Escola EB 2,3/S de Valença
BIBLIOTECA ESCOLAR
POESIA E POETAS
PORTUGUESES
Letra para um hino
É possível falar sem um nó na garganta É possível amar sem que venham proibir É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta. É possível andar sem olhar para o chão
É possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros. Se te apetecer dizer não grita comigo: Não. É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem. É possível ser livre livre livre.
Non poss’eu, meu amigo
- Non poss'eu, meu amigo, com vossa soidade
viver, bem vo-lo digo, e por esto morade, amigo, u mi possades falar e me vejades. Non poss'u vos nom vejo viver, bem o creede, tam muito vos desejo, e por esto vivede, amigo, u mi possades falar e me vejades. Naci em forte ponto; e, amigo, partide
o meu gram mal sem conto, e por esto guaride,
amigo, u mi possades falar e me vejades. - Guarrei, bem o creades, senhor, u me mandardes.
D. Dinis
Porque...
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões
Passamos pelas coisas sem as ver
Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Estrela da Manhã
Numa qualquer manhã, um qualquer ser, vindo de qualquer pai,
acorda e vai. Vai.
Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos; nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar. E em seu impessoal desejo latejam todos os restos de quantos desejos ficaram antes por desejar. Abre os olhos e vai.
Ser poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente! É ter garras e asas de condor!
Florbela Espanca
Retrato próprio
Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste da facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno. Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades: Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Bocage
Quadra
Se o hábito faz o monge e o mundo quer-se iludido, que dirá quem vê de longe um gatuno bem vestido?
A máscara
Esta luz animada e desprendida Duma longínqua estrela misteriosa Que, vindo reflectir-se em nosso rosto, Acende nele estranha claridade;
Esta lâmpada oculta, em nossa máscara Tornada transparente e radiante
De alegria, de dor ou desespero E de outros sentimentos emanados Do coração dum anjo ou dum demónio; Este retrato ideal e verdadeiro,
Composto de alma e corpo e de que somos A trágica moldura, errando à sorte,
E ela, é ela, a nossa aparição, Feita de estrelas, sombras, ventanias E séculos sem fim, surgindo, enfim, Cá fora, sobre a Terra, à luz do Sol.
Teixeira de Pascoaes
Autopsicografia
O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração
Fernando Pessoa
Fim
Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas!
O Primeiro Homem
Que lindo mundo! E eu só! Que tortura tamanha! Ninguém! Meu pai é o céu. Minha mãe é a montanha. A Montanha
Os meus cabelos são os pinheirais sombrios E veias do meu corpo os azulados rios. Os Rios
Nós somos o suor que o Estio asperge e sua, Nós somos, em Janeiro, a água benta da Lua! O Infinito
Sou o mar sem borrasca, onde enfim se descansa. Aqui, vem desaguar o rio da Esperança...
António Nobre
A cigarra e a formiga
Como a cigarra o seu gosto É levar a temporada
De Junho, Julho e Agosto Numa cantiga pegada, De Inverno também se come, E então rapa frio e fome! Um Inverno a infeliz Chega-se à formiga e diz: - Venho pedir-lhe o favor De me emprestar mantimento, Matar-me a necessidade; Que em chegando a novidade, Até faço um juramento,
Pago-lhe seja o que for. Mas pergunta-lhe a formiga: “Pois que fez durante o Estio?” - Eu, cantar ao desafio.
“Ah cantar? Pois, minha amiga, Quem leva o Estio a cantar, Leva o Inverno a dançar!”