J
oaquim
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oaquim
e
sua
padiola
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diçõEss
halomCE 040 - s/n - km 16 - Divineia
CEP: 61.700-000 - Aquiraz/CE | Tel.: (85) 3308.7575 www.edicoesshalom.com.br n edicoes@comshalom.org
ISBN: 978-85-85906-60-3
© EDIÇÕES SHALOM, Aquiraz, Brasil, 2010. (4ª Edição)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser repro-duzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
Coordenação Geral Filipe Cabral Coordenação editorial Carolina Fernandes Capa Eduardo Martins Pedro Uchôa diaGramação
Everton Sousa de Paula Pessoa
ilustração Bruno Brasil
revisão
Elena Arreguy Sala
Maria Auristela Barbosa Alves José Ricardo F. Bezerra
Í
ndice
Prefácio ...
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p
refácio
Cada vez que lia a narração da cura do paralítico que
foi descido pelo teto, ficava intrigada com a ordem final
de Jesus: ‘Toma o teu leito, vai para a tua casa’. Ficava a
imaginar porque Jesus teria dado uma ordem tão detalhada
e aparentemente tão desnecessária. Para que um paralítico
ainda quereria sua padiola? Por que a recomendação de
ir para a sua casa, agora que podia andar livremente por
onde quisesse?
Em março de 2003, em uma conversa informal com D.
Dominique Rey, bispo da diocese de Toulon, na França,
obtive, inesperadamente, a resposta. O assunto era o
desa-fio da formação humana. Quanto ao mistério desvendado
da padiola, bem... isso você saberá ao ler o livro.
A conversa com D. Dominique ocorreu no momento
em que começávamos a elaborar o livro ‘Tecendo o Fio
de Ouro’, um roteiro para a história da salvação pessoal, o
auto-conhecimento e o projeto pessoal de vida. Percebemos,
de imediato, que escrever um livro abordando o assunto da
misteriosa padiola seria um complemento interessante não
somente para aqueles que tivessem tecido seu fio de ouro
seguindo o roteiro, como também para qualquer pessoa que
desejasse aceitar-se melhor.
Daí para a ideia de fazermos um livro bem-humorado
foi um pulo. O paralítico ganhou, então, um nome:
Jo-aquim, e seu ‘leito’ ou ‘maca’ transformou-se facilmente
em uma padiola que, em obediência à ordem de Jesus,
o acompanharia por toda a vida.
Sei que você gostará do Joaquim logo ao primeiro
contato. Ele é aquele tipo de pessoa que, por trás do seu
jeito muito peculiar de ser, consegue ser espelho para
nossas vidas.
Joaquim narra a sua história em diálogos leves e rápidos
com seus amigos e com você. Estas conversas escondem o
verdadeiro diálogo: aquele que, silencioso, passa a ocorrer
no coração de cada leitor- interlocutor.
Você verá que, algumas vezes, o Joaquim não o tratará
com a vênia e respeito que você merece. Mas, por outro
lado, você ficará livre para dizer ao Joaquim o que quiser.
E, às vezes, vai dar vontade de dizer cada coisa!
Vai ser uma bela aventura. Uma viagem por sua
per-sonalidade e pela de seus amigos, com o bom-humor de
quem carrega sua padiola, com o mesmo riso divertido de
Jesus ao deparar-se com ninguém mais ninguém menos
do que o nosso Joaquim a pender, perigosamente, sobre
sua cabeça.
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c
apÍtulo
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‘Ei, seu imbecil! Quer me matar, é? Olha que você me mata! Cuidado! Idiota! Incompetente! Sobe, sobe, sooobeee, Jonas!’ berrava eu, desesperado, enquanto olhava, no horizonte do meu queixo, o Jonas a tentar se equilibrar na viga de madeira do telhado e, ao mesmo tempo, manter seguras as cordas que amarravam a cabeceira da padiola.
‘Que invenção! Me descer teto abaixo! Então não se lembravam do que me tinha acontecido? Malucos, incom-petentes! Querem é se ver livres de mim!’, murmurava, pairando, cabeça muito abaixo dos pés, acima do povo que se afastava, assustado.
‘Que história é essa? Ei, para aí, para aí! Meu Deus! Minha casa!’ gritava um homem, a se desviar dos escom-bros do teto que caíam ao seu redor.
‘Aaai! Você está quebrando minha perna!’ Dizia uma voz de mulher a alguém que, no tumulto, a atropelava
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no meio do bolo de gente que tentava se encostar nas paredes.
‘Ai, meu Deus! Segura o coitado direito! Cuidado, cui-dado!, repetia um velho magro. Tremi de raiva. Detestava quem me chamava de coitado!
‘Olha a viga! Olha a viga! Está cedendo! Olha a viga!’ Berrou alguém, seguido de gritos histéricos de mulheres, choro de crianças e mais aperto lá em baixo, enquanto o Jonas finalmente conseguia subir a corda e me tirar da posição quase de cabeça para baixo. Suspirei aliviado enquanto descia, aos solavancos, mais alguns palmos, com os pés e a cabeça da mesma altura.
‘Ei! Essa corda é do meu barco!’, gritou o pescador de cujo barco meus quatro carregadores haviam tirado as cordas.
‘Ladrões! Ladrões! Roubaram-me as cordas! Vão ter de devolver direitinho para o lugar! Direitinho! Dá um trabalhão enrolar isso! Ladrões! Esperem até ver a surra que vão levar!’ esbravejava o homem, fora de si.
Assustado, o Jonas novamente soltou demais suas cordas e o Josafá, que segurava o Tadeu, para que não caísse com o meu peso, percebendo a situação, puxou-o de vez para trás e os dois caíram sentados, segurando firme as cordas dos meus pés. Caiu entulho para todo lado. Mais gritaria.
Para completar, o Helcias, que segurava o Jonas, sol-tou-o para segurar as cordas e, não conseguindo, o lado de minha cabeça despencou de vez. Fiquei literalmente
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de cabeça para baixo, escorregando perigosamente entre as túnicas torcidas que me amarravam à altura das pernas finas e sem musculatura e dos braços par-alisados, inertes. Foi quando meu rosto ficou a poucos palmos do de Jesus e vi que ele ria, bem-humorado, diante da situação.
‘Do que é que ele está rindo?’, perguntei a mim mesmo, irritado, com a testa a latejar, olhos para baixo, queixo para cima, olhando o seu rosto a partir da barba. Naquele momento, meu medo passou e só não ri com ele para não dar o braço a torcer. Não era homem de voltar atrás.
Alguém correu e segurou a cabeceira da padiola que o incompetente do Jonas não conseguia sustentar e assim o Tadeu pôde descer o seu lado. Depois de muita gritaria de ‘Sai do meio!’, ‘Afasta! Afasta!’, ‘Ei, vocês estão lou-cos?’, ‘Como vou construir isso de novo?’, ‘Como vamos dormir hoje?’ e ‘É o Joaquim! É o Joaquim!’, aterrissei, bem aos pés de Jesus, em meio aos aplausos de todos. Até o dono da casa começou a aplaudir, embora tenha-se dado conta e tenha parado lá pela quinta palma. Jesus também aplaudiu, sempre rindo.
Voltei para ele meu olhar zangado, disposto a intimidá-lo, deixando bem claro que não estava gostando daquilo. No entanto, ele sorria, divertido. Parecia muito alto, visto assim do chão. Ainda mais alto quando se pôs de pé e, em seguida, fazendo-se menor que eu, acocorando-se, bem perto de mim, a túnica arrastando no chão cheio de entulhos.
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Nossos olhos se encontraram em silêncio. Ele sorria sempre. Seu sorriso divertido, de repente, encheu-se de ternura quando ele passou a mão sobre meus cabelos imundos, engordurados, fedorentos.
‘Por que eu não tinha deixado a Holda lavá-los só esta vezinha?’, pensei, chateado, sentindo-me humilhado.
Ele sorria profundo. Eu comprimia os lábios, mudo, irritado, envergonhado, descrente.
De repente, ficou sério e olhou para o Jonas e o Tadeu, o Helcias e o Josafá, que tinham pulado do teto – o Jonas, claro, não tinha pulado, mas tinha sido ajudado a descer – e agora também estavam acocorados ao redor da padiola. Olhei também para meus carregadores e pude ver a perna do Jonas ralada de cima abaixo. ‘Imbecil!’, pensei. ‘Incompetente!’
Os quatro olhavam para ele e seus olhos, no meio dos rostos suados pelo esforço, entre os cabelos desgrenha-dos, tinham jeito de quem esperava uma bronca.
Do meu ângulo de visão, abaixo de suas barbas, per-cebia que Jesus procurava algo no rosto deles. Os quatro abaixaram a vista, confusos, e o Tadeu, sem ter onde pôr as mãos, começou a desatar o enorme nó do seu manto que me amarrava as pernas. Não tendo o que fazer, o Jonas – ‘Sempre maria-vai-com-as-outras!’, pensei, irri-tado – começou a tentar desamarrar seu próprio manto que me prendia os braços.
‘Graças a Deus!’, suspirei, ‘estava fedendo demais esse manto do Jonas!’
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Jesus aguardava calmamente que me desamarras-sem. Seus olhos não buscavam mais nada. Parecia ter encontrado o que procurava e esperava para dizer algo. O povo não se mexia, atento.
Mas, deixa eu me apresentar: meu nome é Joaquim. Sou aquele paralítico de que falam Mateus, Marcos e Lucas em seus evangelhos. Estou aqui, como você bem vê, para contar-lhe a minha história.
Sou natural de Ramá, na Galileia. Nunca antes tinha saído de minha casa, de minha cidade. Quando tinha mais ou menos doze anos, no período da preparação para o bar-mitzvah, subi no teto de minha casa, para me esconder do Jonas e dos outros moleques e caí lá de cima, de cabeça no chão. Depois disso, nunca mais andei. Fiquei, como vocês do século vinte e um dizem, tetraplégico, sem mexer nada, sem sentir nada do pescoço até os pés.
No princípio, meus pais me mantiveram deitado, esperando a minha morte. Passaram-se os meses e, vendo que eu sobreviveria, minha mãe teceu para mim como que um manto bem grosso, bem resistente, que meu pai costurou com tiras finas de couro em duas hastes laterais. Foi minha primeira padiola. Uma vez por dia me carregavam na padiola para perto da entrada da casa e eu tomava um pouco de sol enquanto via os meninos brincarem.
No começo, tinha muita visita, os moleques se acocora-vam ao meu redor, a conversar. Depois, fui deixando de ser
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uma novidade, fui fazendo parte do dia a dia, até que sua companhia foi reduzida a um apressado ‘Shalom, Joaquim!’ seguido de uma carreira para a brincadeira do dia.
Tentando compensar minha solidão, meus pais faziam tudo o que eu queria e imaginava. Inventava os desejos mais malucos e eles me satisfaziam custasse o que custasse. Tornei-me o reizinho da casa. Além disso, meu pai apressou-se em deixar bem claro qual seria minha parte da herança no seu rebanho de ovelhas e cabras. Eu era o único homem – havia um outro que falecera antes de eu nascer. Tinha mais quatro irmãs mulheres, cujos dotes seriam pagos no casamento. Meu futuro estava garantido. Era rico.
Depois que meu pai morreu e minha mãe ficou sem forças, eu quase nunca saía de casa. Nem contava mais minha idade, mas ouvia alguns comentários do tipo: ‘Teria dado um belo jovem! O que será dele quando a mãe morrer?’
Quando minha mãe morreu, permaneci na casa dos meus pais – nunca me mudei de casa – e morava com minha irmã mais nova, seus dois filhos e seu marido, que cuidavam de mim como conseguiam.
O único que ia me ver de vez em quando, sem ser convidado, era o Jonas. Entrava, sentava, tentava puxar conversa, contava uma coisa ou outra, cuspia no chão. Eu o olhava de baixo para cima, sempre irritado:
‘Pra quê essa besteira de conversar, de vir me ver, de contar o que estava acontecendo?’ E morria de inveja
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porque não podia cuspir no chão como ele, assim, de cima para baixo...
‘Vem só pra me fazer inveja, esse Jonas...’, murmu-rava, quando ele saía. No entanto, se ele deixava de aparecer um só dia... ficava pensando, irritado, por que ele não tinha vindo. Já que me tinha acostumado, tinha obrigação de vir.
De vez em quando, eu pedia que chamasse o Tadeu, mas que não viesse com ele, que o deixasse vir só. Tadeu, sempre muito ocupado, só vinha quando eu pedia que o Jonas o convidasse. Era um jovem importante, prós-pero com os rebanhos que herdara de seu pai, falecido, assim como a mãe. Era filho único, muito bonito, muito inteligente, muito capaz, muito eficiente. O tipo de pes-soa que me agradava. Quando vinha, conversávamos durante todo o tempo que podia ficar, que, nem sempre, era longo o suficiente para me satisfazer.
Holda, minha irmã mais nova, cuidava de mim quando lhe sobrava tempo com as crianças. De vez em quando me lavava a cabeça. Era a única pessoa que eu deixava tocar-me a cabeça. Uma vez por semana chamava o Jonas – ‘Tem que ser o Jonas?’, eu reclamava – para me dar um banho. Eu detestava isso. Embora não sentisse meu corpo, eu fazia questão de reclamar o tempo todo: ‘Ei! ‘Tá doendo! Quer me matar, é?’
Um dia, tive tanta raiva dele que lhe meti uma mordida caprichada na mão direita. Ele berrou até eu soltar e, magoado, me deixou ali, nu, e saiu. Eu tremia de raiva,
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os olhos cheios de água, mas, como já disse, não era homem de voltar atrás. Não era homem de pedir perdão e muito menos de agradecer. Além do mais, sabia que ele iria voltar. Ele sempre voltava.
Não deu outra. Pouco depois, o Jonas voltou e termi-nou o banho. Era sempre assim: quase um ritual. Eu o ofendia, o humilhava porque, afinal, era um imbecil – ele se zangava e, depois, voltava, pedindo perdão e tudo con-tinuava como antes, até o próximo ritual. Eu não dizia nada. Tinha sempre razão em tudo. Mas depois a gente fala mais sobre o incapaz do Jonas... Deixa eu terminar essa parte da história.
Um dia, eu estava comendo, com a cabeça voltada para o lado, diretamente do prato raso que a Holda colo-cava ao lado da minha boca duas vezes por dia, quando entraram os quatro trapalhões que citei na primeira parte, muito excitados: queriam me levar a Cafarnaum, imagine! Tinham ouvido falar de um tal de Jesus que es-tava curando o povo, ressuscitando os mortos. Tinha até expulso os demônios daquele famoso homem de Gerasa, aquele que vivia acorrentado aos túmulos.
‘Quê!?! Agora estão inventando que eu estou endemo-niado, é?’ gritei, desconfiado como sempre, louco para cuspir no chão com raiva, como todo mundo fazia.
‘Foi você, não foi, Jonas, quem inventou isso! Desgraçado! Endemoniado é você que vive me atazanando a vida!’ e continuei xingando de um jeito que não se pode transcrever aqui. Minha lista de xingamentos e palavrões é invejável.
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Depois de muita luta, apelaram para a Holda, para a alma da minha mãe (esse era meu ponto fraco!) e eu acabei concordando em pensar no assunto.
Não acreditava naquela história de rabi, de cura. Para mim, a Holda pedir e nada era a mesma coisa. Era uma perfeita idiota, como as minhas outras três irmãs. Tratava-me como a um cachorro! O Jonas, sem comentários. Os outros três? Bem... queriam ser heróis às minhas custas... Estava decidido. Eu não iria. Não confiava neles. Não iria e pronto!
À noite, o imbecil do meu cunhado ainda veio com uma conversa mole, todo jeitoso, tentando me convencer. Me deu até uns bons copos de vinho, mas nada me demovia. Eu não iria. Estava feito!
Lá pelas tantas da madrugada, no meio do escuro, acordei, zonzo, a cabeça balançando. O quê?!?! Isso mesmo. Os quatro idiotas tinham entrado no meu quar-to, tinham suspenso minha padiola e eu, sono pesado pelo vinho – ‘O vinho! Ah, traidor! Se eu pego aquele fingido! Cínico! Hipócrita! Sonso! Fazendo-se de amigo! Só a bobona da Holda para casar com um desgraçado daquele!’– como eu ia dizendo, sono pesado pelo vinho, nem tinha acordado. Estava, já, no meio da estrada. Gritei, esbravejei, até ficar rouco. É horrível não poder se mexer, não poder se defender! Os quatro não diziam nada. Andavam, revezando as tochas, no meio da escu-ridão. Íamos a Cafarnaum, ver o tal Jesus.
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A padiola balançava e balançava. Minha cabeça foi ficando cada vez mais zonza. Gritei que iria vomitar. Nin-guém acreditou. NinNin-guém parou. Resultado? Fiz questão de vomitar ‘bem muito’, fazendo muito barulho, engul-hando o máximo, com o rosto virado para o Jonas que carregava a vara à minha direita, fazendo tudo para sujar seu manto nojento. Finalmente, colocaram-me no chão e o Tadeu, aquele rico e importante que eu mandava chamar para conversar comigo, levantou-me um pouco a cabeça para eu não sufocar. Como era ele, aceitei de bom grado. Gostava de gente rica e importante. Daí o idiota do Jonas foi usar o outro lado do manto para me limpar a boca:
‘Hum! Huuuummmm! Você está me sufocando! Quer me matar, desgraçado?’ Não sei por que sempre achava que o Jonas queria acabar comigo, mas isso fica para depois.
Vômito vomitado, recomeçaram a andar e eu, natural-mente, a xingar, a reclamar, a esbravejar, a murmurar, a fazê-los sentirem-se os mais culpados e inadequados possível.
Em um determinado momento, Tadeu fez um sinal e os quatro largaram imediatamente a padiola no chão. Juntamente com Helcias e Josafá, correram até sumir de vista. Jonas ficou ainda alguns segundos, meio hesitante – medroso! – depois, correu também. Nem acreditava! Os quatro, os quatro!, deixaram-me lá, sozinho, indefeso.
Claro que eu não disse nada. Já expliquei que não sou fraco. Sou forte. Não sou homem de dar o braço
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a torcer, já disse. Fiquei calado, fervendo de ódio, mas não chamei, não pedi desculpas, não berrei. Achei que logo voltariam.
Depois de alguns minutos, tentei mexer a cabeça para os lados, levantá-la o mais que podia, enterrando o queixo no peito. Nada. Não conseguia ver nem ouvir ninguém. Estava só. Tinham-me deixado só, os traidores.
‘Traidores! Traidores!’, rosnava eu baixinho.
A padiola cheirava a vômito. Era a última padiola que meu pai me tinha feito. Tinha matado uma cabra do seu rebanho, uma cabra grande, boa, cevada, que ele havia criado e engordado exatamente para aquele fim. Com o couro, havia feito a parte central da padiola, emendando as laterais e a parte dos pés com tecido feito pela mãe. Estava já acostumado ao odor do couro, mas couro e vômito, ainda mais sozinho ali...
Espera... será que tudo aquilo era uma invenção? Será que não era um plano para se livrarem de mim? Me tra-ziam, me abandonavam ali, os animais selvagens vinham e me comiam... ninguém se lembraria mais... Talvez, até, viessem a ficar aliviados... É, certamente ficariam alivi-ados... Eu não era mesmo flor que se cheirasse...
O silêncio foi me invadindo e comecei a refletir. As cenas passavam em minha cabeça: irritação, raiva, xin-gamento, exigências. E os quatro fracotes não aguenta-ram! Será que tinha exagerado? Estava quase para me arrepender quando...
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‘Ei!... Quem está puxando minha almofada? Ei! Ei! É você, Jonas?’ Perguntei, acostumado a manter o Jonas sob a égide da culpa, enquanto sentia que alguém puxava a almofada de sob a minha cabeça. Alguém?!? Senti o bafo quente junto ao meu rosto, o cheiro horrível a se destacar do azedo do vômito e da inhaca da cabra. Seus olhos brilhavam no escuro. Devia ser negro, pois só via seus olhos. Depois, percebi, com ele estavam mais outros! Estava cercado, cercado daqueles bichos, atraídos pelo vômito! Iam me comer! Iam me devorar! O que eram? O que eram? Sucumbi à minha impotência e gritei com toda força: ‘Socooorrooo! Socooorrooo!’
Em dois minutos, os quatro apareceram, enxotaram os bichos e retomaram o caminho, sem dizer nada. Em minha imaginação, cruzei os braços e cuspi no chão, irado, humilhado. Estavam escondidos! Espiando! Tudo combinado! Tudo contra mim!
Lá pela terceira hora, chegamos a Cafarnaum. A ci-dade fervilhava de gente. Todos queriam ver Jesus. Do chão, eu podia ver, lá no alto, contra a luz do sol, meus quatro carregadores perguntando a um e a outro se o Mestre não iria sair, como se poderia entrar, se haveria fila para atendimento. Se não havia jeito de dizer que tinham viajado a noite toda e mais uma parte do dia com um paralítico que queria ser curado.
‘Olha... acho que não tem jeito, não’, diziam, balan-çando a cabeça e olhando, lá de cima, para mim, com cara de pena. Aquilo me deixava doido! Como eu queria
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olhar as pessoas cara a cara, à mesma altura. Aí eles iam ver quem é que ia ser digno de pena...’
Abri o berreiro, irado:
‘Eu disse que não queria vir! Vocês me trouxeram à força! Me sequestraram! Agora, ‘se virem’!’, gritava. ‘Agora quem quer entrar ali sou eu! Entenderam? ‘Se virem’ e obedeçam! Façam o que estou mandando! Por que não fazem exatamente o que estou mandando? Vamos! Obedeçam! Arranjem um jeito de eu entrar! Vão entrando porta a dentro e pronto! A culpa é de vocês! De vocês, entenderam? Para que foram inventar isso? Estava quieto em meu canto. Agora, que fizeram a beste-ira, precisam de mim para orientar vocês! Deixem de ser molengas e forcem a multidão com a maca, ‘na marra’, entenderam, bando de fracotes?’
Eles não me ouviam. Sempre era assim. Eu aconsel-hava, orientava, dizia o que é que deviam fazer, mas... nada! Sempre faziam do jeito deles. O resultado? Taí. Estão empacados, incapazes de fazer uma coisa simples como entrar em uma casa.
‘Incompetentes! Por que não me ouvem?’, rosnava. Helcias e Josafá haviam sumido, em busca de maiores informações. Eu tinha muita, muita sede, mas não dizia nada. Não era homem de dar o braço a torcer, já disse! Os dois voltaram com umas cordas ‘tomadas emprestadas’ de um barco à beira do lago de Genesaré. Olhei com os olhos compridos, cheio de autocompaixão para o Tadeu, e falei baixinho para que os outros não me ouvissem, pois
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queria que o Tadeu, e não outro, me trouxesse a água: ‘Você pode me arranjar um pouco de água?’, disse, voz fraca, entonação de pobre-coitado.
Enquanto bebia a água, percebi que amarravam as cordas às quatro pontas das hastes, certamente aprovei-tando por me verem distraído. Tadeu foi encarregado de me convencer a me deixar amarrar à padiola. Consenti, mesmo sem saber por que. Fazia tudo – bem, quase tudo – o que Tadeu me pedia. Viraram a padiola para um lado, depois para o outro, enquanto me amarravam as pernas, à altura dos joelhos. Podia ver o enorme nó feito com a túnica boa e grossa do Tadeu que me amarrava as pernas finas e dobradas pela paralisia. Vi também quando o próprio Tadeu me amarrava os braços...
‘Não acredito! Com a túnica nojenta, imunda, vomi-tada, fedorenta do Jonas!’, pensei. Mas, como era o Tadeu, não disse nada...
Em seguida, curioso com o que me estavam aprontan-do, ouvi falarem de pedras e os vi afastarem-se um pouco para procurá-las. Logo voltaram, pedras nas mãos. De repente, sem dizer nada, lá me erguem, novamente, a padiola e, depois de andar alguns minutos, começam a ... subir! Subir!!! Você pode imaginar? Começam a subir! A ME subir, balançando perigosamente, cabeça para cima, pés para baixo, naquela escada estreita. Claro que me lembrei do acidente, de minha subida no telhado, da minha queda, meu desmaio, minha dor de cabeça alucinante semanas a fio! Fiquei, por alguns instantes,
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paralisado de terror. Não sou homem de me paralisar por medo! Logo voltei ao meu normal:
‘Socorro! Vou morrer! Acudam!’, gritava como podia, com minha voz fraca de paralítico. ‘ Vou cair! Eles querem me matar, esses idiotas!’
Ninguém parecia ouvir! Ninguém me ouvia! Ninguém me obedecia! A mim, um pobre paralítico em perigo!
‘Socorro! Acudam!’... Nada!
Novamente depuseram minha padiola sobre o telhado. Graças a Deus os telhados, na Galileia, eram planos. Se fossem como os de vocês, ocidentais, me teriam deixado escorregar telhado abaixo, com toda a certeza, aqueles desmiolados. Ah, se eu não fosse paralítico, o quanto teria para ensinar àqueles incompetentes! Não sei como o Tadeu se misturava com eles!
De repente, ouvi uma gritaria vindo de dentro da casa: ‘O teto está desabando! Corram!’ e o Tadeu, con-ciliador, gritando de cima, por um pequeno buraco que, pude supor, tinham feito no telhado, pois ouvia sua voz abafada: ‘Calma, calma! Não vamos lhes fazer mal! O teto não está caindo! É um doente! Precisa de ajuda! Consertamos tudo depois!’
‘Doente, eu?’, pensei. ‘Então é assim que o Tadeu me considera? Nada disso! Não sou doente, sou paralítico!’
A gritaria continuou e meus amigos, isto é, meus car-regadores, retiravam o mais rapidamente possível, com as pedras pontiagudas, a argamassa que cobria as pal-has e madeiras. Era uma luta contra o tempo. Comecei
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a ficar ansioso, a, finalmente, participar, desejar, quem sabe, ser curado:
‘Se tivessem planejado a viagem com antecedência, se tivessem reservado um lugar especial para mim, se tivessem avisado o mestre, se tivessem feito as coisas di-reito, tudo seria muito diferente. Por que será que nunca fazem as coisas certas, esses quatro? Com certeza, isso é ideia do Jonas’, pensava.
‘Levantaram a padiola! Estão me levando! Ai meu Deus! Vão me descer!’, consegui perceber. E lá fui eu, amarrado, balançando perigosamente e, de repente, escorregando por entre os mantos que me amarra-vam, de cabeça para baixo, como um peixe, como um peixe fedorento!
Bom, o que aconteceu depois, já contei! Agora, você que me está lendo, vem para cá, perto de mim, acocora aqui do meu lado, deixa eu te perguntar umas coisas:
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‘Marque aí abaixo como você percebeu o meu jeito de ser’ bondoso humilde altruísta intolerante de difícil con-vivência agradável complexo e on-ipotência bem educado paciente irritadiço egoísta dado ao diálogo de fácil comu-nicação
aberto aos outros gosta de humil-har os outros arrogante orgulhoso impaciente zangado ranzinza simpático chato afável cortês
‘E os meus carregadores, como você os vê?’
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Aquele riso de Jesus me deixou surpreso. Para mim, um rabi tem que se dar ao respeito. Não tem que fi-car rindo, assim, como uma pessoa comum. Mas a Emmir tem mania de dizer que Jesus ri e, como dependo dela para escrever minha história, tive de aceitar – mas não calado! – que ela o colocasse rindo. O que você acha? Você não concorda comigo? Ou você acha que Jesus ria, ainda mais em uma situação dessas?’
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___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ‘Posso saber por que você achou graça de mim?’ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ‘Esse povo se diz amigo da gente, mas apronta cada uma, não é verdade? Você tem amigos? Você tem carr-egadores? Me diga o nome deles e um pouco como eles são. Com certeza eles já te ‘aprontaram’ alguma! Conta aí! ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ___________________________________________________________ ‘Eu te contei um pouco de como eu sou. E você, como é? É forte e se dá ao respeito, como eu? É fraco, como o Jonas? É mais para conciliador, como o Tadeu? Se você for rico ou importante (o rico é sempre importante e o importante é sempre rico, não é?), mas se você for
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rico ou importante, não esqueça de anotar seu tele-fone para nos conhecermos melhor. Me conta aí o que acabo de perguntar, vai!’
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