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Latusa digital ano 0 N 1 agosto de 2003

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Latusa digital – ano 0 – N° 1 – agosto de 2003

A psicanálise na globalização

Manoel Barros da Motta*

Jacques-Alain Miller, em O desencantamento da psicanálise1, retomando o trabalho que realizara com Éric Laurent, em O Outro que não existe2, situa a psicanálise no contexto atual da civilização, no processo de globalização que hoje a engolfa.

Acentua que Lacan formula, em O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, uma “nova edição implícita” do “O Mal-estar na civilização” de Freud, após ter realizado, em O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise , uma “edição explícita do referido texto de Freud. É possível então, da década de sessenta à de setenta, ter uma medida do deslocamento operado por Lacan. Algo de novo surge aí, que diz respeito às novas relações do sujeito com o gozo. Destaca esta tese de Lacan, presente em O Seminário 7.

“O movimento no qual é arrastado o mundo em que vivemos promovendo até às suas últimas conseqüências a instalação do serviço dos bens, implica uma amputação, sacrifícios, a saber, este estilo de puritanismo na relação com o desejo que se instalou historicamente”.3

*

Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

1 MILLER, J.- A. Cf últimas lições do Cours de Orientation lacanienne III, 4, 2001-02, Inédito.

2 MILLER, J.-A; LAURENT. É. Cours de Orientation lacanienne 1995-1996 - L´Autre qui n´existe pas et ses comités d´éthique. Inédito.

3 LACAN, J. Le Séminaire, livre VII: l´éthique de la psychanalyse. Paris, 1986, Éditions du Seuil, pp. 350-351.

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De fato, em 1960, o movimento do capitalismo – que atualmente, em escala global parece não ter oposto – era ordenado por uma ética e uma prática puritanas. Trata-se evidentemente de uma referência a Max Weber, que ligava a emergência do capitalismo a uma repressão do gozo, no qual a prática da acumulação supunha não gozar.

O que vai aparecer na variação que Lacan estabelece, no Avesso, do tema desenvolvido por Freud em “O Mal-estar”, diz J.-A. Miller, é o caráter ultrapassado do diagnóstico sobre o movimento do mundo como marcado pelo estilo puritano. Na atualidade, pelo contrário, o que marca o estilo novo é a permissividade, e o difícil é a interdição interditar, isto que, em sua versão nacional, Caetano Veloso chamou de “É proibido proibir”. Trata-se de um movimento pelo qual o capitalismo separou-se do puritanismo. O que Lacan formulou enfaticamente, no final deste seminário dos anos setenta: “Não há mais vergonha”. Qual é o estatuto da psicanálise quando não há mais vergonha, quando o próprio movimento da civilização tende a dissolvê-la?

Como nota Jacques-Alain Miller, este é o debate fundamental de Lacan em seu ensino: não com a Ego-psychology, mas com a civilização, na medida em que ela abole a vergonha. Debate com o curso da globalização, com o utilitarismo de Bentham, com a extensão do panoptismo – tal como aparece hoje em espetáculos que se generalizam, como o Big Brother na TV – e com a extensão do impacto do American Symptom que tende a se universalizar.

No mundo atualmente globalizado, dominado pelo discurso da ciência associado ao capital, a "ética" do capitalismo triunfou em toda parte, ameaçando destruir a ação da psicanálise, por exemplo, com as psicoterapias de massa, das quais temos uma versão bizarra no Brasil com pastores vestidos de terapeutas.

Podemos dizer, com J.-A. Miller, que nos dias de hoje, a cidade homogênea desapareceu. Ele ressalta ainda o processo frente ao qual temos que estar bem

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atentos: o fato de que o próprio Estado-Nação está abalado, enfraquecido, e alguns chegam a profetizar a sua desaparição, ainda que “muitas zonas escapem à globalização”.4

É a própria psicanálise que tem que ser pensada, na reflexão de J.-A. Miller, no quadro da globalização. A orientação lacaniana se inscreve neste movimento que leva em conta sua ancoragem nas línguas e nos países, ultrapassando-os, porque translingüística. Assim, temos uma Escola Brasileira, mas a responsabilidade do psicanalista Lacan a coloca no mundo, e temos então uma Associação Mundial.

Mesmo que o conceito de globalização seja insuficiente, como diz J.-A. Miller, ele fornece uma referência mais precisa que o de cidade ou pólis. O espaço do mundo globalizado é aquele em que nada mais está em seu lugar, em que houve para o mitsein, como diz Heidegger, um desenraizamento completo das massas. Não há apenas decadência das hierarquias: a própria idéia de lugar se foi. Perderam-se completamente as referências. Neste sentido, a idéia mesma de falta, mola do desejo, desaparece, como se tivesse sido ultrapassada.

J.-A. Miller menciona uma piada de Lacan que explica um aspecto importante de nosso estado: sem a rainha Vitória, Freud não teria existido; ela era a causa de Freud, do ponto de vista histórico. Esta piada tem um fundo de verdade, isto é, a psicanálise estava ligada em seu nascimento à sociedade moralista, disciplinar. Ora, como sabemos, a sociedade para a qual a rainha Vitória é um emblema, um brasão, trazia em si proibições fortes, interditos severos, principalmente no domínio da sexualidade. Em contraposição à época vitoriana, na contemporaneidade, tal como lembra J.-A. Miller, vemos a banalização de espetáculos sexuais, a exposição do que seria íntimo, com a proliferação de filmes pornográficos e de narrativas sobre aventuras sexuais. Se é verdade que, além da rainha Vitória, existiu Catarina II da Rússia – no século das Luzes, é verdade – hoje triunfam experiências ou obras como as de

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Catherine Millet, que aliás descreve em seu livro algumas experiências no Brasil.

Todos os conceitos de Freud – o recalque, a repressão, a função da censura, etc. – estão marcados pela época da disciplina dominante. Aliás, se a obra de Freud e de Marx puderam ser acopladas – se surgiu o freudo-marxismo, de Marcuse e de Reich – isso se deu, sem dúvida, graças à sua dupla dependência em relação ao dispositivo da disciplina. Não foi por acaso que Michel Foucault criticou a hipótese repressiva para definir o poder sobre o sexo, substituído-a por um dispositivo de sexualidade que permitia situar a emergência dos discursos sobre o sexo. Ele ironiza o hino “franciscano” sobre a liberação sexual.

J.-A. Miller descreve a época lacaniana da psicanálise a partir de Michael Hardt e Antonio Negri no livro Império: “Neste período de crise dos anos 60 e 70, a expansão da proteção social e a universalização da disciplina, ao mesmo tempo nos países dominantes e nos países subordinados, criaram uma nova margem de liberdade para a multidão laboriosa. Em outras palavras, os trabalhadores utilizaram a era disciplinar a fim de estender os poderes sociais do trabalho, aumentar o valor da mão de obra, etc”5. A etapa atual do que eles chamam “império” não procede mais pelo interdito e pela repressão, tornando problemática a idéia de liberação ou de revolução.

Lacan pensou inicialmente a psicanálise na época disciplinar, mas antecipou também a psicanálise na época chamada imperial. Três momentos, três etapas podem ser citadas, segundo a periodização original, proposta por J.-A. Miller.

O primeiro Lacan, o da época disciplinar, “formalizou o inconsciente a partir do algoritmo saussuriano do signo, deu uma estrutura formal unificante ao Édipo, ao mecanismo da castração e ao recalque, através da elaboração dos conceitos

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de Nome-do-pai e de metáfora”6. E ainda a libido pelos conceitos de desejo e de metonímia. Esta formulação possui um enunciado fundamental: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Essa versão de Freud foi, aliás, acompanhada pela proposta de um retorno a Freud, ao tranchant da descoberta freudiana, àquilo que Lacan chamou “seu diamante de subversão”.

Na segunda fase do ensino de Lacan, considerada por Jacques-Alain Miller como de transição, opera-se uma subversão de Freud. Na primeira fase do seu ensino, há uma função disciplinar central: a instância paterna, o Nome-do-Pai. Nesse segundo momento, Lacan subverte o Nome-do-Pai por uma pluralização. Há ainda um outro deslocamento: a operação do recalcamento não é mais atribuída à interdição paterna, à ação do pai, mas à própria ação da linguagem. Lacan introduz uma reviravolta mais decisiva para o problema que nos interessa aqui, na medida em que ele subverte o conceito de desejo pelo de gozo. O conceito de gozo passa a ter um papel decisivo na conceitualidade lacaniana. Agora, ao invés de ressaltar a falta, Lacan vai enfatizar o que preenche a falta. J.-A. Miller acentua que é neste contexto que Lacan introduz seu conceito de objeto pequeno a. Importa mais agora, no entanto, o que vem preencher a falta.

Há, por fim, o terceiro Lacan, ou a fase do seu ensino que Jacques-Alain Miller chamou “o último ensino”, cuja elaboração cobre a década de 70, a mesma aliás em que Michel Foucault publicou Vigiar e punir e construiu o conceito de sociedade disciplinar. O conceito fundamental dessa terceira fase é o de gozo – mas gozo na medida em que ele não tem contrário. Antes desta nova definição e formalização, o conceito de gozo estava em tensão com o significante mortífero. Do ponto de vista do significante, dizia-se que o sujeito estava morto e o gozo interdito a quem fala. Agora, a própria linguagem torna-se aparelho de gozo. Agora, o significante é um operador de gozo. Na psicanálise tínhamos aprendido a opor o gozo ao prazer. Na nova formalização de Lacan

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não existe esta oposição prazer/gozo, ela se dissolve. O prazer se transforma em um regime de gozo.

Na última fase, os conceitos herdados da lingüística estrutural cederão lugar a um novo organon, ainda de base freudiana, pulsional, que fora deixada de lado pela leitura estruturalista inicial. Lacan pensa agora ao nível da pulsão. Diferentemente do desejo, a pulsão não está articulada a uma defesa. Ele a resumiu numa fórmula, num aforismo de “Televisão”: “o sujeito é feliz”, que J.-A. Miller nos explicou. Ao nível da pulsão, o sujeito está sempre feliz. É um axioma: a pulsão sempre se satisfaz, “de forma direta, indiretamente, de maneira econômica, dolorosa ou agradável”7. Essa tese corresponde à saída da época disciplinar, organizada a partir do interdito e da transgressão. Agora só há arranjos, modos de gozo; não há mais exterior. É nesse processo que se evoca o avanço do hegemon americano. O sentimento que aparece é que não existe mais exterior.

Como diz J.-A. Miller, a sociedade disciplinar, pensada no livro Império a partir da leitura deleuziana de Foucault, supõe a saída do regime disciplinar e sua substituição pelo regime de controle. De qualquer forma os sujeitos estão numa relação de exterioridade com os aparelhos e dispositivos que os dominam. O poder disciplinar se apóia nos seguintes aparelhos: a prisão, a usina, o asilo, a caserna, o hospital e a escola. Foucault traça a genealogia destes aparelhos no antigo regime, mas o poder disciplinar é constitutivo das relações de poder do capitalismo. Entretanto, faltava à sua análise um elemento do mecanismo das formas de subjetivação. Este regime externo podia valer para um período antigo, que estava em vias de mudar. Na época atual, os mecanismos de dominação são interiorizados, porque a sociedade capitalista se orientou para uma sociedade de comunicação ou informação, e difundiu de maneira mais plástica, móvel, fugidia a dominação. O que existe são redes em que o domínio não é mais exterior, o que Negri chama de alienação autônoma, porque não é mais uma dominação externa.

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Alain Miller propõe chamá-la de dominação êxtima, a que opera no mais íntimo da subjetividade. Ele pergunta então: como fica o tratamento analítico na época da globalização? - uma vez que as três fases que distinguimos no ensino de Lacan se encontram na prática e na direção do tratamento.

Na primeira fase, a análise era concebida como um tratamento diverso do tratamento médico. Ela era ordenada tendo em vista um ideal de maturidade e uma norma da personalidade. Lacan chegava a falar de “uma realização efetiva do Édipo e da castração”. Mesmo quando Lacan fala de desidentificação fálica, Jacques-Alain Miller diz que há claramente um ideal e uma norma operando, ainda que sob um regime de contestação e de recusa.

Em um segundo momento se realiza uma total desmedicalização do tratamento: a análise passa a ser entendida como uma experiência, como “o lugar de uma mutação subjetiva, fundamental”. Aliás, foi o lado médico do tratamento analítico que fez com que este fosse submergido pelas psicoterapias nos EUA e alhures. Lacan ressaltou o aspecto de mutação subjetiva na análise e insistiu na produção de um novo sujeito, de uma subjetividade nova. Isto se cristalizou e tomou formas institucionais, no campo freudiano, com o dispositivo do passe pensado como uma forma de transgressão. Esta transgressão foi pensada sob a forma da travessia do fantasma.

A terceira fase, que segundo J.-A. Miller é própria à época da globalização – aquela que se depreende dos Autres Écrits –, concerne o passe como uma hystória, que se inscreve num conjunto de matemas. Jacques-Alain Miller, que levou às últimas conseqüências o passe, lembra que no Campo Freudiano os depoimentos do passe foram apresentados diante milhares de pessoas em Encontros Internacionais.

A psicanálise na globalização foi o leitmotif que modulou as dez reflexões de Jacques-Alain Miller sobre o destino da psicanálise apresentadas no Curso de

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2001-2. Essa perspectiva muito ampla foi acompanhada de uma reflexão extremamente importante sobre essa afirmação de Lacan, à qual será preciso voltar: o inconsciente é a política...

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