena e a cristã na RID, as tensões e conflitos parecem não estar perto de um fim. As igrejas autóctones se apresentam como um elemento importante para os que vicejam coexistência entre a identidade étnica tradicional e a pentecostal, mas talvez não uma solução. Será necessário, ainda, avaliar o quanto as ações da sociedade envolvente ainda afetará estas relações.

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O interesse pelo estudo do pentecostalismo entre os índios da Reserva Indígena de Dourados é um interesse pela história da própria humanidade. Os eventos que marcam a trajetória dos grupos étnicos que convivem neste local são fundamentais para auxiliar na compreensão do pentecostalismo indígena como um novo instrumento político e de análise das diferenças de etnicidade.

O estudo de um tema antes restrito à antropologia também contribui para a recuperação do papel histórico dos índios na formação sociocultural brasileira, bem como da própria história indígena. Assim, o papel da conversão ao pentecostalismo como prática simbólica, de iniciação, dever ser analisada como uma representação de alteridade indígena e de transformações sociais. Em particular, como um produtor de uma forma paralela, por vezes de oposição, a organização social em parentelas e da vida religiosa tradicional.

As inúmeras formas de tensões e conflitos apresentadas no texto, permitem presumir que elementos próprios do modo de ser desses índios tendem a ser cada vez mais afetados. A acumulação de fatores implicantes para a vida social dos grupos étnicos presentes na RID, tornam complexas não somente a análise da alternância dos índios entre a religião tradicional e a pentecostal, também produzem dificuldades na construção de qualquer parecer efetivo sobre a identidade étnica desses indivíduos. Principalmente diante do contínuo aumento populacional da RID, em detrimento ao seu espaço territorial, e do avanço da sociedade envolvente que em diversas direções já “cercam” a área da reserva.

Em suma, este texto se apresenta à guisa de uma aproximação para se compreender alguns aspectos das interferências causadas pelo pentecostalismo na organização social e na identidade étnica dos indígenas nos últimos 30 anos. Contudo, ainda se faz necessário aclarar a participação dos índios Kaiowá, Guarani e Terena na constituição desse novo paradigma religioso, agora como agentes missionários. A abordagem do ambiente gestado pelo surgimento de igrejas autóctones quer trazer à discussão as transformações ocorridas em quase 90 anos de contato com os protestantes, e mais atualmente os pentecostais. E como isso tem feito com que parte da população nativa se torne em promotores de uma religião que,

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outrora, quase facilitou a sua dizimação. Questões que além de querer privilegiar a “voz” dos índios, como protagonistas desses eventos, pretende produzir interesse pela história indígena.

Referências

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Referências

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