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Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia, Lisboa: Editorial Presença, 1992,

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O deserto no pensamento de Deleuze e Guattari Introdução

A palavra "deserto" surge repetidas vezes nos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia, O

anti-Édipo e Mil planaltos. Esta aparece em referência a um espaço ou local geográfico chato e inerte

no qual algo de pleno e vital acontece. Em nenhum dos textos é desenvolvida uma teoria do deserto nem este surge como objecto de análise específico. Podemos afirmar que o "deserto" desaparece tal como aparece: sem aviso e rasto explicativo. Contudo, o modo recorrente com que Gilles Deleuze e Félix Guattari trazem o “deserto” ao texto e a forma sistemática como este se associa a aspectos fundamentais da sua filosofia garante-lhe uma espessura conceptual que justifica a nossa atenção. Podemos assim partir da hipótese de que o seu uso pontual, mas incisivo, pode elucidar a forma como o pensamento de Deleuze e Guattari faz jus àquilo que, segundo eles, é o fundamento do próprio pensar filosófico, isto é, o modo como este imana da sua relação com a terra.1 Se para

Deleuze e Guattari toda a filosofia é uma geofilosofia, só eles vão levar tal tese até ao seu limite mais extremo pois aquilo que pronunciam para a filosofia em geral não é mais que o limiar que, dentro da sua própria filosofia, enquadra o pensamento. Segundo Deleuze e Guattari, o pensamento – filosófico, artístico e científico – engendra-se entre a terra e o território.

Espaço liso e estriado

É no Mil planaltos que encontramos uma noção geográfica do deserto mediante a sua qualificação. Deleuze e Guattari dizem-nos que o deserto, tal como a estepe, são espaços onde o horizonte que separa a terra e o céu não existe e a percepção de perspectiva e contorno, bem como a orientação e movimento segundo um sistema de referência fixo, não encontra lugar. Ao contrário, no deserto, sistemas de localização e direcção constroem-se segundo uma topologia baseada em conjuntos dinâmicos de relações fornecidas pelo movimento do vento e as ondulações e som da areia. O deserto manifesta-se como lugar sonoro e háptico e não tanto um espaço óptico.2 No segundo

volume de Capitalismo e esquizofrenia, esta breve referência surge no contexto da discussão do aspecto espácio-geográfico daquilo que Deleuze e Guattari denominam por máquina de guerra.3

Não nos vamos deter a explicar o conceito de máquina de guerra tal como aparece no Mil

planaltos, mas importa ter em conta que a vertente espacial desta está intimamente ligada à teoria

do espaço aí formulada e que a qualificação estético-espacial do deserto resulta da colagem deste a um dos termos da oposição que fundamenta esta.

Deleuze e Guattari elaboram um conceito de espaço que se articula através do

1 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia, Lisboa: Editorial Presença, 1992, 77-101.

2 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie, Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, 473-474.

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estabelecimento de uma clara oposição entre o espaço liso e o espaço estriado. O deserto é um espaço liso por excelência que implica a construção de um lugar que se insere num espaço ilimitado por via da conexão diferencial de velocidades e direcções variáveis. À primeira vista, a apresentação da distinção entre espaço liso e estriado é concebida como oposição simples e aparentemente simétrica. O espaço liso é um espaço aberto que se constrói topologicamente mediante conjuntos de vectores ou direcções em contínua variação. Por outro lado, o espaço estriado é fechado e suporta-se num sistema métrico e dimensional que reduz localização a posicionamento. O espaço liso é intensivo e erige-se através da ligação de velocidades e distâncias indivisíveis, isto é, velocidades e distâncias que só se dividem alterando as relações internas que as sustentam. Ao contrário, o espaço estriado é extensivo, mensurável e mensurador de movimento segundo um sistema de referência fixo e exterior ao espaço dado. Um é informe e isotópico e engendra-se através da distribuição de fluxos; o outro, é homogéneo e constitui-se mediante a divisão dum espaço abstracto.

Como já foi sugerido, esta distinção efectua-se segundo um esquema estético. O espaço liso pressupõe uma visão "táctil", de curta distância que estabelece zonas de vizinhança através de trajectórias de ligação entre pontos não fixos, sendo o espaço estriado baseado na visão perspéctica de longa distância. Se o espaço estriado é limitado por um horizonte e constituído visualmente pela relação entre figura, fundo e centro, o espaço liso é não-pictorial e infinito: sem horizonte, fundo ou ponto central. De forma esquemática, esta é a distinção que se opera entre os dois espaços.

Considerada sob este ângulo, esta é sem dúvida uma oposição simples, senão simplista, cuja simetria formal não nos leva muito longe. Quem está familiarizado com a obra de Deleuze e Guattari saberá que a apresentação de jure de oposições redutoras é o quadro lógico a partir do qual se parte para toda uma economia hidráulica de libertação e contenção de fluxos vitais. Na verdade, Deleuze e Guattari afirmam que o espaço estriado e liso existe apenas e sempre como mistura.4 O

seu modo de existência actual faz-se através das misturas que ocorrem por via de dois processos verdadeiramente antagónicos: a estriação do espaço liso por tradução e o alisamento do espaço estriado por reversão. Mais que espaços categoricamente fixos, estes são, acima de tudo, processos actuais de condicionamento mútuo e desenvolvimento relacional. Assim, o espaço liso é condição e possibilidade de estriação do espaço, assim como o espaço estriado é condição e possibilidade de alisamento espacial. Para Deleuze e Guattari, o que importa é que este condicionamento e possibilidade é fundamentalmente desigual para espaço liso e estriado, visto que cada um opera sob condições diferentes e funciona de forma divergente. Quer dizer que operações de estriação e de alisamento espacial não são equivalentes nem redutíveis uma à outra. Como operações espaciais, eles resultam de práticas concretas, isto é de modos de viver no espaço que são, acima de tudo, maneiras de o produzir. Mesmo quando o espaço se institui mediante um quadro intelectual e

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universal, por exemplo segundo a axiomática matemática ou geométrica, ele é ainda produto de um modo de vivência espacial. Pelas mesmas razões, as qualidades sensoriais do deserto acima referidas são pressuposto e resultado experiencial de uma maneira de viver o espaço e não se devem dissociar da sua vertente prática. Por agora, bastar-nos-á ter em conta que o espaço oscila entre um alisamento absoluto e um enrugamento totalizador e que cabe ao ser actuante no espaço criar os movimentos que se aproximam ou distanciam de um dos extremos desse pêndulo. A este respeito, importa notar que no Mil planaltos este dualismo se desdobra necessariamente sobre um plano de prática espacial. Assim, a construção do espaço liso e estriado está respectivamente ligada a modos de agir nómadas e sedentários. A propósito do tema do presente texto, Deleuze e Guattari referem o nomadismo tribal efectuado no deserto (e na estepe) como forma de vivência espacial que é, ao mesmo tempo, produto e produtor do espaço liso. O nómada é aquele que distribui, ocupa, habita e segura o espaço liso perante o constante condicionamento e ameaça sedentária.5

Começámos por introduzir uma oposição simples e simétrica entre espaço liso e estriado. Por via da sua vertente processual, complicámos depois a correlação entre eles afirmando que esta é desigual e que ambos os espaços são não-coincidentes. Sob a noção de processos espaciais e nomadismo fizemos referências pontuais à prática – acção espacializante – produção – produção do espaço – e também à vivência espacial. Ainda que resumidamente, expusemos complexidades de relação e declarámos divergências irreconciliáveis de uma polaridade fundamental. Contudo, parece que nunca chegámos verdadeiramente a abandonar a fixidez da distinção inicial, ainda que agora esta se possa articular mediante a oposição entre o modo de operar nómada e sedentário. Uma leitura atenta da relação entre espaço estriado e liso, tal como está por várias vezes exemplificada no Mil planaltos, leva-nos a constatar que quanto mais se mistura e se complica a conexão mútua entre eles, mais o dualismo que os sustenta sai reforçado, como se cada caso particular fosse a instanciação de uma polaridade primária inabalável.

Antes de mais, sugerimos que a sobreposição entre modos de viver e modos de ser origina e sustenta a oposição que divide o espaço em liso e estriado. É portanto a ontologia da vida, fundamental no projecto filosófico de Deleuze e Guattari, que cinde o espaço em dois planos distintos e que concebe nomadismo e sedentarismo através de uma identificação primeira entre o ser e a vida. Torna-se claro que a oposição formal simples anteriormente apresentada entre espaço liso e estriado não é premissa lógica para a articulação de misturas actuais, embora a sua separação categórica desempenhe um papel operacional importante no Mil planaltos. Se dizemos que os espaços impuros existentes reafirmam um antagonismo que os fundamenta, não é porque encontramos no pensamento de Deleuze e Guattari um dualismo fundado em duas substâncias originárias, mas porque a ontologia vital aí desenvolvida se ergue face a uma maneira de pensar (e agir) que se lhe opõe. Em rigor, o fosso cavado entre os vários dualismos que atravessam os dois

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volumes de Capitalismo e esquizofrenia assenta numa oposição ontológica que perpassa toda a ontologia deleuziana. Talvez a mais consistente conceptualização da cisão ontológica que sustenta o pensamento de Deleuze – e que se vai re-problematizar no trabalho colaborativo com Guattari – encontramo-la em Diferença e repetição. Neste livro, Deleuze enceta uma severa crítica ao pensamento representacional que se baseia antagonicamente no desenvolvimento de uma ontologia do pensamento enquanto diferença. Não cabe aqui a análise da ontologia aí formulada, de si bastante complexa. Em jeito de máxima, limitar-nos-emos a apresentar a tese que lhe está subjacente: o ser é diferença e o pensamento é o ser da diferença, já que a identificação entre estes ocorre no e para o pensamento. Colocam-se pois dois modos opostos de pensar: um “representacionalista” e outro diferencial. Se este último põe em marcha a conexão ontológica entre a diferença e a vida, àquele corresponde a sua «imagem dogmática» que impreterivelmente o acompanha. De forma esquemática, sugerimos que a ontologia vital de Deleuze se fundamenta na ontologia diferencial que se gera no pensamento. Para o presente estudo importa ter em consideração que a ontologia da diferença desenvolvida em Diferença e repetição assenta em parte numa teoria da intensidade (virtual), sendo que esta só se auto-diferencia desdobrando-se sobre e envolvendo o mundo actual e extensivo.6 Podemos concluir agora que a distinção entre o espaço

liso e o estriado é, desde logo, desigual e que o fosso que os separa é ontologicamente irredutível. Espaço liso, vidas e produção nómada; em última instância, estes expressam o lado diferencial e anti-representacional que o pensamento põe em marcha na sua relação com o presente vivido. De volta ao nosso tema. Chegamos assim a uma concepção do deserto que se abre entre a ideia de espaço, spatium virtual e intensivo, e os desertos actuais que o instanciam. Por um lado, o deserto refere-se a locais concretos que são espaços desérticos do ponto de vista geográfico; áreas áridas e hostis à vida complexa, cuja lisura é, por paradoxo, o lugar da actualização e produção vital imanente ao ser nómada. Por outro lado, ele assinala uma linha conceptual que já não se refere a este ou àquele deserto, mas à ontologia do espaço que a auto-potenciação da vida pressupõe. Se no primeiro sentido o deserto existe sempre em composição e é do meio dessa mescla que práticas de vivência nómada e sedentária se gladiam, só no plano virtual é que se pode pensar o modo pelo qual a lisura do espaço, neste caso um espaço absolutamente liso, é ele próprio potência e condição de produção vital. Podemos legitimamente referir um deserto-pensamento que se actualiza em vários desertos tópicos e actuais. Será contudo errado dissociar o deserto actual e extensivo do deserto virtual e intensivo, visto que eles são as duas faces do mesmo movimento de singularização da intensidade. Quando sugerimos que só o deserto pré-existente virtual pode explicitar uma posição

6 Para a referida teoria da intensidade cf. Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris: Presses Universitaires de France, 1968, 299-311. É de notar que nos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia o conceito de intensidade será consideravelmente reformulado. Mais adiante veremos como este se liga a um plano de intensidade-zero a partir do qual a individuação vital acontece.

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tão contra-intuitiva como a que liga a criação vital ao espaço onde a vida rareia, não o fazemos em nome de um qualquer espiritualismo ascético. A dificuldade de surgimento de vida no deserto é, sem dúvida, um teste à sua força. A este respeito, Deleuze e Guattari afirmam, comparando o nómada ao migrante, que este foge quando o meio se torna hostil ou amorfo enquanto que o nómada se agarra a esse espaço árduo como um desafio a levar a cabo.7 E contudo, tanto no O anti-Édipo

como no Mil planaltos o deserto nunca aparece como local verdadeiramente ermo, ou melhor, a sua manifesta aridez não se traduz numa esterilidade efectiva. Ao invés, há sempre uma multidão de intensidades que ocupa, e ocupará, o espaço desértico. Através da ligação do deserto ao espaço liso e à prática nómada, Deleuze e Guattari vão, por repetidas vezes, posicionar a plena densificação vital do deserto como um problema de povoação e ocupação do espaço. Não estamos perante a noção de um espaço hostil à vida onde paradoxalmente esta brota em toda a sua plenitude, mas sim diante dum problema de povoação espacial só concibível através da ideia paradoxal de um espaço absolutamente pleno mas ainda por preencher. Por um lado, o deserto é formulado como local que só pode ser ocupado por um corpo colectivo, mas ainda por vir; por outro lado, ele é um espaço já plenamente povoado por uma multidão virtual.8 Constatamos assim que o problema que se abre

entre a vida e o deserto não se coloca em termos de aridez e plenitude vital porque «a questão é menos a da abundância ou da rareza, da fonte ou da seca (secar é também um fluxo), do que a do codificável e do não-codificável» (Deleuze e Guattari, 1995: 168). A questão da abundância e rareza não se coloca porque as próprias noções de aridez e completude vital se desligam do seu plano de manifestação, já que o deserto só pode ser posicionado como local potenciador de vida por via da sua plena ocupação por intensidades virtuais mas nem por isso menos reais; ele é um espaço por povoar apenas através da sua povoação virtual e intensiva. Só podemos clarificar este novo paradoxo, em que o deserto está por ocupar por via da sua ocupação plena, se o equacionarmos com a produção do real, isto é, pensando-o como condição e potência real e virtual de modos de viver actuais.9 Este é um problema que nos leva, por fim, a uma concepção do deserto enquanto espaço

real-virtual de uma vida por vir.

O corpo sem órgãos

No O anti-Édipo o deserto é quase exclusivamente relacionado com o que Deleuze e Guattari denominam por corpo sem órgãos, usando por vezes a expressão "deserto do corpo sem órgãos".10

Embora se desdobre na teoria do espaço aí desenvolvida, esta primeira acepção do deserto permanece intacta no Mil planaltos. Podemos desta forma afirmar que o deserto é um corpo sem

7 Cf. Mille plateaux, 471.

8 Relativamente à conexão entre o deserto e a questão da ocupação e povoação do espaço cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, 396; Mille plateaux, 188, 307, 380, 419, 420, 467, 469- 470, 604, 631.

9 A respeito da produção do real no deserto cf. O anti-Édipo, 91-92. 10 Cf., ibid., 136, 138, 168.

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órgãos e o espaço liso é, no limite, este mesmo corpo.11

Pensar o deserto como corpo sem órgãos situa-nos precisamente no meio do problema do espaço pleno, mas ainda por povoar. Termo originariamente de Antonin Artaud, ele desempenha uma função bem específica no pensamento de Deleuze e Guattari. O corpo sem órgãos é um conceito que, em parte, procura responder à relação de imanência que necessariamente se opera entre o virtual e o actual. A ele está ligada a reformulação da teoria da intensidade diferencial anteriormente desenvolvida por Deleuze. Tentaremos apresentá-lo de forma breve mas rigorosa. 12

O corpo sem órgãos é um corpo que não se opõe aos órgãos mas sim ao organismo, isto é, a um modo «orgânico de organizar os órgãos». Sucintamente, o organismo é o resultado da organização estrutural e totalizadora que se acopla a um dado corpo, estabilizando-o e unificando-o, ainda que este não seja redutível a este processo. Deleuze e Guattari consideram o organismo como um fenómeno de sedimentação ou coagulação que impõe ao corpo fluído formas dominantes e hierarquizadas de o organizar, conferindo-lhe um sujeito e atribuindo-lhe uma significação.13 Por

sua vez, os órgãos funcionam como peças – no O anti-Édipo são formulados como objectos parciais14 – que ocupam um corpo que só existe enquanto suporte da sua ligação e distribuição.

Importa salientar que a conexão entre o corpo sem órgãos e a produção desejante não visa restabelecer uma qualquer unidade perdida nem tão pouco retroceder até à génese do desenvolvimento duma determinada progressão. Não há um corpo despedaçado e fragmentado que subjaz ao organismo, nem este é um ente primordial que precede a formação da matéria. Pelo contrário, Deleuze e Guattari pretendem problematizar a questão da produção e individuação vital (desejante) para além da organização mórfica da matéria.15 Como corpo, ele é na verdade um todo,

mas um todo que não remete para uma totalização que o transcende. Citando Deleuze e Guattari: «O corpo sem órgãos é produzido como um todo, mas no seu lugar próprio, no processo de produção, ao lado das partes que ele não unifica nem totaliza» (Deleuze e Guattari, 1995: 46). Este corpo só o é através da produção desejante que necessariamente ocorre nele e cujos processos intensivos ele condiciona. Neste sentido estrito, o corpo sem órgãos constrói-se como a possibilidade real de conexão, distribuição e inter-cruzamento de órgãos que, neste caso, deverão ser tomados como puras intensidades. Será no entanto errado atribuir-lhe um lado processual e produtivo que, segundo Deleuze e Guattari, este não possui. O corpo sem órgãos tem que ser produzido mas ele, em si, nada produz. Para mais, o corpo sem órgãos coloca-se como

11 Obviamente, o deserto não serve de mediação entre o espaço liso e o corpo sem órgãos. Enquanto espaço liso, ele traça uma tangente a um corpo sem órgãos que lhe serve de limite e fundamento ontológico. A este respeito cf. Mille

plateaux, 632- 633.

12 No presente texto, a exposição do conceito de corpo sem órgãos será feita de forma esquemática. No entanto, convém ter em consideração que nos dois volumes do Capitalismo e esquizofrenia ele está enquadrado numa teoria de produção do desejo segundo um modelo maquínico do inconsciente.

13 Cf. Mille plateaux, 197-198.

14 Relativamente aos órgãos como objectos parciais cf. O anti-Édipo, 339-342.

15 De assinalar que no Mil planaltos Deleuze e Guattari, fortemente influencidos pelo trabalho de Gilbert Simondon, encetam uma feroz crítica ao modelo hylomórfico de individuação da matéria.

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absolutamente improdutivo e imóvel e só assim é ele condição e potencialidade originária da produção desejante. Enquanto corpo pré-individual e inerte, ele deve-se considerar como o limiar da produção e individuação vital. Neste sentido, produzir um corpo sem órgãos é construir o limite real, que nada faz, nada significa, mas sem o qual o regime maquínico do desejo não acontece.

Cabe à intensidade percorrer o caminho que se desenha entre o «motor imóvel» do corpo sem órgãos e os produtos engendrados pela produção vital. Segundo Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos consiste numa zona de intensidade 0 que se actualiza através da sua quantificação e qualificação positiva e extensiva, que será sempre > que 0. Podemos assim considerar o processo de individuação como operação de quantificação e qualificação positiva a partir de uma intensidade real que, no corpo sem órgãos, só existe enquanto intensidade-zero. O que separa esta intensidade pura, este zero pré-existente, dos seres extensivos actuais não é uma diferença de grau mas de natureza, ontológica. Neste sentido, o zero intensivo permanece irredutível às intensidades actuais que dele imanam. Devemos contudo manter que o movimento da intensidade não se processa de forma unívoca, já que é através da sua conexão no corpo sem órgãos, isto é, no modo como este delimita uma zona intensiva específica, que o processo de criação desejante ocorre. O corpo sem órgãos é uma superfície que regista e por onde a produção vital passa, um plano de imanência improdutivo mas intensivo, que se recorta por via da vida desejante que nele dá lugar. Não há corpo sem órgãos sem seres actuais e extensivos, tal como não há intensidade-zero sem intensidades positivas.16

Concluímos assim que o corpo sem órgãos é ao mesmo tempo corpo, limite e plano, e é por via deste triplo aspecto que o podemos considerar como o real imanente à produção vital. Mais concretamente, no O anti-Édipo o corpo sem órgãos é contraposto à produção desejante, sendo esta construída através de uma relação bipolar, de atracção e repulsa, sobre esse plano inerte mas real. Se ele é um "pedaço" de real necessário ao devir da vida, será contudo imprudente tomar o corpo sem órgãos como uma porta aberta a um regime pleno de produção vital desprovido dos seus perigos. Na verdade, Deleuze e Guattari aconselham bastante cautela já que este é o plano necessário à potenciação do devir vital, mas também a zona pré-existente que cancela, na origem, o processo de produção desejante.17 Neste sentido, ele é o próprio limite que se desenha entre a vida e a sua

aniquilação; uma fronteira que se define através do confronto do desejo vital com um real que nada representa, nada significa. Segundo Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos é o modelo da morte que, por via da produção desejante, se articula com a experiência da morte.18 Pode-se dizer que a

experiência da morte, exterior e subjectiva, regista precisamente as transformações diferenciais que

16 O emanantismo de Deleuze e Guattari passa em larga medida pela re-activação e re-actualização da metafísica espinozista. A este propósito atente-se como o corpo sem órgãos é equacionado como substância de onde a individuação emana. A este respeito cf. O anti-Édipo, 341-342; Mille Plateaux, 190.

17 Acerca de cautela relativamente ao corpo sem órgãos cf. Mille plateaux, 187; sobre o seu lado letal cf. Mille plateaux, 201-202.

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atravessam as intensidades actuais no mundo vivido. Deleuze e Guattari tomam a morte logicamente necessária ao devir como objecto da experiência, fazendo da morte da experiência, que ocorre num sujeito, a experiência da morte do ser vivente. Esta morte é vivida, primeiro, pela intensidade > que 0, que passa por vários graus até se exaurir, mas também por um sujeito que a suplementa e vive um “eu morro” pessoal. Como vimos anteriormente, tais transformações ocorrem sobre um plano intensivo pré-existente que é um “bocado” de real imanente: o corpo sem órgãos. O modelo da morte está sempre lá, ao lado das vidas que começam e se esgotam, enquanto afirmação, de teor metafísico, da infinita reiteração da vida. Será portanto uma das tarefas da produção desejante percorrer o caminho de ida e volta entre as duas mortes levando a vivência indidivual até à afirmação da sua renovação sem fim.19

É-nos agora possível clarificar o modo como o deserto está ao mesmo tempo povoado e ainda por ocupar. Ele povoa-se por uma multidão fervilhante de intensidades puras que só formam um corpo colectivo mediante a sua extensão num espaço actual. Para mais, o problema da população do espaço insere-se na forma como essa zona de intensidades é tomada como modelo de uma morte impessoal. Citando Deleuze e Guattari: «O desejo é um exílio, o desejo é um deserto que atravessa o corpo sem órgãos, e nos faz passar de umas das suas faces para a outra. Não é nunca um exílio individual, nem um deserto pessoal, mas um exílio e um deserto colectivo.» (Deleuze e Guattari, 1995: 396).

Conclusão

A ligação do deserto ao corpo sem órgãos levou-nos a um modelo da morte que é corpo, limite e plano real do devir vital. Mas o que dizer acerca da experiência do deserto quando este parece cada vez mais distante, senão oposto, ao espaço vivido? Tentaremos dar uma resposta que não está presente nos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia mas que nos possibilita pensar a experiência estética do deserto como experiência real do espaço. Retomando a distinção entre o modelo e a experiência da morte, é possível conceber o deserto como local onde a experiência do modelo da morte se dá. Por outras palavras: ele é o espaço-fronteira através do qual o espaço real-virtual (não actual, não extensivo) se faz sentir. O que queremos dizer é que no meio do movimento entre o modelo e a experiência de morte, entre o «ovo cósmico» e os seres individuais, há necessariamente uma experiência que é ao mesmo tempo o tornar-se em experiência do modelo da morte e o abrir da experiência da morte ao plano intensivo de onde imana. Não nos referimos a um suposto processo de conversão ou tradução do modelo em experiência (da morte), através do qual esta interpreta ou codifica o real que lhe serve de substrato mas que irrevogavelmente lhe escapa. Referimos uma outra experiência que é, ela mesma, o sentir da intensidade diferencial do pensamento. Uma experiência que traça, por assim dizer, uma tangente transversal às duas mortes e

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que as torna indiscerníveis. Embora tenhamos dito que esta é uma tese que não encontra lugar nos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia, ela dá resposta, em larga medida, à questão que permeia o chamado "empirismo transcendental" deleuziano, isto é: como pensar a experiência real para além dos limites da experiência possível? O papel central que o problema da experiência real ocupa no pensamento de Deleuze encontra resposta no desenvolvimento de uma teoria da sensação. A sensação é conceptualizada como intensidade que se dá a sentir; ela é o ser sensível da intensidade. A sensação é ao mesmo tempo limite do pensamento – membrana sensorial que vibra por contacto com a realidade exterior – e marca inaugural do movimento diferencial deste – sinal sensível do encontro entre o pensamento e algo que vem de fora e o força a pensar. É neste sentido que posicionamos a experiência estética do deserto como o tornar-se em experiência do corpo sem órgãos, um espaço populado por sensações que transbordam os limites e laceram a unidade da experiência vivida. O canto da areia, o assobiar do vento e a visão háptica são portanto sensações que arrancam o pensamento do torpor orgânico do organismo e o forçam a pôr em marcha todo um movimento diferencial, todo um modo nómada de pensar, distribuir e povoar o espaço.

Em O que é a filosofia?, último livro escrito por Deleuze e Guattari, a sensação é feita de perceptos e afectos sendo estes ligados ao devir não humano do homem e os perceptos à paisagem não humana da natureza.20 O conceito de sensação, que é aqui equacionado com o devir-outro do

homem, desenvolve-se dentro da problemática da criação artística, visto que cabe à arte criar e compor sensações, afectos e perceptos.

Quando propomos pensar o deserto como experiência estética do modelo da morte pretendemos abrir a possibilidade de considerá-lo como paisagem, isto é, como espaço ou plano não-humano do homem, que se dá a ver, e a viver, através da sensação. A propósito do poder criativo da arte e do mundo invisível que só a sensação dá a ver, Deleuze e Guattari referem o carácter intrinsecamente fabulador que esta possui. O artista é alguém que viu algo maior que si, algo que o ultrapassa mas que ele terá que tornar visível através das sensações que cria e compõe. Ele terá que ir além das percepções e afecções para chegar aos perceptos e afectos.

A fabulação criadora nada tem a ver com uma recordação, ainda que amplificada, nem com um fantasma. De facto, o artista, incluindo o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens efectivas do vivido. É um vidente, alguém que devém (....) Os perceptos podem ser telescópicos ou microscópicos, dão às personagens e às paisagens dimensões gigantes, como se estivessem inchados por uma vida a que nenhuma percepção vivida pode aceder.21

Propomos assim conceptualizar o deserto como paisagem para a fabulação de um novo mundo,

20 Cf. O que é a filosofia?, 149. 21 Ibid. , 151.

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sensação de uma "nova terra" – tema caro a Deleuze e Guattari – , não-humana ou extra-humana, onde o spatium se faz sentir, por via da dilaceração da experiência vivida. Face à manifesta aridez do deserto, devemos configurá-lo como paisagem de um mundo outro ─ o local onde um mundo espácio-temporal alheio, que antecede, perdura e transborda os limites da existência humana, se dá a ver. Ir além da visão antropomórfica do mundo; eis a tarefa, por assim dizer, antropológica, e sem dúvida gigantesca, que a experiência do deserto, como experiência do modelo da morte, terá de encetar.

Bibliografia

GILLES DELEUZE (1968), Différence et répétition, Paris: Presses Universitaires de France

GILLES DELEUZE, FÉLIX GUATTARI (1995), O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, Lisboa: Assírio & Alvim

GILLES DELEUZE, FÉLIX GUATTARI (1980), Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie, Paris: Les Éditions de Minuit

Referências

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