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Algumas dimensões de gênero no bumba meu boi maranhense: reafirmação da mulata brasileira? 1

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Academic year: 2021

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Gênero, feminismo e cultura popular. ST 56 Lady Selma Ferreira Albernaz

UFPE

Palavras-chave: Gênero, cultura popular, identidade nacional

Algumas dimensões de gênero no bumba meu boi maranhense: reafirmação da “mulata brasileira”?1

Este trabalho analisa a participação de mulheres nos diferentes “sotaques”2 do bumba meu boi maranhense, num contexto de afirmação de identidade regional frente à nação. A pesquisa foi realizada num contexto de afirmação de identidade regional frente à nação, a partir do bumba meu boi. Constitui-se de um recorte dos resultados de tese de doutorado baseada num conjunto de dados coligidos em São Luís-MA, durante as festas juninas de 2001/20023. Considera cultura popular na sua definição local, analisada numa visada interdisciplinar. O aporte de gênero privilegia teorias que o inter-relaciona com raça e classe4, acrescentando a dimensão de geração, empiricamente relevante. As análises sobre corpo baseiam-se em Bordo (1997)5, na sua crítica para abordagens com ênfase apenas nos significados, que parecem apagar a dimensão objetiva dos corpos e das relações sociais. Dessa forma, a autora contribui para um equilíbrio analítico entre cultura e sociedade, corpo e representação/significado, e não apenas a negação de dicotomias. No que se refere à identidade, parte do suposto analítico de que a mesma se constitui na relação entre narrativas de afirmação de diferença frente a outros; bem como de experiências culturais em distintos âmbitos, num processo de disputas simbólicas, políticas e econômicas entre agentes socialmente desiguais.

No Maranhão, atualmente, cultura popular é um dos principais símbolos de afirmação de identidade regional frente à nação, e dentro dela o bumba meu boi assume uma posição de centralidade (Albernaz, 2004). A manifestação é percebida localmente como tradicional, porque tem uma longa permanência no tempo com uma reprodução de conteúdos semelhantes, mas que permitem mudanças resultantes de disputas e negociações entre vários agentes, por exemplo, brincantes, platéia, promotores culturais etc6.

Dentro desta manifestação, posições de homens e mulheres são claramente demarcadas, a partir da inter-relação entre marcadores de gênero, raça, geração e classe. Estas posições se configuram como relações mais desiguais que igualitárias, revelando-se no controle de atitudes e comportamentos e no acesso ao poder pelas mulheres. Para se manter tais posições elas são legitimadas e sancionadas através de significados e representações de gênero, junto com outros marcadores sociais – numa dinâmica que se retroalimenta. Vale salientar que o bumba meu boi, enquanto cultura popular, é um lócus de produção de narrativas, mas também de mediação de

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experiência de identidade regional, por meio dos quais níveis diferentes de pertencimento (bairro, cidade, estado e nação) são articulados7. O bumba meu boi, ao funcionar dessa maneira, elabora sentidos e práticas de gênero de grupos específicos e, simultaneamente, ratifica-os, ou os põe em disputa, com aqueles da sociedade em que estes grupos se inserem. Dessa forma, o bumba boi torna-se um fenômeno privilegiado para analisar gênero, em inter-relação com outros marcadores, de maneira a perceber como desigualdades neste campo são mantidas, criadas e recriadas, bem como a possibilidade de relações mais igualitárias, tanto dentro de grupos específicos, quanto na sociedade em que eles se situam8.

Tradicionalmente, a participação das mulheres no bumba meu boi era restrita à posição de acompanhantes dos homens personagens da ‘brincadeira’9 durante as apresentações. Outra forma de participação permitida era a confecção das indumentárias e/ou sua guarda e preservação, ou ainda nas tarefas relativas à produção de alimentos em algumas festas. Esta situação foi lentamente alterada até que elas assumissem o lugar de ‘brincantes’ o que é atribuído, na literatura sobre o boi maranhense, às modificações das relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira10. Entretanto, a entrada das mulheres como brincantes no bumba boi, não modificou a posição de liderança dos homens como ‘donos’ do bumba meu boi, tanto no processo de formação e organização do grupo, como no momento de realização das apresentações. Portanto, os homens detêm grande parte do controle do conhecimento e da organização do grupo, de tomada de decisões, e dos retornos financeiros e sua distribuição.

Estas considerações tornam-se mais relevantes, na medida em que cultura popular vem sendo alvo de ações governamentais de política cultural e de desenvolvimento do turismo, como meio de promoção de cidadania e de igualdade socioeconômica, especialmente desde a segunda metade dos anos 1990. As ações governamentais propiciaram uma maior circulação, visibilidade, valorização e aceitação da cultura popular, sedimentando um processo de substituição de conteúdos de cultura erudita de afirmação de identidade maranhense, em favor de conteúdos populares, que vinha ocorrendo deste a década de 1970 (Albernaz, 2004). Estas ações contribuíram para modificar a forma como outras classes sociais se relacionam com o bumba meu boi e outras danças populares, deslocando-se da posição de público para se tornar ‘brincante’. Nesse processo setores de classe média se destacam, notadamente as mulheres11, que passam a integrar esses folguedos de uma forma que causa polêmica, porque desafiam conteúdos tradicionais e recentes associados à cultura popular maranhense, e por novos sentidos de gênero, referentes ao lugar e ao tipo de mulher, adequados para cada sotaque de bumba boi.

Passo agora a analisar a forma de participação das mulheres no sotaque de orquestra, originário das cidades de Rosário e Axixá12. Inicialmente, vale notar que o boi de orquestra vem se tornando o pivô de polêmicas na cidade, sendo acusado de parintinização. Este termo significa que

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o boi maranhense estaria perdendo suas características tradicionais ao se assemelhar, na indumentária, com o Boi de Parintins-AM, por usar brilho e plumas em excesso13. O sotaque de orquestra, por conseguinte, destaca-se na relação entre os bois como aquele que mais têm trazido elementos novos, considerados possíveis ameaças à continuidade da tradição.

Outro tema freqüente de discussão é a rigorosa seleção das índias dos bois de orquestra e as inovações nos arranjos de cabeça, semelhantes aos adereços das passistas das escolas de samba cariocas. Sem que suscite discussões locais, mas que me chamou muito a atenção, é o contraste de tamanho das indumentárias das índias desse sotaque com os demais. Os saiotes e sutiãs, enfeitados de plumas ou com fios de canutilhos são muitos pequenos, destacando as formas dos corpos das mulheres. Na assistência diziam-me que elas eram selecionadas pelas formas dos seus corpos: cintura acentuada, pernas torneadas e nádegas empinadas; correspondendo ao que se tornou estereótipo do corpo da mulher brasileira. Acrescentaria das minhas observações que elas se assemelham em altura, no tom da pele e comprimento dos cabelos. Tendem para o tom de pele mais claro, porém bronzeado, cabelos lisos ou levemente ondulados e na altura da cintura, e são de estatura mediana. Em geral usam meias de nylon, no tom da pele, para uniformizar a cor e acentuar o torneado das pernas. A idade é outro critério de seleção, são moças jovens, que aparentam de 15 a 20 anos. Os traços dos rostos – pela idade, cor da pele e comprimento dos cabelos – ficam assemelhados, ainda mais pelo adereço da cabeça, que mesmo podendo variar na cor, tem formas semelhantes. Neste boi, as moças de pele mais escura ou de corpo mais cheio, dançam como rajados, usando calça e camisa de mangas compridas, sobrepostas por gola e saiote bordado. As índias, situadas no centro do conjunto de brincantes, ganham mais destaque ainda.

Durante a apresentação de um boi de orquestra, em diferentes ocasiões que observei, o público, que se encontrava disperso nas barracas, bares e arquibancadas, movia-se para formar uma roda, compacta e numerosa, em volta da brincadeira. Os comentários mais freqüentes que ouvia era sobre as índias, as indumentárias e a similitude de corpos entre elas, enfatizando-se a rígida seleção a que eram submetidas para dançar no boi. Havia elogio para a beleza das índias, mas havia também críticas e ironias sobre o exagero das plumas e brilhos. A ambigüidade sugeria a dificuldade gerada na classificação do boi, diante das transformações que vêm ocorrendo. Parecia que o público não sabia como operar com a seleção das índias, semelhante a um concurso de beleza, quando, até a década de 1970, poucas mulheres brincavam boi14. O público também parecia surpreso e admirado com a posição na estratificação social dos brincantes dos bois de orquestra, principalmente os mais recentes, que se originaram em bairros de classe média da cidade de São Luís15.

O boi de orquestra evidencia uma diferença entre as suas índias, homogeneizadas a partir de um padrão estético rígido, com aquelas dos outros sotaques, as quais são mais heterogêneas e a beleza não é percebida como um critério para selecioná-las. Esta forma de seleção das índias do boi

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de orquestra revela uma classificação das mulheres, baseada numa hierarquia de cor da pele, onde o mais claro predomina sobre o mais escuro. Também elabora padrões de beleza, que podem ser transpostos como parâmetros para avaliar as mulheres no Maranhão, reforçados por símbolos que definem o que devem ou podem ser os maranhenses16. Por sua vez, o empenho das mulheres em serem selecionadas, sugere que participar deste boi confere prestígio, e a dança das mulheres jovens do público, imitando as índias, indica uma legitimação dos padrões que vêm sendo elaborados.

Como estas mudanças ocorrem num contexto de políticas para o turismo, como dito acima, elas levantam outras questões, por exemplo, sobre a relação entre turismo e reforço de estereótipos femininos que representam uma identidade nacional. Estes estereótipos, segundo os estudiosos deste tema, além de serem reafirmados por políticas oficiais, contribuem para o incremento do turismo sexual, aumentando a situação de desigualdade das mulheres, de acordo com raça, geração e classe17. Pude observar que, em São Luís, a seleção de mulheres para participar como personagem ‘índia’, no boi de sotaque de orquestra, modificou-se na direção de exigir delas uma estética corporal semelhante ao estereótipo da mulher brasileira mestiça (cada vez de tons de pele mais clara) e sensual (Correa, 1996). Esta estética estava ausente nos outros sotaques, e não constava na literatura local sobre o bumba boi descrições que apontassem sua ocorrência no passado. Como disse acima, a forma de selecionar as índias causa polêmica, e questiona-se o controle sobre o corpo das mulheres que ela implica, mas o motivo maior da polêmica não é esse. A “beleza das índias” tem atraído mais público para este tipo de boi, o foco da polêmica é relativo à estética do folguedo: tipo de adereços, formato das roupas, coreografia executada, que estariam desafiando os códigos tradicionais sobre o que é ou não adequado para o bumba meu boi deste sotaque, evidenciando uma disputa simbólica pelos conteúdos da tradição.

As políticas de turismo e cultural estipulam os cachês levando em conta o público das manifestações, o fato do boi de orquestrar atrair público por repetir um estereótipo de mulher brasileira relativamente aceito, caberia perguntar, em que medida este fato poderia se tornar regra para escolher as ‘brincantes’ nos grupos de boi dos outros sotaques18? Note-se ainda que, conforme constatei, nos outros tipos de bumba boi a corporeidade de suas integrantes sugere sua regulação através da estética do grotesco, onde as protuberâncias e orifícios ainda não foram submetidos à idéia de belo do renascimento, momento de separação entre a baixa e alta cultura, entre outras causas pelo controle do baixo corporal (Bakhtin, 1987)19. Este fato, além de reforçar a hierarquia entre os corpos que, na sociedade ocidental, tem na posição superior o modelo do corpo branco (Bordo, 1997), pode-se desdobrar para aumentar a desigualdade entre mulheres em termos de classe e de raça, como também de geração, pois as índias do boi de orquestra são predominantemente jovens. Portanto, numa situação em que o incremento da participação das mulheres nos bois poderia conferir autonomia, por abrir novos espaços de circulação para elas, ao ser analisado

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considerando-se gênero, numa interface de raça, classe e geração, sinaliza para um aumento de disputas entre elas que podem acirrar ou criar desigualdades onde parecia não haver. Bem como, contém indicativos de não alterar as relações desiguais entre mulheres e homens, tanto no nível das relações e práticas sociais, como no nível das representações.

Por sua vez, como estas modificações alteraram pouco a posição de liderança dos homens à frente dos grupos de bumba boi, pode-se perguntar se uma entrada deste tipo, não contribuiria para manter ou aumentar, desigualdades socioeconômicas das mulheres, que as políticas de turismo e cultural procuram resolver20. Em São Luís, os grupos de cultura popular disputam, não apenas os sentidos de tradição que legitimam conteúdos de afirmação de identidade, mas também concorrem pelos recursos e financiamentos governamentais e privados para as manifestações de cultura popular. Se as mulheres são aceitas como ‘brincantes’ dos grupos populares, elas não parecem ocupar posições dentro dos grupos que sinalize para uma maior igualdade de poder, nem acesso aos financiamentos governamentais.

Portanto, os resultados constatam aumento da participação de mulheres no bumba boi, paralelo à permanência de uma classificação tradicional dos personagens deste folguedo de acordo com gênero. Se esta classificação permanece, entretanto, as mudanças recentes no sotaque de orquestra, conforme apontado acima, parecem reconfigurar qualidades requeridas, especialmente de estética corporal, para que mulheres participem como “índias” do bumba meu boi. Reconfiguração que converge para estereótipos da “mulher brasileira”, anteriormente ausentes na seleção de brincantes, criando novas desigualdades de gênero e sedimentando as já existentes. Simultaneamente, colabora para reforçar aqueles estereótipos no cenário local, particularmente na cultura popular, que media e afirma identidade regional no cenário da nação.

1

Uma versão anterior desse texto foi apresentada no Encontro da REDOR/REDEFEM em Salvador-BA dez, 2005. 2

Categoria local de tipos de bumba-meu-boi do Maranhão, denominados conforme instrumento principal ou cidade/região de origem, a partir do ritmo, indumentária e coreografia. Principais sotaques: 1. zabumba ou Guimarães (cidade de origem); 2. Matraca, ou Boi da Ilha (Ilha de São Luís); 3. Orquestra; 4. Pindaré, ou Baixada (região).

3

ALBERNAZ, L. S. F. O “urrou” do boi em Atenas: instituições, experiências culturais e identidade no Maranhão. Campinas, Tese de Doutorado em Ciências Sociais-UNICAMP, 2004.

4

CORRÊA, Mariza.. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu. (6-7) 1996: pp. 35-50. FRIEDMAN, Susan, “Beyond white and other: relationality and narratives of race in feminist discourse. SIGNS: Journal of women in culture and society, 21(1). 1995. PISCITELLI, Adriana. “’Sexo tropical’: comentários sobre gênero e “raça” em alguns textos da mídia brasileira”. In: Cadernos Pagu. Campinas, (6-7), 1996. pp. 9-34

5

BORDO, Susan. “‘Material Girl’ – the effacements of post-modern culture”. In: Roger N. Lancaster & Micaela di Leonardo (eds.) The gender/sexuality reader, Routledge, N. York & London. 1997.

6

Cultura popular é um conceito polêmico com enfoques teóricos e disciplinares distintos, entretanto, é possível perceber uma divisão de cultura popular como tradicional ou contemporânea. Ver: CARVALHO, J. J. “O lugar da cultura tradicional na sociedade moderna”. In: Seminário folclore e cultura popular: as várias faces de um debate. (2ª ed.) Rio de Janeiro, Funarte, CNFCP, 2000. CARVALHO, R. L. S. de. “Folclore e cultura popular uma discussão conceitual”. In: Seminário folclore e cultura popular: as várias faces de um debate. (2ª ed.) Rio de Janeiro, Funarte, CNFCP, 2000. BRANDÃO, Carlos. O que é Folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982. ARANTES, Antônio Augusto. O

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que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1981. HALL, Stuart. “Para Allon White”. In: _____. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representações da UNESCO no Brasil. 2003a. pp. 219-244. HALL, Stuart. “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representações da UNESCO no Brasil. 2003 b. pp. 335-349. Por sua vez este processo de reprodução pode ser analiticamente avaliado a partir de SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. SAHLINS, Marshall. “Experiência individual e ordem cultural”. In: _____. Cultura na prática. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004a pp. 301-316. SAHLINS, Marshall. “O retorno do evento outra vez”. In: _____. Cultura na prática. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004b. pp. 317-378.

7

Ao circular por diferentes espaços as manifestações permitem aos seus integrantes perceber como seu grupo de origem se situa frente aos demais na sociedade em que se situam, quais as relações adequadas entre eles. Simultaneamente, traduz os significados de afirmação destes grupos, e os níveis de pertencimento de seus membros. Baseio-me na definição de Cunha (CUNHA, Manuela Carneiro da. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução”. In: Mana. 4(1):7-22, 1998.) para tradução, (uma nova maneira de por em relação níveis, códigos, pô-los em

ressonância, em correspondência, de modo que este mundo novo ganhe a consistência desejada para que se torne evidente. Cunha 1998:14). Thompson (THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular

tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.); Burke (BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.); Bakhtin (BAKHTIN, Mikhail. M. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília, HUCITEC/UNB, 1987), buscam entender as significações da cultura popular, como uma expressão cultural que se contrapõe a outras classificações culturais, ou outras dimensões estéticas – Thompson focando a classe, Burke a relação entre popular e erudito e Bakhtin concepções estéticas classificadas como alta e baixa cultura. Estes autores norteiam a análise que faço de cultura popular. Considero que, nos três casos, de maneira distinta, os autores evidenciam o caráter público de cultura popular e sua circulação, de maneira que traduz códigos de diferentes grupos postos em relação desigual num mesmo contexto social. Ver Hall (2003a) para uma interpretação da obra de Bakhtin. Nesta análise utilizo a noção de experiência de Thompson (THOMPSON, E. P. “O termo ausente: experiência”. In _____. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de janeiro, Zahar Editores, 1981. p. 180-201.), especialmente para analisar relações delimitadas por posições estruturadas socialmente. Levo em conta as criticas de Scott (SCOTT, Joan. “Experiência”. In: LEITE, Alcione et al. (org). Falas de genero: teorias, análises, leituras. Florianópolis, Editora Mulheres, 1999. pp: 21-56.), para analisar a dimensão discursiva da experiência e para evidenciar as inter-relações de raça e gênero.

8

Gênero e cultura popular parece ser uma articulação pouco recorrente no Brasil. Tomando como referência “Cadernos Pagu” e “Estudos Feministas”, revistas pioneiras, e ainda hoje relevantes, na divulgação de pesquisas sobre gênero no Brasil, nota-se poucas investigações que tratem de bens culturais considerados como cultura popular, na perspectiva de gênero. Consegui localizar dois artigos, ambos na “Estudos Feministas”: Bartra (BARTRA, Eli. Arte Popular y

Feminismo. Estudos Feministas. 8(1) 30-45:2000) discute a possibilidade de uma estética específica das mulheres na

arte popular considerando a relação de uma artesã com a produção erudita de Frida Kahlo; Matos (MATOS, S. de M.

Artefatos de Gênero na arte do barro: masculinidades e femininidades. Estudos Feministas. 9(1) 56-80:2001) analisa

transformações de gênero a partir do ingresso de homens, depois da valorização econômica, de uma arte cerâmica praticada por mulheres. Nos encontros nacionais/regionais promovidos por redes de acadêmicas feministas e estudiosas de gênero, são recorrentes grupos de trabalho sobre literatura ou arte, porém apenas este ano, exatamente no encontro da REDOR/REDEFEM acima referido, houve um GT sobre cultura popular (que no final suprimiu popular de sua denominação). Este Simpósio 56 do Fazendo Gênero 7 (2006), até onde sei, é uma segunda iniciativa em nível nacional para contemplar esta interface, juntando-se o tema feminismo.

9

Termo utilizado pelos integrantes de folguedos para designar todo o grupo, ou para indicar a apresentação (“vamos começar a ‘brincadeira’”). O termo ‘brincante’, citado mais adiante, designa os membros do grupo.

10

Ver por exemplo: ARAÚJO, Maria do Socorro. Tu contas! Eu conto! São Luís, SIOGE, 1986. e CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o Bumba-Boi do Maranhão, um estudo de tradição/modernidade na cultura popular. São Luís, s.n. 1995.

11

Mais claramente de classe média baixa, segundo a definição de Pierucci (PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo, USP, Curso de Pós-graduação em Sociologia; Ed. 34, 1999): pessoas que tem a mesma renda, mas não compartilham, com a classe media, o valor dado à formação intelectual para exprimir este pertencimento.

12

AZEVEDO NETO, Américo. Bumba-meu-boi no Maranhão. (2a. ed. Amp.). São Luís, ALUMAR, 1997. 13

Selma Figueiredo assina reportagem no jornal O Estado do Maranhão (27/06/2001, caderno Alternativo, p. 1) que trata desta questão e compara as inovações dos bois de orquestra com a resistência dos bois de matraca e pindaré em manter a tradição. No mesmo jornal Jomar Moraes (presidente da AML) intitula A paritinização do bumba-meu-boi a sua crônica semanal onde critica a diluição das fronteiras entre os sotaques, ao copiarem indumentárias entre si, e os riscos de contaminação dos ‘grupos naturais’ pelos modismos dos parafolclóricos – outra denominação para os grupos alternativos. (27/06/2001, Alternativo, p. 8).

14

Canjão (CANJÃO, Isanda Maria Falcão.Bumba-meu-boi, o rito pede “passagem” em São Luís do Maranhão. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS, Porto Alegre, 2001.) destaca que as mulheres que iniciaram a participação no boi de matraca como matraqueiras recebiam uma classificação negativa ligada ao exercício da sexualidade, posto que as regras cotidianas são quebradas durante o ciclo das apresentações do bumba boi.

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Marques (MARQUES, Francisca Éster de Sá. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumba-meu-boi. São Luís, Imprensa Universitária, 1999.) expõe sua experiência de brincante no boi de orquestra do interior do Maranhão e destaca que sua posição de classe média e originaria da cidade de São Luís provocou estranhamento entre os brincantes, que buscavam entender porque ela estava ali. Também, foi motivo de estranhamento na cidade de São Luís, ela, enquanto mulher, dançar boi considerado mais adequado para os homens.

16

Aqui fica evidente a dimensão de gênero que perpassa a organização do boi, que o boi de orquestra permite revelar. No caso maranhense liga-se com a dimensão de raça, semelhante ao que ocorre no Brasil na formulação da identidade nacional. A este respeito veja-se Corrêa (1996), sobre a criação da mulata e sua relação com identidade nacional. Ver também Piscitelli (1996) sobre gênero e raça na mídia brasileira. Ver também: Bordo (1997), mais especificamente para a relação entre padrões de beleza e reforço da desigualdade racial entre negros e brancos, a partir da concepção atual do controle sobre a reformulação do corpo que reforçam os significados de beleza atribuídos aos brancos, ou seja, quando as pessoas procuram este tipo de recurso da medicina e estética corporal, querem parecer com pessoas brancas.

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Sobre a mulher mestiça e na identidade nacional, ver Corrêa (1996) e Piscitelli (1996). Sobre gênero e turismo sexual LEHMANN-CARPZOV, A. R. Turismo e Identidade: construção de identidades sociais no contexto do turismo sexual entre alemães e brasileiras na cidade do Recife. Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPE. Recife, 1994; e mais recentemente PISCITELLI, Adriana. “Imperial Visions: gender and sexuality discussed in the context of international Sex tourism in Fortaleza, Brazil”. Paper prepared at the meeting of Latin American Studies Association, Washington DC, 5/8 august, 2001.

18

Segundo Burke (1989) a cultura popular contém formulas que se repetem, mesmo que variem o conteúdo. Na medida que uma nova criação é legitimada ela é incorporada pela tradição.

19

Hall (2003b) considera importante a continuidade da cultura popular, mesmo criticando este termo, como forma de exprimir identidades subalternas e conteúdos específicos, expressos através da gestualidade, dança música, que possibilitariam uma posição mais autônoma dos negros na relação com os brancos no processo da diáspora.

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