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Secção Temática de Sociologia da Educação
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Associação Portuguesa de Sociologia| Simpósio – Fazer sociologia fora da academia: artes e ossos do ofício |
Trabalhar no campo da Educação e Formação de Adultos
Joaquim Miguel MartinsDepois de terminar a licenciatura em Sociologia, em meados de 2003, a minha vida profissional começou, já na primavera do ano seguinte, como mediador de Cursos de Educação e Formação de Adultos
(EFA). Esses cursos eram
promovidos por uma Associação de Desenvolvimento Local e tinham a gestão pedagógica e financeira da responsabilidade de uma empresa de formação profissional. Consegui essa oportunidade por intermédio do meu professor de Sociologia durante o ensino secundário, dirigente da referida associação, também ele licenciado e mestre na área.
Na altura, tinha mais conhecimentos do fenómeno das Universidades Populares do início do séc. XX e dos processos de educação política de adultos em partidos e movimentos
sociais do que da manifestação do séc. XXI da Educação e Formação de Adultos. Era superficial o que sabia de cursos EFA e de processos de
Reconhecimento, Validação e
Certificação de Competências
(RVCC). Lembrava-me apenas de algumas matérias da cadeira
opcional de Planeamento de
Programas de Formação. Aliás, durante a licenciatura dirigi a minha atenção para outras temáticas e
áreas disciplinares e não
necessariamente para as que se relacionavam com a Sociologia da Educação. No meu caso particular, analisando retrospetivamente, não posso afirmar que a licenciatura em Sociologia me tenha preparado integralmente para os diferentes desafios profissionais específicos, em termos teóricos e práticos, que mais tarde viria a ter. Posso afirmar,
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Associação Portuguesa de Sociologiano entanto, que além de me conceder um conjunto alargado de
preocupações e estratégias
metodológicas e teóricas para a análise dos fenómenos sociais e das ditas competências transversais e transferíveis, também contribuiu
decisivamente para o
desenvolvimento dos meus mapas
cognitivos, interpretativos e
comportamentais, para a minha formação humanista, para o meu respeito pela diversidade humana e para um esforço continuado e
persistente na tentativa de
compreensão dos indivíduos na sua articulação com a sociedade e comunidades que o contextualizam.
Parece-me que todas estas
características ajudaram a definir determinantemente o meu exercício profissional enquanto Agente de Educação e Formação de Adultos. Senti, portanto, a necessidade de complementar a minha formação
com outras aprendizagens
específicas. Fiz um curso de Formação Pedagógica Inicial de Formadores e tive a oportunidade
de conseguir entrar num curso de formação de Agentes de EFA (1000 h) que era direcionado a recém-licenciados. Tive a sorte, portanto, de conseguir combinar uma prática profissional que estava a iniciar e em que tive de me familiarizar
rapidamente com linguagens,
códigos, conceitos, legislação e metodologias educativas específicas, numa lógica de auto-aprendizagem “bulímica”, com um curso que me proporcionou o contacto com um conjunto alargado de formadores experientes, a maior parte ligados a instituições universitárias e a organizações de EFA, que me
possibilitaram uma correta
‘digestão’ dos mesmos. Passei a encarar a história, as tradições e as teorias que emolduravam este campo de uma outra forma.
No entanto, em 2005, a precariedade laboral, os esquemas e habilidades financeiras da referida empresa de formação e as debilidades teórico-pedagógicas desses cursos fizeram-me desistir da fizeram-mediação desses cursos EFA e abraçar outros
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Associação Portuguesa de Sociologiaprojetos. Na sequência desse meu abandono, uma das primeiras
impressões que me ficou
relativamente ao campo da
Educação e Formação de Adultos relacionava-se com a contradição manifesta entre a postura militante e idílica que alguns dos intervenientes tinham da Educação e Formação de Adultos e as práticas e realidades
profissionais, que contribuía
decisivamente para o
desenvolvimento de perspetivas e posturas hipócritas.
O que me parecia constatar, sem
querer correr o risco de
generalizações, era que esses cursos EFA, desenhados para aumentar a qualificação dos indivíduos, para os
desenvolver integralmente em
termos cognitivos e sociais e apoiá-los em termos económicos, eram capturados por um conjunto de interesses económicos. Através da
convergência de interesses
particulares e de esquemas
contabilísticos (possibilitados pela legislação vigente e pelas regras de acesso aos Fundos Sociais Europeus)
possibilitava-se o seguinte: grande parte dos adultos inscritos nesses cursos ficavam sobretudo satisfeitos por terem uma pequena bolsa de
formação; a Associação de
Desenvolvimento Local tinha mais uma atividade para referir no seu plano anual de atividade, e procurava algum financiamento para manter a organização através do aluguer de salas para os referidos cursos; os formadores e mediadores iam-se calando e desleixando
profissionalmente porque
ganhavam algum dinheiro através das horas de formação lecionadas; e a empresa de formação encaixava os rendimentos mais significativos, com coordenações pedagógicas, com aluguer de computadores, com as diferentes rubricas contabilizadas (por exemplo, comunicação e publicidade) e mesmo com recurso a esquemas de faturação que não correspondiam à realidade. Esses cursos EFA pareciam-me mais direcionados para amparar esse conjunto de interesses particulares do que para contribuir para a
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Associação Portuguesa de Sociologiamissão e objetivos que estipulavam. Muitas vezes confrontava-me com uma espécie de cinismo e desleixo profissional flagrantes. Saliente-se que as próprias metodologias pedagógicas utilizadas e a falta de preparação teórica da generalidade da equipa pedagógica, minha inclusive, também o possibilitavam. O mais revoltante era confrontar-me com tudo isso nos encontros públicos relacionados com a EFA e verificar as significativas antinomias entre os discursos públicos e as práticas profissionais privadas. Mais tarde, depois de ter estado
envolvido em projetos de
intervenção comunitária, comecei a trabalhar numa outra área da Educação e Formação de Adultos, em Centros de Reconhecimento,
Validação e Certificação de
Competências que logo se passaram
a chamar Centros Novas
Oportunidades. Entre 2007 e 2013, trabalhei como Técnico/Profissional de RVC em dois tipos de Centros
Novas Oportunidades: um
promovido por uma empresa
municipal e um outro promovido por uma Escola Secundária. Ao longo deste período, fiz inúmeras pequenas formações e senti a necessidade de procurar uma oferta educativa mais consistente que, por um lado consolidasse as minhas aprendizagens, fosse em termos de obtenção e aprofundamento de novos conhecimentos, fosse no contributo significativo para a sistematização dos saberes obtidos no âmbito profissional. Assim, em 2010, inscrevi-me no mestrado em Ciências da Educação, ramo de
Educação de Adultos, da
Universidade do Minho. Passados dois anos, concluí-o em 2012, com a apresentação da Dissertação de Mestrado: “Os profissionais de Reconhecimento e Validação de Competências: análise crítica de um processo de profissionalização”. Mais uma vez verifiquei a utilidade da minha formação em Sociologia. Em 2013, com o fim da Iniciativa
Novas Oportunidades fiquei
desempregado. Embora tenha
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atenção para outras áreas
profissionais já que estava
relativamente desanimado com o futuro da EFA naquele contexto político e socioeconómico.
Mais tarde, no início de 2016, regressei ao que restava das Novas Oportunidades. Comecei a trabalhar como Técnico de Orientação, Reconhecimento e Validação de Competências já num Centro promovido por uma autarquia, por um conjunto de Agrupamentos de Escola e outras entidades educativas e formativas. Passado um ano, dispensaram os meus serviços pois
resolveram privilegiar outras
pessoas e interesses.
Da minha experiência profissional, retenho algumas ideias, que tive a oportunidade de aprofundar e justificar na referida dissertação de mestrado:
1. O campo da EFA, mais especificamente o campo do RVCC, ainda que a legislação estipule algumas condições genéricas, é fundamentalmente desregulado em
termos de habilitações para o exercício profissional. Verificaram-se algumas movimentações formais e informais pelo controlo das condições do exercício profissional
por parte de associações
profissionais da área (que
atualmente estão praticamente
inoperantes) e mais explicitamente por parte da Ordem dos Psicólogos, que visava privilegiar sobretudo os seus inscritos. O que na prática se constata é a total discricionariedade com que as diversas entidades contratam trabalhadores para atuar nesse campo, já que são estas que definem os critérios e os perfis
habilitacionais que considerem
adequados aos seus fins específicos. Acresce o facto de frequentemente os referentes para essas contratações não serem necessariamente as
habilitações, competência, o
desempenho, o mérito ou
reconhecimento profissionais, mas sim um conjunto diversificado de outros interesses mais contingentes. 2. Existe uma precariedade laboral persistente que desmobiliza e
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Associação Portuguesa de Sociologiainquieta as pessoas que trabalham nesse subcampo da EFA. A instabilidade profissional pode ser perniciosa para um bom exercício profissional e as lógicas de
profissionalização e
profissionalidade são intermitentes e precarizantes, sobretudo no que
diz respeito aos níveis de
preparação técnica e teórica, à sistematização dos conhecimentos advindos do exercício profissional, à consolidação de códigos de conduta e de ética e à construção de
identidades profissionais mais
estabilizadas.
3. A pluralidade de entidades
promotoras dos Centros de
Orientação, Reconhecimento,
Validação e Certificação de
Competências (independentemente da designação atual), uma das áreas com maior visibilidade do campo da EFA, pode ser contraproducente. Mais do que vantagens em termos de diversidade de abordagens, essa
pluralidade possibilita, muitas
vezes, a contaminação das
metodologias e modos de atuação
específicos a esse campo educativo por parte dos diferentes fins e culturas organizacionais dessas mesmas entidades, que podem não ser convergentes. Em alguns casos, pode até existir uma subversão da “missão” dos centros e dos seus princípios de ação educativa.
No meu caso específico, para terminar, sei que regressarei, mais tarde ou mais cedo, de forma assalariada ou não, ao campo da Educação e Formação de Adultos. Neste momento, se isto servir como uma das chaves de interpretação do que foi exposto, encontro-me a trabalhar como cozinheiro numa unidade de hotelaria do interior do país.